SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número2Carta de Reinhart Maurer a Volker Gerhardt índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

DOCUMENTO

 

Convocação para a fundação de uma "Sociedade para a Filosofia Positivista"

 

A call for the foudantion of a "Society For Positivist Philosophy"

 

 

Apresentação e comentário de Leopoldo Fulgencio

Doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

I. Documento

Aufruf zur Gründung einer "Gesellschaft für positivistische Philosophie"1

 

 

II. Tradução*

Convocação para a fundação de uma "Sociedade para a Filosofia Positivista"

 

CONVOCAÇÃO!

Elaborar uma visão de mundo abrangente, com fundamento em dados fatuais acumulados pelas ciências particulares, e divulgar idéias seminais servindo a esse propósito, entre os próprios pesquisadores, tornou-se uma necessidade cada vez mais premente, antes de tudo para a ciência, mas também para a nossa época em geral, que só assim poderá apropriar-se do que já possuímos.
Entretanto, esse fim só pode ser atingido mediante trabalho em conjunto de muitos. Por isso, convocam todos os pesquisadores interessados em problemas filosóficos, qualquer que seja a sua área de atuação científica, bem como todos os filósofos no sentido estrito, que esperam chegar a conhecimentos válidos somente através de estudo aprofundado dos fatos da experiência, a se congregarem numa Socie-dade de Filosofia Positivista. Essa Sociedade deve ter por objetivo estabelecer uma conexão viva entre todas as ciências, desenvolver, em todas as áreas, conceitos unificadores e, assim, avançar em direção a uma concepção geral livre de contradição.
Para informações mais detalhadas, dirigir-se ao docente co-signatário M. H. Baege, Friedrichshagen b. Berlin, Waldowstrasse 23.

 


 

III. Apresentação e comentários

Esse documento, publicado em 1912,2 consiste num convite para a fundação de uma "Sociedade para a Filosofia Positivista", onde seus signatários tomam posição numa discussão sobre a natureza das visões de mundo científicas. Constam, como assinantes, um número expressivo das autoridades intelectuais do começo do século, entre eles: Ernst Mach, Albert Einstein, Sigmund Freud, George Helm3, Jacques Loeb4, David Hilbert e Félix Klein5.

Seu conteúdo é um tanto quanto vago, genérico, e seu entendimento depende da compreensão da diferença de opinião entre Ernst Mach6 e Max Planck7 sobre a natureza das teorias científicas. O que estava sendo discutido era a questão do valor a ser dado a certos conceitos no que diz respeito à sua realidade empírica ou à sua natureza apenas instrumental.

De um lado Mach, defensor de um ponto de vista heurístico,8 que reconhece na ciência o uso de determinadas convenções como úteis na busca de relações entre os fenômenos, ainda que eles não tenham um referente objetivo na realidade sensível. Para Mach, termos como átomo, força, massa etc. são meras convenções9 para que seja possível observar e descrever os fenômenos, um modelo para a descrição dos fatos;10 ele chega a perguntar com ironia àqueles que defendiam a realidade empírica do conceito de átomo: "Vocês já viram um só destes?"11 Mach considera que esses conceitos são frutos da fantasia do cientista,12 mas que isso é necessário: "a compreensão conceitual da natureza deve ser precedida pela sua compreensão mediante a fantasia, a fim de produzir para os conceitos um conteúdo visual vivo" (Mach 1920 [1905], pp. 106-7).13 Essas fantasias seriam só momentaneamente necessárias, pois o desenvolvimento futuro da ciência poderia dispensá-las, substituindo-as por uma compreensão direta das relações de dependência entre os fenômenos:

Não é impossível que um dia as leis integrais (para empregar uma expressão de C. Neumann) substituam as leis elementares que constituem a mecânica atual e que nós possamos ter assim um conhecimento direto da dependência recíproca das posições dos corpos. Então o conceito de força terá se tornado supérfluo. (Mach 1883, p.250)

