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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002

 

ARTIGOS

 

Nietzsche e o feminino

 

Nietzsche and feminism

 

 

Oswaldo Giacoia Junior

Departamento de Filosofia IFCH / Unicamp

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo representa uma tentativa de integrar a crítica provocativa de Nietzsche ao feminismo a seu empreendimento filosófico de superação do platonismo e de transvaloração dos valores morais dominantes.

Palavras-chave: Feminismo, Modernidade, Política, Metafísica, Platonismo, Transvaloração de valores.


ABSTRACT

The present article aims at integrating Nietzsche's provocative criticism of feminism in his philosophical endeavour to overcome platonism and to revaluate dominant moral values.

Keywords: Feminism, Modernity, Politics, Metaphysics, Platonism, Revaluation of values.


 

 

Para Jeanne-Marie Gagnebin, com amizade e respeito.

Para tratar do intrincado problema que me foi proposto, optei por tomar como ponto de partida e fio condutor da reflexão o livro Para além de bem e mal. Não considero esta uma escolha inteiramente arbitrária. Ainda que o tema da mulher e do feminino esteja prodigamente espalhado por toda a obra de Nietzsche - tanto nos textos publicados, quanto nos escritos que permaneceram inéditos durante sua vida -, penso que o Prelúdio de uma filosofia do futuro elabora uma reflexão sobre o feminino a partir de uma perspectiva de alcance particularmente amplo.

Com efeito, como espero poder demonstrar com o presente trabalho, em Para além de bem e mal Nietzsche coloca o problema do feminino em circuito direto com os temas e problemas fundamentais de sua tentativa de desconstrução da metafísica e de transvaloração de todos os valores. Com isso, o tema perde aquela aparência, mantida em outros escritos, de uma questão meramente subsidiária, concessão a uma discussão da moda ou de um apêndice insólito.

A meu ver, o contrário disso é o que se evidencia para todo aquele que presta a devida atenção nas indicações do rico prefácio de Para além de bem e mal. Nele, a crítica do dogmatismo filosófico se inicia logo na primeira frase, dubitativamente formulada, com uma suposição (gesetzt, dass) que, de imediato, promove a transição para o tema da mulher.

Nietzsche nos indica, de saída, que atribuirá papel decisivo ao estilo ensaístico, o único adequado ao experimentalismo filosófico, que transita entre múltiplas perspectivas, furtando-se permanentemente à rigidez cadavérica dos sistemas dogmáticos.

Nas primeiras linhas desse prefácio, Nietzsche utiliza-se de uma metáfora, identificando a verdade com uma mulher. Do modo como procuro interpretar o estatuto e o papel dos recursos estilísticos, das imagens e procedimentos retóricos na construção dos argumentos em Nietzsche, julgo poder vislumbrar aqui uma mobilização estratégica da questão do feminino, trazendo-a para o coração mesmo do debate antiplatônico - é bom não esquecer que, para Nietzsche, Platão representa o baluarte ancestral do dogmatismo -, mobilização caracteristicamente nietzscheana, na medida em que combina o recurso à metáfora, relativa à mulher, com os efeitos crítico-corrosivos presentes nas várias formas de humor com que trabalha em seu experimentalismo: o riso, a ironia, a paródia e a caricatura.

O que ocorreria se aceitássemos a provocação antidogmática e suspeitássemos, com Nietzsche, que a verdade é uma mulher? A conseqüência seria desastrosa para a filosofia, na medida em que ela é predominantemente dogmática. Com efeito, a verdade-mulher, enquanto leveza e graça, simboliza o que há de menos acessível, o que mais se furta à ridícula pretensão dogmática de posse integral e permanente.

Assim sendo, na medida em que a verdade é mulher, não admira que os filósofos não a tenham conquistado, pois, a despeito de seu propalado amor pela verdade, os filósofos, sempre ridiculamente sérios e graves, jamais entenderam de mulheres, jamais perceberam as nuances do "eterno feminino".

A vocação dos filósofos para os grandes sistemas seria uma bizarra tentativa de violência à verdade, com o propósito de encerrá-la, pressurosamente e com toda segurança, nas invencíveis fortalezas dogmáticas que para ela construíram, aqueles majestosos castelos metafísicos, a que hoje damos no nome de sistema. Porém, de acordo com Nietzsche, é justamente desse modo que não se deve tratar uma mulher.

Ao instituir sistemas globais de interpretação da natureza e da história, oferecendo uma resposta à pergunta pelo sentido da existência, os filósofos dogmáticos acreditavam ter conquistado definitivamente a verdade. E, no entanto, essa foi uma crença ilusória, cuja insubsistência sempre escapou à pouca cautela crítica dos filósofos.

Com efeito, desde Descartes - e já bem antes dele - os filósofos sempre permaneceram em sono dogmático, a despeito da intenção de colocar em dúvida todas as certezas. Justamente a sóbria vida de vigília lhes foi sempre mais estranha.

Para compreender isso, basta notar que, na base de todos aqueles majestosos edifícios dogmáticos, não se encontra senão uma ingenuidade, uma estupidez, uma infantilidade qualquer, por exemplo, "uma superstição popular de tempos imemoriais (como a superstição da alma que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje não cessou de produzir disparates), talvez algum jogo de palavras, uma sedução por parte da gramática, ou uma ousada generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, muito humanos, demasiado humanos".1

Além de ridículos e ineptos como conquistadores, os filósofos, esses pobres cavaleiros da triste figura, na medida em que são dogmáticos, deixam-se iludir por outro equívoco fatal, a saber, que se possa ter um acesso à verdade "nua", à verdade objetiva, à estrutura ontológica do "real", uma vez que o intelecto neutraliza os efeitos distorsivos dos condicionamentos subjetivos, das variáveis psicológicas e antropológicas em que somos enredados pela volubilidade das paixões, pela estreiteza do desejo e dos interesses pessoais.

