SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.3 n.1 São Paulo jun. 2001

 

RESENHAS

 

André Duarte

Departamento de Filosofia - UFPR

Endereço para correspondência

 

 

Rüdiger Safranski 2000: Heidegger - um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo, Geração Editorial. Tradução: Lya Luft ISBN: 85-86028-85-1

Em um texto de homenagem aos oitenta anos de Martin Heidegger, Hannah Arendt escreveu que há pensadores que contribuem de maneira decisiva para a determinação da "fisionomia espiritual" de uma época, pois, com sua pura atividade de pensamento, logram definir e mesmo transcender seu momento histórico. De fato, pensadores como Heidegger são únicos, visto que eles não apenas respondem aos problemas e tendências teóricos de sua época, mas, ao pensar de maneira radical o ainda impensado pela tradição em que se situam, acabam por ultrapassar as conclusões de seus contemporâneos e predecessores. Heidegger foi o último a conferir à filosofia um papel exclusivo na interpretação crítica do presente e da própria história ocidental, colocando-se, assim, na esteira de Hegel e Nietzsche. Por outro lado, entretanto, ao pensar grande, ele também se expôs ao risco de errar na mesma proporção: se ele foi capaz de enxergar a violência metafísica implicada nos dilemas tecnológicos do presente, também houve momentos em que seu pensamento foi acometido por uma peculiar cegueira, como no caso de seu breve envolvimento com o movimento nacional-socialista.

Foram onze meses como Reitor da Universidade de Freiburg, entre maio de 1933 e abril de 1934, aos quais se pode acrescentar mais dois anos de simpatia desconfiada pelo regime, até que, por volta de 1937-38, o encanto finalmente se quebrou e Heidegger se desfez de sua ilusão político-metafísica. A despeito do nazismo ainda não ter mostrado sua verdadeira feição totalitária durante a primeira metade da década de trinta, essa atenuante em nada ameniza o caráter chocante da adesão de Heidegger ao partido de Hitler, cuja violência terrorista já se tornara explícita antes mesmo de sua ascensão ao poder. Eis aí um assunto espinhoso e inevitável, que vem suscitando uma profusão de interpretações, críticas e apologias, sobretudo depois que Victor Farías publicou Heidegger e o nazismo, em 1987. No seu rastro vieram, para nos limitarmos aos estudos de caráter biográfico, as obras de Hugo Ott, Martin Heidegger: Unterwegs zu seiner Biographie, de 1988, e de François Fédier, Heidegger: anatomia de um escândalo, também do mesmo ano. Pouco depois, em 1994, surgiria na Alemanha o livro de Rüdiger Safranski, possivelmente a melhor biografia intelectual do filósofo até o momento.

O sóbrio título do original alemão, Ein Meister aus Deutschland: Heidegger und seine Zeit (Um mestre da Alemanha: Heidegger e seu tempo), diz muito a respeito dos objetivos de seu autor. Tratava-se de superar a oposição entre o caráter polêmico ou apologético dos estudos anteriores e de elaborar um grande painel intelectual da Alemanha do século vinte, no qual o pensamento heideggeriano fosse confrontado com o de seus contemporâneos, como Weber, Jaspers, Husserl, Scheler, Cassirer, Jünger, Schmitt, Adorno e Arendt, entre outros. Sem apresentar nenhum fato novo sobre a vida de Heidegger e, principalmente, sobre seu envolvimento com o nazismo, a obra de Safranski tem o mérito de apresentar interpretações elegantes e instrutivas a respeito de aspectos importantes de sua obra, além de sugerir uma hipótese interessante a respeito da relação entre filosofia e política no pensamento heideggeriano do início dos anos trinta.

