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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.3 n.2 São Paulo dez. 2001

 

TRADUÇÃO

 

O conceito de inconsciente na psicologia*

 

The concept of the unconscious in psychology

 

 

Theodor Lipps

 

 

Esta conferência trata menos de uma pergunta psicológica do que da própria psicologia. Não se pode analisar o conceito de inconsciente na psicologia sem, pelo menos, tocar na pergunta psicológica mais geral pela natureza e tarefa dessa ciência. Assim, esta conferência de encerramento do Congresso entra deliberadamente em questões de princípio. Não me surpreenderia se essa ou aquela tese que aqui exponho soasse estranha aos ouvintes; entretanto, não estou dizendo nada de propriamente novo que não tenha dito ou apresentado insistentemente em outro lugar.1 De fato, aqui faço apenas um resumo, numa formulação mais precisa.

Se a psicologia se colocasse como única tarefa descrever vivências conscientes, ela não precisaria, de modo algum, do conceito de inconsciente. Mas uma tal psicologia seria um disparate. A psicologia que insistisse em apenas descrever - que, portanto, não excedesse cá ou lá a mera descrição - não poderia ser outra coisa do que a narrativa ou o relato de meus próprios processos conscientes individuais. Não haveria, para uma tal psicologia, nenhum "por quê" ou "para quê". Não haveria nenhuma pergunta pela procedência das vivências conscientes ou pelo significado delas para o encadeamento da vida psíquica. Jamais poderíamos dizer que aquilo que foi vivenciado sob determinadas circunstâncias teria de ser revivido em outras ocasiões sob circunstâncias iguais. Faltaria aos fatos toda universalidade e necessidade.

Até os conceitos gerais mais comuns da psicologia perderiam seu valor. Para uma psicologia desse tipo, que dirige sua atenção apenas às vivências conscientes imediatas, os fatos psíquicos que possuem a mesma procedência e o mesmo significado para a vida psíquica - e que, por isso, já na vida comum são considerados da mesma espécie e designados pelos mesmos nomes - seriam algo totalmente diferente em diferentes tempos e para diferentes indivíduos.

Um e o mesmo juízo sobre uma e a mesma coisa, considerado como mera vivência consciente, pode ser, uma vez, um juízo proposicional [Satzurteil]2 puro, isto é, uma consciência da necessidade objetiva de deixar que determinadas palavras se sigam umas às outras numa determinada seqüência. Outra vez, ele pode apresentar-se à consciência simultaneamente como uma coexistência ou, então, como uma seqüência ora destes ora daqueles elementos ou rudimentos de representações de coisas [Sachvorstellungen] ou de representações de significado [Bedeutungsvorstellungen] pertencentes às palavras. Ele pode surgir na consciência ainda como um juízo de sentido [Sinnurteil],3 isto é, como consciência da necessidade objetiva de ordenar, de uma determinada maneira, certas representações de coisas umas em relação às outras. A psicologia descritiva teria de descrever esses estados de coisas. De modo algum seria considerado o fato de, em todos esses casos, ser o juízo o mesmo juízo, um e mesmo processo parcial em um encadeamento de pensamento ou de conhecimento humano. Para a psicologia descritiva, existiriam apenas aquelas vivências conscientes, totalmente diferentes quanto ao conteúdo.

E o mesmo valeria em relação a outros processos psíquicos, por exemplo, às nossas valorações estéticas ou aos nossos modos de nos comportar, prática ou eticamente, diante de objetos. Com efeito, aquilo que caracteriza psicologicamente um juízo do entendimento [Verstandsurteil], uma valoração estética, uma tomada de posição prática ou ética em relação a um objeto, ou aquilo que faz dela o que ela é e o que ela significa no encadeamento da vida psíquica, pode ser tanto consciente como inconsciente. Pode, além disso, ser representado na consciência por estes ou aqueles elementos e, considerado como vivência consciente, ter, portanto, uma aparência muito diferente. Uma psicologia que se contentasse com esses variáveis sintomas do processo psíquico dados na consciência não estaria apenas numa posição igual à de uma ciência médica, para a qual as doenças nada mais são que um conjunto de sintomas patológicos externamente evidentes, mas estaria, ainda, muito atrás dessa ciência médica. Isso porque os sintomas patológicos são, em grau muito menor, variáveis e acidentais.

Por fim, a psicologia apenas descritiva, tomada seriamente, não poderia falar de maneira alguma de vivências conscientes de outras pessoas, visto que eu mesmo nunca posso vivenciar, mas apenas inferir tais vivências. Toda inferência, porém, pressupõe uma conformidade a leis ou um encadeamento causal, e toda inferência de algo psíquico pressupõe um encadeamento causal psíquico.

Felizmente, essa psicologia apenas descritiva nunca existiu. Mesmo aqueles que pretendiam apenas descrever, nunca permaneceram na descrição. Fala-se, ainda, em descrição quando se faz análise de tons parciais, que supostamente permaneceriam "contidos" em um acorde. O conteúdo de consciência denominado "acorde" deve apresentar-se à atenção como a multiplicidade de conteúdos da consciência, denominados "tons". Na verdade, essa suposta descrição do que é dado na consciência é uma teoria que contradiz a experiência, pelo menos a minha própria. Na "análise" da sensação do acorde em minha consciência, encontro, primeiramente, um som com uma única altura, e só mais tarde ouço tons de alturas diferentes. Em meio a isso introduzem-se, ainda, representações reprodutivas dos tons, e a eles está conectado um sentimento, que eu chamo de sentimento de atenção. A psicologia descritiva teria de contentar-se com a descrição desta seqüência de fatos dados na consciência. A esta psicologia não seria permitido tornar essa seqüência compreensível.

