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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.3 n.1 São Paulo jun. 2001

 

RESENHAS

 

Davy Bogomoletz

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

Jan Abram 2000: A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro, Revinter. Tradução: Marcelo Del Grande da Silva ISBN: 85-7309-373-0

1. Sobre os dicionários

Há cerca de oito anos dei a uma amiga (também psicoterapeuta winnicottiana) a idéia de colecionar, a partir dos índices remissivos dos livros, as frases ditas por Winnicott sobre cada termo. Seria uma espécie de "dicionário", "escrito" pelo próprio Winnicott. Uns três anos depois ela me presenteou com um par de disquetes contendo cerca de 2 megabytes de termos e definições. Passaram-se outros quatro anos, e ela me disse que havia desenvolvido aquele embrião inicial para muito além do que eu havia previsto. Entregou-me dezessete megabytes de citações, e encarregou-me de fazer os comentários que fossem necessários. Atualmente ela está se preparando para lançar esse trabalho em forma de livro, e certamente será um livro que dará o que falar.

Digo isso para refletir um pouco sobre a natureza e a função de um dicionário. No caso de uma língua, as palavras são os "termos técnicos" a serem definidos. No caso de uma ciência ou de uma disciplina, os termos técnicos podem ser definidos ou, ao menos, descritos, por seu autor ou por outra pessoa. Tratando-se de Winnicott, há o velho e fiel Limite e espaço, de Madeleine Davis e David Wallbridge, há o "dicionário", na verdade um glossário crítico, de Alexander Newman, e o presente vocabulário de Jan Abram. Mas, talvez, a melhor pessoa para fornecer o sentido de suas expressões seja ele mesmo. Umas quinze ou vinte frases contendo um determinado termo ou expressão darão ao leitor uma ótima possibilidade de compreender o que Winnicott quis dizer com aquele termo.

Sobre este livro ora discutido, eu diria que, muito mais que um "dicionário" da obra winnicottiana, o livro de Jan Abram é um curso sobre essa obra. Um curso dividido em pouco mais de duas dezenas de aulas, cada qual com seus subitens. Como curso, sua única desvantagem é ser "dado" na ordem alfabética dos verbetes, e não na ordem cronológica do surgimento das idéias, ou na ordem de importância dessas idéias (se é que alguém conseguiria organizar uma ordem dessa natureza...).

Abram faz mais do que indicar um verbete e dar-lhe o sentido: faz uma classificação, nas vinte e tantas categorias (os termos-título) em que consiste o seu livro, da infinidade de termos e temas abordados por Winnicott, quem sabe partindo da conhecida proposição de André Green sobre as quase tantas "teo-rias", como ele denomina as contribuições teóricas de Winnicott à psicanálise (ver O ser e o viver, de Júlio de Mello Filho). Pois cada um dos verbetes de que se compõe este "dicionário" é, na verdade, o título de um capítulo bastante abrangente, em que estão contidas diversas noções que, para a autora, podem (e às vezes só podem) ser compreendidas adequadamente no interior do contexto abrangido por aquele termo-título. Por exemplo, "Agressão", o primeiro, envolve as questões da agressão na psicanálise em geral, da agressão primária, da crueldade do bebê, da aversão do analista, da evolução da agressão, da fusão, da oposição como necessidade, com sua conseqüência, a realidade do objeto externo, etc. Aqui, já no sumário desse primeiro verbete-capítulo, vemos quantas idéias winnicottianas são abrigadas pela autora sob esse guarda-chuva geral chamado "agressão". (Quanto à tradução desses vários termos para o portu-guês, ver a seção 3 deste texto, a seguir.)

De fato, concordo enfaticamente com a estratégia adotada por Abram, pois a obra de Winnicott não pode ser escrita em linha reta, com começo, meio e fim burocraticamente enfileirados. Ela é, muito mais, um denso emaranhado de noções entrelaçadas umas às outras, que exigem, cada qual, para serem compreendias, a compreensão prévia de todas as outras, numa espécie de paradoxo labiríntico de imagens que se completam reciprocamente. Não seria impossível escrever um livro com o título "Winnicott de A a Z", mas o leitor ingênuo provavelmente se veria frustrado pela inevitável confusão que se instalaria já na letra A. Ou seja, Winnicott não é para ingênuos. O que me leva à próxima seção.