Mas enquanto isso não ocorre, elas são extremamente úteis. De nada valeria abandoná-las sem ter algo melhor a propor, como explicita Mach ao comentar o conceito de força:

Tenta-se em vão rejeitar essa concepção como subjetiva [força como pressão que sentimos em nosso corpo, análoga a um ato de vontade, etc], anímica e não científica; de nada nos serve violentar a maneira natural de pensar que nos é própria e de nos condenar assim a uma voluntária pobreza intelectual. (Mach 1883, p. 81)

Do outro lado Planck, que se coloca numa posição realista, esperando da ciência não apenas convenções, mas algo que reflita as leis do mundo. Ele pergunta: "Ela [a visão de mundo científica] é uma pura e arbitrária criação de nosso espírito, ou ela reflete na sua realidade os processos naturais tal como eles se desenvolvem independentemente de nós?" (Planck 1949 [1908], p. 48); e opta pela segunda alternativa. Sua oposição a Mach é explícita:

Eu estou persuadido de que o sistema de Mach, se ele é rigorosamente aplicado, permanece ao abrigo de contradições, mas eu penso também que sua significação é puramente formal e que ele não toca na essência das ciências naturais, isto porque ele não leva em conta a característica fundamental da investigação científica: a elaboração de um sistema de mundo constante, independente das vicissitudes temporais e das mentalidades nacionais. O objetivo da ciência não é o de adaptar perfeitamente nossos conhecimentos a nossas sensações, mas de depreender uma representação do mundo físico que seja completamente independente da personalidade dos homens que a consti-tuem. (Planck 1963 [1908], p. 64)

Os signatários do presente documento tomam posição ao lado de Mach. Entre eles, dois dos grandes nomes do século XX: Einstein e Freud. Einstein tinha uma grande admiração por Mach, reconhecendo nele uma influência fundamental para o desenvolvimento de sua teoria da relatividade, chegando até mesmo a subscrever-lhe, numa carta de 1909: "Eu permaneço como seu aluno que o venera".14 Isto não significa que Einstein se manteve como seu fiel seguidor, abraçando o empirismo de Mach.15

Quanto a Freud, ele recorre freqüentemente ao vocabulário epistemológico de Mach e se apóia em diversas de suas posições para a construção da metapsicologia.16 É assim, por exemplo, que Freud defende o conceito de pulsão como uma convenção17 e caracteriza a psicanálise como edificada sobre uma mitologia das pulsões,18 tal como faz Mach quando caracteriza o ponto de vista dinâmico como uma mitologia.19

A carta de Freud a Einstein, de 1932, apóia-se ainda em Mach, como se depreende da seguinte pergunta:

Talvez você tenha a impressão que nossas teorias são um tipo de mitologia, no caso aqui presente uma mitologia que não é nem mesmo muito feliz. Mas toda ciência da natureza não retoma, ela mesma, um tal tipo de mitologia? Acontece hoje de uma maneira diferente para você na física? (Freud 1933b, p. 78)

A presença de Freud como signatário é um índice confiável de sua pertinência ao ponto de vista epistemológico na teoria da ciência proposto por Mach20 e aceito por um grande grupo de pesquisadores de primeira linha. Por vezes, Freud é interpretado como um intelectual extremamente perseguido, sempre na marginalidade de seu tempo, mantido preconceituosamente como um excluído ou incompreendido. A sua presença nesse documento contraria esse tese, mostrando-o compartilhando certos valores comuns e, sendo requisitado para tomar partido em questões centrais discutidas no cenário científico do início do século XX. Isso desfaz o mito de Freud como um herói solitário enfrentando a medio-cridade da "maioria compacta".21

De acordo com o ponto de vista de Mach, Freud dirá que as suas teorias metapsicológicas constituem especulações heurísticas eficientes para a resolução de problemas clínicos no tratamento de certas psicopatologias. Diz Freud:

Estas representações e outras similares [o inconsciente e suas subdivisões] pertencem a uma superestrutura especulativa [spekulativer Überbau] da psicanálise, onde cada parte pode ser sacrificada ou trocada sem dano nem remorso, a partir do momento em que uma insufi-ciência é constatada. (Freud 1925d, p. 80)

O presente documento, fornece-nos, portanto, uma indicação precisa, vinda do próprio Freud, sobre o ponto de vista epistemológico que deve ser usado na interpretação de sua obra.

