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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

APÊNDICE

 

Carta de Reinhart Maurer a Volker Gerhardt

 

 

Bad Harzburg, 25.1.1

Prezado Sr. Gerhardt

Finalmente chego à redação da carta que quis escrever-lhe, em relação à sua conferência no evento promovido por Furth1 em 6.11.2000 ("O resto é esperar. O deslocado futuro do homem pela história do ser").2

Já se tornara claro, na discussão, que sou quase diametralmente de outra concepção, e mais inequívoco ainda não poderia ter sido, caso o senhor tenha lido o pequeno artigo que lhe dei naquela tarde ("O que há de propriamente escandaloso na filosofia da técnica de Heidegger"). Todavia, isso tudo tem para mim uma história anterior mais longa, que até mesmo começa de maneira semelhante à sua, a saber, com o descontentamento em relação ao "atentismo" ["Attentismus"]3 de Heidegger, como o denominou A. Schwan. Em 1972, publiquei o ensaio anexo à presente; ele foi, originariamente, minha conferência de Habilitação4 em Stuttgart, em 1970. Seu título foi pensado em duplo sentido: "De Heidegger para a filosofia prática": 1) Partir de Heidegger em direção à filosofia prática; 2) Assumir, porém, ao fazê-lo, impulsos essenciais de Heidegger, transpor em prática sua filosofia, em aparência totalmente não prática. Naquela ocasião, remeti a ele o trabalho e recebi uma longa carta, assinada por ele, com o seguinte sentido fundamental: o Ser não se rebaixa a tais platitudes práticas. Muito mais tarde escreveu-me, então, o filho de Heidegger, que a carta fora, com efeito, assinada por seu pai, porém que F.-W. v. Herrmann a teria escrito.

Até aí tudo bem, ou tudo mal - não quero comentar esse começo, pois minha posição logo se alterou. Em verdade, eu queria sempre ainda partir de Heidegger para a filosofia prática, mas agora entendia melhor porque Heidegger não quis dar esse passo. Muito pior ainda: ele afirma que tê-lo-ia dado e, com efeito, não apenas o passo para a filosofia prática, porém para a Práxis. Pensar o ser seria o autêntico agir - assim se encontra na Carta sobre o "humanismo" que, em verdade, é mais do que a tentativa de se desonerar política e filosoficamente depois de 1945, e novamente retornar ao negócio filosófico. A tese de acordo com a qual o pensar seria o autêntico agir, considero-a, decerto, um exagero elevado ao paradoxo, para tornar inequívoco que Heidegger quer se afastar da febril dinâmica prática da sociedade moderna. Para compreender onde ele quer chegar, é melhor nos determos no início da Carta sobre o "humanismo", em que se diferencia entre agir e pensar, assim como entre agir e fazer: "Não meditamos ainda a essência do agir de modo suficientemente decisivo. Conhecemos o fazer apenas como efetuar de um efeito" (portanto, como um fazer). Traduzido em filosofia prática, isso significa, então: encontramo-nos em uma situação crítica, no interior da qual devemos primeiramente meditar, antes de agir. E, além disso, devemos ponderar que o agir não é igual ao fazer.

A práxis primária da moderna sociedade "planetária" (diz-se hoje "global") é a do fazer como produzir, isso é, o produzir da crescente quantidade de bens para crescentes populações, sob crescentes exigências (como diz Gehlen). Sobre essa espécie de práxis se baseia, enquanto tecno-demo-cracia, a democracia liberalístico-capitalista, mundialmente em avanço. Ou seja, ela não é simplesmente democracia, tomada de modo ideal como "discurso livre de domínio de todos com todos" (Habermas), porém, diferentemente de todas as formas anteriores, tecno-democracia, cuja massiva aceitação repousa sobre sua expansiva satisfação de carências massivas em expansão. Heidegger determina o agir em contraposição a isso, ao apontar para a significação originária de producere: "conduzir para fora", "desdobrar algo na plenitude de sua essência". E sua tese sobre o humanismo moderno, tornado técnico, é: ele não desdobraria o homem na plenitude de sua essência. Ao invés disso, ele permite, ideologicamente, a máxima expansão e descarga do homem como produtor e consumidor, e como manager nos múltiplos setores desse gênero de práxis, inclusive no setor da ciência e da cultura. Aqui, porém, espreita o apeiron, a saber, a submersão no vórtice do infinito progresso dos meios para satisfação, para cada vez mais homens, de carências infinitamente crescentes. Aqui não há nenhuma "plenitude da essência", porém vale o ditado da pleonexia, do sempre mais. Uma vez que o progresso dos meios, da técnica, em sentido amplo, é justificado, por princípio, como bom e correto, então ele pode autonomizar-se de tal maneira que aquilo que deve ser propriamente o fim do progresso técnico, a saber, o bem-estar dos homens, torne-se coisa secundária ou caia fora do campo de visão. Desse modo, também o homem, tal como é atualmente, pode se tornar degrau de transição ao ser tragado pelo progresso autonomizado dos meios. Segundo Heidegger, ele se torna "a mais importante matéria-prima" para fins da "geração artificial de material humano" - a propósito, vide recentemente Sloterdijk. Heidegger viu isso chegar já no início dos anos 1940, como o testemunha um texto que se tornou então o número XXVI de "Superação da metafísica" (Ensaios e conferências, p. 71 ss.).