Além de constituir uma obra de referência para os estudiosos de Heidegger, o livro também apresenta interesse para os teóricos das ciências humanas em geral, sendo especialmente recomendável como uma boa introdução aos problemas e conceitos heideggerianos. Considere-se, por exemplo, a fórmula por meio da qual Safranski sintetiza a sua caracterização do estilo e do pathos do pensamento heideggeriano durante os anos vinte, definindo-o como uma "encenação dadaísta na filosofia" (p. 133). Essa formulação estabelece, por analogia, o eixo em torno do qual são apresentados e discutidos alguns dos principais motivos teóricos com os quais Heidegger elaborou sua revolução filosófica: a crítica impiedosa à mera erudição ilustrada em nome de uma atitude de pensamento inovadora, capaz de conjugar a fria "conceitualidade abstrata" a uma forte "concretude emocional" (p. 149), inspirando em seus leitores e ouvintes a exigência de que eles se transformem ao pensar; o compromisso da reflexão filosófica com o estranhamento do que nos é mais próximo e comumente aceito, instigando um olhar desconfiado em relação à interpretação pública e cotidiana de nós mesmos, dos outros e das coisas que encontramos em nossas ocupações e preocupações mundanas; a concepção da filosofia como um exercício metódico de "inquietação intensificada" (p. 152) e como preparação para o "instante" decisivo da apropriação de si, etc. No curso dessas discussões, Safranski observa ainda que a revolução heideggeriana do pensamento não mantém relação apenas com algumas idéias dos revolucionários conservadores, como Jünger e Schmitt, mas também apresenta conexões insuspeitadas com o pensamento dos rebeldes da esquerda alemã, como Ernst Bloch e Walter Benjamin, aspecto que apenas agora começa a ser melhor explorado. Tome-se, por exemplo, a compreensão da história que lhes é comum, formulada por Safranski nestes termos: "a história como cratera de vulcão: ela não acontece, ela irrompe. Por isto é preciso estar a postos com rapidez de interpretação, para não ficar soterrado. Quem ama o seu momento não pode se preocupar demais com segurança" (p. 216).

Outro mérito do livro é que ele permite compreender a lenta maturação dos conceitos heideggerianos. Nos capítulos iniciais, Safranski acompanha o progressivo afastamento de Heidegger da esfera de influência do pensamento católico rumo a uma forma bastante peculiar de "filosofia da vida", à qual ele impôs os rigores da análise fenome-nológica husserliana. Os conceitos-chave de Ser e tempo, de 1927,são forjados desde o início da década, nos seminários que Heidegger proferiu ainda em Freiburg, como assistente de Husserl, e pouco depois em Marburg. O jovem professor-assistente começava a ensaiar sua rebelião filosófica já em um seminário de 1919, intitulado "A idéia da filosofia e o problema da concepção de mundo" (GA 56/57), em que ele afirmava que "Husserl só descrevera os modos de ser dado (Gegebensein) apenas na consciência teoricamente orientada. Mas na realidade em nossa vivência do mundo em torno (Umwelterleben) só estamos teoricamente orientados por exceção" (p. 128). Empregando o conceito de "vivência primordial", oriundo de Dilthey, Heidegger procurava chamar a atenção para o modo como os entes nos são dados cotidianamente em um mundo circundante já sempre tramado de sentidos, antes mesmo de eles se tornarem objetos para uma cons-ciência que os avalia teoricamente. Nesse seminário, Heidegger apresenta um exemplo elucidativo de seu modo de pensar e ensinar: ao mencionar a cátedra de onde fala aos ouvintes, afirma que ela não é percebida, nem por ele nem por seus alunos, como uma superfície extensa dotada de certas qualidades como forma ou cor, mas, sim, e em primeiro lugar, como algo por meio do qual é o próprio mundo que se apresenta imediatamente: "Vivendo em um mundo em torno, por toda parte e sempre ele me significa, tudo tem caráter de mundo (welthaft), munda (es weltet)" (p. 129). A cátedra "munda", quer dizer, ela reúne em si toda uma rede de sentidos que remetem não apenas ao universo acadêmico, mas também para muito além dele, e é assim que ela é vivenciada, antes mesmo que um sujeito se postasse diante dela para observá-la como um objeto dado. Eis aí o embrião daquilo que, em Ser e tempo, se transformará na importantíssima distinção entre o ente à mão ou disponível (zuhandenen) e o ente simplesmente presente (vorhandenen).

