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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.3 n.1 São Paulo jun. 2001

 

ARTIGOS

 

Experiência nacional e interpretação: a recepção americana de Heidegger

 

National experience and interpretation: the American reception of Heidegger

 

 

Claudia Drucker

Departamento de Filosofia - Universidade Federal de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma comparação entre dois intérpretes americanos de Heidegger, que destaca as premissas e os objetivos comuns a ambos. Dreyfus e Rorty usam o pensamento de Heidegger seletivamente. A autora aponta as dificuldades a que tal leitura leva, e faz uma distinção entre as respostas de Dreyfus e de Rorty. Dreyfus atribui a Heidegger uma má compreensão do seu próprio projeto. Rorty reconhece que suas premissas e objetivos não são heideggerianos, e defende que é legítimo usar uma teoria a serviço do pragmatismo e da democracia. A filosofia, e, por conseguinte, a interpretação, é um modo de esclarecer e legitimar as preferências da comunidade nacional a que pertencemos. A conclusão desse estudo é que Rorty está certo em parte, na medida em que não se pode evitar uma apropriação nacional, seletiva, de uma obra. Mas pode-se e deve-se colocar em questão as premissas e os objetivos que motivam e orientam nossa interpretação.

Palavras-chave: Metafilosofia, Sociologia, Eu, História, Política.


ABSTRACT

A comparison between two American commentators on Heidegger that underlines their shared aims and premises. Both Dreyfus and Rorty use Heidegger's thinking as a toolbox. The author points out the problems raised by this approach, and makes a distinction between Dreyfus's and Rorty's responses. Dreyfus claims that Heidegger misunderstood his own project. Rorty is aware that his premises are not Heideggerian, and upholds his way of using Heidegger in the service of pragmatism and democracy. Philosophy, and therefore interpretation, is a way to explain and legitimize the preference of the community we live in. The conclusion of this study is that Rorty is partly right; one cannot help being selective and "national". However, one can and ought to clarify their premises and aims.

Keywords: Metaphilosophy, Sociology, Self, History, Politics.


 

 

Embora pareça mais ou menos evidente que existe uma relação íntima entre aquilo que se pensa, e onde e quando se o pensa, o caráter dessa relação tem de ser sempre novamente questionado. Neste estudo, não poderei propor nenhum modelo para descrever a relação entre contexto e pensamento. Mais modestamente, vou me limitar a fazer a análise de um caso. A teoria é o pensamento de Heidegger. O contexto é o universo intelectual americano, mais especificamente as interpretações da obra de Heidegger mais influentes, hoje, nos Estados Unidos, as de Hubert Dreyfus e Richard Rorty. Dreyfus se deu ao trabalho de mostrar como o pensamento de Heidegger responde diretamente a questões oriundas do ambiente da filosofia da mente. Ele tem uma leitura no mínimo seletiva de Heidegger, o que o leva a tirar algumas conseqüências interessantes desse experimento. Outras são francamente problemáticas, como a alegação de que Heidegger não compreendeu seu próprio projeto.

O objetivo deste estudo, porém, não é apenas mostrar que a leitura de Dreyfus é deturpadora, mas, antes, refletir sobre a origem dessa deturpação. Recorro a outro leitor de Heidegger, também americano e pragmatista, para tornar manifestas as motivações e os critérios que determinam a atitude dreyfusiana. Rorty admite estar se apropriando de aspectos do pensamento de Heidegger para os seus próprios propósitos. A imagem da "caixa de ferramentas" resume essa abordagem: Heidegger é útil enquanto servir para fazer a crítica ao cartesianismo e ao objetivismo, mas é rejeitado quando não adere à democracia liberal. Rorty nos interessa, sobretudo, porque está consciente dos seus pressupostos e disposto a defendê-los. Para ele, nossas opções filosóficas se devem a circunstâncias e escolhas contingentes. Filosofar só pode ser um modo de legitimar aquilo em que já acreditamos. A pergunta a se fazer diante da tradição filosófica é: que armas ela me oferece para legitimar minhas convicções últimas? Rorty confessa aquilo que Dreyfus cala: a saber, que existe um vínculo entre pragmatismo, democracia e modo americano de vida. Esse fundo guia sua apropriação de obras filosóficas.

A conclusão deste estudo é parcialmente simpática a Rorty. Talvez seja correto generalizar que as teorias filosóficas sempre são apropriadas a partir de questões e premissas relevantes para um determinado povo. Aquele que se defronta com uma teoria produzida em outro lugar e outras circunstâncias não pode suprimir essa distância. Isso não significa negar que existem leituras mais e menos deturpantes. As leituras que menos deturpam o texto original são aquelas que vêm acompanhadas de um esforço para explicitar quais são as premissas e questões vitais para o intérprete. Essa sugestão talvez fosse trivial em outro ambiente que não a comunidade filosófica brasileira, já que aqui se considera a filosofia, de modo unânime, uma disciplina universal. Mas até mesmo essa visão é reveladora de quem somos.

 

1. Dreyfus e a rejeição da consciência

Algumas das teorias que a tradição considerou evidentes sobre o agir e o compreender hoje nos parecem frágeis. Heidegger sustenta que essa impressão de fragilidade se deve ao fato de que a tradição sempre negligenciou o caráter mundano da nossa existência, o que hoje nos parece um preconceito a ser rejeitado. Assim, ele visa elaborar uma visão do Dasein como "estar-no-mundo". Esse programa bastante vasto faz com que parte das suas descobertas não exijam nenhuma filiação metodológica específica. Eis por que intérpretes que vêm de outras tradições podem se identificar com Ser e tempo. É o caso de Dreyfus, que, de saída, define a sua interpretação como "wittgensteiniana" (Dreyfus 1991, p. 144). Nós nos movemos dentro de um campo de "práticas" habituais que dispensa totalmente a noção de intencionalidade e de representação (ibid., p. 57). Nossa relação com o mundo deveria ser descrita como uma prática absorvida, que Dreyfus às vezes afirma dispensar totalmente a recognição. A expressão heideggeriana "estar-no-mundo" é substituída pela expressão "ongoing coping", que podemos traduzir como "administrar as circunstâncias de forma não-deliberada, suave e sem rupturas" (ibid., p. 58). É como se a nossa lida com as coisas dispensasse, não apenas uma caracterização atenta, mas também qualquer tipo de caracterização. Nós nos relacionamos com o mundo, a maior parte do tempo, através de "mindless skills", ou seja, habilidades desatentas, e por que não dizer, cegas. A sua tese é a de que "se admitimos estados mentais... mesmo que sejam tácitos ou pré-reflexivos, distorcemos o sentido da administração cotidiana (everyday coping) e recaímos nos velhos problemas epistemológicos" (ibid., p. 54).

