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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002

 

TRADUÇÃO

 

A mobilização total1

 

The total mobilization

 

 

Ernst Jünger

 

 

1

Repugna ao espírito heróico buscar a imagem da guerra em uma camada [do espírito]2 que possa ser determinada pelo agir humano. Todavia, oferecem-lhe um espetáculo cativante as múltiplas transformações e velamentos que a pura configuração3 da guerra sofre com o passar de tempos e espaços humanos.

Esse espetáculo lembra vulcões em que continuamente eclode o mesmo magma e que, porém, estão em atividade em paisagens muito diversas. Assim, ter participado de uma guerra significa algo semelhante a ter estado na área de alcance de uma dessas montanhas que cospem fogo - mas, entre o Hekla islandês e o Vesúvio na baía de Nápoles, há uma grande diferença. Decerto, pode-se dizer que a diferença entre as paisagens desaparece à medida que alguém se aproxima da garganta abrasante da cratera e que, lá onde a paixão propriamente dita irrompe - antes, portanto, de toda luta aberta, imediata, de vida ou morte -, desempenha um papel marginal saber o século em que, saber as idéias pelas quais e saber as armas com que se combate. Em seguida, porém, não falaremos a respeito disso.

Muito antes, nós nos esforçamos em recolher alguns dados que diferenciam a última guerra, nossa guerra, o maior acontecimento deste tempo e o de mais amplo efeito, de outras guerras cuja história nos foi legada.

 

2

Talvez a peculiaridade dessa grande catástrofe possa ser apontada da melhor maneira através da indicação de que, nela, o gênio da guerra conseguiu atingir e permear o espírito do progresso. Isso vale não apenas para a luta dos países entre si; vale também para a guerra civil que, em muitos desses países, obteve uma segunda, rica colheita. Esses dois fenômenos, a guerra mundial e a revolução mundial, estão entrelaçados um com o outro de modo muitíssimo mais estreito do que parece à primeira vista. Eles são os dois lados de um só acontecimento de tipo cósmico, dependentes um do outro em relação a muitas coisas, tanto no que concerne ao modo como surgiram, quanto no que concerne ao modo como eclodiram.

É provável que ainda estejam por advir ao nosso pensamento estranhas descobertas sobre a essência que se oculta por trás do conceito indeterminado e multicoloridamente cintilante de "progresso". Sem dúvida, move-se sobre um plano barato a maneira com a qual nós estamos hoje inclinados a zombar desse conceito. Deveras, contra essa aversão perante o progresso, pode-se evocar aquele espírito do século XIX de importância realmente significativa - mas, com todo asco pela trivialidade e pela homogeneidade das formações que aparecem à nossa frente, surge, com efeito, a suspeita de que o fundamento do qual elas provêm seja de importância muitíssimo mais significativa. Afinal, a assimilação ela mesma é uma atividade que depende das forças de uma vida maravilhosa e inexplicável. Hoje, certamente, pode ser atestado com bons fundamentos: o progresso não é progresso algum. Porém, mais importante que essa constatação é, talvez, perguntar se não é mais secreto e de outro tipo o significado próprio do progresso, o qual se serve de um esconderijo privilegiado: a máscara da aparentemente tão translúcida razão.

Justamente a certeza com a qual certos movimentos tipicamente progressistas levam a resultados que estão em oposição à sua própria intenção é que sugere a suposição de que aqui, como em todo o âmbito da vida, impõem-se menos as intenções do que impulsos mais ocultos. Acertadamente, o espírito se regala de muitos modos com o desprezo das marionetes de madeira do progresso - mas os finos arames que realizam seus movimentos são invisíveis.

Caso alguém deseje buscar informações sobre a estrutura das marionetes, não se pode eleger um fio condutor mais aprazível que o romance Bouvart et Pécuchet, de Flaubert. Mas caso alguém deseje ocupar-se com as possibilidades do movimento secreto que, cada vez mais, tem de ser pressentido e demonstrado, então, descobrir-se-á já em Pascal e Hamann4 uma abundância de passagens elucidativas.