Safranski também analisa os conceitos de "vida fática", "preocupação" (Sorge) e "ser-aí" (Dasein), descobertas do curso sobre Aristóteles, datado do inverno de 1921-22, com as quais se prenuncia a futura distinção entre a "existência" (Existenz), pensada como modo de ser do ente que é "acessível para si mesmo" no horizonte temporal de suas atividades mundanas, e os entes que estão simplesmente presentes no mundo. Do curso de 1923, intitulado "Ontologia - hermenêutica da facticidade", vem a idéia de que a filosofia tem de espreitar a existência humana em sua "tendência para decair" de si mesma, "fugindo" não de um suposto eu verdadeiro, mas da "inquietação" fundamental que habita o homem e da qual ele se desvia ao agarrar-se às máscaras talhadas pela "interpretação pública" de si e de tudo o que é, noções que se tornarão fundamentais na grande obra ainda em gestação. Acrescente-se a tudo isso os conceitos de historicidade fundamental e de temporalidade horizontal-ekstática e estaremos quase às portas de Ser e tempo, cujos principais conceitos são apresentados sinteticamente no capítulo 9 do livro.

Boa parte desse capítulo é dedicada à discussão dos conceitos de "propriedade" (Eigentlichkeit)e "impropriedade" (Uneigentlichkeit), responsáveis diretos pela popularidade instantânea que a obra assumiu, a despeito de seu caráter complexo e intrincado. Safranski argumenta que a descrição heideggeriana do "quem" do Dasein em sua cotidianidade mediana não pode ser confundida com os diagnósticos recorrentes a respeito da massificação do cotidiano, das pressões insidiosas da publicidade e do frenesi de curiosidades que comanda a indústria cultural. Afinal, para Heidegger, a impropriedade da existência não constitui uma condição a ser suprimida assim que as raízes sócio-históricas da alienação forem destruídas, pois ela é pensada como um existencial, isto é, como constitutiva do modo de ser do ente que nós mesmos somos. Ser-no-mundo significa estar sempre junto aos entes intramundanos com os quais nos ocupamos conjuntamente com os outros, com os quais coexistimos em um mundo comum já sempre interpretado, de tal modo que, no mais das vezes, nós não somos nós mesmos, mas somos como todos os outros também o são: cotidianamente, cada um é como o outro e ninguém é si mesmo, diz Heidegger no famoso § 27. Pelo mesmo motivo, também a descoberta do "poder-ser mais próprio", isto é, da propriedade de si mesmo, não pode ser pensada como um processo de conversão religiosa e absoluta, capaz de desemaranhar, de uma vez por todas, um si mesmo substancial de suas falsas representações cotidianas. Segundo Safranski, "propriedade é intensidade, nada mais" (p. 212), de sorte que a apropriação de si mesmo não desentranha o Dasein do mundo em que ele existe e coexiste com os outros, mas modifica-lhe o próprio ser-no-mundo, por meio de uma finitização de suas relações para consigo, para com os outros e para com os chamados entes intramundanos.

Essa interpretação dos existenciais da propriedade e da impropriedade da existência permite ao autor sugerir o indício de uma "ética da propriedade" (p. 207) em Heidegger, alheia à compreensão tradicional da ética como prescrição normativa e substancial: "Na propriedade heideggeriana, com efeito, não se trata primeiramente do agir bom e eticamente correto, mas da abertura de chances para grandes momentos, trata-se do aumento de intensidade do Dasein; mas na medida em que se trata do ético, as reflexões de Heidegger sobre Ser e tempo se podem formular numa frase: faz o que queres, mas decide por ti mesmo e não deixes que ninguém te roube a decisão e com isso a responsabilidade" (p. 208). A mesma indeterminação quanto aos conteúdos do agir ético se reproduz em relação ao agir político, pois, se Heidegger estabeleceu um triste compromisso entre os conceitos de Ser e tempo e sua própria interpretação do nazismo, no discurso do Reitorado de 1933, Safranski observa, corretamente, que "a ontologia fundamental de Heidegger, bem como sua filosofia da propriedade, são suficientemente imprecisas para dar espaço a diversas opções em assuntos políticos. Heideggerianos da primeira hora, como Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Günther Anders, Hannah Arendt, Karl Löwith, são exemplos disso" (p. 210).