À primeira vista, parece haver traços comuns ao pensamento de Dreyfus e à fenomenologia. Um deles é a ênfase no fato de que estamos desde sempre imersos no mundo. Outro, que decorre do primeiro, é a polêmica contra a filosofia moderna. Dreyfus observa que "Heidegger nega o sentido fundacional de estados mentais. Ele frisa que aquilo que é `dado' à reflexão não tem, na vida cotidiana, a prioridade que tem na filosofia cartesiana" (ibid., p. 147). A consciência é tácita e acessível somente através da reflexão. Na maioria das vezes, só percebemos o que aconteceu depois do fato, por assim dizer. Nós não lidamos com um fluxo de representações de um sujeito que se reconhece como o "lugar" desse fluxo. No entanto, Dreyfus prefere marcar uma distância ante o movimento fenomenológico. Husserl oferece precisamente o modelo do qual Heidegger está tentando se desligar. Pois, para Husserl, "mente e mundo são dois âmbitos da realidade totalmente independentes" (ibid., p. 74). A fenomenologia husserliana é "o estudo do conteúdo intencional que permanece na mente após a redução do mundo" (ibid., pp. 50-1). Enquanto, para Husserl, "a característica essencial da representação é ser puramente mental", Heidegger, ao contrário, apresenta um modelo segundo o qual "conteúdos mentais tais como crenças e desejos, e [a atividade de] fazer planos e seguir regras" pressupõem uma "atividade envolvida no mundo" (ibid., p. 74). Heidegger "aceita a orientação intencional como essencial para a atividade humana, mas ele nega que a intencionalidade seja mental" (ibid., pp. 50-1).

Carleton Christensen sugere que uma confrontação com o ponto de vista dreyfusiano pode tomar duas direções. Uma seria mostrar que Heidegger nunca abre mão de uma certa noção de intencionalidade, que tampouco é a habilidade administrativa de que fala Dreyfus. Poderia ser argumentado que o afastamento heideggeriano de Husserl não se deve à recusa da teoria da intencionalidade. Outra direção é argumentar o quanto é problemático, em si mesmo, o ponto de vista de Dreyfus.
O que significa exatamente uma "intencionalidade não mental"? Para usar um exemplo de Christensen, é como se eu, ao pregar um prego, não empregasse nenhuma noção de "torto" ou "reto", ou "como eu quero" (Christensen 1998, p. 66). Que prática é essa que dispensa totalmente a recognição e a antecipação do resultado visado por uma ação?

Tomarei uma terceira direção, porém. O próprio Dreyfus admite o quanto a sua interpretação de Heidegger soa um pouco violenta: "até este ponto no meu comentário, minha interpretação wittgensteiniana do estar-no-mundo do ponto de vista de práticas tácitas compartilhadas pode parecer uma imposição externa a Heidegger"; mas ela soa mais plausível quando passamos ao campo da filosofia prática (Dreyfus 1991, p. 144). A partir daqui discutirei a visão das relações humanas que corresponde ao pragmatismo dreyfusiano. Vemos que lhe corresponde uma visão sociológica, segundo a qual o eu é um conjunto de papéis sociais.

O estar-no-mundo, de acordo com o pensamento de Ser e tempo, é no mais das vezes concentrado nas suas tarefas imediatas, e desatento para os seus conflitos internos ou qualquer outro assunto que interrompa a administração cotidiana. Todo tipo de reflexão, do ponto de vista da lida cotidiana, é uma distração e um transtorno. É preciso "esquecer-se de si mesmo" para poder estar no mesmo mundo que todo mundo: "o eu tem que se esquecer [de si mesmo], para que possa `realmente' ir para o trabalho e agir, `perdido' em meio ao mundo dos instrumentos" (Heidegger 1984 [1927], p. 354, trad. vol. 2, p. 154, modificada). Para Heidegger, o trabalho não é, em primeiro lugar, nem uma lida solitária, nem uma relação com a natureza. O trabalho é uma rede de inter-relações pessoais. O mundo do trabalho designa o modo como nós encontramos uns aos outros, todos igualmente interessados no cumprimento das tarefas à mão. Eis por que, para Heidegger, o estar-no-mundo também é ao mesmo tempo um "estar-com" (Mitsein) (Heidegger 1984 [1927], p. 114, trad. vol. 1, p. 164). Tendo essas nuances em mente, podemos imaginar que a frase "o eu tem que esquecer de si mesmo para poder ir para o trabalho" alude também a um outro tipo de inconsciência, que faz parte das relações cotidianas entre as pessoas. O eu tem que esquecer de si mesmo para poder estar com os outros.

Uma conseqüência importante desse "estar junto com" os outros é que as relações interpessoais desempenham um papel constitutivo, isto é, positivo, na formação do eu. Nossa identidade, no mais das vezes, é ditada apenas pelos papéis sociais que desempenhamos: "a gente [man] é o que faz. A interpretação cotidiana do Dasein retira o seu horizonte de interpretação e nomeação daquilo que em cada circunstância é a sua ocupação. A gente é sapateiro, alfaiate, professor ou banqueiro" (Heidegger 1985 [1925], p. 244). Heidegger deixa de assumir como evidente que há um eu singular que subjaz e sobrevive ao incessante representar de papéis sociais. O Dasein cotidiano se caracteriza por ser "substituível", por ser um mero "representante" de um subgrupo (Heidegger 1984 [1927], p. 239, trad. vol. 1, p. 19). O outro pode ser substituído por qualquer pessoa que pertença à mesma nação, classe social, sexo, profissão, etc. Não somos indivíduos singulares, pelo menos não na maior parte do tempo, e nem tratamos os outros como se fossem.

Muitos viram, nas análises de Heidegger, uma certa indiferença ante a instrumentalização dos seres humanos. De fato, podemos dizer que o estar-com tem, no mais das vezes, a forma de uma desatenção fundamental para com a singularidade do outro, e que ele sempre inclui necessariamente momentos de convencionalismo. Contudo, o sucesso da sociologia como ciência depende de que o ser humano seja considerado apenas como suporte de papéis sociais. Esta é, por exemplo, a opinião do sociólogo americano George Herbert Mead, para quem a ciência social conquista um poder explicativo quando pressupõe que "a mente é um produto do processo social e o pressupõe". Essa escolha é cientificamente preferível porque permite explicar o que a mente é, e como os "organismos passam a ser dotados dela em um determinado ponto do processo evolucionário", sem exigir que o cientista esteja continuamente introduzindo "fatores incidentais e vindos de fora" (Mead 1927, pp. 297-8). Mead associa tanto a capacidade de viver em sociedade como a tarefa da ciência social como dependentes de processos de superfície. Dreyfus não compartilha do evolucionismo de Mead, mas tem uma visão semelhante, no sentido de que acredita que não temos o direito de supor a existência de uma "esfera da propriedade [ownness]" que seja mais do que um produto do processo social: "o Dasein não é um ego... e sim um modo de comportamento"; "o Dasein é apenas um padrão de comportamento, mais ou menos coerente, exigido pelos papéis e atividades públicas - uma encarnação do impessoal" (Dreyfus 1991, pp. 145 e 160). O que permite que haja "um único mundo compartilhado ao invés de uma pluralidade de mundos individuais" é justamente o caráter genérico, substituível do Dasein (ibid., p. 154). A ausência de preconceitos sociais nos impediria de nos engajarmos na convivência com os outros. Eis por que Dreyfus afirma que o pensamento de Heidegger é uma forma de "behaviorismo, do tipo encontrado em Wittgenstein e talvez em Gilbert Ryle" (ibid., p. 147).