A essa verdade objetiva, de que podemos derivar normas e valores para orientar e legitimar nosso agir, seríamos conduzidos pelo espírito, uma vez que um prévio exercício ascético tenha garantido que, no ato do conhecimento, permaneça neutralizada a força arrebatadora das inclinações, impulsos e afetos, a saber, que o ímpeto da sensibilidade tenha sido posto sob o mais rigoroso controle do puro intelecto.

Para Nietzsche, até agora, "o pior, o mais persistente, o mais perigoso de todos os erros foi um erro de dogmáticos: a invenção por Platão do espírito puro e do Bem em si"2. Esse foi o "pesadelo" de que agora despertamos. Nossa tarefa, como filósofos, consiste precisamente em permanecer despertos e, justamente por isso, colocar a verdade novamente sobre os próprios pés, pois o sortilégio de Platão consistiu em colocá-la de cabeça para baixo.

Embalada pela crença na invenção platônica do espírito puro e do Bem em si, a gravidade filosófica, com sua entranhada e atávica condenação da sensibilidade, sempre desvalorizou o que é subjetivo - perspectivístico, como se representasse o grau zero da verdade, isto é, o erro, o engano e a ilusão.

Porém, o que ocorreria se acordássemos do pesadelo dogmático induzido por Platão? Revelar-se-ia o caráter onírico daquela invenção e, com isso, a possibilidade de que a verdade estivesse justamente com o feminino, isso é, do lado renegado por Platão, a saber, o lado do disfarce, do véu, da aparência, da sedução, do simulacro. Seria possível, então, que a condição da verdade fosse a mesma da pele - que, sem dúvida, mostra algo na superfície, porém, somente na medida em que, ao mesmo tempo, encobre uma profundidade, que se subtrai à indiscrição do olhar. A "verdade mulher" é a potência artística do disfarce, da transformação, da dissimulação.

Nos termos do ousado experimento de Nietzsche com a verdade-mulher, a invenção de Platão teria sido uma subversão da posição da verdade - ou, em termos de Nietzsche, ela já fora uma arriscada inversão de valores (Umwertung der Werte). E, uma vez que despertamos do pesadelo platônico - esse é, de acordo com a convicção de Nietzsche, o sentido completo do aprofundamento da crítica kantiana do conhecimento e, com ela, a tendência de toda filosofia moderna -, então, a tarefa mais radical do pensamento crítico consiste em reverter a inversão platônica de valores.

Efetuada essa preparação, passo a formular diretamente minha hipótese interpretativa para uma abordagem geral do tema da mulher e do feminino em Para além de bem e mal. A hipótese que gostaria de apresentar aqui é que o Prefácio desse livro está subterraneamente conectado com a série de aforismos dedicados ao problema Homem - Mulher/Masculino - Feminino, na Seção intitulada "Nossas virtudes", que está no centro nevrálgico dessa obra, cujos temas discutirei a seguir.

Inicio com o problemático aforismo 232, que deu ensejo a tantos arroubos de indignação moral. Considero-o, no entanto, um aforismo emblemático das posições de Nietzsche a respeito do feminino. É como se nele, numa atmosfera espiritual que leva a provocação ao paroxismo, ilustrasse, de maneira explícita, as alusões feitas no Prefácio.

Antes de mais nada, é preciso circunscrever com alguma precisão o objeto principal desse aforismo: trata-se da relação entre a emancipação da mulher e o Esclarecimento (Aufklärung) ou, ainda, da relação entre o feminino, a verdade e a objetividade científica.

Esse é o fio de Ariadne que nos conduzirá pelos labirintos da argumentação de Nietzsche. Percorrendo-o e guiados por ele podemos, desde o início, verificar como o tema inicial do Prefácio ecoa sutilmente também aqui: a clássica vinculação entre Esclarecimento, verdade e emancipação determina o núcleo temático do aforismo; verdade entendida na chave da objetividade científica, produto do entendimento esclarecido.

A título de sugestão complementar, gostaria de mencionar que, além do Prefácio, duas curtas sentenças irônicas, inseridas na Seção "Sentenças e interlúdios", haviam feito alusão telegráfica ao mesmo problema: "As próprias mulheres têm sempre ainda, nos bastidores de toda sua vaidade pessoal, um desprezo impessoal por `a mulher'". E, um pouco mais adiante, lemos: "Para todas as autênticas mulheres, a ciência vai contra o pudor. Elas sentem como se com isso se quisesse espiá-las por sob a pele - pior ainda, sob seus vestidos e adornos".3

Depois dessas indicações preparatórias, podemos agora abordar o aforismo 232. Nietzsche põe em cena um antagonismo entre duas figuras do feminino, uma positiva e outra negativamente valorada: de um lado, o que poderíamos denominar "autênticas mulheres", que sentem desprezo pela mulher e que vivenciam a curiosidade científica como um impertinente atentado ao pudor. Por outro lado, a que denominarei "mulher científica" ou, como a chama Nietzsche, "a mulher em si" (das Weib an sich).

A mulher quer tornar-se independente: e para isso começa por esclarecer [aufklären] os homens sobre a "mulher em si" - isso pertence aos piores progressos do enfeiamento geral da Europa. Pois o que tem que vir à luz em todas essas grosseiras tentativas de cientificidade feminina e autodesnudamento?4

Gostaria de chamar a atenção para a proximidade entre a expressão "a mulher em si", que aparece nesse aforismo, e aquela que figura no Prefácio como um dos elementos centrais do capital erro dogmático de Platão, a saber, "espírito puro e Bem em si". Despertando o interesse para isso, quero sublinhar a correlação entre o tema permanente da crítica do platonismo e aquele, para nós principalmente emergente, da crítica do feminismo.