2. Sobre o estilo de Winnicott

Ouvi dizer que Lacan teria deplorado o esforço feito por Freud para que o compreendessem, explicando suas idéias ao máximo e tentando ser tão claro e retilíneo quanto possível. Segundo Lacan, o tiro saiu pela culatra: quanto mais claro tentou ser, mais deixou Freud a porta aberta aos mal-entendidos, porque para Lacan as noções freudianas não estariam nunca ao alcance imediato de qualquer um, e a tentativa de facilitar a leitura a esse "qualquer um" resultaria apenas na proliferação de entendimentos equivocados e de interpretações distorcidas. Lacan, ele próprio fiel a esse princípio, fez o que pôde para vedar o acesso aos ignaros, e só os muito escolados conseguem penetrar as espessas defesas com que ele tratou de ocultar os seus pensamentos.

Se aplicarmos esse raciocínio a Winnicott, chegaremos a uma situação quase hilariante. Winnicott, o suave e gentil gentleman inglês, fez das tripas coração para escrever uma psicanálise tão próxima da experiência individual quanto possível. Fez o possível para falar uma linguagem que jamais se parecesse com um jargão profissional. Tentou ao máximo facilitar a vida do leitor e fugir ao máximo do academicismo de nariz empinado. Sobre isso, Abram diz explicitamente que Winnicott, "sem fazer alarde, deixou assim de lado a tão desgastada fraseologia psicanalítica, abrindo o caminho para a sua própria linguagem e suas próprias ênfases..." (p. 33 do original, e cito do original porque nesse ponto houve com a tradução uma espécie de "erro que saiu pela culatra": a expressão well-worn _ tão desgastada _, usada por Abram, foi traduzida por "bem vestida", o que teria sido uma bela blague se não fosse um erro, e só pode ser um erro porque muitas vezes, quando o original requer alguma sutileza, o tradutor acabou errando. Mas esse é outro assunto, a ser tratado adiante).

Infelizmente, é preciso reconhecer que, nesse sentido, Winnicott deu com os burros n'água. São poucos os autores tão infernalmente enganosos em sua aparente simplicidade quanto esse inglês baixinho, tão gentil e tão suave, e no entanto tão terrível em sua diabolicamente infinita sutileza. Traduzi, de Winnicott, Natureza humana, há dez anos atrás, e Da Pediatria à Psicanálise, no ano passado, e logo em seguida fiz uma revisão completa na tradução de O brincar e a realidade. Quase posso dizer que "suei sangue". O esforço de traduzir Winnicott não se deve à complexidade de suas frases e ao seu vocabulário erudito. Ao contrário: seu inglês é quase, como se diz em informática, user friendly. Mas ai daquele que tentar chegar a Winnicott acreditando que o texto é simples. Eu diria que há nele algo da música de Debussy (penso naquele trecho tão conhecido, La Mer, tão aparentemente simples quanto verdadeiramente abismal em sua profundidade). Sim, ele foi bastante simples ao falar para não psicanalistas, mas mesmo nessas horas é preciso, para entendê-lo, deixar de lado todo o modo de pensar cartesiano arduamente aprendido por todos nós na escola primária. Quem tentar entender os ensinamentos de Winnicott para leigos como um método de "como cuidar dos filhos", por exemplo, vai chegar ao fim da leitura mais confuso do que antes. Assim sendo quando fala a leigos, o que dizer de seus textos dirigidos a profissionais?