 

2. O que Dreyfus deixa de lado

Nesta seção, sugiro que é impossível fazer de Heidegger um behaviorista, pois ele é um pensador interessado em estabelecer a liberdade e a possibilidade da mudança histórica. Um comentário preliminar sobre Ser e tempo como uma obra de filosofia prática se faz necessário. A atribuição de um programa revolucionário, e até mesmo nitidamente prático, ao projeto de Ser e tempo é problemática, pois ele ao mesmo tempo quer e não quer falar da situação histórica concreta. O seu vocabulário, a não ser em poucos momentos, não é claramente nem político nem moral nem histórico. Ao contrário, ele é "estrutural a priori" a maior parte do tempo, contendo poucas referências ao contexto histórico e político concretos. Mas, ainda que Heidegger adote uma perspectiva aparente desinteressada dos eventos imediatos, ao mesmo tempo é inegável que o cenário em que o pensamento da cotidianidade se desenvolve é o do isolamento do ser humano na sociedade de massas. A única crítica justa de Theodor Adorno a Heidegger me parece ser esta: a de que Heidegger tenta ao mesmo tempo oferecer uma análise estrutural, válida para a condição humana como tal, e também fazer uma crítica da modernidade (Adorno 1973 [1964], p. 49). Só que uma crítica à sociedade industrial acaba deslocada dentro da filosofia transcendental, que é tão pouco orien-tada historicamente. Ser e tempo não é realmente um texto político, e tentativas de lê-lo desse modo terminam em problemas como os que Johannes Fritsche enfrenta (Fritsche 1998). Fritsche faz uma comparação entre a linguagem de Ser e tempo e a retórica da "revolução conservadora" para provar que o pensamento de Heidegger está intimamente conectado com o conservadorismo e o fascismo. Que o vocabulário de Ser e tempo não é completamente abstrato, e que faz referência à sua época, é verdade, mas mais difícil é provar que ele expressa um determinado ambiente político. Pois Ser e tempo se apropria igualmente do vocabulário marxista e lukacsiano da "alienação", e, seguindo a mesma lógica do argumento de Fritsche, poderíamos dizer igualmente que Heidegger estaria engajado na revolução proletária.

À parte a oscilação notada por Adorno, e à parte a ausência de qualquer teoria clara sobre a revolução em Ser e tempo, o que é nítido é que um estado de angústia e de esperança de uma ruptura o perpassa. Não interessa a Heidegger uma filosofia do cotidiano que mostra como as coisas de fato se passam na maior parte do tempo, mas não fala como elas poderiam se passar em momentos excepcionais. O que lhe interessa é precisamente salvaguardar a possibilidade de um momento extraordinário, que permite suspender, nem que seja por um momento apenas, o domínio do habitual. Heidegger está convencido que a modernidade, ou seja, o mecanicismo e a democracia liberal, devem poder ser superadas. Para justificar a possibilidade de uma suspensão do cotidiano, Heidegger introduz a distinção, a essa altura bastante conhecida, entre um "si", "próprio" ou "eu" (Selbst) autêntico e um inautêntico. Ser autêntico é o modo de relacionar-se consigo mesmo no qual o "si" ou "eu" se toma explicitamente como tema. O si ou eu autêntico não se esquece de si mesmo e submerge no mundo do trabalho.

A inautenticidade passa agora a denominar o modo da relação consigo mesmo que viemos discutindo até agora. A inautenticidade é uma condição estrutural do Dasein; ela é o modo em que passamos a maior parte das nossas vidas e não tem uma nuance de desvalor. Heidegger insiste que a distinção entre autenticidade e inautenticidade não implica juízos de valor (Heidegger 1984 [1927], pp. 43 e 78, trad. vol. 1, pp. 175-6 e 236, modificada). Elas são duas formas de o eu se relacionar consigo mesmo, ambas igualmente constitutivas do nosso modo de ser. No primeiro modo, o existir é tematizado diretamente, enquanto que no segundo modo a minha relação comigo mesma é implícita e mediada pela minha absorção nas tarefas à mão.

Podemos agora voltar à discussão da leitura de Dreyfus, e mais especificamente como ele vê a noção de autenticidade. A inautenticidade pode denominar um estado "indiferente" do Dasein, que é, afinal de contas, sempre um estar-no-mundo (Heidegger 1984 [1927], pp. 42 e 53, trad. vol. 1, pp. 79 e 90). Por isso, ela pode ser também totalmente "legítima" (echte): "tanto a compreensão autêntica como a inautêntica podem ser legítimas ou ilegítimas" (Heidegger 1984 [1927], p. 146, trad. vol. 1, p. 202, modificada). Um trecho de Problemas básicos da fenomenologia explicita essa afirmação:

a maneira cotidiana como o eu se possui a si mesmo dentro da nossa imersão fática, existente e apaixonada nas coisas pode ser sem dúvida legítima, enquanto que o gesto de revirar a própria alma extravagantemente pode ser fingido no mais alto grau, e até mesmo patologicamente excêntrico. (Heidegger 1982 [1928], p. 160)

A crítica àqueles que escolhem estar no mundo com os outros pode ser uma forma de revolta contra a nossa própria condição "jogada". Trancar-se no quarto de dormir, denunciar a hipocrisia da sociedade ou contemplar o próprio umbigo em infindáveis sessões de auto-exame podem ser, e freqüentemente são, atitudes pouco convincentes. Previsivelmente, Dreyfus cita essa passagem (Dreyfus 1991, p. 194). Ele se pergunta: com que direito Heidegger menciona um eu autêntico, a que posso ter acesso direto? Se mergulhar apaixonadamente nas coisas exige que nos esqueçamos de nós mesmos, ao menos por algum tempo, e se essa atitude é legítima, o que pode haver de errado com a inautenticidade? Se a inautenticidade continua a ser constitutiva, indiferente e legítima, como ela poderia ser mais limitada que a autenticidade? Por que Heidegger se volta contra o eu cotidiano e afirma que ele deveria ser algo além do, e superior ao eu inautêntico?

Para ser coerente, Dreyfus tem de rejeitar a hipótese do eu autêntico e afirmar que ela não é exigida pelo caminho de pensamento de Ser e tempo. Para ele, Heidegger poderia ter se contentado em descrever o Dasein em suas práticas cotidianas. Não era preciso nem desejável falar de um eu autêntico que se coloca em um outro plano em relação ao eu legitimamente inautêntico: "Heidegger torna a autenticidade impossível" (ibid., p. 229). Mas para continuar a sustentar a sua visão sobre a impossibilidade de ser autêntico, Dreyfus tem de explicar por que o próprio Heidegger não se contentou em fazer do Dasein cotidiano um ente pleno e realizado na sua vida cotidiana confortável. Para explicar por que a noção de eu autêntico continua lá, se ela é inconsistente com o caminho de pensamento de Heidegger, Dreyfus apresenta a hipótese de uma motivação externa. Para Dreyfus, se Heidegger descobriu o caráter mundano do Dasein apenas para esquecer, logo em seguida, a sua descoberta é porque existe uma aspecto "estrutural" e um "motivacional" em Ser e tempo. Há uma mera descrição dos fatos e há aquilo que é motivado por um desejo de transcendência (ibid., p. 226). Um resquício de teologia move Heidegger, que nunca teria abandonado totalmente a crença de que estamos apenas de passagem nesse mundo do aquém. Heidegger quer alcançar "uma versão secularizada da eternidade" (ibid., p. 323). O caráter decaído no mundo da existência ainda é definido por Heidegger em termos tradicionais, como uma "versão secularizada da explicação kierkegaardiana do pecado" (ibid., p. 226).