A "mulher científica" deseja esclarecer os homens sobre "a mulher em si"; com isso, sub-repticiamente reedita a estratégia ancestral de idealização, que é constitutiva do platonismo: ou seja, ela cria a hipóstase metafísica "da mulher", ficciona algo como uma essência objetiva do Feminino, fixa "a mulher" num conceito e, ao fazê-lo, transforma a feminilidade da mulher numa entidade puramente intelectual, numa idéia abstrata, que só pode ser apreendida e exposta pelo olhar privilegiado da teoria.

Para Nietzsche, é demasiadamente alto o preço a ser pago pela cientificização "da mulher". O pressuposto daquela Aufklärung emancipatória da e sobre "a mulher em si" é o triunfo do dogmatismo platônico, ou seja, o expediente que consiste em pressupor a existência daquilo sobre o que se procura esclarecer, neste caso, a idéia da mulher.

Para isso, é necessário desenraizar a mulher da carne e da terra, exaurir todo seu sangue, fogo e paixão, privá-la do corpo feminino, transfigurar a mulher numa abstração, capaz de ser igual ao homem, dotada de iguais direitos e prerrogativas; em outras palavras: colonizar e masculinizar o eterno Feminino.

A meu ver, esse argumento perfaz um primeiro e inicial movimento do aforismo 232. Nele Nietzsche aponta a imensa desvantagem, o efeito desastroso que inevitavelmente acompanharia um hipotético Esclarecimento integral sobre "o Feminino". Pois, a "verdade-mulher" tem muitos bons motivos para conservar o pudor diante da verdade nua e crua:

Oculto na mulher existe muito de pedante, superficial, de mestre- escola, de pequenamente presunçoso, pequenamente desenfreado e pequenamente imodesto - basta estudar seu relacionamento com as crianças! -, coisas que, no fundo, foram até agora reprimidas e contidas da melhor maneira pelo medo do homem. Ai, se alguma vez o "eternamente aborrecido na mulher" - ela é rica disso! - pudesse se atrever a colocar-se à frente.5

À mulher concreta, ao feminino em carne e osso, pertence toda essa mazela e mesquinharia de mestre-escola; essa seria, para Nietzsche, caracteristicamente feminina. Parodiando Goethe, com seu "eterno feminino" (das ewige Weibliche), que irresistivelmente nos atrai para si, Nietzsche ironiza aqui esse lado ingloriamente enfadonho na mulher: "das Ewig-Langweilige am Weibe", para indicar esse enraizamento numa incontornável idiossincrasia do gênero.

Essa limitação não significa, muito menos implica, uma rejeição maniqueísta ou condenação moral desse lado menor e infausto do "eterno feminino". Pelo contrário, ela representa um potencial de autenticidade e resistência ao edulcoramento romântico do idealismo, que prega a "mulher em si". Além disso, sua revelação vem imediatamente acompanhada de uma arrebatada apologia da inteligência e da arte tipicamente femininas.

Ai de nós, afirma Nietzsche, se a mulher "começa a esquecer radicalmente e por princípio sua inteligência e sua arte, a inteligência e a arte da graça, do jogo, do afugentar as preocupações, do tornar as coisas leves, do pegar leve, sua sutil destreza para os desejos agradáveis".6 Gostaria de chamar a atenção aqui para o pathos envolvente da formulação "sutil destreza para toda sorte de desejos agradáveis", absolutamente insólita na boca de um vitoriano catedrático de filologia clássica.

O infortúnio consiste, pois, em que a "mulher em si" provoque a desertificação da "mulher autêntica", isto é, que a "mulher ideal" seja instituída precisamente às custas da proscrição da graça, da leveza, de uma espécie de inteligência mais sutil, corporal, coligada aos impulsos, e uma extrema facilidade e destreza para os jogos do desejo e do prazer.

Em outras palavras, o temor de Nietzsche é de que ocorra com a "mulher esclarecida" o mesmo fenômeno que sempre acompanhou a utopia idealista de Platão: a saber, que a instituição das figuras ideais (nesse caso, da "mulher objetiva", da "mulher em si") tenha como contrapartida a condenação de todas as figuras do mundo sensível (neste caso, da "autêntica mulher", detentora das virtudes femininas, cuja figuração máxima Nietzsche encontra precisamente nos jogos da aparência, do desejo, da sedução, da leveza e da dissimulação).

Com a ficção da "mulher em si", o platonismo embutido no feminismo moderno teria mais uma vez imposto o triunfo do dogmatismo teórico sacerdotal sobre a arte - essa teria sido mais uma vez confiscada, exorcizada e proscrita em proveito "da mulher objetiva", o mesmo ocorrendo com o feminino, em proveito de um masculino degradado.

Desse modo, a luta feminista pela emancipação da mulher, de acordo com o juízo de Nietzsche, faz-se a partir da crença esclarecida na mulher em si, das tentativas científicas de fixar objetivamente a natureza do feminino e de sua verdadeira e justa posição ante o masculino. Essa abstração, que subtrai do feminino o seu elemento vital, insondável, não fixável - é isso o que Nietzsche critica como grosseira ignorância de um necessário antagonismo, de uma eterna tensão entre os sexos, de que não está ausente uma certa ponta de hostilidade -, implicado na referência feita acima ao temor do homem, que mantém em limites moderados as mazelas do "eterno feminino".