A disposição da angústia é analisada como a via de acesso ao abismo da liberdade do poder-ser mais próprio, pois é por meio dela que se descobre que "não há nada por trás" do existir fático (p. 204). Aqui, a clareza das análises de Safranski se vê prejudicada pelo fato de que a tradução apaga a distinção fundamental estabelecida por Heidegger entre as "disposições" do temor (Furcht) e da angústia (Angst): ela é expressamente reconhecida na p. 192, mas desaparece quase por completo nas páginas subseqüentes (pp. 204, 219, 220, 221, 236 e 309), prejudicando assim a compreensão do texto de Safranski e gerando imprecisões conceituais nos textos de Heidegger. Enquanto o medo é uma reação a um referente externo mais ou menos identificável, do qual se pode dizer que é temível, na angústia esse referente objetivo desaparece por completo, pois se trata aí de um afeto intransitivo: ela se instaura e não se refere a nada. A distinção é fundamental e, sem ela, não se compreende a correlação heideggeriana entre os fenômenos da angústia, do nada e da liberdade pensada como transcendência, central para a compreensão do desenvolvimento de seu pensamento entre a publicação de Ser e tempo e a metade dos anos trinta. Essa correlação fundamental está no centro da conferência "O que é a metafísica?",de 1929, com a qual Heidegger assumiu a cadeira de Husserl, em Freiburg, e também aparece no seu curso de 1929-30, intitulado "Os conceitos fundamentais da metafísica".Em ambos os casos, Heidegger modula o tom de suas descrições fenomenológicas e passa a falar diretamente para os leitores e ouvintes, exigindo deles o "empenho existencial" (p. 219) do enfrentamento da estranheza de si na recusa das distrações cotidianas: "O novo estilo de Heidegger: filosofia do acontecimento (Ereignisphilosophie). A filosofia tem de produzir por passe de mágica a situação que então se esforçará [por] determinar" (p. 220).

Sem perder de vista as profundas transformações pelas quais o pensamento heideggeriano passou ao longo de mais de cinqüenta anos de reflexão incessante, Safranski identifica, de maneira pertinente, a questão do ser (Seinsfrage)como o elo que unifica o pensamento de Ser e tempo ao das obras que aparecem após a Carta sobre o humanismo, de 1946. Para o chamado "primeiro" Heidegger, reavivar a questão do ser implicava descongelar e perfurar os modos ritualizados e enrijecidos com os quais o homem se esquece de que ele é a sua possibilidade e não apenas mais um ente real dado. Quanto ao chamado "segundo" Heidegger, para o qual o pensamento é agora "pensamento do ser", no sentido de que é o próprio homem que se vê interpelado e em correspondência para com o ser em sua ex-istência histórica, persistir no questionamento do ser significava reconhecer as determinações historiais do "atual jogo do mundo". Por sua vez, isso significava recobrar o sentido da possibilidade de superação do presente em um "novo começo", no "evento" de uma nova configuração das relações entre o homem e tudo o que é, para além da violência tecnicista imperante. Pode-se então dizer que, para Heidegger, o problema do ser é sempre um "problema da liberdade" (p. 359).