Esse texto é totalmente surpreendente, e é, decerto, o mais acurado diagnóstico crítico de Heidegger. Ele já contém o abandono, por princípio, das esperanças que ele anteriormente havia depositado no nacional-socialismo. Veja-se, a esse respeito, o posterior interview a Der Spiegel, mas já também a conferência anterior "O tempo da imagem do mundo". Pois a "imagem do mundo" é apreendida aí como a "cosmovisão" fundamental (sabidamente um termo predileto dos nazistas) para o infinitamente progressivo trabalho do fazer [Macharbeit], que se torna fim em si. Naquele número XXVI fala-se no "intensificante fazer do factível" e, com efeito, a partir da situação bélica de então, com vistas a uma paz que, em todo caso, colocava-se no futuro distante, relativamente à qual vale, em primeiro lugar: "A guerra se tornou uma variante de desgaste do ente, que é prolongada na paz". Desde então vivemos nessa espécie de paz. Cuja base processual é: "O desgaste de toda matéria, inclusive da matéria-prima `homem', para a produção técnica da possibilidade incondicional de tudo produzir". De resto, o homem se desgasta, para essa armação, não somente porque ele se torna matéria-prima técnica, mas também porque ele se torna funcionário tecno-social da mesma. Em seu conjunto, Heidegger nomeia esse acontecimento a "armação em sentido metafísico", que "desemboca na incondicionalidade da intensificação e do auto-asseguramento que, em verdade, tem a ausência de meta como meta".

Nesse sentido de metafísica, como teoria do enquadramento e do fundamento de uma potencialização da factibilidade tornada autônoma, caminhando por si mesma, afirma Heidegger, já em "O tempo da imagem do mundo", assim como várias outras vezes, mais tarde: a tecnologia seria a metafísica de nossa era. Nesse contexto, fica nos bastidores a tese de Heidegger de que a metafísica ocidental teria preparado esse provisório estado final, esse "fim da história" em furiosa armação. Porém, ela não significa, de modo algum, uma genérica condenação "bárbara" (v. Gerhardt) da tradição, senão que, para Heidegger, essência e in-essência [Unwesen] da metafísica se pertencem mutuamente, como ele diz de modo permanente, também de modo expresso no número VIII de "Superação da metafísica", no qual ele, com efeito, vê o perigo de que a metafísica "afirme a in-essência que lhe é conforme e abandone a ela sua essência".

Parece-me, portanto, que devemos primeiramente tomar conhecimento do diagnóstico crítico, por Heidegger, de nosso tempo, antes de nos perguntar se ele é acertado ou não, ou de já recusá-lo porque desemboca na tese de que a situação é tão ruim que atualmente nada mais se poderia fazer além de esperar que "o Ser" se destine de outra maneira. Como foi dito de início, também eu estava indignado com esse - como me parecia - paralizante Atentismo. Porém eu via também - não claramente, de início - que, em Heidegger, havia aí ainda outra coisa em jogo. Além disso, ele não diz, em absoluto, que só se pode esperar inativamente, porém fala a favor do pensar e da "meditação" [Besinnung]. Ele também fala a favor da reflexão sobre o agir, para que este não seja tragado no vórtice do mero fazer que, do ponto de vista prático, resulta no desgaste do ente, sem sequer se aproximar de seu suposto fim: melhor satisfação das carências globalmente para todos. Traduzido em filosofia prática, isso significa: nós nos encontramos na situação de uma mosca que caiu em uma teia de uma aranha, e que, em pânico, entrega-se então a uma agitação pela qual apenas se enreda ainda mais. Seria melhor, ao invés disso, primeiramente não se mexer, meditar, e, então, se possível, iniciar um movimento para fora da teia. Para tanto, porém, temos que saber em que, precisamente, consiste o enredamento e que direção conduz para fora dele. Essa é hoje, conforme me parece, a tarefa da filosofia prática, que esta, em sua forma corporativa, percebe tão bem como de modo nenhum.