Esse antagonismo dos gêneros, Nietzsche o avalia com um enfático sinal positivo: o medo do homem provoca o "eternamente enfadonho", o elemento mesquinho do Feminino passa a transfigurar-se e a sublimar-se. Assim como, no extremo oposto do antagonismo, é a mulher transfigurada pelo temor do masculino que imprimirá o toque mágico de leveza e graça, que chama e atrai para a superfície aquilo que existe de tormento e de terrível na gravidade, na profundidade "tipicamente" masculina.

Como dirá mais tarde em Ecce homo, é necessário estar bem firme sobre as próprias pernas para se compreender bem o feminino:

Posso, aliás, arriscar a suposição de que conheço as mulherzinhas? É parte de meu dom dionisíaco. Quem sabe? Talvez eu seja o primeiro psicólogo do eterno feminino. Todas elas me amam - uma velha história: excetuando as mulherzinhas vitimadas, as "emancipadas", as não aparelhadas para ter filhos. - Felizmente não estou disposto a deixar-me despedaçar: a mulher realizada despedaça quando ama... Eu conheço essas adoráveis mênades... Ah, que perigoso, insinuante, subterrâneo bichinho de rapina! E tão agradável, além disso!... Uma pequena mulher correndo atrás de sua vingança seria capaz de atropelar o próprio destino. - A mulher é indizivelmente mais malvada que o homem, também mais sagaz; bondade na mulher é já uma forma de degeneração... No fundo de todas as chamadas "almas belas" há um inconveniente fisiológico - não digo tudo, senão me tornaria medicínico. A luta por direitos iguais é inclusive um sintoma de doença: qualquer médico o sabe. - A mulher, quanto mais é mulher, mais se defende com unhas e dentes contra os direitos em geral: o estado de natureza, a eterna guerra entre os sexos, dá-lhe de longe a primeira posição. - Houve ouvidos para minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. Amor - em seus meios a guerra, em seu fundo o ódio de morte dos sexos.7

Trazendo como complemento essa tematização do antagonismo entre masculino e feminino, tal como aparece em Ecce homo, pretendo apontar para aquilo que Nietzsche não pode perdoar no feminismo de seu tempo: a renúncia à inteligência e à arte do disfarce, da simulação, da astúcia, do velamento: de todo este refinadíssimo jogo com as artes de sedução, a característica mais fascinante do feminino - é justamente isso que se perde com a masculinização da mulher em si.

Dito em outras palavras, perde-se o feminino em virtude da mesma inesgotável astúcia pela qual o Sócrates platônico enredava seus adversários, reduzindo-os à impotência. Simulando docilidade em relação às opiniões de seus interlocutores, Sócrates primeiro ouvia seus discursos a respeito de ações justas, de coisas belas. Na verdade, isso era apenas um pretexto para conduzi-los, com supremo refinamento e destreza, da conversa ingênua sobre as belas raparigas, dos belos cavalos, da singela descrição de ações virtuosas concretas, para a essência da beleza, para a idéia da virtude, para o Bem em si.

Essa paideia vampiresca do Sócrates platônico consiste na ascese do insubsistente mundo sensível, domínio do simulacro e da falsidade, para o mundo inteligível e verdadeiro das puras essências, protótipos ou paradigmas da realidade empírica, cuja idéia suprema era a do Bem em si. Para bem compreendermos como a denúncia dessa mesma estratégia está em curso na discussão do eterno feminino por Nietzsche, como ela é uma batalha crucial na guerra contra Platão, quero tratar aqui mais de perto um aspecto essencial - talvez o mais importante de todos - da pedagogia emancipatória de Platão.

É justamente num dos mais célebres contextos de apresentação de sua paideia, nos Livros II e III do diálogo A República, que Platão coloca em operação, de maneira exemplar, seu procedimento de conversão das trevas da opinião inconstante para a luz solar do verdadeiro conhecimento, da prisão sombria das aparências para o real inteligível e resplandecente.

Refiro-me aqui a um problema que, à primeira vista, pouco ou nada tem a ver com aquele que agora nos ocupa: a teologia dos poetas e dos autores de tragédias, que Platão condena ferozmente nos Livros II e III de A República. Sócrates não aceita as fábulas dos poetas e dos trágicos, em cuja narrativa os deuses conspiram, perseguem-se mutuamente com armadilhas, praticam atos abominavelmente injustos, combatem contra gigantes, mudam constantemente de forma, enganam, induzem em erro mortais e imortais, enfim, os deuses são causa tanto do bem quanto do mal no mundo.

Narrar tais fábulas para os futuros guardiães da cidade ideal seria um grande malefício, pois eles deixariam de considerar uma torpeza vil que os cidadãos se odiassem uns aos outros por pouca coisa, combatessem entre si com toda sorte de artimanhas e dissimulações. Para o Sócrates platônico, a mais indispensável tarefa pedagógica, no Estado ideal, consistia em corrigir essa teologia tosca e equivocada, brotada da fértil e leviana imaginação dos poetas, que deveria ser substituída pela epistheme dos filósofos, a verdadeira narrativa a respeito dos deuses.

Fantasiados pelos amantes da bela aparência, os deuses teriam a mesmas formas, virtudes e defeitos que os homens. Também os deuses, pois, amariam e odiariam, estariam sujeitos à instabilidade louca das paixões, trairiam, disputariam, enfim, seriam agentes e pacientes, como o são os homens, apenas em dimensões mais grandiosas, porque imortais.

Contra os poetas e os trágicos, pouco a pouco, Sócrates vai expondo sua ortopédica onto-teologia: em primeiro lugar, para estabelecer que Deus é causa unicamente do Bem.