3. Sobre a contribuição psicanalítica de Winnicott

Os textos teóricos de Winnicott têm dois "sentidos" inevitáveis. Primeiro, o sentido óbvio do assunto específico por ele abordado, seja o do falso self, do objeto transicional, da capacidade de estar só, e assim por diante. Existe uma "psicanálise winnicottiana" tão coerente e consistente em si mesma quanto as psicanálises de Freud, Lacan, Melanie Klein e Kohut. Há um sistema psicanalítico inteiramente desenvolvido e quase inteiramente auto-sustentado (o "quase" fica por conta dos fenômenos que ele encontra em Freud e Klein e adota como tais, como fazem outros teóricos). Mas não é só. Winnicott não se limita a reformular os elementos da psicanálise fundamental dos quais discorda ou a enriquecer essa psicanálise básica (freudiana-kleiniana) com elementos novos, complementando-a. Ele vai mais longe: não só reformula alguns conceitos centrais da psicanálise até então adotada (complexo de Édipo, posição depressiva, agressi-vidade, etc.), como propõe à consideração dos psicanalistas novos fenômenos até então desconhecidos (espaço potencial, objeto transicional, dupla dependência, moralidade inata, verdadeiro e falso selves, etc.), bem como sugere novas bases epistemológicas para a teoria da psicanálise, e obriga o leitor, para poder compreendê-lo, a uma mudança no próprio modo de pensar. Embora seja uma profunda injustiça dizer (como há quem diga) que Winnicott escreveu "poesia" e não ciência, o leitor deve lê-lo mais com a mente de quem lê poesia (aceitando a fluidez de sentidos e o paradoxo em lugar da linearidade) do que com a mente de quem lê um texto técnico tradicional. Sobre isso tem se falado cada vez mais nos círculos mais voltados para os estudos da teoria winnicottiana - ano passado, por exemplo, Zeljko Loparic, de São Paulo, escreveu um esplêndido trabalho sobre as diferenças entre os paradigmas científicos de Freud e os de Winnicott. E esse aspecto da contribuição de Winnicott não é apenas lateral à sua conceituação teórica: trata-se de um aspecto central, de um sine qua non para a própria inteli-gibilidade de suas proposições _ inclusive do ponto de vista mais "prático", a "arte" da terapia psicanalítica em si mesma (embora o próprio Winnicott diga expressamente que nada há de "arte" no que ele propõe _ a atitude do analista em relação ao paciente, no caso, o paciente regredido, sendo inteiramente científica _ ver "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão", em Da Pediatria à Psicanálise).

Nesse A linguagem de Winnicott, de Jan Abram, o aspecto forte está no primeiro dos dois sentidos mencionados, o que trata a contribuição de Winnicott como uma teia ou um tecido, em que os fios não se sucedem uns aos outros, mas entrecruzam-se sistematicamente, interpenetram-se, justapõem-se e atravessam uns o caminho dos outros, como já assinalei ao descrever o verbete-capítulo inicial do livro, sobre a agressividade. Mas o segundo sentido, o das transformações (Loparic diz "revoluções", e eu concordo inteiramente) epistemológicas e paradigmáticas, não encontra lugar no trabalho de Abram (e não porque tais aspectos não tenham sido discutidos antes _ o próprio Loparic mostra, em seu texto, como Phillips e outros já se aventuravam nessa direção há algum tempo). Creio que a explicação para essa aparente falha está em que, pioneira na tarefa da sistematização (mais que Alexander Newman, que com seu interessantíssimo Non-Compliance in Winnicott's Words é bem mais ousado quanto ao segundo aspecto, embora menos disciplinado e acadêmico quanto ao primeiro), Abram já fez muito em nos dar esse embrião de um "Laplanche e Pontalis" winnicottiano, que pode transformar-se, em edições posteriores, num dicionário de peso científico ainda maior. Cabe relevar-lhe a falta de ousadias epistemológicas. Essa, ao menos, é a minha opinião.

Mas há ainda que considerar a questão do modo como o livro foi traduzido para o português, e isso me leva ao ponto seguinte.

4. Sobre a tradução

Traduzir é unir, dizem os tra-dutores. Ao fazer seu trabalho, o tradutor permite que autor e leitor, a priori condenados à solidão do mudo que se vê diante do surdo, encontrem-se e falem um com o outro, dialoguem, relacionem-se.