"Mas também nossas fantasias, ilusões, fallaciae opticae e sofismas estão no domínio de Deus". Frases desse tipo podem ser facilmente encontradas em Hamann; elas expressam um modo de pensar que anseia inserir os esforços da química no domínio da alquimia. Deixemos em suspenso qual é o domínio do espírito em que está a ilusão de ótica, pois nós trabalhamos em um estudo planejado para leitores do século XX, não, porém, numa demonologia. Todavia, é bem seguro que apenas uma força de tipo cultual, apenas uma crença, poderia chegar à audácia de estender ao infinito a perspectiva da finalidade utilitária.

E quem, então, poderia ainda duvidar de que o progresso é a grande igreja do povo do século XIX - a única que pode gozar de autoridade efetiva e de crença acrítica.

 

3

Em uma guerra que eclodiu sob tal atmosfera, tinha de desempenhar um papel decisivo a relação com o progresso que cada participante individualmente possuía. E, com efeito, aqui deve ser buscado o fator propriamente moral. Não estão à altura de suas próprias irradiações finas, imponderáveis, os exércitos mais fortes, munidos com as últimas armas de aniquilação da era das máquinas - com efeito, o fator moral, ele mesmo, é capaz de recrutar suas próprias tropas para o acampamento militar do oponente.

Para tornar explícito esse processo, introduzo aqui o conceito de mobilização total: já vão longe os tempos em que bastaria enviar aos campos de combate alguma centena de milhares de sujeitos alistados sob um comando confiável, algo assim como o que é descrito pelo Cândido, de Voltaire, tempos em que, caso sua majestade houvesse perdido uma batalha, manter a tranqüilidade era a primeira obrigação civil. Mas, ainda na segunda metade do século XIX, guerras podiam ser preparadas, conduzidas e ganhas pelos gabinetes conservadores, ante os quais a representação popular era indiferente ou mesmo antipática. Certamente, isso pressupunha uma estreita relação entre o exército e a coroa, uma relação que, através do novo sistema de serviço militar universal, experimentara apenas uma modificação superficial e que, em seu âmago, ainda pertencia ao mundo patriarcal. Ademais, tal relação pressupunha um certo cálculo estimativo de armamentos e custos que fazia a guerra aparecer como uma despesa das forças e meios presentes deveras extraordinária, mas de modo algum sem limites. Nesse sentido, mesmo à mobilização geral aderia ainda o caráter de uma medida parcial.

Essa restrição não corresponde somente à limitada abrangência dos meios, mas, ao mesmo tempo, a uma razão de Estado peculiar. O monarca possui um instinto natural que o previne de ir além do arco dos domínios dinásticos. Parece-lhe menos preocupante a fundição de seu tesouro do que o crédito concedido pela representação popular e, para o momento decisivo da batalha, ele reserva, de preferência a um contingente de voluntários, suas próprias guardas. Esse instinto é ainda viçoso nos prussianos de todo século XIX. Ele manifestou-se, entre outras oca-siões, na acirrada luta pelo tempo de serviço militar trienal - tropas de veteranos são mais confiáveis para a mentalidade das casas reais, ao passo que o tempo de serviço curto é uma característica das tropas voluntárias. Freqüentemente, deparamo-nos até mesmo com a desistência - para nós, de hoje, quase incompreensível - do progresso e do aperfeiçoamento do aparato bélico. Mas também esse escrúpulo tem sua razão de fundo. Assim, em cada melhoramento das armas de artilharia, oculta-se um ataque indireto às formas da monarquia absoluta. Cada um desses melhoramentos promove o tiro individualmente mirado, ao passo que o seleto poder de comando é simbolizado pela salva. A Guilherme I era ainda desagradável o entusiasmo.5 Ele surge de uma fonte que, como o odre de Éolo, não oculta apenas as tempestades de aplauso. A autêntica pedra de toque de uma dominação não é a medida de júbilo que lhe é dispensada, mas a guerra perdida.