À luz dessa hipótese, a segunda divisão, carregada como está de temas tão opressivamente profundos, como angústia, morte e culpa, é muito menos elaborada do que a primeira. Heidegger força a inclusão de preocupações estranhas ao seu projeto inicial, e por isso acaba se tornando inconsistente: "a segunda divisão inteira me parece muito menos cuidadosamente elaborada do que a primeira, e de fato, os erros me parecem tão sérios que impedem qualquer leitura consistente" (ibid., p. viii). Ele é inconsistente porque teologizante. Dreyfus não chega a declarar que a segunda divisão é dispensável, mas afirma ser possível tratá-las separadamente (ibid., p. 226). Uma leitura detalhada de Being-in-the-World poderia mostrar que Ser e tempo aparece aí como perfazendo dois tratados completamente independentes entre si.

Dreyfus não deixa de ter uma certa razão. Mesmo antes dele, não deixou de chamar a atenção de muitos comentadores que Heidegger escreve toda a segunda divisão para argumentar que existe uma dimensão da existência distinta da compreensão cotidiana. A compreensão cotidiana, que antes ainda podia ser denominada indiferente ou legítima, agora é predominantemente inautêntica. O que acontece aqui é nada menos do que uma "viravolta na arquitetônica de Ser e tempo", segundo Michel Haar (Haar 1993, p. 24). Segundo Haar, a tônica da primeira divisão, a saber, a descrição fenomenológica do cotidiano, é abandonada em favor da "hipótese não fenomenológica" do eu autêntico (Haar 1993, p. 24). Talvez não haja uma distinção tão radical entre a primeira e a segunda divisões de Ser e tempo, mas parece claro que existe uma espécie de inflexão. Heidegger, de fato, começa o seu percurso recusando como evidente que o ser humano seja mais que um animal social e cultural. Ele precisa interrogar "com que direito" o filósofo opõe à concepção de ser humano como animal social uma concepção mais rica. No entanto, aos poucos ele vai deixando claro que nunca duvida de que o filósofo tenha esse direito. A verdade não é o que satisfaz os nossos propósitos aqui e agora; nem a existência melhor é necessariamente a que vivemos hoje. Heidegger, de fato, procura distanciar-se da metafísica; mas ele jamais se abandona ao relativismo puro e simples.

O aspecto dessa discussão que gostaria de frisar é que a teoria do eu autêntico, parece-me, visa assegurar a possibilidade do momento de decisão, que rompe o cotidiano e começa uma nova época histórica. O movimento historial é resultado da emergência de estados autênticos do Dasein. A segunda divisão de Ser e tempo contém uma teoria da historicidade, baseada na noção de que, quando somos autênticos, é toda uma época histórica que muda. A compreensão cotidiana faz história, no sentido em que marca uma certa época de costumes, leis e tradições. Mas ela é também histórica. A história universal é a história das épocas do cotidiano, ou das épocas entre ciclos do Dasein. Ele, de vez em quando, transcende o cotidiano, para logo em seguida criar uma nova compreensão cotidiana. Heidegger visa harmonizar a tendência do Dasein a criar tradições e rotinas com a sua capacidade de instaurar novas épocas históricas. A ruptura histórica, ou "repetição", é o momento de transcendência de uma determinada época histórica; mas nunca da história ela mesma. Assim, a teoria do eu autêntico e da historicidade visam, justamente, responder à inquietação e ao desejo de ruptura heideggerianos. O eu autêntico é a garantia de que o cotidiano pode ser rompido. Heidegger não busca uma transcendência absoluta, já que o Dasein nunca transcende a sua mundanidade e a cotidianidade. O que pode ser superado, contudo, é uma forma particular do cotidiano. Além disso, a tendência do cotidiano é sempre a tendência à apatia e ao conformismo; e ela sempre tem de que ser enfrentada. O domínio da tradição e do hábito é parte da existência humana; mas têm de ser enfrentados na medida em que ameaçam impedir o surgimento de outras formas da existência. Heidegger não pode se contentar com a idéia de que o eu só pode ser inautêntico. O eu autêntico é uma espécie de ponto de apoio e de resistência ao império do cotidiano. As evidências de que esse ponto de apoio existe, para Heidegger, são a culpa moral e o fato da ruptura histórica.

O desejo de um ponto de apoio e resistência ao cotidiano tem que ser compreendido como um desejo de um mundo do além, seja ele o mundo ideal dos filósofos ou o reino de Deus dos cristãos? Existe desde Karl Löwith uma tradição de se buscar as influências da teologia cristã e de Kierkegaard em Heidegger, e, decerto, essa discussão é importante (Löwith 1993 [1946], p. 170). Aqui, porém, o importante é realçar que Dreyfus considera religiosa qualquer filosofia que busque algo além da rotina cotidiana. A posição de Heidegger, segundo a qual a culpa moral e o fato da ruptura histórica são evidências de que a autenticidade é possível, pode e deve ser questionada, mas Dreyfus não pode fazê-lo, porque descarta a discussão como sendo de antemão religiosa. Ao interpretar todo desejo de ruptura como religioso, Dreyfus descarta precisamente aquilo que faz de Heidegger o pensador que ele é, ou seja, o interesse pela liberdade na história. Dreyfus simplesmente ignora toda a teoria heideggeriana da história como sendo algo fundado no movimento do Dasein de instaurar tradições e desfazê-las, tornando evidente o seu desinteresse pelo tema da ruptura histórica e da historicidade do Dasein.

É preciso concondar com Christensen, para quem Dreyfus "reduz os conceitos centrais a alguns detalhes" (Christensen 1998, p. 84). Também Jürgen Habermas teria afirmado algo semelhante em um seminário em Berkeley, em 1989:

Dreyfus não apenas não lê Heidegger no contexto; e deve ser isso o que Habermas tinha em mente ao observar que Dreyfus trata Ser e tempo como se o livro tivesse acabado de dar na areia de uma praia californiana. Ao fazer o esforço, em outras situações louvável, de tornar Heidegger inteligível, Dreyfus, unilateralmente, o situa dentro dos debates e problemas da ciência cognitiva contemporânea e a filosofia da psicologia norte-americana. (Ibid., p. 84)

Dreyfus revela-se um naturalista, mesmo apesar de todo o seu anti-representacionismo, e faz de Heidegger um aliado: "Heidegger aparece agora como proto-participante nos debates norte-americanos contemporâneos, portanto como alguém que aceita o consenso naturalista quase universal que governa tais debates" (ibid., p. 84). Meu ponto é que também a visão dreyfusiana das relações humanas deturpa o pensamento de Heidegger, ao interpretar todo desejo de ruptura como religioso, e ao alegar que Heidegger se desviou do seu projeto. Dreyfus ignora todo o movimento do Dasein, de instaurar tradições e desfazê-las, e a teoria existencial da história que está baseada nela. Implicitamente, o que ele revela é o desinteresse pelo projeto heideggeriano de recusar ao mesmo tempo o empirismo e a metafísica. Desse modo, ele transforma a liberdade de interpretar na licença para legitimar seu próprio projeto.

 

3. Rorty e o vínculo entre pragmatismo e democracia

É preciso admitir que Dreyfus sequer menciona temas como história e democracia. Não é nada evidente que a sua leitura seja determinada pela recusa do desejo de ruptura e a angústia ante a sociedade de consumo que tanto marcam o pensamento de Heidegger. Se atribuir um parti pris existencial e político a um pensador tão pouco orientado histórica e politicamente parece um gesto violento, e se fazer dessa posição o móvel principal do seu pensamento parece mais forçado ainda, podemos recorrer a um outro leitor americano de Heidegger, que não faria objeções a ser lido dessa maneira. Rorty sublinha o vínculo que existe entre pragmatismo, apego à democracia e orgulho nacional americano. Para ele, o pragmatismo não é uma opção desvinculada do cotidiano; o pragmatismo é o único modo de fazer filosofia que corresponde a uma sociedade não autoritária. Vejamos rapidamente os temas que animam o trabalho recente de Rorty. Depois disso, tentarei traçar os seus pontos de convergência com Dreyfus, ou a "leitura americana de Heidegger".