 

Referências bibliográficas

Assoun, Paul-Laurent 1981: Introduction à l'épistemologie freudienne. Paris, PUF, 1990.

______ 1985: "Étude-Préface. Musil, lecteur de Mach", in Musil 1985.

Ellenberger, Henri F. 1970: Histoire de la découverte de l'inconscient.

Mesnil-sur-l'Estrée, Fayard, 1994.

Freud, Sigmund 1915c: "Pulsions et destin des pulsions", in Oeuvres complètes (OCF.P). Paris, PUF. vol. 13.

______ 1925d, Autoprésentation, OCF.P, vol. 17.

______ 1933a: Nouvelles suite des leçons d'introdution à la psychanalyse, "XXXII Leçon: Angoisse et vie pulsionnelle", OCF.P, vol. 19.

______ 1933b: Pourquoi la guerre?, OCF.P, vol. 19.

Holton, Gerald 1967: "Où est la réalité? Les réponses d'Einstein", in Holton (org.) 1967: Science et synthèse. Paris, Gallimart.

______ 1994: Science and Anti-Science. London, Harvard University Press.

______ 1998: Science en gloire, science en procès. Entre Einstein et aujourd'hui. Paris, Gallimard.

Loparic, Zeljko 1984: "Resolução de problemas e estrutura de teorias em Mach", in Cadernos de história da filosofia da ciência, vol. 6, pp. 35-62.

______ 2000 [1982]: A semântica transcendental de Kant. Campinas, CLE.

Mach, Ernst 1920 [1905]: Erkenntnis und Irrtum. Leipzig, Barth.

______ 1922 [1905]: La conaissance et l'erreur. Paris, Flammarion.

______ 1987 [1883]: La mécanique. Exposé historique et critique de son développement. Paris, Jacques Gabay.

Musil, Robert 1985 [1908]: Pour une évaluation des doctrines de Mach. Paris, PUF.

Planck, Max 1949 [1908]: "L'univers de la physique et son unité" (conferência pronunciada em Leyde), in Planck 1963.

______ 1963: L'image du monde dans la physique moderne. Zurich, Éd. Gonthier.

Soulez, Antonia 1985: Manifeste du cercle de Vienne et autres écrits. Paris, PUF.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ful@that.com.br

 

 