A mobilização parcial corresponde, portanto, à essência da monarquia, que vai além de suas fronteiras na mesma proporção em que é forçada a fazer participar da armação6 bélica as formas abstratas do espírito, do dinheiro, do "povo", em suma, os poderes da democracia nacional que avulta. Olhando para trás, hoje nos é permitido dizer que a plena desistência dessa participação era, decerto, impossível. A maneira de sua integração ao Estado descreve o âmago da arte da política do século XIX. A partir dessa situação particular explica-se a frase de Bismarck, acerca da política como "a arte do possível".

Doravante, já pode ser acompanhado de que maneira a crescente conversão da vida em energia, de que maneira o conteúdo de todos os vínculos, que se torna cada vez mais fugaz em favor da mobilidade, empresta um caráter sempre mais incisivo à ação da mobilização, cujo decreto, porém, com a eclosão da guerra, ainda permanecia, em alguns países, direito exclusivo e imprescritível da coroa. São múltiplos os fenômenos que condicionam essa situação. Assim: com a perda de limites claros entre as classes sociais e o corte dos privilégios aos nobres, vai sumindo, ao mesmo tempo, o conceito da casta guerreira; a defesa armada do país não é mais a obrigação e a prerrogativa do soldado de profissão somente, mas torna-se tarefa daqueles que, em geral, são aptos ao serviço militar. Assim: o imenso aumento dos custos torna impossível arcar com a condução da guerra a partir de um tesouro de guerra fixo; muito antes, para manter em curso a maquinaria, é necessária a concentração de todos os créditos, até a captação do último centavo de economia. Assim: também a imagem da guerra como um negócio armado, cada vez mais, deságua na imagem amplificada de um gigantesco processo de trabalho. Ao lado dos exércitos que se entrechocam nos campos de batalha, surgem os novos tipos de exército: o do trânsito, o da alimentação, o da indústria armamentista - o exército do trabalho em geral. Na última fase, que já se insinuava por volta do fim desta última guerra, não ocorreu mais nenhum movimento - mesmo o de uma dona-de-casa junto à sua máquina de costura - no qual não residisse ao menos uma função mediatamente bélica. Nessa captação absoluta da energia potencial, que transformou os Estados industriais beligerantes em vulcânicas oficinas siderúrgicas, anuncia-se, talvez do modo mais evidente, o despontar da era do trabalho - essa captação faz da guerra mundial um fenômeno histórico cujo significado é muito mais importante que o da Revolução Francesa. Para desdobrar energias de tal grandeza, não basta mais armar o braço que carrega a espada, é preciso uma armação até a medula, até o mais fino nervo da vida. Realizá-la é a tarefa da mobilização total, de uma ação através da qual a rede elétrica da vida moderna, amplamente ramificada e cheia de dutos, é canalizada, por meio de uma única chave na caixa de luz, para a corrente da energia bélica.

No início da guerra mundial, uma mobilização com essa abrangência ainda não havia sido prevista pelo entendimento humano. Ela já se insinuava, porém, em medidas isoladas; por exemplo, logo ao início da guerra, no forte engajamento de voluntários e de reservistas, na proibição das exportações, nas prescrições da censura, nas alterações do câmbio monetário. Com o correr da guerra, esse processo intensificou-se; como exemplo, podem ser mencionados o racionamento planificado das matérias-primas e dos gêneros alimentícios, a transformação das relações de trabalho em relações militares, o serviço civil obrigatório, a armação militar dos navios mercantes, a ampliação inédita das competências do Estado Maior, o "programa de Hindenburg"7, a luta de Ludendorff pela identidade entre as chefias administrativas militar e a política.

Entretanto, apesar dos espetáculos, tanto grandiosos quanto terríveis, das últimas batalhas de armamento pesado, nas quais o talento organizacional humano festejou seu triunfo sangrento, as últimas possibilidades ainda não foram alcançadas. Mesmo que alguém se restrinja à consideração do lado técnico desse processo, essas possibilidades apenas devem ser alcançadas, caso a imagem do advento da guerra já esteja previamente delineada na ordem do estado de paz. Assim, nós vemos como, em muitos Estados do pós-guerra, os novos métodos de armação já estão moldados à mobilização total.