Richard Bernstein, analisando a trajetória de Rorty, nota que o tema que se torna progressivamente mais destacado na sua obra a partir de A filosofia e o espelho da natureza é a "defesa resoluta [championing] das virtudes e conquistas morais da democracia liberal burguesa" (Bernstein 1992b [1987], p. 260). Que a defesa rortyana da democracia só tem sido cada vez mais resoluta, prova-o a polêmica com a esquerda americana, que ele acusa de ter se tornado injustamente severa com o seu país (Rorty, 1994). Não que ele não se considere um esquerdista, mas a esquerda a que ele se filia resgata a utopia de uma sociedade tolerante, baseada no respeito mútuo. Vou tomar como guia o seu livro de 1998, Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na América, em que ele critica a esquerda americana atual, que ele chama de "esquerda cultural", e retoma a utopia americana de uma sociedade sem castas e sem classes, tal como ela se encontra em seus inspiradores, Walter Whitman e John Dewey. Mas essa defesa da democracia precisa ser compreendida em relação com a sua filosofia.

Explicando o pensamento recente de Rorty, Richard Bernstein o define por contraste com a tradição, caracterizada como ela está por certos "complexos" ou "fixações [hang-ups]" com "a Racionalidade, a Verdade, a Objetividade e a Argumentação" (Bernstein 1992b [1987], p. 260). O que há por trás dessas fixações é a busca de visões de mundo certas e definitivas. Mas chegou a hora de abandonar tais pretensões a ter uma descrição adequada da realidade e argumentos que não sejam circulares para justificar nossas crenças filosóficas. Uma recusa coerente da tradição filosófica exige também que admitamos, de uma vez por todas, que o pensamento não pode nos erguer acima e além das nossas experiências e crenças pré-filosóficas. É claro que sempre carregamos algumas certezas básicas e permanentes, mas elas não podem ser justificadas. Segundo a terminologia rortyana, um "vocabulário" é uma forma de ver o mundo e localizar-se nele; é uma "forma de vida" wittgensteiniana. Uma forma de vida não é mais do que aquilo que acontece entre os homens, sem compromisso com a realidade tal como ela é, independente deles. Um vocabulário nunca repousa sobre um conhecimento objetivo, mas, antes, sobre um "vocabulário final":

Todos os seres humanos trazem consigo um conjunto de palavras que eles empregam para justificar suas ações, crenças, e vidas… Estas são as palavras em que narramos, às vezes prospectivamente, às vezes retrospectivamente, a estória [story] de nossas vidas. Chamo a isto de "vocabulário final". (Rorty 1989, p. 73, apud Bernstein 1992b [1987], p. 260)

Os vocabulários finais não são baseados em nenhuma argumentação "que não seja circular no caso de ele ser posto em questão" (idem). Não podemos "suprimi-lo porque não temos nenhum metavocabulário no qual poderíamos verbalizar nossa crítica a ele" (Rorty 1991b, p. 37). O que podemos fazer é adquirir consciência dessa circularidade e assumi-la. O papel do filósofo no mundo de hoje não é apontar defeitos na nossa argumentação ou exigir justificativas mais sólidas do que as que podemos dar; ao contrário, ele deve mostrar a contingência, ou seja, a arbitrariedade de todos os vocabulários finais.

O vocabulário final do qual Rorty não quer abrir mão, e nem vê por que deveria, é a visão democrática. Rorty está disposto a defender a felicidade como fim supremo e a democracia como a melhor forma de governo já inventada: "contra aqueles que pensam estar vivendo a noite cósmica do niilismo autodestrutivo, ou pensam que estamos vivemos uma crise profunda da democracia liberal"; Rorty faz a defesa de uma democracia que "encarna e estende o princípio de tolerância e estimula o impulso poético e metafórico de criar e auto-inventar-se… como sendo o melhor mundo alcançado pela civilização ocidental" (Bernstein 1992b, p. 234). Mas essa utopia de uma sociedade orientada pelo respeito e pela tolerância não é "nem mais natural nem mais racional" do que outras: "tudo o que pode ser dito em sua defesa é que ela produziria menos sofrimento desnecessário do que qualquer outra" (Rorty 1998, p. 66).

Essa utopia já foi esboçada; ela é a utopia norte-americana. Rorty nota que Walt Whitman,

disse explicitamente que "usaria as palavras `América' e `democracia' como termos conversíveis" (Democratic Vistas, p. 930). Dewey foi menos explícito, mas quando ele usa "verdadeiramente democrático" como uma honraria suprema, está obviamente pensando em uma América realizada. (Rorty 1998, p. 53)

Desse modo, Rorty acredita que os valores supremos são basicamente os da nossa comunidade. Quanto à sugestão de que o valor da vida humana talvez não se meça pela felicidade, Rorty a descarta como uma peculiaridade "alemã". Existe um "desejo `alemão' de ter um destino superior ao de ser o último homem", que os escritos de Nietzsche, Heidegger e Leo Strauss refletem (Rorty 1998, p. 324, apud Lawler 1998, p. 199). Desse modo, assim como na Grécia antiga a contemplação ou a glória imortal eram os bens maiores, e, para a cultura alemã, a partir de Hegel, a grandeza foi um bem maior, para aqueles que nascem nos EUA o objetivo último da sociedade é a tolerância e a felicidade, entendida aí como supressão da dor e da humilhação desnecessárias. Mas, uma vez escolhida, cada prioridade exclui as prioridades contrárias. A "América realizada" não ofereceria muito lugar nem para a angústia nem para a grandeza: "quando a tolerância e o estar-junto confortável se tornam o lema de uma sociedade, não se pode mais esperar grandeza histórica" (Rorty 1991d, p. 81). Ele não pode e não deve valer para americanos, quanto mais para o planeta inteiro.

Desse modo, Rorty se desembaraça da suspeita de que a democracia liberal e a técnica são expressões do empobrecimento do mundo, aspectos da "devastação" de que Heidegger fala (Heidegger 1984 [1954], p. 11). Resta agora aprofundar o tema da tarefa da filosofia. Rorty se autodenomina freqüentemente um "pragmatista deweyano", e isso se deve ao fato de que Dewey associou claramente sua opção filosófica com a sua posição política. Dewey, em A busca da certeza, escreve que os homens parecem ter dificuldades psicológicas em conviver com o vago e o incerto; podemos ter no máximo conhecimentos vagos sobre a realidade, o que nos faz sentir frágeis e impotentes (Dewey 1952, p. 7). O que moveu Dewey é a convicção de que os homens, até hoje, simplesmente não conseguiram viver sem se apoiar numa espécie de transcendente. A religião e a filosofia não se distinguem muito, na sua motivação inicial e no conteúdo: ambas visaram assegurar que há algo eterno e transcendente que os homens podem ao menos conhecer, se não imitar (ibid., p. 13). Para Rorty, a "coragem intelectual" de Dewey foi

abandonar a idéia de que é possível atingir, tanto na ciência como na moral, o que Hilary Putnam chamou "a visão do olho de Deus". Dewey abandonou a idéia de que alguém pode dizer como as coisas são realmente enquanto opostas a como elas podem ser melhor descritas visando satisfazer alguma necessidade humana particular. (Rorty 1999, p. 70)