Mas traduzir é trair, dizem os críticos. Ao verter o texto para a nova língua, não pode o tradutor escapar de deturpá-lo, pois não existe correspondência total entre os universos fenomênicos de duas línguas distintas.

Assim, chegamos à conclusão de que o tradutor não trai por desejar fazê-lo, mas porque a isso o condena a fatal diferença entre esses dois universos fenomênicos _ o da língua do texto original e o da língua do texto traduzido.

Estando o tradutor situado entre o autor e o leitor, porém, ele poderia, teoricamente, trair a um, a outro, ou a ambos. É preciso saber, portanto, a quem o tradutor está traindo. Trair, afinal, é verbo transitivo.

Ao trair o autor, o tradutor o faz por amor ao leitor. Modifica, então, a forma da frase para que, na sua nova morada lingüística, seu sentido fique mais claro para quem a lê. Isto, porém, envolve também um amor ao autor, pois este se beneficia mais da compreensão do leitor que da literal reprodução de seu texto. Ao trair o leitor, por outro lado, o tradutor aferra-se à lealdade para com o autor, e cabe ao leitor, abandonado à própria sorte, queimar seus neurônios para entender o que o autor quis dizer com aquilo. Ao trair a ambos, porém, o tradutor não só modifica a forma da frase, como ainda altera-lhe o sentido, deixando tanto o autor quanto o leitor sozinhos, mudo um e surdo o outro, incapazes de se comunicar e com a estranha sensação de terem sido logrados.

De todos os aspectos desta resenha, o mais ingrato é justamente o que diz respeito à tradução. Em sua Introdução ao livro, esse grande psicanalista, ser humano e amigo que é José Outeiral _ que aparece com grande destaque na capa do livro como Apresentador e Revisor Técnico, dupla garantia, portanto, em termos de marketing _ concedeu-me uma principesca honra ao nomear-me madrích da presente tradução. (Madrích _ guia, usada também no sentido de orientador, preceptor, etc. _ é uma palavra hebraica que significa "aquele que mostra o caminho", e deriva de dérech, caminho.) Isto pela tradução que fiz para Natureza humana, em 1990. Ele menciona expressamente as minhas "considerações sobre os termos utilizados e sua tradução", na nota que escrevi sobre os problemas da tradução do livro.

Qual não foi o meu espanto, pois, ao perceber, ao longo da leitura, que o tradutor de A linguagem de Winnicott não só não se baseou no que lá escrevi, como sequer leu aquela nota, tais as discrepâncias entre o que fiz eu naquele momento e o que faz ele agora. E como se não bastasse isso, nem a si mesmo seguiu ele com consistência, pois, ao longo do livro, há traduções diferentes para o mesmo termo. Cabe-me apenas lamentar por Outeiral, que não impediu a editora de lançar o livro _ talvez por pressa _ sem revisão técnica alguma da tradução. Pois se esta tivesse ocorrido, teríamos agora um texto muito, mas muito diferente.