Tornar compreensíveis os conteúdos da consciência e sua existência, esta é exatamente a tarefa da psicologia. Toda ciência da realidade efetiva quer ordenar os fatos da experiência imediata num encadeamento causal ou compreendê-la em sua conformidade a leis. Nisso consiste precisamente a compreensão. A psicologia também deve ter tal propósito. Desde já podemos acrescentar que nenhuma ciência encontra na experiên-cia imediata o encadeamento no qual faz a ordenação. Toda ciência produz, primeiro, esse encadeamento. Como disse em outro lugar,4 o conhecimento humano da realidade efetiva é a construção de um mundo de pensamento, não tanto a partir do dado, mas para ele ou para acomodar esse dado. Repetindo uma expressão já empregada anteriormente, poder-se-ia também dizer que o conhecimento humano é o acréscimo de um mundo real, ou acreditado como real, aos ocasionais "sintomas" de tal mundo, que são dados na experiência imediata. Não se admire se o mesmo acontecer no caso do conhecimento psicológico.

Quais são, então, os fatos que a psicologia se esforça para compreender? Diz-se: "os fatos da consciência". Mas o que significa isto? Ou, então, afirma-se: "as sensações, representações, pensamentos etc.". Mas o que se quer dizer com essas palavras? É um fato notável - um fato também psicológico, mas de difícil compreensão - que alguns psicólogos parecem dar tão pouca importância à resposta a tais perguntas e, portanto, à determinação inequívoca dos objetos de sua ciência. E, no entanto, é disso que depende, assim como tantas outras, também a muito discutível pergunta pelo inconsciente.

A resposta à pergunta que indaga o que são fatos da consciência parece simples. O fato da consciência é precisamente "o consciente". A psicologia, diz-se, trata do consciente. "Consciente" e "psíquico" - assim se pensa com toda a seriedade - são conceitos de mesmo significado. Do mesmo modo, "inconsciente" e "físico" significam o mesmo. Naturalmente, o inconsciente permanece então excluído da psicologia. Todo o problema do inconsciente na psicologia fica resolvido do modo mais simples que se possa imaginar.

Na verdade, todas essas identificações não têm nenhum sentido. O consciente ou o fato da consciência é o objeto da consciência ou aquilo de que alguém tem uma consciência. O que se quer dizer, na realidade, é que a física trata de fatos dos quais ninguém tem consciência, dos quais "ninguém sabe nada", segundo a canção alemã do amor secreto. A consciência pode vir com o tempo, mas a regra não é muito certa.

Psicologia e física tratam, em parte, exatamente da mesma coisa. Nem tudo o que é psicológico é físico ou fisicalista. Mas todos os objetos da física são, enquanto percepções, representações e pensamentos numa mente humana, objetos da psicologia. O que faz a diferença é o modo de consideração.

Nós já reconhecemos isto, mas determinamos a diferença no modo de consideração da seguinte maneira: os objetos da experiência imediata seriam considerados pela física apenas como sinais. A psicologia, em contrapartida, os aceita tal como eles são. Essa teoria dos sinais não é convincente. Para o físico, cores e tons poderiam ser sinais para os movimentos. Porém, os movimentos, que em seu pensamento o físico coloca no lugar dos sinais, bem como os movimentos já percebidos imediatamente pelo físico, são, para ele, a própria coisa. É neles que ele vê a realidade efetiva, é a partir deles que constrói seu mundo físico. Mas esses movimentos, enquanto conteúdos do pensamento físico, são, ao mesmo tempo, fatos psicológicos. Por outro lado, para o psicólogo, as palavras, os gestos e as manifestações da vida de outra personalidade são apenas sinais, a saber, sinais que têm como fundamento uma vida psíquica.

Estaremos mais perto da verdade se dissermos, empregando uma expressão já usada anteriormente, que a psicologia tem como objeto de sua consideração as vivências conscientes. Nestas há referência a alguém que vivencia ou para quem os fatos da consciência estão aí presentes. O mesmo também está implícito no esclarecimento de que os objetos da psicologia são as sensações, as representações, os pensamentos, etc., em oposição ao que é sentido, representado, pensado; dito de outra maneira, o psíquico são os "atos" de sentir, de representar e de pensar. Aqui tudo estaria absolutamente claro se, além da existência do que é sentido, representado e pensado, nós também vivenciássemos imediatamente o sentir, o representar, o pensar, em suma, os "atos" psíquicos. Mas, na verdade, esses atos não existem em nossa experiência imediata. Se é que existe, então, o ato ou o processo de representação - o modo como é feito com que algo representado esteja aí para mim - pertence ao reino do inconsciente.

Tenho, sem dúvida, uma consciência imediata apenas de que algo está lá "para mim". O perceber, o representar e o pensar são a existência do percebido, do representado e do pensado para mim, ou seja, as percepções, as representações e os pensamentos são o percebido, o representado e o pensado, na medida em que são algo que pertence a mim ou ao sujeito, algo subjetivamente efetivo. O mesmo percebido, representado e pensado é algo físico, ou seja, é uma efetividade objetiva, contanto que, e na medida em que, não dependa de um sujeito. Essa oposta relação ao sujeito ou ao eu, e só ela, separa o psíquico do físico.