Assim como a humanidade até hoje foi motivada a colocar-se do ponto de vista de Deus pelos seus próprios sentimentos de insegurança, o pragmatista também tem uma motivação existencial e política. Esse discurso torna-se político quando nos damos conta de que é preciso abrir mão dos absolutos se quisermos realizar a democracia. Renunciar à objetividade e a uma teoria respectivamente correspondentista da verdade significa rejeitar, pela primeira vez na história da humanidade, a busca de padrões absolutos e transcendentes para comparar a vida humana com eles. Quando o pragmatista desbanca a concepção tradicional de verdade como correspondência, e, com ela, a esperança de encontrar um ponto de vista extramundano, o que ele faz é minar as bases do autoritarismo. Existe uma posição política da qual a posição de Dewey é inseparável, ou seja, o "anti-autoritarismo":

anti-autoritarismo é o motivo que está por trás da oposição de Dewey às metafísicas platônicas e teocêntricas… Para Dewey a idéia de que há uma realidade "lá fora" como uma natureza intrínseca a ser considerada e correspondida não era uma manifestação da voz do senso comum. Era uma relíquia do sobrenaturalismo platônico. (Rorty 1999, p. 65)

Se, para Dewey, "democracia" e "Estados Unidos" são sinônimos, é porque os EUA são o único lugar do mundo onde a humanidade tentou inventar-se: "repudiar a teoria da verdade como correspondência foi o modo de Dewey de repor, em termos filosóficos, a afirmação de Whitman de que a América não necessitava colocar-se no interior de um quadro de referência" (ibid., p. 65). A democracia é a América, e ambas são o primeiro lugar onde a humanidade escolheu inventar-se, a partir de si mesma, em vez de buscar uma autoridade transcendente para se legitimar. Nos Estados Unidos, o novo modo de vida, que não se baseia nem na natureza nem na religião para afirmar-se, pode até não ter sido plenamente realizado, mas pelo menos foi esboçado. A tarefa que sobra para a filosofia é acabar o que Dewey começou. Ela não é a de "justificar" a opção pela democracia a partir de um ponto de vista extramundano, mas, ao contrário, a de "legitimar" as preferências já dadas de um povo. Rorty escreve sobre Dewey, mas também em nome próprio:

Seu pragmatismo é uma resposta à questão "O que a filosofia pode fazer pelos Estados Unidos?" ao invés de uma resposta à questão "Como os Estados Unidos podem ser filosoficamente justificados?" Ele abandonou a questão "Por que alguém deve preferir a democracia ao feudalismo, e a autocriação à obediência à autoridade?" em favor da questão "Dadas as preferências que nós americanos compartilhamos, dada a aventura na qual estamos embarcando, o que devemos dizer sobre verdade, conhecimento, razão, virtude, natureza humana e todos os outros tópicos tradicionais?" (Rorty 1999, p. 64)

Como Heidegger se encaixa dentro dessa visão? Aqui é preciso diferenciar duas abordagens. Existe a leitura mais acadêmica, como a que se encontra, por exemplo, nos ensaios reunidos sob o título Essays on Heidegger and Others, de 1991, e existe um outro quadro, que emerge dos textos mais politicamente engajados. Comecemos pela coletânea de 1991. A dinâmica dos ensaios de Rorty sobre Heidegger se repete. Primeiro, ele sublinha os elementos antifundacionalistas, anti-representacionistas e a favor da contingência do seu pensamento, depois aponta uma espécie de recaída na metafísica. Comecemos pelo primeiro movimento. Leslie Paul Thiele resume a posição utilitária envolvida aí:

o importante, para Rorty, é não nos aprisionarmos no essencialismo. Ele vê os escritos de Heidegger como uma caixa de ferramenta da qual os filósofos urubus podem escolher o que é útil aos seus projetos. Ele sugere que "leiamos Heidegger como Heidegger menos quis ser lido", ou seja, pragmaticamente, como "estoque". (Thiele 1995, p. 742)

O que há para salvar em Heidegger é aquilo que ele tem em comum com Dewey, ou seja, a recusa de todo absoluto. Ser e tempo interessa a Rorty na medida em que pode ser lido como Robert Brandom e Mark Okrent (e, poderíamos acrescentar, Hubert Dreyfus) o fazem, ou seja, como uma reflexão sobre as práticas sociais e como elas moldam nosso modo de pensar (Rorty 1991b, p. 32). Mas ele não se limita a Ser e tempo. De fato, a filosofia de Ser e tempo ainda lhe soa muito a-histórica. De certo modo, o Dasein em Ser e tempo paira por cima da história, uma vez que a história fatual é somente o produto de uma dinâmica interna ao eu. Toda histó- ria fatual é posta em movimento pela alternância entre momentos de fuga de si e volta em direção a si. Para Rorty, Heidegger, nos anos trinta, "repudia a busca de uma ontologia a-histórica e pensa que a reflexão filosófica é histórica de ponta a ponta" (ibid., p. 40). Rorty percebe que o Heidegger pós-1930 é movido, em grande parte, pela preocupação de "superar a metafísica". Heidegger aponta que "ser", para a tradição metafísica, é sinônimo de "permanecer no tempo e no espaço, idêntico a si mesmo". O que não pode ser objetivado, "amarrado", simplesmente não é: ou é uma mera aparência ou uma opinião. Para Rorty, a intuição por trás da história do ser e da metafísica da presença heideggerianas é a mesma de Dewey em A busca da certeza. Ambos os pensadores afirmam que a tradição supervalorizou a certeza e a segurança (ibid., p. 29). Foi a tentativa de buscar verdades sólidas e absolutas que fez da tradição o que ela é, mas essa foi uma opção contingente; nada nos impede de apontar essa motivação e abandoná-la.

Mas as afinidades são sempre limitadas. O segundo impulso dos ensaios de Rorty é o de reconhecer que a convergência de Heidegger com Dewey e com o segundo Wittgenstein é muito limitada. Ele reconhece que tanto o Heidegger de Ser e tempo como o chamado "segundo Heidegger" buscam uma posição que não seja nem naturalista nem relativista. Mesmo quando reconhece a legitimidade de cada forma cultural e histórica, ele jamais afirma que a verdade não é o que é útil aos nossos propósitos do momento. Em várias passagens, Rorty deixa claro que só há duas alternativas: a metafísica e a tradição pragmatista; Heidegger tentou escapar ao dilema e não conseguiu: "Heidegger nunca nos conta como podemos ser históricos de ponta a ponta e ainda assim a-históricos o suficiente para sair de nossa visão de mundo e dizer algo sobre ela" (Rorty 1991b, p. 42). Heidegger apenas voltou a uma posição muito próxima da metafísica, à nostalgia pela visão do olho de Deus. Em resumo, Heidegger é reduzido ao papel de apresentar argumentos antifundacionalistas; outros tópicos são deixados de lado.