Deus, uma vez que é bom, não poderia ser a causa de tudo, como diz a maioria das pessoas, mas causa apenas de um pequeno número de coisas que acontecem aos homens, e sem culpa do maior número delas. Com efeito, os nossos bens são muito menos do que os males e, se a causa dos bens a ninguém mais se deve atribuir, dos males têm de se procurar outros motivos, mas não o Deus [...] Esta seria, pois, a primeira das leis e dos moldes relativos aos deuses, segundo a qual deverão falar os oradores e poetar os vates: que Deus não é causa de tudo, mas só dos bens.8

Porém, a essa primeira lei concernente à narrativa sobre os deuses acrescenta-se outra, aquela que consiste em fazer do Deus o princípio imutável da verdade. São os escritores em prosa e verso que imaginam os deuses como feiticeiros que mudam de forma e seres que iludem com mentiras em palavras e atos. Por isso, louvamos e enaltecemos Homero e Hesíodo em muitas coisas, mas não nisso, a esse respeito eles representam uma influência nefasta para a cidade ideal e nela não devem ser admitidos. Nós, porém, diz Sócrates, estabelecemos como a segunda lei para a composição de narrativas a respeito dos deuses a seguinte:

Deus é absolutamente simples e verdadeiro em palavras e actos, e nem ele se altera nem ilude os outros, por meio de aparições, falas ou envio de sinais, quando se está acordado ou em sonhos.9

O conceito de Deus como unicamente bom, imutável, eterno e verdadeiro, tal como estabelecido nos Livros II e III de A República, prepara o caminho para a exigência filosófica de representação dos deuses como alegorias de seres puramente espirituais - como puras essências inteligíveis, cuja culminância é atingida justamente com a idéia suprema de Deus, enquanto idéia do Bem em si, causa absoluta de todas as outras idéias e realidades.

Tendo concluído a operação de esclarecimento ortopédico, que retifica a opinião insensata difundida pelos poetas, com seus delírios a respeito de atrocidades e infâmias praticadas pelos deuses, Sócrates acrescenta, com a característica gravidade sacerdotal, aquilo que vale como uma condenação filosófica da poesia e da arte em geral:

Quando alguém disser tais coisas [atrocidades e infâmias praticadas pelos deuses] levá-lo-emos a mal e não lhe daremos um coro, e não consentiremos que os mestres as usem na educação dos jovens, se queremos que os nossos guardiões sejam tementes aos deuses e semelhantes a eles, na máxima medida em que isso for possível ao ser humano.10

Essa progressão ascética dos deuses míticos à idéia do Bem em si caracteriza não apenas a elevação da profundidade às alturas, das trevas para a luz, mas também o processo de dissolução da corporalidade dos deuses, da subtração progressiva e irreversível de todas as suas características humanas, demasiado humanas. A Aufklärung platônica nos emancipa da superstição delirante ao nos apresentar os verdadeiros deuses como princípios espirituais, que não tomam forma em seus corpos de carne e sangue, nem se enredam nas míseras frivolidades dos mortais.

Assim, num único e mesmo gesto, Sócrates corrige a teologia dos poetas e dos escritores de tragédias, e os proscreve da cidade ideal, entregando a formação de seus dirigentes e guardiães aos cuidados do verdadeiro sábio, isto é, do filósofo.

Creio que, refratado nesse tema da tresloucada e perigosa teologia dos poetas, possamos compreender melhor, a partir desses elementos, o alcance e o potencial crítico da metáfora da verdade-mulher, com que se abre o prefácio de Para além de bem e mal. Identificada com o "eterno feminino", a "verdade" é rigorosamente antiplatônica. Com sua onto-teologia da idéia, com sua busca obsessiva do "em si" metafísico, Platão desumaniza a verdade, diviniza-a, arrancando-a do mundo sensível, da instabilidade das opiniões e dos desejos. O "em si", para Nietzsche, é o eterno inimigo do corpo e da beleza, que vampiriza tudo aquilo que para ele se converte.

É, portanto, contra essa vampirização do "eterno feminino" pela "mulher em si" que Nietzsche combate. Na mulher emancipada, esclarecida, persiste, revitalizado, o sanguessuga metafísico de Platão, que extrai o sangue e faz fenecer o corpo. "A" mulher é, para ele, mais um produto legítimo da paideia socrática, é a mulher "objetiva", a mulher ideal, a "mulher igual", já sem corpo e sem beleza, cúmplice terrível no processo de enfeiamento do humano, de condenação ontológico-moral da arte e da beleza.

Por isso, num derradeiro movimento do aforismo 232 de Para além de bem e mal, Nietzsche constata: esse processo de enfeiamento que acompanha o esclarecimento a respeito da "mulher em si", da "verdade" acerca da mulher, já atingiu o ponto perigoso em que ela - tendo já esclarecido tudo sobre si mesma - se atreve agora a pontificar, com clareza clínica, sobre aquilo que "a mulher" quer, antes e sobretudo, do homem.