No entanto, como não poderia deixar de ser em um estudo biográfico-teórico, o cerne do livro (capítulos 12 a 15) diz respeito à avaliação da relação de Heidegger com o nazismo. A exemplo dos estudos biográficos anteriores, Safranski relata a configuração dos múltiplos elementos históricos que se cristalizaram no engajamento heideggeriano de 1933, tais como o seu antimodernismo de influência católica, particularmente forte nos anos de sua juventude e de formação intelectual; a crise política e econômica que assolou a República de Weimar, agravada a partir de 1929; o anti-semitismo declarado de sua esposa; a sua expectativa por uma solução política autoritária, capaz de pôr termo ao politeísmo dos valores conflitantes entre si; a recusa do bolchevismo soviético e do liberalismo norte-americano, etc. Se é certo que Heidegger compartilhava tais sentimentos, temores e experiências com boa parte de seus concidadãos, nenhum desses elementos foi realmente determinante em sua decisão, que, segundo Safranski, foi de natureza eminentemente teórica. No entanto, se o discurso do Reitorado pôde ser definido pelo biógrafo como "ontologia fundamental popular aplicada" (p. 317), isso não significa que, para Safranski, Ser e tempo fosse uma obra intrinsecamente totalitária, como o pensou Victor Farías. Como, então, compreender o engajamento político de Heidegger? Aqui desponta o aspecto mais original das análises de Safranski: para ele, tal engajamento não é nem fruto exclusivo das circunstâncias históricas, nem uma conseqüência necessária do pensamento heideggeriano, mas o resultado do mau encontro proporcionado pela conjunção fatídica de ambos os fatores. Em outras palavras, Safranski procura demonstrar como as circunstâncias histórico-biográficas de Heidegger se ajustaram perfeitamente às exigên-cias internas do seu pensamento de meados dos anos trinta, que passara a exigir da filosofia que ela estivesse à altura de agarrar e "dominar" o seu presente, nele intervindo.

Possivelmente inspirado na crítica arendtiana a Heidegger, que nele identificara a mesma déformation proféssionelle que acometera Platão quando este pretendeu transformar o tirano de Siracusa em um rei-filósofo,Safranski observa ser sintomático que, entre 1931-32, ou seja, pouco antes de sua adesão ao partido, Heidegger estivesse às voltas com um seminário sobre a República, de Platão. Foi justamente no curso desse seminário que Heidegger passou a exigir que a política se tornasse filosófica e a filosofia se tornasse política, bem como a esperar pelo momento histórico em que o filósofo conduziria a comunidade para fora da caverna das múltiplas e conflitantes opiniões sobre o ser: numa carta a Jaspers, de 20/12/1931, ele afirmara que "a filosofia teria o cargo de líder e guia consciente na existência pública legítima" (p. 262). Heidegger retornou a Platão, mas seu ímpeto fora o de pensar o presente; sob tais condições, ele enxergou na revolução nacional-socialista o tão esperado momento de libertação das ilusões políticas da caverna moderna, isto é, o liberalismo e o comunismo, vendo na ascensão de Hitler um acontecimento que em muito transcendia o plano do político, pois ele seria capaz de configurar "um novo ato na história do ser, a transformação de uma época" (p. 276). Heidegger não aderiu ao nazismo porque tivesse se tornado anti-semita, acusação que ele repele com veemência ao responder a uma carta que Arendt lhe escrevera em 1933, como se pode ler na recém-traduzida correspondência entre ambos, publicada pela editora Relume-Dumará. Ele também não se engajou porque fosse um oportunista político, ávido por iniciar uma poderosa carreira pública, muito embora também não se sustente a tese que ele próprio defenderá diante do comitê de desnazificação, em 1945, isto é, a de que aceitara participar do regime para preservar a autonomia da Universidade e impedir que algum espírito medíocre se apossasse dela. Para Safranski, e nisso ele está novamente próximo da posição arendtiana, Heidegger politizou os conceitos de Ser e tempo porque o nacional-socialismo lhe inspirou idéias filosóficas, as quais, entretanto, em nada correspondiam ao nazismo realmente existente: disso resultou a estranha fusão entre o intenso arroubo metafísico e a extrema cegueira filosófica e política.