Citei no início o termo-título do primeiro capítulo, "Agressão", para exemplificar o trabalho realizado por Abram. Pois bem: já em 1990, e sabendo talvez a metade do que sei hoje, dei-me conta de que a palavra aggression não pode ser traduzida por "agressão", como o fez, por exemplo, Jane Russo na antiga tradução de Da Pediatria à Psicanálise, pelo simples fato de que os ingleses parecem não gostar muito do substantivo agressiveness, ou então porque atribuem o mesmo sentido aos dois vocábulos. Em português "agressão" significa necessariamente um gesto, enquanto "agressividade" indica uma poten-cialidade, não um gesto. Essa po-tência chamada "agressividade", a qualidade daquilo que é agressivo, implica algo que pode ou não acontecer, realizar-se. Já "agressão" significa, para todos os efeitos, o gesto que, a partir da agressividade como potência, atualiza essa potência e deflagra um comportamento que chamamos de "agressor" ou "agressivo". O problema é que não se trata, aqui, nem de semântica nem de gramática, e sim de psicanálise. Pois um dos aspectos que diferencia a psicanálise de Winnicott das demais (salvo a de Kohut, que não conheço o bastante) é justamente a percepção inteiramente diversa que ele tem precisamente desse fenômeno. Um psicanalista que, em vez de discutir a natureza agressora, destrutiva, hostil do bebê humano, fala de sua criatividade, de sua moralidade e de sua tendência à integração, todas inatas, um psicanalista que, para falar da capacidade do bebê de atacar a mãe e mesmo machucá-la recorre à palavra usada, na língua inglesa, para designar a agressividade dos animais carnívoros, portanto inteiramente desvinculada de qualquer conotação valorativa (prerrogativa do animal cultural humano), que é ruthlessness (significando literalmente ausência da capacidade de importar-se, de apiedar-se, de compadecer-se), não merece que, numa tradução, sua idéia seja desvirtuada pelo uso, como uma palavra pretensamente paralela na outra língua, de termos que implicam inevitavelmente hostilidade, destru-tividade e outros fenômenos do gênero. Por isso, traduzir agression como agressão poderia ser tolerado num texto em que a conotação desse termo português coubesse na idéia original, mas jamais num texto de Winnicott. (Sobre isso, ver o que a própria Abram diz a respeito, ao longo desse mesmo capítulo. Fica a impressão de que o tradutor simplesmente não leu o que estava traduzindo, ou não estava muito preocupado com as conotações das palavras. Bastou-lhe, ao que parece, encontrar um equivalente, qualquer equivalente, e pronto.)

O mesmo deve ser dito quanto ao uso de "cruel" e "crueldade" para traduzir ruthless e ruthlessness, e quanto ao uso de "preocupação" para traduzir concern, e esses foram justamente dois dos aspectos que apontei em minha nota à tradução de Natureza humana. Infelizmente, Outeiral me dá o título de madrích, mas o tradutor propriamente dito parece que não se deu conta das intenções de seu revisor técnico a esse respeito. O problema da tradução desse e de outros termos winnicottianos não foi por mim resolvido _ e deixei isso bem claro tanto em Natureza humana quanto em Da Pediatria à Psicanálise. Zeljko Loparic e Elsa Oliveira Dias, que também têm uma preocupação intensa em encontrar os melhores termos para a tradução de Winnicott, concordam quanto à dificuldade em fazê-lo, e propõem várias soluções próprias para alguns desses termos ("si-mesmo" para self, "incompadecimento" para ruthlessness, "concernimento" para concern, etc.). Talvez não sejam soluções definitivas, mas creio que há uma diferença fundamental entre não resolver um problema e tratar de solucioná-lo de qualquer maneira.

Não conheço ninguém que, em sã consciência, advogue a desim-portância dessa questão entre os psicanalistas winnicottianos mais conhecidos. O tradutor do livro, porém, pelo visto, não consultou ninguém, e não só não se preocupou em ajudar a resolver o problema, como sequer se importou em aumentar a confusão. Nesse sentido, não posso dizer que ele foi ruthless: só posso dizer que foi definitivamente cruel! Se não por ação deliberada, por omissão negligente e retumbante. O tradutor aparece, na página de rosto do livro, como psicanalista. Imagino (eu disse "imagino") que seja um bom psicanalista, para ter sido escolhido por Outeiral para traduzir o livro. Infelizmente, Outeiral o terá julgado por suas qualidades terapêuticas, ou pessoais, mas não por seu conhecimento teórico de Winnicott ou por sua competência no uso da língua inglesa. Deixo claro que minhas críticas ao tradutor Marcelo Del Grande da Silva não dizem respeito algum à sua pessoa ou a ele como psicanalista. Espero ter sido claro ao menos neste ponto.