Agora tudo depende da determinação segura dessa diferente relação com o sujeito que, por sua vez, pressupõe, como é óbvio, a resposta à pergunta: em que, então, consiste o eu ou o sujeito de que se fala aqui?

Naturalmente, não se deve dizer que o eu ou o sujeito é o encadeamento das representações ou dos fatos psíquicos. Isto seria girar em círculo e brincar com o que está em questão. Trata-se aqui, realmente, da pergunta: o que é uma "representação" ou um fato "psíquico"? Não se trata de definir o psíquico como pertencente ao sujeito ou "a mim" e, a seguir, inversamente, definir o sujeito como o encadeamento do psíquico ou como pertencente "a mim".

Não tão insignificante, mas tanto mais infeliz, é a opinião corrente, constantemente repetida, de que o eu originário, o núcleo ou a base da consciência de si - se não o eu em geral -, é dado pelo meu corpo ou pelo constante complexo de sensações que eu designo como meu corpo. Confesso que nunca pude ver nesta opinião nada além de um erro científico totalmente inacreditável. É verdade que incluo meu corpo em mim. Mas como chego a chamar esse corpo de "meu" corpo? É verdade, também, que esse corpo me persegue por toda parte. Mas quem é o "eu" que é perseguido assim por toda parte? O corpo deveria ser um complexo de sensações particularmente constante. De minha parte, acredito não haver quase nada menos constante que esse meu corpo. E se, como teria de ser de acordo com a opinião discutida, a consciência do eu e a consciência da constância de um complexo de sensações fosse uma e a mesma coisa, então tudo, na medida em que é constante, deveria aparecer para mim como eu. Pergunto: isto tem sentido? Ou: é esse disparate algo efetivo?

Meu corpo tem em cada momento uma outra forma visível, ao mesmo tempo que a mudança de posição dos membros resulta sempre em outras sensações de posição e movimento. Meu corpo é ora frio, ora quente, ora faminto, ora saciado, ora descansado, ora cansado, ora saudável, ora doente; em um momento, são essas e, em outro, aquelas as sensações de pressão e dor localizadas nele, etc. Chama-se isto de constância? Suponhamos que eu estivesse preso durante anos e décadas numa mesma cela. Estaria eu, então, finalmente em perigo de confundir a cela, em virtude de sua indubitável e espantosa constância, comigo mesmo? Correria eu o risco de atribuir a ela meus pensamentos e sensações, sentimentos e desejos?

Deixemos de lado essas perguntas. O certo é que reconheço imediatamente o movimento, a cor e o tom, que no momento represento como minhas representações ou como pertencentes a mim. Mas isto não significa que as reconheço imediatamente como pertencentes ao meu corpo, ou seja, eu sigo este curso de pensamento e com isto tenho a consciência de que eu próprio estou inserido na seqüência dos pensamentos, que estou atuante nela. Porém, quanto mais completamente eu me entrego aos pensamentos e, em conformidade com isto, tenho o sentimento de minha atividade, tanto menos meu corpo é, para minha consciência em geral, simultaneamente presente.

Todo conceito que não seja uma palavra vazia ou que não possua um conteúdo meramente fictício deve, em última instância, poder ser reconduzido, segundo o seu conteúdo, ao imediatamente vivenciável. Se essa importante regra de David Hume fosse sempre acionada, como esse grande psicólogo começou a acioná-la, a psicologia, assim como todas as disciplinas psicológicas designadas por nomes especiais, a lógica ou a teo-ria do conhecimento, a estética e a ética, teriam sido poupadas de permanecer numa confusão infindável.

Ora, algo imediatamente vivenciável, em cuja direção eu sou inevitavelmente conduzido na análise do conceito de eu ou do conceito de mim mesmo, é o querer [Wollen] imediatamente vivenciado por mim. Aqui tenho, seja no todo, seja em parte, o núcleo de minha consciência do eu ou do objeto de meu primitivo sentimento de mim mesmo. Quando eu sinto um querer, sinto a mim mesmo. Esse querer ou sentimento de vontade é um original absoluto, não redutível a outra coisa e, menos ainda, às sensações musculares, de tendões e de articulações, que agora são oferecidas por alguns como panacéia para todas as perplexidades psicológicas.

Os outros objetos de minha consciência encontram-se em uma dupla relação, igualmente vivenciável de maneira imediata, como esse sentimento de vontade. Algumas vezes vivencio que meu querer se satisfaz imediatamente com a existência, a ida, a vinda, a permanência e a mudança dos objetos: ante os objetos, tenho um sentimento de livre atividade. Outras vezes, vivencio que os objetos de minha consciência são o que são, independentemente de como eu, pelo meu querer, relaciono-me com eles; sinto-me passivo diante de sua existência. Aquele sentimento de livre atividade é a vivência imediata ou a consciência pura empírica da pertença a mim ou da subjetividade; este sentimento de passividade é a consciência da objetividade originária ou elementar.5 Também meu corpo só é meu na medida em que, não a sua existência, mas certas mudanças, nele, são acompanhadas por aquele sentimento de livre atividade.