E, em última instância, com respeito a tudo o que as mulheres escrevam sobre "a mulher", pode-se reservar uma grande desconfiança a respeito de se a mulher quer propriamente o esclarecimento sobre si mesma - e se pode querê-lo... Se, com isso, uma mulher não busca um novo adorno para si - eu penso, com efeito, que o adornar-se faz parte do eternamente feminino -, bem, então, o que ela quer é despertar medo dela; com isso, talvez, queira domínio. Mas não quer a verdade: que importa a verdade à mulher! Desde o princípio nada resulta mais estranho, repugnante, hostil na mulher que a verdade - sua grande arte é a mentira, sua máxima preocupação são a aparência e a beleza.11

Percebe-se, portanto, que Nietzsche busca uma espécie de Esclarecimento do Esclarecimento emancipatório da mulher "em si". Para ele, o que se poderia perguntar é se aquele Esclarecimento não seria mais um adereço, um artifício, uma astúcia ou artimanhas; se o que está efetivamente em jogo não é menos a verdade objetiva do que a busca de poder. Ou seja, se não se trata, também aqui, menos da propalada igualdade do que da eterna guerra entre os gêneros. Tanto que Nietzsche se pergunta:

Por fim, coloco a questão: alguma vez uma mulher já atribuiu profundidade a uma cabeça feminina, justiça a um coração feminino? Não é verdade que, calculada em grandes traços, "a mulher" foi até agora, no mais das vezes, desprezada pela mulher, de modo nenhum por nós?12

E esse diagnóstico "da mulher" pela mulher é, para Nietzsche, instintivamente certeiro. Tanto assim que ele conduz à percepção de uma necessidade e a uma tarefa paradoxal, em se tratando de um pensador freqüentemente considerado chauvinista: a necessidade e a tarefa de proteger o "eterno feminino" de sua autovampirização pela "mulher em si", pela "objetividade feminina", processo, infelizmente, já em curso dema-siadamente acelerado.

"Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer por meio de esclarecimento."13 O verbo empregado por Nietzsche, nesse contexto, é comprometieren, indicando uma espécie de auto-enredamento da mulher na trama comprometedora. O que se compromete a si mesmo nesse processo - e com isso fica desqualificada, detratada, denegrida, exaurida - é a "realidade do feminino".

Tendo isso em vista, Nietzsche conclui o aforismo 232 com um movimento argumentativo que contém um verdadeiro nec plus ultra de provocação. Depois de expressar o desejo de acordo com o qual o objetivo da crítica à "mulher em si" é evitar e, se possível, reparar o comprometimento da mulher com o Esclarecimento, Nietzsche acrescenta: "como foi cuidado e proteção da mulher quando a Igreja decretou mulier taceat in ecclesia! Foi em benefício da mulher que Napoleão deu a entender à demasiada loquaz Madame de Stäel: mulier taceat in politicis!"14

Aqui, a provocação toma a forma de uma paródia ao célebre trecho da Primeira epístola aos coríntios sobre o silêncio das mulheres nas igrejas, texto considerado modernamente como exemplo áureo de despotismo machista, da injusta e opressiva tutelagem masculina da mulher no cristianismo primitivo.

Nietzsche nos propõe aqui uma interpretação desconcertante e sui generis, que subverte e transvalora a avaliação dominante: para ele, o mandamento paulino de silêncio é totalmente mal-entendido, quando considerado na chave da arrogância e prepotência do macho. Para Nietzsche, a prescrição se deve, antes, a uma espécie de transbordamento de preocupação e solicitude para com a mulher.

Perscrutando o texto grego, o filólogo Nietzsche julga poder ainda captar, a partir de expressões como "não é conveniente que uma mulher fale nas assembléias" e "Mas tudo se faça com decoro e ordem",15 um tom de comiseração e autêntico cuidado, preventivo de um escândalo possível, um aviltamento da mulher pela mulher; por exemplo, sob a forma da desqualificação e autocomprometimento gerados pelos fenômenos constrangedores da possessão histérica.

Uma primeira paródia do texto paulino é trabalhada por Nietzsche sob a forma da anedota corrente a respeito da confrontação entre Napoleão e madame de Stäel. De acordo com ela, Napoleão teria sugerido que a mulher silenciasse em matéria de política, precisamente para não se comprometer, ou seja, para que não se desqualificasse por disparates.

É preciso que tenhamos em vista aqui o significado simbólico de madame de Stäel para Nietzsche. Ela escrevera um livro intitulado Da Alemanha, no qual retratava os alemães como lânguidos, benevolentes românticos e espirituais, fracos de ânimo e vontade - poéticas toupeiras morais, como diz Nietzsche.16 Em termos do jargão hegeliano, os alemães seriam, segundo o diagnóstico dessa mulher masculinizada, isto é, madame de Staël, o perfeito tipo das belas almas.

Ora, contra madame de Stäel, Nietzsche joga, no aforismo 209, o diagnóstico de Napoleão sobre Goethe. Nos termos da reprodução por Nietzsche, do encontro entre Napoleão e Goethe, o primeiro teria exclamado com admiração, à vista do segundo: "`Voilá un homme' - isto queria dizer: `Isso sim é um homem! E eu tinha esperado somente um alemão'".17 Isso quer dizer: encontro-me perante um homem autêntico, um homem real, e não perante uma abrandada idealização do homem, sobre uma edulcoração feminilizada do varão, isto é, de uma "bela alma".

Com isso, Nietzsche insinua que a apreciação dos homens por madame de Stäel, aqui em particular do homem alemão, configura o típico caso de um diagnóstico equivocado, induzido por uma degeneração radical dos instintos autenticamente femininos: o julgamento de madame de Stäel traduzia a percepção e os sentimentos, não de uma "mulher autêntica", mas da "mulher em si", ou seja, de uma mulher masculinizada.

Nietzsche considerava esse diagnóstico como a projeção, pela "mulher objetiva", de seu próprio ideal. Por isso faria pleno sentido o julgamento corretivo de Napoleão: é melhor calar-se em matéria de política; em termos da provocação nietzscheana, não convém que "a mulher de carne e osso" se desqualifique, atentando contra o próprio decoro pelo ridículo político.