Elsa Oliveira Dias, na resenha que fez desse mesmo livro para a revista da Universidade São Marcos, em São Paulo, conclui dizendo que a tradução brasileira anulou uma boa parte da contribuição de Abram. Eu iria mais longe e diria que um livro com tanta importância científica quanto esse, traduzido dessa maneira, é tanto um contra-senso quanto um verdadeiro atentado, pois quem quer que nele confie para fundamentar alguma idéia com base em Winnicott, ou nele tente encontrar explicações para o sentido de alguma idéia winnicottiana, corre o risco de errar o seu alvo de maneira clamorosa e desastrosa. Infelizmente, a presença do meu querido amigo José Outeiral à frente da produção do livro não foi levada muito a sério pela editora que o publicou: essa é a minha conclusão. Já vi livros serem levados ao prelo sem que nenhuma tentativa de avaliar a tradução tenha sido feita, e eu próprio já publiquei vários livros que tive que retra-duzir quase inteiramente, a fim de não passar vergonha, tamanha era a inconsistência da tradução ou sua incompetência em inglês, em português ou quanto ao assunto abordado. Não posso imaginar que Outeiral tenha lido o original da tradução e deixado passar tantos e tamanhos erros. Só posso imaginar que a pressa em colocar o livro no mercado levou a editora a imprimi-lo sem dar tempo para qualquer revisão. Uma "prova" que demonstra essa minha suspeita é a decisão de, em vez traduzir o índice remissivo do original e dar-se ao trabalho de encontrar a incidência dos termos na edição brasileira, a editora optou por "resumir" o índice original, oferecendo ao estudioso brasileiro meras quatro páginas de índice em vez das muitíssimas mais da edição inglesa. O cuidado e o esmero da apresentação gráfica do livro poderiam indicar um certo carinho da editora em relação a ele, mas quem já trabalhou em editora sabe que esse aspecto da produção de um livro pode perfeitamente ser realizado ao mesmo tempo em que a tradução e a revisão estão sendo feitas, enquanto que o índice remissivo só pode ser preparado depois do livro pronto (para localizar as incidências dos termos na forma gráfica final). Por tudo isso, e levando em conta que, no Brasil, já fomos literalmente agredidos por várias traduções lamentáveis de Winnicott, perpetradas por diversas editoras (exemplos notórios, mas não únicos, são Explorações psicanalíticas e O ambiente e os processos de maturação), deixo aqui o meu protesto por esse quase antológico delito editorial com que nos brinda a Revinter, por publicar um dicionário tão pouco preciso e tão pouco cuidado. Ficam aqui meus protestos mais veementes, e meus votos para que uma segunda edição, inteiramente revista, seja logo posta à disposição do público. Caberia aqui, inclusive, com inteira legitimidade, o recurso àquilo que outras indústrias chamam de recall, quando oferecem conserto ou substituição gratuita aos que adquiriram produtos defeituosos ou problemáticos em sua utilização. Seria um tanto pretensioso dizer que a leitura equivocada do livro de Abram poderia prejudicar seriamente a saúde ou o trabalho de alguém, como acontece com automóveis que saem de fábrica com problemas nos freios; mas o fato é que nem Winnicott, por sua devoção de vida inteira ao entendimento cada vez mais sutil e sagaz da natureza humana, nem Jan Abram, por seu esforço maratônico em preparar um livro de tamanho fôlego e tanta seriedade, mereciam esse tipo de injustiça. Nem o leitor brasileiro interessado em Winnicott. A este cabe, a meu ver, o direito de exigir da editora que faça os consertos e lhe troque o produto que adquiriu. Pois um livro técnico contendo informações erradas é um ato de desrespeito total ao consumidor, algo parecido com vender terrenos na Avenida Atlântica no lado ímpar. E a Revinter, pelo que sei, é antes de mais nada uma editora de livros técnicos!

Sei que estou sendo impiedoso em meu julgamento, mas aqui tampouco caberia o uso do termo ruthless, pois tenho total consciência da minha deliberada intenção de ser contundente e causar desconforto aos que forem atingidos por meu gesto agressivo. E o faço por entender que, definitivamente, tanto Winnicott é um autor importante demais para ser tratado com tamanha descon-sideração quanto nós, os psicanalistas winnicottianos, somos numerosos demais para ainda sermos tratados com esse pouco caso.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: davy@dwwinnicott.com

Recebido em 25 de fevereiro de 2001.
Aprovado em 20 de abril de 2001.