Entretanto, as coisas não ficam nessa imediata consciência da subjetividade, nem tampouco na imediata consciência da objetividade. As coisas não ficam nisso, isto é, nós não ficamos nem podemos ficar nisso, assim como não ficamos ou não podemos ficar, em qualquer área de conhecimento, no que é imediatamente dado. Que nós de fato não ficamos na imediata consciência da subjetividade, mostra-se, por exemplo, no ajuizamento dos processos externos, que vivenciamos no sonho. Diante deles, não temos de modo algum aquela imediata consciência da subjetividade. Contudo, designamos esses processos como totalmente subjetivos. Eles não são, para nós, algo físico, mas algo meramente psíquico. Portanto, aqui compreendemos por sujeito e por pertença a ele algo totalmente diferente: por sujeito, ou por eu, não nos referimos ao que é vivido imediatamente, mas a algo que se encontra para além dessa esfera, o "transcendente"; não ao que é dado única e exclusivamente na vivência imediata, mas a um sujeito ou a um eu que existe de modo independente, sendo, portanto, objetivamente real. E por pertença ao sujeito ou à subjetividade, ou pela palavra "psíquico", referimo-nos à pertença, quer pensada quer conhecida, a este eu real. Ou, quando não visamos isso, o que queremos dizer com a afirmação que as formações oníricas são subjetivas ou meramente psíquicas? Qual outro pensamento acreditaríamos poder ligar a essa afirmação?

Nós chegamos a este eu real impulsionados pela inevitável necessidade do pensamento causal, que, diga-se de passagem, não é nada mais que a conformidade a leis da mente pensante.6 O eu real é algo desconhecido em si, que, no pensamento, colocamos como fundamento ou temos forçosamente de colocar como fundamento do eu imediatamente vivenciado e de todos os objetos da consciência, enquanto estes forem objetos daquele sentimento de livre atividade ou daquela consciên-cia imediata da subjetividade. Reflexões ulteriores nos obrigam, então, a colocar esse algo desconhecido como fundamento também de outros objetos da consciência como, por exemplo, as formações oníricas.

Simultaneamente ao conceito de eu real surge, para nós, o conceito de mundo real, que se encontra diante desse eu real. Esse mundo real é algo, em última instância, também desconhecido, que, no pensamento, colocamos - e que temos de colocar, com base na experiência e na lei do pensamento - como fundamento dos objetos da consciência, conquanto esses objetos sejam objetos daquele sentimento de passividade ou da consciência imediata de objetividade. Esse mundo real vale para nós todos como real. Porém, ele não é mais real que o eu real. Para nós, a existência de ambos e a oposição entre ambos residem unicamente na oposição entre o sentimento de atividade e de passividade imediatos; em outras palavras, no sentimento de vontade. Sem esse sentimento de vontade, faltaria todo motivo pensável, tanto para a formação do pensamento do mundo real como para a formação do pensamento do eu real. Ambos os pensamentos perderiam totalmente seu sentido. Inversamente, ambos resultam, com a mesma necessidade, daquilo que nós, ao querer, imediatamente vivenciamos.

O eu real é algo desconhecido em si, mas nem por isso algo indescritível. Ele é determinado para nós pelos seus efeitos na consciência. "Eu" quer dizer: eu que sou predisposto ou disposto desta ou daquela maneira, eu que estou capacitado a sentir, representar, etc., eu que sabe e que quer, esperto ou bobo, virtuoso ou vicioso, dotado de gosto para a beleza ou esteticamente abandonado por todos os deuses, etc.

É tão-somente com o conceito desse eu real que a palavra "psíquico" ganha, como já foi dito, seu sentido e, com isso, a palavra "físico" ganha, ao mesmo tempo, o seu. Psíquico - não para nossa consciência ou para nosso sentimento imediato, mas para nosso conhecimento - é aquilo que tem, e só na medida em que o tem, o fundamento de sua existência no eu real. Ou, dito de modo mais geral, psíquico é o encadeamento, e cada elemento do encadeamento, no qual somos forçados a organizar, no pensamento, os objetos da consciência que são, e só na medida em que o são, objetos da consciência imediata de subjetividade. Esse encadeamento não se sustenta sem o eu real como fundamento. O eu real não é apenas psíquico, ele é a psique.

O que aqui nomeamos "psique" não é algo imutável, mas, assim mesmo, algo permanente, um "ser inerte", no sentido em que, de modo geral, pode-se falar de um tal ser. Tal como a substância material, no mesmo sentido e com o mesmo direito, ele pode, em princípio, ser chamado de substância. Se chamarmos de teoria da atualidade a teoria que exclui o conceito de eu real ou de "psique" da psicologia, então, para a teoria da atualidade, segundo o que foi dito, não há nenhum conceito de psíquico; portanto, também não há nenhuma possível definição de psicologia. Felizmente, a teoria da atualidade existe lá onde ela é proclamada apenas como teoria, nunca como princípio-guia do conhecimento psicológico.

Mais importante que a substancialidade do eu real é, para nós aqui, o fato de termos nele um primeiro inconsciente psíquico. O eu real é, mesmo quando ele não existe para minha consciência. E se ele existe para minha consciência, então ele é, para a mesma, exatamente como a substância material, apenas um conceito em si indeterminado, determinável tão-somente através do imediatamente dado. Na medida em que sem o eureal nenhum conceito de psíquico e nenhuma definição de psicologia é possível, podemos dizer: sem o psíquico inconsciente não há nenhum conceito de psíquico e nenhuma definição possível de psicologia.

Porém, esse conceito de inconsciente, conquistado até agora, não é suficiente para a psicologia. Há não apenas um "ser psíquico inerte", mas também "representações inconscientes". O que são essas representações?