Pelo menos em relação ao ensaios mais acadêmicos, a crítica de Bernstein é pertinente, a saber, que

sua leitura não é apenas vigorosa; ela é impiedosamente violenta… ele extirpa todas as passagens que incidem sobre nossas vidas públicas e descarta todas as passagens em que Heidegger sugere que estamos vivendo na época da Gestell. (Bernstein 1992c [1990], p. 286)

Rorty jamais se pergunta se a sua crítica à democracia burguesa pode ter algum interesse. O quadro que emerge dos textos políticos mais recentes, contudo, é um pouco diferente. Há neles uma resposta esboçada ao diagnóstico heideggeriano sobre a nossa época. Rorty encara o fato de a crítica da filosofia do iluminismo raramente vir desacompanhada da política do iluminismo. Assim, a política inspirada por Heidegger (mas também por Nietzsche e Foucault) raramente é uma que deposita suas esperanças na democracia liberal e seus recursos (doutrina dos direitos humanos, etc.). Ela é ou uma reivindicação de revolução ou uma constatação de que não é possível mudar o sistema. A rejeição em bloco do status quo em bloco implica uma rejeição de todas as medidas simplesmente reformistas, e leva ou ao quietismo ou à fúria:

[A] filosofia não-analítica é, com algumas exceções, dominada por uma visão heideggeriana do mundo moderno… e pela desesperança… Uma vez que o membro típico dessa tradição é obcecado com a idéia de crítica radical, quando ele ou ela se voltam para a política raramente é num espírito reformista e pragmático mas antes em um estado de ânimo de pessimismo profundo ou fúria revolucionária. (Rorty 1991c, pp. 24-5)

Alguns dos filósofos que Rorty mais admira como filósofos (Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida) são os que ele considera mais perniciosos politicamente. Como ele faz para conciliar sua admiração filosófica com sua desaprovação política? A solução é afirmar que Nietzsche, Heidegger e Foucault ainda têm em comum com a tradição filosófica o gosto pela vida examinada, pela vida fora da massa. Heidegger, assim como Nietzsche e Foucault, oferece "uma forma quase-religiosa de páthos espiritual" (Rorty 1999, p. 133). Desse modo, não recair na metafísica é não ter a vida examinada, fora da massa, como meta. Não ser mais metafísico é limitar o próprio desejo de conhecimento e reflexão. Como nota Bernstein, é fundamental para Rorty manter o apartheid, ou seja, a separação radical entre a postura que o intelectual tem na sua vida privada e no seu discurso público (Bernstein 1992c [1990], pp. 267 e 286). O filósofo deve levar só até um certo limite a sua "ironia", ou seja, o seu distanciamento de todos os vocabulários finais. A ironia, ou seja, o distanciamento praticado pela elite não deve se traduzir, na prática, numa atitude cética, que deve ser utópica. A reivindicação de um papel crítico por parte dos intelectuais deve ser limitada pelo seu desejo de solidariedade, pois eles têm de recuar diante do fato que, para os que sofrem, é o único objetivo que interessa. Os que sofrem não estão nem um pouco interessados em tirar a limpo se uma vida examinada é melhor ou pior que uma vida desprovida de reflexão, e isso deve ser respeitado. A reflexão filosófica pode se tornar um modo de adiar o engajamento a favor dos que sofrem, quando não conduz a práticas "solidárias" (leia-se "reformistas"). Em 1982, Rorty chama de "ressentimento" uma postura crítica à democracia, incluindo explicitamente os heideggerianos, foucaultianos e derrideanos entre os "ressentidos" que dominam a esquerda americana (Rorty 1991e, p. 48, 1991c, pp. 24-5). São esses mesmos que ele chama mais recentemente de "esquerda cultural", que é cultural exatamente porque suas críticas ao sistema, de tão abrangentes, não podem ser implementadas praticamente. Nos dois casos, a crítica é a mesma: o filósofo hipercrítico abdica de ajudar os seres humanos que sofrem, e se retira para a região do mero pensamento. Ele "prefere o conhecimento à esperança", ou seja, ele prefere viver em um mundo mais sombrio, mas tendo a certeza de que conhece mais do que a multidão, a engajar-se na prática, junto com os não-filósofos, para tentar mudar alguma coisa (Rorty 1999 [1998], p. 72). O papel que Rorty reserva aos intelectuais é o de serem "agentes" em vez de "espectadores", mesmo que, aparentemente, isso exija um certo sacrifício das suas tendências mais espontâneas (idem).

Esse panorama sumário da obra de Rorty visa apenas indicar que é impossível dizer até que ponto ele rejeita o pensamento de Heidegger sinceramente e até que ponto a sua rejeição é uma estratégia prática. Nos ensaios mais propriamente "acadêmicos", Rorty levanta as críticas que os filósofos treinados analiticamente levantam à filosofia continental: que ela está presa ao essencialismo, filosofia da história, teleogia, etc. O que torna Rorty diferente da maioria dos comentadores de treinamento anglo-saxão é que Heidegger, assim como Nietzsche, Foucault e Derrida disputam a sua admiração em pé de igualdade com Whitman, Dewey, Wittgenstein e Davidson. Ele chega até mesmo ao ponto de confessar que suas críticas à esquerda nietzscheana, heideggeriana e foucaultiana vêm em grande parte do receio de tornar-se parte dela: "se minha crítica a essa escola parece dura, é porque somos sempre mais duros com aquilo que mais tememos parecer" (Rorty 1991e, p. 184). Rorty está na posição singular de ter que recusar a filosofia continental, apesar de concordar em grande parte com ela. A sua solução é defender o sacrifício do intelecto, não em favor da fé, mas em favor da solidariedade. A retórica de Whitman e Dewey não triunfa, ao final, por ser mais verdadeira. Ela pode até ser falsa diante de Heidegger e Foucault, mas é mais útil, dado o fim que ele já se colocou, a saber, a supressão do sofrimento. O pragmatista é alguém que não exige que o seu discurso sobre a superioridade da democracia seja sinceramente acreditado. Já que é impossível que essa tese seja provada, basta que ela seja implementada. Ao fim e ao cabo, parece que a posição de Heidegger, no fundo, não é rejeitada por ser metafísica, essencialista, etc., mas por ser um empecilho ao engajamento a favor dos que sofrem. Parece que Rorty, simplesmente, não quer tirar a limpo se estamos vivendo ou não a "noite cósmica do niilismo", até mesmo por receio de que seja tudo verdade.

 

4. Esboço de uma recepção nacional americana

Essa exposição sumária do pensamento de Rorty visa mostrar as convergências entre a sua posição e a de Dreyfus. Em primeiro lugar, ao definir filosofias como caixas de ferramentas eles formaram toda uma geração de intérpretes que defendem a "vitalidade" e o "frescor" da abordagem utilitarista. Para citar apenas um representante, Arto Haapala opõe o estilo colado ao texto, de Friedrich-Wilhelm von Hermann e Joseph Kockelmans, ao "anglo-saxão" de Dreyfus e Rorty (Haapala 1997, p. 444). Uma leitura mais fiel a Heidegger tende a não se permitir nenhuma crítica, e a ignorar que a filosofia é feita de problemas (Haapala 1997, p. 446). Em segundo lugar, as críticas são semelhantes. Tanto Dreyfus como Rorty consideram inadequado o desejo heideggeriano de ruptura. Para ambos, Heidegger se coloca acima e além da realidade cotidiana e da opinião do homem comum, sem oferecer nenhuma justificativa aceitável para essa atitude. No pensamento de Heidegger existe ainda uma pretensão metafísica de descolar-se desse mundo cotidiano. Rorty percebe o aspecto inconformista da obra de Heidegger, mas o considera arbitrário e politicamente prejudicial se radicalizado. Arbitrário porque não existe como argumentar a favor da grandeza, e contra a felicidade, como bem supremo. Prejudicial porque dá ensejo ao pessimismo e à fúria, ao invés de a uma atitude edificante. Rorty põe a polêmica contra a metafísica a serviço da afirmação do estilo de vida americano. Ficou evidente que nossos colegas no hemisfério acima tendem a selecionar das obras produzidas na Europa apenas aquilo que se coaduna com aquilo em que eles já acreditam.