Aqui, podem vir à baila fenômenos como a restrição crescente da "liberdade individual", um direito que já era, desde sempre, questionável. Deparamo-nos com esse ataque à liberdade individual, cuja intenção visa a que não exista nada que não possa ser compreendido como uma função estatal, primeiramente, na Rússia e na Itália, mas, em seguida, também entre nós. E é possível prever que todos os países em que estão vivas ambições de ordem mundial têm de consumar esse ataque para estar à altura do desencadeamento de novas forças. Ademais, é típico do processo aqui descrito o modo de valoração das relações de poder sob o ponto de vista da énergie potentielle,8 o qual surgiu na França, bem como a cooperação, já preparada durante a paz, entre o Estado Maior e a indústria, fenômeno para o qual a América é o modelo. O núcleo mais interno da armação bélica é atingido pelos questionamentos com que a literatura de guerra alemã coagiu a consciência universal a juízos sobre as coisas da guerra. Esses são aparentemente retrospectivos, mas, na realidade, estão dirigidos para o futuro. O "plano qüinqüenal" russo colocou, pela primeira vez, o mundo diante da tentativa de fazer convergir o esforço conjunto de um grande império para uma só correnteza. Aqui, é instrutivo ver como o pensamento econômico dá voltas sobre si mesmo. Como uma das últimas conseqüências da democracia, a "economia planificada" cresce para além de si mesma em direção ao desdobramento do poder em geral. Essa mudança abrupta é observável em muitos fenômenos de nosso tempo; a grande pressão das massas subitamente se transforma em formações cristalizadas.

Mas não apenas o ataque, também a defesa desafia os homens a esforços extraordinários e, aqui, talvez se torne ainda mais clara a coerção do mundo. Assim como toda vida, ao nascer, já traz consigo o gérmen de sua morte, também o surgimento das grandes massas encerra em si uma democracia da morte. A época do tiro mirado, com efeito, já ficou para trás. O chefe de esquadra que, altas horas da noite, dá a ordem de ataque de bombas não conhece mais diferença alguma entre combatentes e não combatentes, e a nuvem de gás letal avança como um elemento natural sobre tudo que é vivo. A possibilidade de tais ameaças, porém, não pressupõe uma mobilização, nem parcial, nem geral, mas total, que se estende ela mesma até a criança de berço, a qual está ameaçada como todo mundo, aliás, ainda mais fortemente.

Ainda haveria muito mais a mencionar, todavia, basta observar essa nossa vida em seu pleno desencadeamento e em sua disciplina impiedosa, com seus distritos abrasantes e esfumaçantes, com a física e a metafísica de seu trânsito, com seus motores, aviões e cidades de milhões, para pressentir, com um sentimento misto de horror e prazer, que aqui não há átomo algum que não esteja trabalhando e que nós mesmos estamos dedicados, no nível mais profundo, a este processo furioso. A mobilização total é consumada por ela mesma muito mais do que por nós; ela é, na guerra e na paz, a expressão da reivindicação misteriosa e compulsória à qual nos submete essa vida da época das massas e das máquinas. Assim, acontece que cada vida individual torna-se, de maneira cada vez mais clara, a vida de um trabalhador e que, às guerras dos nobres, dos reis, e dos cidadãos, seguem-se as guerras dos trabalhadores - guerras de cuja estrutura racional e de cuja impiedade o primeiro grande conflito do século XX já nos deu uma noção.

 

4

Nós tocamos levemente no lado técnico da mobilização total, cujo aperfeiçoamento pode ser seguido desde os primeiros recrutamentos empreendidos pelo governo da Convenção, desde a reorganização das forças armadas promovida por Scharnhorst,9 até os programas de armação dinâmica dos últimos anos de guerra, nos quais os países se transformaram em fábricas gigantescas que produziam exércitos em esteiras rolantes, para enviá-los, dia e noite, aos campos de batalha, onde um consumo bélico, que se tornou igualmente muito mecânico, assumiu o papel do consumidor mercantil. Por mais que a monotonia dessa visão, que lembra a precisa operação de uma turbina alimentada a sangue, perturbe de modo vexaminoso o ânimo heróico, não pode haver, com efeito, qualquer dúvida sobre o conteúdo simbólico que mora em seu íntimo: aqui se manifesta uma conseqüência rigorosa, a marca dura de uma época cujo elemento fundamental é a guerra.