Por fim, o argumento culmina numa paródia da paródia: "e eu penso que é um autêntico amigo das mulheres aquele que hoje proclama: mulier taceat de muliere".18

A pergunta se impõe como uma exigência incontornável: por que seria um amigo das mulheres aquele que recomenda o silêncio "da" mulher sobre a mulher? Justamente porque ao falar sobre a mulher, a feminista, inadvertidamente, passa a falar sobre "a mulher", e deixa de falar como mulher. Ou seja, hipnotizada pelo poder de sedução das "idéias modernas", a mulher começa, de imediato, a teorizar sobre "a" mulher, e, com isso, a platonizar o feminino, a dissertar filosoficamente sobre a "mulher em si".

Caindo na armadilha platônica, "a" mulher é aí, também, vampirizada, desterrada, idealizada, transfigurada em igual, em "bela alma" - tornada indiferente, objetiva, asceticamente masculinizada; em verdade, porém, na medida em que o próprio masculino também se tornou bela alma, a mulher se torna assexuada. Ela passa a ser a aliada inconsciente de Platão, agente usada pelo Drácula socrático na empreitada de tornar exangue o homem e, também dessa maneira, vingar-se da vida.

Nietzsche quer evitar a todo custo essa forma de auto-imolação inerente ao ideal da objetividade. Por isso, seria necessário recusar a tentação de permanecer colado às fachadas e atentar, com a devida justiça, para o aforismo que se segue imediatamente àquele que acabamos de comentar. Nele Nietzsche afirma:

Denuncia corrupção dos instintos - sem considerar que denuncia ainda corrupção do gosto - quando uma mulher recorre justamente a Madame Roland ou a Madame de Staël, ou a Monsieur George Sand, como se com isso algo fosse demonstrado a favor da "mulher em si". Entre homens, as ditas cujas são as três cômicas mulheres em si - nada mais! - e justamente os melhores contra-argumentos involuntários contra a emancipação e a autarquia feminina.19

Os três citados exemplos de emancipação, de objetividade feminina resultante da paideia moderna são, para Nietzsche, exemplos cômicos de mulheres comprometidas, ridículas, degeneradas, ou seja, masculinizadas pela "mulher em si" - esse é o sentido da cínica alusão a Monsieur George Sand. É delas que deve ser protegido o eterno feminino, posto que esse tipo de objetividade científica representa a morte da mulher.

Se o aforismo que se segue ao 232 em Para além de bem e mal é significativo e estratégico, não menos o é o precedente. Com efeito, o aforismo 231, anteposto a todos os aforismos que, na Seção intitulada "Nossas virtudes", tratam do problema do masculino e do feminino, preludia, igualmente sob a forma da ironia, a crítica da objetividade.

Sem evitar os extremos do exagero, Nietzsche faz questão de perseverar na questão da parcialidade incontornável, da subjetividade, do caráter pessoal das opiniões, crenças e teorias. É necessário não se perder de vista que tais "qualidades" - parcialidade, subjetividade, injustiça -, que Nietzsche invoca para si no aforismo em que, como veremos, praticamente pede licença para externar-se a respeito da mulher em si, fazem parte daquele conjunto de "virtudes" do eterno feminino, que a "mulher em si" se esforça por erradicar de si, em nome da sacrossanta objetividade científica.

O aprendizado nos transforma, faz o que faz a nutrição, que não apenas "conserva". Porém, no fundo de nós, totalmente "lá em baixo"', há, em verdade, algo que não se deixa instruir, um granito de fatum espiritual, de decisão e resposta predeterminada para questões predeterminadas e seletas. Em todo problema cardeal, fala um imutável "isso sou eu": sobre homem e mulher, por exemplo, nenhum pensador pode mudar seu aprendizado, mas somente aprender até o fim - descobrir até o fim aquilo que, sobre o assunto, para ele está estabelecido. De tempos em tempos, encontramos certas soluções de problemas que justamente nos produzem uma crença forte; talvez as denominemos daí para diante "convicções". Mais tarde - vemos nelas tão-somente pistas para o autoconhecimento, indicadores de caminho para o problema que nós somos -, mais corretamente, para a grande estupidez que nós somos, para nosso fatum espiritual, nosso resistente ao aprendizado, totalmente "lá embaixo". Depois desta rica amabilidade, que cometo justamente contra mim mesmo, talvez já me será permitido, pois, proferir algumas verdades sobre a "mulher em si", suposto que doravante se saiba o quanto, do início ao fim, se trata justamente apenas de minhas verdades.20

Como ocorre com a pretensão à objetividade feminista, a primeira frase do aforismo recorre também à crença fundamental da Aufklärung: "O aprendizado nos transforma"; a instrução efetivamente liberta, emancipa, e não apenas conserva, sustenta. Porém, ao contrário da crença emancipatória na "mulher em si", Nietzsche invoca, como vimos, seu granítico fatum espiritual. O paradoxo da expressão é flagrante: em se tratando de um elemento espiritual, não se poderia mais falar em fato, nem em granito.

Ao construir o paradoxo, Nietzsche pretende alegorizar o elemento irredutivelmente pessoal, que constitui o "si mesmo", o elemento de verdadeira singularidade que há em todo pensamento autêntico, que não renunciou a si em proveito da unanimidade auto-satisfeita e autocomplacente, nem da tirania anônima do "rebanho autônomo".

Um recurso apropriado ao contexto dessa crítica irônica da descarnada e etérea "mulher em si" seria dizer que o granito de fatum espiritual, que existe no mais fundo de nós mesmos, seria o "homem de carne e osso", que é também todo pensador autêntico.