Considero inteiramente leviano, em tal situação, apostar em nossa linha geral, ou seja, no snowsiano e norte-americano programa de desenvolvimento da humanidade. Podemos reduzi-lo à seguinte fórmula: técnica sempre mais potente, democraticamente guiada e controlada. No início de sua conferência, o senhor mencionou Snow, e suas recomendações para o presente e o futuro eram no sentido de Snow. Desviando-nos de Heidegger, como de um pensador decepcionado pelo curso das coisas, deveríamos nos adaptar a esse curso (Furth falou de oportunismo); ou, melhor ainda, guiá-lo para a desejada direção humanitária, com impulso de ação abrangendo continentes e culturas. Como atores democraticamente autoconscientes, enfrentamos as tarefas comuns, com responsabilidade perante o futuro, em esforços tanto mais abrangentes quanto mais, ao fazê-lo, estamos mais fortemente periclitados. Grandes tarefas nos aguardam. O homem faz sua história (compilação a partir de minhas notas).

Ora, pois, no socialismo, existiam também, até o final, discursos semelhantemente seguros do futuro. "Crítica da cultura voltada para trás", principalmente de proveniência alemã, era debitada como "decadência burguesa". Agora, eles quase nada teriam que criticar em nós. Também entre nós algo semelhante é desaprovado, em todo caso, é oferecido como algo folhestinescamente picante, se procede de um outrora meritório cientista, como Chargaff. Justamente alguns judeus são desviantes - e eles estariam, o mais facilmente, autorizados a sê-lo; assim também Hans Jonas, junto a quem se pode ler que o programa humanitário-desenvolvimentista atualmente seguido, o "american way of life" para todos, fracassará por razões ecológicas, quando não de outro modo. Porém, um de nossos mais proeminentes managers da ciência, a saber, Hubert Markl, também o diz, e muitos outros cientistas, que alguma vez, ocasio-nalmente, pronunciam-se, porém sem conseqüências. Temos, alguma vez, que tornar claro para nós o que é que significa, se eles têm razão: a saber, a destruição não mais de milhares, como habitualmente, de resto, porém de bilhões de homens.

E não é seguro, de modo algum, que também Heidegger não tenha razão, com sua altamente chocante observação sobre a moderna economia agrária: que ela seria, "em essência, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás". A atual BSE-Crise é um prenúncio de possibilidades vindouras. Pois, o que se deve "fazer"?: a massiva demanda de carne só pode ser satisfeita com a criação massiva de animais. Não se pode tê-la, porém, de maneira "adequada à espécie"; isto é, os animais adoecem quando não se os entope com medicamentos. Contudo, o retorno a formas adequadas de criação animal produziria carne de menos. Para isso, também não há mais terra suficientemente disponível, pelo menos na Europa (para criação animal extensiva, ao invés de intensiva). O que, portanto? Enleamo-nos em uma altamente enredada aporia.

Seguramente, Heidegger se torna, com freqüência, nebuloso e verborrágico. Contudo, por outro lado, ele apreendeu problemas essen-ciais com surpreendente correção, à diferença, por exemplo, de certos outros filósofos, que ainda muito mais do que ele se enlearam numa rede verborrágica em prol da precisão tornada fim em si mesma. Isso conduz ao suicídio "analítico" da filosofia depois do "linguistic turn". Aparentemente, estamos de acordo na recusa dessa direção. Consideraria belo que o senhor, depois da grandeza de Hegel, pudesse estimar também ainda a grandeza de Heidegger; e acharia ainda mais belo se sobre isso pudéssemos permanecer em diálogo. Eu sei tudo aquilo que o senhor tem na garganta, porém isso é aqui, pelo menos, igualmente importante.

[...]

Com amistosas saudações - Seu

Reinhart Maurer

 

 

Tradução: Oswaldo Giacoia Junior

1 Trata-se, provavelmente, de Peter Furth, professor catedrático do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Freie Universität Berlin, especialista em filosofia social. Trata-se do mesmo instituto em que trabalhou Reinhart Maurer, até sua Emeritierung (aposentadoria) em 1999. Volker Gerhardt é professor titular em Filosofia do Instituto de Filosofia da Humboldt Universität, também em Berlim. Esta é a antiga Universidade de Berlim, na qual lecionaram Hegel, Fichte e Schopenhauer e que, até a reunificação alemã, pertencia à antiga República Democrática da Alemanha, cuja capital era Berlim Oriental (N. do T.)
2 Publicado em Merkur, em março de 2001 (N. do A.)
3 Expressão formada a partir da germanização do verbo francês attendre, esperar, estar à espera (N. do T.)
4 Habilitation é o concurso universitário que conduz à outorga do título de professor livre-docente nas universidades alemãs (N. do T.)