Será apenas no curso dos seus seminários sobre a filosofia de Nietzsche (1936-1940), tornado entrementes o filósofo oficial do Terceiro Reich, que Heidegger finalmente perceberá que o nazismo não era o antídoto, mas sim uma manifestação aguda dos mesmos males abjurados por ele entre russos e americanos, ou seja, violência tecnológica sob a forma do planejamento calculado e disciplinado do todo dos entes; nessa fórmula, ressalta Safranski, "cálculo vale por americanismo, planejamento por comunismo e disciplina por nacional-socialismo" (p. 350). Em seu importante texto de 1938, "O tempo da imagem do mundo" (Die Zeit des Weltbildes), torna-se explícito que Heidegger já não pensa o nacional-socialismo como o outro da mobilização total tecnológica, mas como a mais clara expressão da modernidade. No entanto, a despeito das várias declarações teóricas nas quais transparecem suas críticas ao regime de Hitler, a ausência de uma declaração pública de desculpas, após 1945, marcaria indelevelmente a recepção e discussão do seu pensamento na segunda metade do século. Compreende-se que se tenha exigido dele uma tal retratação pública, bem como que seu silêncio seja questionável filosoficamente. Por outro lado, entretanto, também não se pode deixar de compreender que Heidegger tivesse motivos para permanecer silencioso: desculpar-se pelos atos cometidos entre 1933-34 significaria assumir responsabilidade direta pela morte de milhões de judeus nos campos de extermínio, sobretudo a partir de 1942. Isto lhe parecia impertinente e absurdo, tanto mais porque ele próprio se convertera à tarefa de pensar criticamente a essência da técnica moderna, a "armação" (Gestell), condição sem a qual o horror da fabricação de cadáveres em massa não se teria realizado. Tendo reconhecido a transformação dos humanos em mero estoque de reserva (Bestand)à disposição de quaisquer maquinações tecnológicas, Heidegger também reconheceu, como Adorno, que "Auschwitz é um típico crime da modernidade" (p. 488).

Para concluir, resta lamentar o imenso descuido com que esse livro foi tratado pela editora. Abundam as frases incompletas e incompreensíveis, os erros na datação de acontecimentos e na nomeação dos autores envolvidos, os erros de digitação e na colocação de vírgulas, aos quais se acrescentam, ainda, erros de tradução que poderiam ter sido facilmente detectados se o trabalho tivesse passado por alguma revisão. Limito-me a oferecer apenas um exemplo, por falta de mais espaço no âmbito desta resenha. No contexto de uma delicada discussão a respeito dos atos de Heidegger como reitor da Universidade, lê-se a seguinte afirmação, na p. 302: "Talvez, nesse contexto da revolução nacional-socialista, Heidegger tenha querido colocar entre os `elementos inferiores', antes dos insuficientemente qualificados do ponto de vista profissional e de caráter, naturalmente e sobretudo os judeus e opositores políticos. E Heidegger tinha de saber disso". No entanto, o texto do original alemão, p. 296, diz o seguinte: "Heidegger mochte in diesem Zuzammenhang unter den `minderwertigen Elementen' wohl eher die fachlich und charakterlich unzureichend qualifizierten haben, doch für die national-sozialistische Revolution waren es natürlich vor allem die Juden und die politischen Oppositionellen. Daß mußte Heidegger wissen" (p. 296). Uma possível tradução da passagem seria:

"Neste contexto, Heidegger pode ter qualificado como `elementos de menor valor' os incapazes do ponto de vista profissional e de caráter; no entanto, para a revolução nacional-socia-lista estes eram, naturalmente e sobretudo, os judeus e os opositores políticos. E isto Heidegger tinha de saber". O exemplo fala por si mesmo e torna desnecessário insistir sobre a necessidade de a editora oferecer ao público uma segunda edição revisada desse interessante livro.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: andremduarte@uol.com.br

Recebido em 1º de março de 2001.
Aprovado em 23 de julho de 2001.