É em passagens como essas que se evidencia como a crítica nietzscheana do feminismo está indissociavelmente ligada à sua tarefa mais geral de demolição da metafísica, especialmente à sua teoria do perspectivismo. O granítico fatum espiritual é uma metáfora do caráter irremissivelmente perspectivo e condicionado, que existe em todo ponto de vista, um capítulo de sua denúncia permanente da ilusão implícita em toda pretensão à objetividade não perspectiva.

Daí sua impiedosa caracterização da limitação perspectiva que adere a toda opinião, a toda convicção, a toda crença forte, como uma estupidez. Essa estupidez, no entanto, é inevitável, pois ela constitui minha perspectiva, minha condição pessoal e existencial. Suprimir essa estupidez, em proveito de uma pretensa objetividade asséptica e anódina, seria como que castrar o pensamento, retirar o pensador, com suas raízes, do único solo sobre o qual ele pode ainda conservar alguma seiva, alguma vida, alguma personalidade.

É esse o pensador que deseja proteger a mulher autêntica, a mulher de carne e osso, o eterno, o belo, o prodigioso e fascinante feminino. Essa é a razão estratégica que anima a estridência do discurso, a dissonância voluntária, a ruidosa selvageria terminológica e imagética da provocação, como bem o atesta a paródia mulier taceat de muliere.

É nessa chave que proponho que sejam lidas as passagens mais repugnantes de "Nossas virtudes", como, por exemplo, aquelas que dizem respeito à responsabilidade da mulher, enquanto cozinheira fracassada, pelo atraso intelectual da humanidade; ou do ideal de mulher emancipada como commis, ou seja, do aviltamento do ideal feminino em escriturária, amanuense, caixeira, agente comercial e comissária.

As imagens são deliberadamente chocantes. Elas pretendem, como dizia Zaratustra, "estropiar os ouvidos" da mulher moderna, para que talvez aprenda a ouvir com os olhos. Aquilo que, em derradeira instância, Nietzsche pretende preservar é a diferença, a alteridade, o corpo a corpo e o terra a terra; com isso, o que está em jogo é uma tentativa desesperada de contra-restar o auto-rebaixamento do homem moderno, a mediocrização e a banalização da vida humana, em que a modernidade se empenha com um dinamismo de eficácia pavorosa.

Que a mulher ouse colocar-se à frente, quando aquilo que infunde temor no homem, digamo-lo de modo mais determinado, quando o homem no homem não é mais querido, cultivado e incrementado, é justo o suficiente, também suficientemente compreensível; o que dificilmente se compreende é que, justamente com isso, a mulher degenera. Isso ocorre hoje: não nos enganemos sobre isso! Onde apenas o espírito industrial triunfou sobre o espírito militar e aristocrático, a mulher já anseia pela independência econômica e jurídica de um Commis: "a mulher como Commis" coloca-se na soleira da moderna sociedade que se configura. Ao apoderar-se, dessa maneira, de novos direitos, ao cogitar de tornar-se "senhor" e escrever sobre suas bandeiras e bandeirolas o "progresso" da mulher, o contrário se realiza com pavorosa clareza: a mulher regride. Desde a Revolução Francesa, diminuiu a influência da mulher na Europa, na medida em que lhe foram acrescidos direitos e exigências; e a "emancipação da mulher", na medida em que esta é exigida e fomentada pelas próprias mulheres (e não apenas por algumas rasas cabeças masculinas), resulta ser, desse modo, um curioso sintoma da crescente debilitação e embotamento dos instintos mais femininos.21

Para concluir, poderíamos dizer que o enfraquecimento e a atrofia dos instintos mais femininos na mulher seria o mais repugnante sintoma do enfeiamento geral da Europa, herdeiro legítimo do empreendimento platônico de enfeiamento do Ocidente. Uma patologia que Nietzsche, como médico da cultura, obstinou-se em combater. Nesse imenso deserto em que se vai transformando a Europa, Nietzsche vê no feminino um oásis, no qual habita ainda uma possibilidade de redenção.

 

Referências bibliográficas

Nietzsche, Friedrich 1980: "Jenseits von Gut und Böse. Vorrede". In: F. Nietzsche - Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). v. 5. Editado por G. Colli e M. Montinari. Berlin/New York/München, de Gruyter/DTV.         [ Links ]

____-1995: Ecce homo - Por que escrevo livros tão bons. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras.

Platão [s/d]: A República II. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

 

 

Endereço para coorespondência
E-mail: giacoia@tsp.com.br

Recebido em 22 de janeiro de 2002.
Aprovado em 15 de maio de 2002.

 

 

1 Nietzsche 1980, p. 11 e s. Não havendo indicação contrária, as traduções são de minha autoria.
2 Ibid., pp. 11-3.
3 Nietzsche 1980, "Sentenças einterlúdios", 86 e 126, pp. 89 e 95.
4 Ibid., "Nossas virtudes", 232, p. 170 e s.
5 Ibid., p.170 e s.
6 Id.
7 Nietzsche 1995, p. 58 e s.
8 Platão. A República II, 379c; 380c, pp. 91 e s. e 94.
9 Ibid. 383e, p. 98.
10 Ibid., 383c., p. 99 e s.
11 Nietzsche 1980,"Nossas virtudes",232, p. 170 e s.
12 Id.
13 Id.
14 Id.
15 Primeira Epístola do Apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulo 15, versículos 35 e 40. Citado segundo a versão da Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1987, p. 2.167 e s.
16 Cf. Para além de bem e mal. "Nós eruditos", 209; op. cit., p. 141 e s.
17 Id.
18 Id.
19 Ibid., 233, p. 172.
20 Ibid., 231, p. 170.
21 Ibid., 239, p. 175 e s.