O lado técnico da mobilização total, no entanto, não é o decisivo. Antes, seu pressuposto, como o pressuposto de toda técnica, reside mais no fundo. Aqui, nós o trataremos como prontidão para a mobilização. Essa prontidão estava presente em todos os países. A guerra mundial tornou-se uma das guerras mais populares que a história conhece. E ela tinha mesmo de sê-lo, já pelo simples fato de que ocorreu em um tempo que faz com que as outras guerras pareçam, de antemão, não constarem entre as guerras populares. Não observadas as pequenas guerras de pilhagem e coloniais, também os povos haviam podido alegrar-se com um período relativamente longo de paz. Nós já prometemos, contudo, no início desta investigação, desconsiderar, de imediato, a descrição da camada elementar [do espírito],10 daquela mistura de paixões selvagens e sublimes que mora na intimidade do homem e que, em todos os tempos, o predispôs ao apelo guerreiro. Muito antes, buscaremos desemaranhar o concerto dos múltiplos sinais sonoros que deram início a esse conflito singular e acompanharam seu transcurso.

Quando somos confrontados com esforços de tal amplitude, quer eles se expressem em construções poderosas, como nas pirâmides e nas catedrais, quer eles se expressem em guerras que fazem vibrar até o último nervo da vida - esforços nos quais se imprime a marca da falta de finalidade - aí, justamente, é que nós não conseguimos nos arranjar com as explicações econômicas, mesmo que elas pareçam tão lógicas. Isso também é a razão pela qual a escola do materialismo histórico é capaz de tocar apenas na superfície do processo. Em se tratando de esforços desse tipo, a primeira suspeita tem de ser dirigida, muito antes, a um fenômeno de ordem cultual. Com a observação de que nós consideramos o progresso a grande igreja do povo do século XIX, já indicamos em que camada [do espírito]11 presumimos situar-seo apelo eficaz sem a ajuda do qual era impossível a realização da parte decisiva da mobilização total, a saber, a cultual, referente às massas gigantescas que tinham de ser conquistadas para participação na última guerra. Evitar essas massas tornava-se tanto mais impossível quanto mais era exigida a sua persuasão, portanto, quanto mais os grandes lemas que as moviam expressavam claramente uma intenção de conteúdo progressista. Mesmo que esses lemas tenham uma coloração grosseira e gritante, não pode haver dúvida quanto à sua eficácia; eles lembram as fitas coloridas e cintilantes que, em caçadas de tocaia, espantam a caça de modo a dirigi-la para a direção das espingardas.

Já ao olhar superficial, que busca empreender uma divisão puramente geográfica das forças participantes em vencedores e vencidos, não pode escapar o privilégio dos países "em progresso", um privilégio no qual parece vigorar uma espécie de automatismo, no sentido da teoria darwinista da seleção dos "mais aptos". Esse automatismo torna-se particularmente manifesto por meio do seguinte fenômeno: mesmo os países pertencentes ao grupo vencedor, como Rússia e Itália, não foram capazes de escapar a uma destruição abrangente de sua estrutura estatal. Sob essa iluminação, a guerra aparece como uma pedra de toque fidedigna, que realiza sua valoração segundo leis rigorosas e próprias - como um tremor de terra que põe à prova os alicerces de todos os edifícios.

Além disso, nessa última fase da crença em direitos humanos universais, verificou-se que as formações monárquicas são de particular caducidade ante as destruições da guerra. Ao lado de inúmeras pequenas coroas, a alemã, a prussiana, a russa, a austríaca e a turca rolam em meio ao pó. O Estado no qual o mundo das formas medievais levava ainda uma existência fantasmagórica, como se existisse sobre uma ilha de um período geológico passado, o Austro-Húngaro, fez-se em pedaços como uma casa que é lançada aos ares por meio de uma explosão. A última monarquia absoluta, em sentido tradicional, a czarista, cai vítima de uma guerra civil que a consome como uma epidemia por longo tempo reprimida sob sintomas horrorosos.