Contudo, Rorty nos foi de grande ajuda, uma vez que o objetivo deste estudo, mais do que simplesmente apontar que certas leituras deturpam o autor lido, é encontrar aquilo que determina a deturpação. Temos de concordar com ele, em que um pensamento pós-metafísico, para ser coerente, tem de admitir que o pensamento não tem o poder de nos distanciar radicalmente das nossas crenças e preferências herdadas. É uma ilusão metafísica atribuir ao pensamento uma função de distanciar-nos do mundo que nos envolve para analisar nossas preferências. Rorty sustenta, a meu ver acertadamente, que o solo nacional de experiência parece ser, no fim das contas, o ponto de partida que determina a criação e interpretação de teorias. O que chamo de "solo nacional" pode ser compreendido como um conjunto de máximas existenciais. Essas verdades existenciais básicas podem ser, talvez, resumidas a três: a primeira é que não há sentido em afastar-se da compreensão partilhada com a maioria. A segunda é a recusa do ideal de uma vida superior, que talvez não seja mais feliz ou confortável. As duas estão ligadas: uma forma de afastar-se do senso comum é entregar-se a grandes elocubrações sobre o sentido da vida humana ou ter a pretensão de levar uma vida diferente daquela da maioria das pessoas. A recusa da vida e da felicidade como bens supremos é ou um resquício de religião, ou uma idiossincrasia cultural que só causa sofrimento desnecessário. A terceira é que a democracia, tal como praticada nos EUA hoje, é sempre o melhor remédio para si mesma, já que é o melhor que a humanidade pode atingir.

É justamente por admitir o seu bairrismo que Rorty, ao contrário de Dreyfus, não se limita ao utilitarismo e a leituras arbitrárias de outros pensadores. Quando lemos uma parte significativa de sua obra, vemos que ele deixa claras suas diferenças com os autores que analisa, e faz dessas diferenças o objeto do seu pensamento. Ele não se furta a reconhecer sua imersão em um contexto que é distinto do contexto original de onde saiu a teoria interpretada, e se esforça para tornar claras suas premissas e seus critérios de leitura. Ele faz o que um bom intérprete faz, ou seja, mostrar o fundo de premissas e os objetivos que norteiam a leitura de um pensador por outro.

Para Heidegger, o pragmatismo desemboca numa renúncia contente, conformista, e, no fundo, leviana, à tarefa do pensamento. Aos olhos de Heidegger, a atitude que Rorty apresenta como sendo socialmente responsável, ou seja, a que iguala o verdadeiro ao útil, e o útil ao que conduz a um mundo confortável, apenas reforça a racionalidade calculadora que instaura a usura universal do real. A atitude que Rorty considera edificante, Heidegger considera profundamente niilista. Limitar-se à descrição de superfície das práticas sociais e seu impacto normalizante sobre os seres humanos, bem como pôr a filosofia a serviço da democracia, significa abdicar da nossa liberdade de pensamento e de distanciamento em relação ao presente. Trata-se de recusar tanto o olhar de sobrevôo da metafísica quanto o pragmatismo, que considera não haver nenhuma perspectiva de onde criticar o presente. A resposta de Rorty, como vimos, é clara: não interessa decidir sobre a verdade ou falsidade do diagnóstico heideggeriano. O problema não é saber se existe miséria espiritual no mundo moderno; o problema é que há miséria material, e é preciso acabar com ela. A felicidade é ausência de dor, e é preferível a qualquer outra coisa, seja ela a grandeza ou a vida examinada. Não há aqui nenhuma possibilidade de argumentação; trata-se de valores pessoais, crenças últimas às quais a filosofia serve.

Assim, vemos que a discussão com Rorty se dá em torno de crenças políticas e filosóficas últimas, não do modo como ele interpreta os seus autores favoritos. O que se pode questionar é a afirmação de que devemos abdicar da reflexão no momento em que ela nos impede de engajarmo-nos em um movimento de reforma das instituições democráticas. Bernstein faz uma crítica adequada quando escreve que Rorty demonstra um "traço proto-positivista" quando reduz a função do pensamento a legitimar e afirmar o que é imediatamente dado (Bernstein 1992c [1990], p. 236). O questionamento filosófico se depara com algo que está acima de questionamento, a saber, a democracia, definida sem mais como aquela que se pratica hoje no mundo europeu. Assim como os medievais definiram a filosofia como serva da teologia, Rorty agora a define como serva da democracia. Ao mesmo tempo em que afirma que a opção pelo "estar junto confortável" é tão arbitrária quanto qualquer outra, ele a torna uma opção acima de qualquer questionamento, quando escreve que a reflexão precisa recuar diante da luta contra o autoritarismo e o sofrimento. Uma crítica semelhante é a que faz Peter Lawler, que, apesar de adotar um ponto de vista religioso, não deixa de tocar no ponto certo:

é ao mesmo tempo degradante e impossível que os seres humanos esqueçam sua relação com a eternidade através da imersão total no materilismo irrefletido da vida cotidiana… Na vida humana, algumas coisas pesam mais que a felicidade. (Lawler 1998)

Quando considera inútil e egoísta perguntar se nosso modo de vida não poderia guiar-se por outras prioridades, Rorty impõe ao pensamento e ao debate público limites ainda mais rígidos do que aqueles que Dewey combateu.

Para concluir, um comentário sobre a relação entre contexto nacional e interpretação no Brasil. O modo como se ensina e pratica filosofia no Brasil peca, não pela leviandade, mas, ao contrário, pelo desejo de desviar-se o mínimo possível dos textos analisados. O estilo que corresponde a esse modo de compreender o ensino e a produção da filosofia é o formalismo da leitura uspiana, atenta somente à organização interna dos conceitos. Trata-se do desejo de desaparecer por detrás da obra de outrem, de escrever teses e artigos que o próprio interpretado poderia ter assinado. Mas, contra as aparências, o desejo de desaparecer por detrás do autor estudado não tem, entre nós, o sentido de uma modéstia saudável. O que se apresenta como modéstia é, na verdade, uma grande resistência a admitir o imenso abismo que existe entre nós e a tradição cultural européia. Quando afirmamos a universalidade da filosofia e a neutralidade do comentador, deixamos transparecer o desejo de sermos cosmopolitas, incluídos no que imaginamos ser o cenário internacional. Ambicionamos transpor, pelo simples poder do pensamento, a própria condição de periféricos. O modo como praticamos a filosofia no Brasil também é altamente revelador de quem somos. Não existe nada mais brasileiro do que a pretensão da nossa elite a ser internacional. A filosofia praticada no Brasil se pauta pelos padrões que acreditamos serem internacionais; mas é de se perguntar se isso a torna parecida com o que se faz lá fora ou se apenas reflete o encobrimento de uma distância, que nunca chega sequer a tornar-se um problema.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: drucker@fchf.ufg.br

Recebido em 13 de outubro de 2000.
Aprovado em 08 de dezembro de 2000.