1 A fotocópia do texto original deste documento foi gentilmente fornecida pela Academia Alemã de Ciências de Berlim, Arquivos Wilhem Ostwald.
* Tradução de Zeljko Loparic.
2 O Aufruf foi publicado em 1912, num importante periódico científico (Pysikalische Zeitschrift, vol. 13, p. 735) e, simultaneamente, num dos primeiros periódicos psicanalíticos (Zentralblatt für Psychoanalyse, vol. 3, 1912-1913, p. 56). A informação sobre a publicação do documento nesse periódico de psicanálise foi-me fornecida por Keith Davies, do Museu Freud). Esse documento é pouco conhecido e raramente mencionado. Cf. comentários de Holton 1967, p. 102, n. 1; 1994, pp. 12-14; 1998 [1996], p. 207-8.
3 Físico, com importantes trabalhos sobre a energia. Será a partir de seus trabalhos que Wilhem Ostwald, prêmio Nobel da química em 1909, desenvolverá suas concepções energéticas.
4 Fisicalista, intérprete do comportamento animal, com importantes estudos sobre a partenogênese artificial e o tropismo.
5 Hilbert e Klein eram dois dos mais importantes matemáticos do começo do século. Cf. Holton 1994, pp. 11-2, para mais informações sobre os participantes desse documento.
6 Ernst Mach (1838-1916), era considerado, no início do século XX, um dos mais importantes físicos, psicofísicos e filósofos da ciência. Poucos intelectuais tiveram tanta influência sobre diversos outros campos da cultura quanto ele. Holton comenta que "a partir de 1880, as idéias e atitudes filosóficas [de Mach] tinham se incorporado à bagagem intelectual de seus contemporâneos" (Holton 1967, p. 100). Pode-se reconhecer sua influência em escritores tais como Robert Musil (cuja tese de doutorado de 1910 versa sobre Mach), políticos como Lénin (que escreve, em 1908, um texto opondo-se a Mach: Materialismo e empirio-criticismo), juristas como Hans Kelsen (com sua teoria positivista do Direito, foi um dos responsáveis pela redação da Constituição austríaca do pós-guerra), críticos de arte tais como Carl Einstein (um dos responsáveis pela apresentação da arte negra à vanguarda artística européia do início do séc. XX), pintores como Paul Klee, além de outros cientistas e filósofos, tais como Paul Carus, Willian James, Jacques Loeb, B. F. Skinner, Philipp Frank, W. V. Quine etc. Convém lembrar que, em 1928, o cientista social austríaco Otto Neurath, em companhia de outros intelectuais - entre eles Rudolph Carnap -, funda a Associação Ernst Mach, que dará origem ao Círculo de Viena (cf. Soulez 1985).
7 Max Planck (1858-1947), formulador da teoria dos quanta (desenvolvida, posteriormente, por Einstein), foi um ponto de partida para a teoria de Bohr sobre a estrutura do átomo (1913). As idéias de Planck, retomadas por Max Born, e as de Werner Heisenberg, propiciaram a formulação do conceito de "quantum de energia", que influenciou todos os domínios da física moderna. Em 1918, Planck recebeu o prêmio Nobel da física em função do conjunto de sua obra.
8 A interpretação de Mach como um clássico do ponto de vista heurístico foi proposta por Loparic (2000 [1982], 1984).
9 Cf. Mach 1883, p. 476 e passin.
10 Cf. Mach 1883, p. 459.
11 Cf. Holton 1998, p. 108.
12 "Essas filhas da fantasia lutam pela existência na medida em que procuram se sobrepujar mutuamente. Inúmeras dessas florações da fantasia devem ser aniquiladas pela crítica implacável tendo em vista os fatos, antes que uma delas possa desenvolver-se e ter uma permanência mais longa. Para que se possa avaliar esse processo, é necessário levar em conta o fato de que se trata de reduzir os processos naturais a elementos conceituais mais simples". Mach 1920 [1905], p. 106.
13 Tradução de Zeljko Loparic. Esse trecho na versão traduzida para o francês (1922 [1905], p. 181) está incompleta e um pouco torcida, o que obrigou a buscar o texto na sua versão original.
14 Carta de 17/8/1909. Cf. Holton 1967, p. 108.
15 Para um esclarecimento mais detalhado das relações entre Einstein e Mach, veja Holton 1967, pp. 101-16; 1994, pp. 56-73; 1998, pp. 154, 206, 248, 255.
16 Cf. Assoun 1981, pp. 73-90; 1985, pp. 39-48.
17Cf. Freud 1915c, p. 164.
18 Cf. Freud 1933a, p. 178; Freud 1933b, p. 78.
19 Cf. Mach 1922 [1905], p. 113.
20 A ênfase nesse ponto de vista heurístico como organizador e estrutural dos modos de pensar desses cientistas, não aparece nas análises feitas por Gerald Holton, nem nas observações feitas por Paul-Laurent Assoun, ao comentarem essas relações.
21 Cf. Ellenberger 1970, pp. 458-81, o comentário e a referência a documentos da época que mostram que Freud não era tão marginalizado como às vezes se imagina.