De início, ofereço para isto a seguinte resposta geral: elas são a apropriada e plenamente justificada expressão para um fato positivo, o fato de que todo acontecer psíquico presente costuma ser mais ou menos condicionado pelas vivências conscientes passadas, sem que, contudo, essas antigas vivências conscientes precisem existir para minha consciência no momento presente.

Eu poderia contentar-me plenamente com o que acabo de dizer. Mas quero precisar ainda mais minhas idéias.

Eu ouço alguém enunciar uma proposição. A proposição pode referir-se a um fato importante ou a uma pergunta científica, estética, ética, social ou política. Enquanto ouço a proposição ser enunciada, de imediato, relaciono-me com ela internamente de um certo modo. Eu concordo com ela ou a rejeito; as duas coisas mais apaixonadamente ou menos apaixonadamente. Suponhamos que eu a rejeite. Se eu me perguntar, em seguida, o que condicionou essa rejeição [Ablehnung] ou denegação [Verneinung], juntamente com seu caráter afetivo ou de disposição, encontro o seguinte: o condicionante não foi um pensamento isolado, que teria ocupado minha consciência no momento da rejeição, mas um número indeterminado de experiências e vivências, de influências instrutivas e educativas; em resumo, mil variedades de representações que no decorrer de minha vida se tornaram minhas. Ao invés disso, eu posso também dizer: o condicionante foi uma convicção geral, uma direção de pensamento, uma atitude moral ou, de maneira ainda mais geral: uma determinada disposição psíquica. Mas essa disposição, bem como a direção de pensamento, a atitude moral, etc., é apenas um conceito ou, melhor, uma palavra. O único conceito que pode ser apontado na experiência são aquelas representações ou as vivências conscientes passadas. Se eu quiser realmente tornar o fato presente compreensível para mim, a partir de fatos, devo, portanto, remontar às representações passadas. Essas representações não estavam lá, para minha consciência, no momento da denegação.

Representações passadas agem, portanto, em mim, agora, sem estarem presentes para mim, agora, como representações conscientes ou atuais. Isto pressupõe, antes de tudo, uma concepção, que qualquer um admite. O que vivenciei conscientemente - essa é a suposição que fazemos - não está aí presente de todas as maneiras, depois que estiver desaparecido de minha consciência. Não é como se nunca tivesse existido. Pelo contrário, dessas vivências conscientes desaparecidas resta em mim algo de desconhecido na sua essência. É a existência desse algodesconhecido que possibilita o fato de a vivência consciente passada poder retornar como vivência consciente, ou, se preferirmos, como um análogo, para minha consciência, da mesma vivência passada. Esse algo ou esse "traço mnemônico" inclui em si a possibilidade de uma representação atual da mesma espécie. O "traço mnemônico" é uma potência de representação [Vorstellungspotenz] ou uma representação potencial. Poder-se-ia também nomeá-la como uma representação latente, por analogia ao calor latente, que também não é calor efetivo.

Mas as representações potenciais, das quais tratamos aqui, não são representações meramente potenciais, ainda que elas não se tornem representações atuais. Elas não são possibilidades inertes, mas elas agem. No nosso caso, elas produzem o sentimento de rejeição ou denegação. Na medida em que agem, elas são de certa maneira reativadas, vivificadas, "excitadas". É isso que tenho em vista quando falo em excitações psíquicas inconscientes. Com isto quero dizer não apenas que o psíquico incons-ciente está aí, mas também que ocorre uma ação do mesmo. A excitação inconsciente é essa ação, a excitação inconsciente isolada é a participação da representação potencial isolada nessa ação.

Ao mesmo tempo, essas excitações inconscientes não são potências de um tipo qualquer que se tornaram vivas ou excitadas, mas representações potenciais que ficaram vivas ou excitadas, ou seja, a reativação completa das mesmas inclui, em si, a existência renovada das representações atuais correspondentes. As excitações inconscientes não são essa reativação completa, mas sim um degrau inferior das mesmas. Quanto mais eu reflito ou, dito de uma forma mais geral, quanto mais favoráveis forem as condições para a reativação das representações, que condicionam a denegação da proposição, tanto maior será a certeza de que a lembrança consciente dessas representações possa ocorrer.

Mais importante que isso é o fato de as excitações inconscientes de que aqui falamos surgirem sob as mesmas condições e atuarem da mesma maneira, se não segundo o grau, então, segundo o modo das representações conscientes correspondentes. A proposição que ouço ser enunciada faz com que as representações empiricamente relacionadas com ela fiquem excitadas inconscientemente, em virtude justamente dessas relações de experiência, e as excitações inconscientes não causam uma coisa qualquer, mas o sentimento de denegação, que corresponde exatamente à relação lógica que existe entre a proposição e aquelas representações.

O conceito de representação inconsciente ganhou, com isso, seu conteúdo. As representações inconscientes são momentos no processo de excitação psíquica, cujo objetivo final é apresentado pelas representações conscientes. Além disso, as representações inconscientes são equivalentes às conscientes, ou atuais, no que diz respeito a sua posição e seu significado no encadeamento da vida psíquica. Elas são representações segundo seu valor - ou tanto quanto algo possa ser uma representação - sem ser um fato da consciência que normalmente é designado como representação. Visto que não importam para a psicologia atos ou conteúdos isolados da vida psíquica, mas a posição e o significado dos mesmos no encadeamento do todo, faz muito sentido a psicologia designar as representações inconscientes como representações. O termo complementar "inconsciente" deixa bastante claro que, com isso, a psicologia não se refere a quaisquer representações atuais, que ela não quer designar absolutamente nada que seja conhecido segundo sua essência.

O conceito psicológico de inconsciente assim formulado não é nem hipotético nem místico, mas, como dissemos anteriormente, a expressão dos fatos. Dito de modo mais preciso, ele é a expressão para a facticidade que temos de colocar no lugar dos mais variados conceitos universais, das forças místicas e das atividades da alma. Se levarmos a sério o inconsciente, então o problema da atenção, por exemplo, deixa de ser um problema especial. Ele torna-se um problema da sucessão das representações em geral, da maneira como essa sucessão se forma com base nas impressões externas, nas representações conscientes e incons-cientes, atuantes segundo as leis da associação, por experiência ou semelhança e, finalmente, com base nas relações dos elementos psíquicos, conscientes ou inconscientes, ao todo da personalidade ou a "mim". Onde o conceito das representações inconscientes tenha seu direito reconhecido, ou seja, onde os fatos por ele designados sejam levados em consideração, não se precisa mais da suposta força psicomotora dos sentimentos, da força especial ou da atividade da vontade, etc.7 A autêntica psicologia da associação torna-se, então, possível; ela, no entanto, permanece tão longe quanto possível de uma mecânica "atomística" de representações.

Esse inconsciente aparece, não como algo que se acrescenta ocasionalmente, mas como a base geral da vida psíquica. A vida psíquica de um momento, assim como disse ocasionalmente em outro lugar, é como uma ampla montanha submersa no mar, da qual só alguns poucos dos mais altos picos erguem-se acima da superfície da água. Caso queiram uma simples prova, tomem como exemplo o que agora se passa comigo. Eu falo, junto palavra com palavra e tenho a consciência da correção daquilo que digo. Essa consciência não é condicionada pelas palavras como tais, mas por aquilo que as palavras significam. Disso, porém, só os rudimentos acidentais estão, agora, na minha consciência. Até onde meu pensamento é um processo da consciência, eu penso em conceitos, isto é, - se vocês eliminarem aqui também a mística - penso em palavras, que fazem com que se tornem inconscientemente ativas as representações outrora ligadas a elas.

Poder-se-ia esperar que eu agora, depois de dar cidadania às representações inconscientes (reprodutivas), a desse também às "sensações inconscientes" que, na psicologia, possuem o mesmo direito e o mesmo significado. Porém, deixo isso de lado aqui, notando apenas que, com elas, tudo se passa de modo completamente análogo.8

Aqui está o meu resultado: desistir do inconsciente na psicologia significa renunciar à psicologia. Como se pode então censurar sua aplicação?

Diz-se que o inconsciente não é nada além do conceito totalmente indeterminado de uma disposição. Na medida em que isto está correto, não é nenhuma censura, mas uma obviedade. Também as forças materiais são meras disposições. Toda a matéria é disposição. E o conceito dessas disposições também é um conceito em si totalmente indeterminado. Ele é determinável unicamente a partir dos efeitos das disposições, em última análise, dos efeitos dados na experiência imediata. O mesmo vale para o inconsciente na psicologia. Em todas as áreas, é impossível determinar de outra maneira, que não a partir da experiência, o que não é um dado imediato da experiência.

Ou se ouve dizer, em tom de censura, que com o inconsciente tudo pode ser feito. Na realidade, com ele já foi feito de tudo, todos os tipos de excessos já foram cometidos. Todavia, isso prova apenas que este conceito deve ser empregado da mesma forma que qualquer outro conceito científico, de maneira escrupulosa; que, em todos os casos de sua aplicação, é preciso mostrar a facticidade por ele visada. Mas, naturalmente, o crítico do inconsciente tem também esse mesmo dever de ser consciencioso. Ele deve observar qual conceito de inconsciente e qual aplicação do mesmo, em cada caso isolado, ele tem em vista. A luta contra o inconsciente, na ausência de uma definição mais rigorosa desse conceito, assim como a luta contra o espantalho autofabricado que se encarna nesse termo, não é, para dizer o mínimo, um empreendimento muito útil.

E de que maneira nos livramos do censurado inconsciente? Várias respostas foram tentadas. Esta é uma: afirma-se a existência de vários dados da consciência que não aparecem em nenhuma consciência. Um exemplo simples são as sensações do tom sobre tom, já mencionadas anteriormente, que estariam contidas, como sensações efetivas ou conscientes, nas sensações dos acordes.

Ou, então, coloca-se no lugar da palavra "inconsciente" a palavra "não notado". Com isso, absolutamente nada muda. Ter consciência de algo ou "notar" algo são duas expressões diferentes para o fato absolutamente último, não descritível com precisão adicional, de que algo está aí idealmente ou para mim, que sei dele, que não o vivencio fisicamente, mas mentalmente. Ou será que se pensa seriamente haver sentido em se falar de dois modos de existência ideal ou mental, isto é, de existência para mim: um que consiste em eu ter consciência de algo e outro que consiste no fato de eu notar algo? Será que posso saber de algo, vivenciá-lo mentalmente sem notá-lo ou, talvez, também, inversamente, notar algo sem ter consciência dele? Pode algo para mim estar aí e ao mesmo tempo não estar aí?

Ou, por fim, chama-se o inconsciente de semiconsciente ou de obscuramente consciente. Com isso, estabelece-se a mesma impossibilidade de outra forma. Tanto quanto a existência real objetiva, a existência para mim não pode ter graus. Algo é ou não é. Com isto não está dito que o supostamente semiconsciente seja sempre, de fato, um inconsciente. Em outra ocasião, ele talvez seja algo fugaz que deslizou diante do olho da mente, que permaneceu isolado psiquicamente e, por isso, ficou sem significado, não se tornou objeto de um interesse detectável, não entrou em relação com quaisquer outras representações, não despertou representações, não se constituiu em ponto de partida para perguntas, em suma, não se tornou, de maneira nenhuma, centro para a vida psíquica e assim por diante. Tentei mostrar em outro lugar9 por meio de qual auto-engano o olhar do psicólogo voltado para o passado, bem como o olhar da consciência ingênua, poderiam ter chegado a interpretar os múltiplos tipos de fatos psíquicos no sentido dos graus da consciência. Digo olhar voltado para o passado, pois está claro que não se trata de dirigir a atenção para o semiconsciente e o obscuramente consciente no momento de sua existência [presente] nem de constatar sua semiconsciência ou cons-ciência obscura com fundamento na observação imediata certa. A falta de atenção há de ser, pois, aquilo a que se deve a semiconsciência e a cons-ciência obscura.

Por fim, tenho que me justificar principalmente diante daqueles que exigem de mim que eu, sendo "honesto", caracterize o incons-ciente psíquico não como algo psíquico, mas como algo fisiológico, isto é, diante daqueles que consideram completamente certo que o inconsciente tem seu lugar unicamente no fisiológico.

Aqui lembro, em primeiro lugar, que, de fato, para mim, o psíquico inconsciente, como aliás o psíquico em geral, não é o nome para algo de algum modo qualitativamente determinado, mas única e exclusivamente o nome para a pertença a um encadeamento, a saber, ao encadea-mento psíquico. Aquilo que pertence a esse encadeamento e que, nessa medida, é psíquico pode muito bem, ao mesmo tempo, pertencer a um encadeamento fisiológico e, desse modo, ser fisiológico. A interpretação fisiológica do inconsciente não está, portanto, de modo algum, excluída pelo meu conceito de inconsciente.

No entanto, eu, como psicólogo, recuso-me decididamente a ratificar essa interpretação. Não me dou o direito de batizar o inconsciente psíquico, sem mais nem menos, com um nome fisiológico qualquer. E tenho para isso algumas razões. O que chamo de eu real, de minha personalidade ou também de alma - com o adendo que sua natureza me é totalmente desconhecida -, alguns afirmam, com determinação, poder reconhecer no cérebro ou numa parte deste. O que denomino excitações psíquicas inconscientes não seria, conforme eles afirmam, nada além de um tipo determinado de processo cerebral. Pode ser que seja assim. Não quero aqui contestar que entre os estudiosos da psicologia ou fisiologia possam existir aqueles aos quais é permitido olhar para dentro do último fundamento de todas as coisas, ou pelo menos das que aqui nos ocupam, com olhos seguros de modo que possam dizer com certeza científica: isto é assim. Porém, eu não sou, de modo algum, como esses sábios. Admito a possibilidade de que as coisas sejam assim, mas não as dou como certas.

Em outras palavras: psicologia é uma ciência empírica e, como tal, não lhe é permitido fazer hipóteses metafísicas. Ora, aquela identificação [do psíquico com o fisológico] é uma questão da metafísica que ultrapassa a experiência.

Ou, então, com aquela identificação apenas se quer dizer que é possível compreender completamente, não um processo psíquico isolado - pois não existem processos psíquicos isolados -, mas sim a personalidade unitária, a vida e a essência unitária de um indivíduo, em sua unidade e totalidade, a partir de processos materiais que se dão no cérebro; que se sabe com certeza científica que e como esse processo se originou ou pode originar-se daí e só daí. Aquela identificação só pode, de fato, ter este sentido. Nesse caso, eu não somente reconheço minha ignorância, mas vou até admitir uma ligeira dúvida, isto é, confesso que se me afigura, com toda seriedade, que o segredo da personalidade se situa em um nível mais profundo do que esses crédulos são capazes de sonhar.

Mesmo supondo que eu não tivesse esta timidez para dar por certo o que não sei, ou que tivesse a felicidade de não ter nenhum motivo para tal timidez, ainda existiriam para mim certas razões metodológicas para abandonar a identificação do psíquico inconsciente com qualquer coisa fisiológica. Tenho não menos que três razões para isso.

Talvez seja, na verdade, algo mental aquilo que um físico coloca como fundamento dos fenômenos por ele observados. Essa possibilidade, contudo, não impede o físico de definir inicialmente esse mental em termos físicos, isto é, a partir de seus efeitos dados na experiência física imediata. Para ele, como físico, o mental importa apenas pelo seu lado físico ou como um fator no encadeamento físico da realidade. É com certo orgulho que o físico declarar-se-á pela manutenção conseqüente de seu ponto de vista fisicalista ou de seu modo de consideração puramente físico. Parece-me que também ao psicólogo caberia ter semelhante orgulho. Ao menos não será lícito alguém se indispor com o psicólogo se ele, sem negar a possibilidade de transcender um modo de consideração puramente psicológico em geral ou de contestar a qualquer um o direito de fazê-lo, de saída, abrir mão dessa possibilidade.

Uma outra razão. Ter o direito de fazer aquela identificação pressupõe, sem dúvida, estar familiarizado com ambos os domínios, o psicológico e o fisiológico. Parece-me, porém, que o psicólogo já tem muito o que fazer com os fatos psíquicos. Já a simples observação e análise psicológica é uma arte própria, que não cai do céu para ninguém, muito pelo contrário, só pode ser adquirida por exercícios conscienciosos. Ao mesmo tempo, é preciso não esquecer que o âmbito dos fatos psíquicos não se restringe a um par de fatos que agora muitos psicólogos se limitam a estudar. Toda a vida mental, ou como quer que a queiram chamar, seja ela pensamento e conhecimento, comportamento estético, consciência moral e tudo mais, cabe necessariamente, precisamente enquanto mental ou psíquica, à psicologia. E os domínios dessa vida mental não podem ser separados uns dos outros, sob o risco de se empobrecer o entendimento de cada um deles. Ou se é psicólogo por inteiro, isto é, no sentido amplo da palavra, ou se corre o risco de não o ser de modo algum. Se, por conseguinte, no interior da psicologia, fica excluída uma verdadeira divisão do trabalho, exige-se tanto mais - exceto para os espíritos especialmente privilegiados, cuja existência eu certamente não quero negar - que seja feita a separação entre o trabalho psicológico e o fisiológico. Por certo, o psicólogo nunca negligenciará a oportunidade de se deixar instruir sobre fatos fisiológicos. Mas ele poderá recusar-se a dar lições nas áreas em que deva conceder a outros a responsabilidade pela certeza científica de suas afirmações.

Finalmente, a última razão. A psicofisiologia de nossos dias caminha, completa e necessariamente, nos rastos da psicologia. As assim chamadas explicações fisiológicas de fenômenos psíquicos são a tradução do conhecimento psicológico, efetivo ou suposto, da linguagem da psicologia para a linguagem da fisiologia do cérebro. Não há, em sentido próprio, uma psicologia fisiológica, ou seja, uma visão do encadeamento e da conformidade a leis dos processos psíquicos, que seria alcançada, em primeiro lugar, no campo da fisiologia. Além disso, não raramente a psicologia permitiu que a sua visão dos fatos psicológicos se turvasse ou que sua pesquisa fosse demovida da compreensão séria de problemas psicológicos, por olhar antecipadamente de soslaio para fatos ou hipóteses da fisio-logia ou por fazer perguntas precipitadas sobre a possibilidade de ligação de seus fatos com estados de coisas fisiológicos. A mitologia já mencionada das sensações corporais, que agora domina tão estranhamente alguns ânimos e que, decerto, por algum tempo ainda, continuará fazendo as suas artes, parece-me que provém dessa fonte. É quase como se alguns considerassem todo e qualquer conceito fisiológico, por mais vazio que ele seja, só porque faz lembrar algo de fisiológico, como mais apropriado para a solução dos enigmas da psicologia do que um encadeamento de fatos psicológicos por mais comprovável que este seja.

Tudo isso são doenças da juventude que a psicologia tem de vencer. A salvação da psicologia e, com ela, também a salvação da psicofisiologia depende de que a psicologia erga-se, cada vez mais, sobre seus próprios pés e, sem se deixar alterar por coisa alguma, siga seu próprio caminho em direção de suas próprias metas. Na medida em que assim o fizer, a psicofisiologia poderá seguir-lhe os passos, mas tão-somente seguir, lenta e cautelosamente, e sempre com pleno conhecimento de assuntos psicológicos. É provável que também o inconsciente da psicologia venha então a assumir para ela própria uma forma mais palpável.

O conceito de inconsciente na psicologia, como disse anteriormente, não é nem hipotético nem místico, mas a expressão dos fatos estabelecidos. Agora posso acrescentar que esse conceito inclui em si, simultaneamente, a explícita renúncia a suposições metafísicas na psicologia, a manutenção conseqüente do ponto de vista psicológico no estudo dos fatos, a confissão modesta de que nem tudo se pode saber e, finalmente, a convicção da necessária liderança da psicologia pura nas questões da psicofisiologia.

De resto, que cada um atente para seu modo de proceder. Porém, ao mesmo tempo, que cada um esteja ciente de que um trabalho conjunto salutar no domínio da psicologia não é promovido pela disputa sobre as palavras ou através da condenação ou louvação das direções e dos pontos de vista, mas pelo exame escrupuloso dos fatos afirmados e da sua utilização na ciência.

 

 

Tradução de Zeljko Loparic.10

Recebido em 08/agosto/2001
Aprovado em 10/setembro/2001

 

 

* "Der Begriff des Unbewussten in der Psychologie", Records of the Third International Congress of Psychology, München, 1897, pp. 146-164.
1 Muito explorado em Grundthatsachen des Seelenlebens (1883) e, com respeito a esse tema específico, em Grundzüge der Logik (1893).
2 Cf. Grundzüge der Logik, p. 26 e ss.
3 Cf. Grundzüge der Logik, p. 26 e ss.
4 Cf. Grundzüge der Logik, p. 4.
5 Cf. Grundzüge der Logik, p. 4 e ss.
6 Cf. Grundzüge der Logik, p. 146 e ss.
7 Para detalhes, cf. Grundthatsachen des Seelenlebens.
8 Cf., a propósito disso, Grundthatsachen des Seelenlebens, p. 125 e ss.
9 Para a doutrina dos sentimentos, em especial dos sentimentos elementares estéticos, cf. Zeitschrift für Psychologie, v. 8.
10 Esta tradução valeu-se de uma versão para o português deste texto de Lipps, elaborada por José Feres Sabino.