Por outro lado, a inaudita resistência da estrutura progressista torna-se perceptível, mesmo no Estado de maior fraqueza física. Assim: na repressão a todo motim de altíssima periculosidade ocorrido dentro do exército francês, no ano de 1917, manifesta-se um segundo milagre de Marnes,12 o moral, que é mais sintomático para esta guerra do que o puramente militar do ano de 1914. Assim: nos Estados Unidos, um país de constituição democrática, a mobilização pôde ter início com medidas de um rigor que não foi possível no Estado militar prussiano, o país do voto censitário. E quem poderia duvidar de que a América, o país sem "castelos caídos, formações basálticas,13 estórias de cavaleiros, ladrões e fantasmas", sairia dessa guerra como o visível vencedor? Na América, já não importava em que medida um Estado era considerado militar ou não, mas, sim, em que medida o Estado estava apto à mobilização total.

A Alemanha, porém, tinha de perder a guerra, mesmo se houvesse ganho a batalha de Marne e a guerra submarina, porque ela, mesmo com toda a responsabilidade com que preparara a mobilização parcial, subtraiu da mobilização total grandes domínios de sua força e porque, pela mesma razão, claramente em conformidade ao caráter interno de sua armação, estava em condições de alcançar, suportar e, sobretudo, avaliar um sucesso deveras parcial, mas não total. Para agregar às nossas armas esse sucesso total, a preparação teria de ter dado atenção a uma outra e não menos significativa Canas,14 mas não àquela a que Schlieffens15 dedicou o trabalho de toda uma vida.

Entretanto, antes de tirarmos conclusões ulteriores a partir do princípio da prontidão para a mobilização total, ainda buscaremos verificar, em alguns pormenores, a relação entre progresso e mobilização total.

 

5

Àquele que buscar compreender a palavra progresso em seu timbre cambiante, de pronto, tornar-se-á evidente que, nos tempos em que foram publicamente executados como criaturas diabólicas, sob torturas horríveis, um Ravaillac16 ou ainda um Damiens,17 o assassinato político de uma personalidade principesca tinha de ferir uma camada [do espírito]18 mais poderosa, mais profundamente arraigada nas crenças do que aquela característica do século que veio logo após a execução de Luis XVI. Ele perceberá que, na hierarquia do progresso, o príncipe pertence a um gênero humano que absolutamente não desfruta de particular popularidade.

Coloquemo-nos em uma grotesca situação imaginária: um chefe de propaganda de alto escalão tem de preparar a campanha publicitária para uma guerra moderna e lhe estão à disposição dois meios para desencadear a primeira onda de excitação, a saber: o assassinato de Sarajevo19 ou a violação da neutralidade belga.20 Não pode haver dúvida alguma quanto ao meio que lhe pareceria prometer o maior efeito. Dentro da motivação externa da guerra mundial, qualquer que seja a impressão que ela eventualmente transmita, mora um significado simbólico, na medida em que, entre os criminosos de Sarajevo e a sua vítima, o herdeiro da coroa de Habsburgo, o princípio nacional entra em choque com o dinástico - o moderno "direito de autodeterminação dos povos" entra em choque com o princípio de legitimidade, restaurado a grandes custas no congresso de Viena, por meio de uma diplomacia de estilo antigo.

Certamente é bom ser extemporâneo21 no sentido mais legítimo e exercer uma forte influência sobre um espírito que quer conservar o legado da tradição. Mas, para isso, a crença é o pressuposto. Pode ser dito, porém, da ideologia das potências centrais,22 que ela não foi contemporânea, nem extemporânea, nem superior à sua época. Ela era, ao mesmo tempo, contemporânea e extemporânea, e o resultado não poderia ser senão um misto de falso romantismo e de liberalismo deficiente. Assim, não pode escapar ao observador uma predileção pelo emprego da antiquada indumentária, por um estilo romântico-tardio, em particular, o da ópera de Wagner. Palavras como aquelas da lealdade dos Nibelungos,23 expectativas como as depositadas sobre o sucesso da proclamação da guerra santa do Islã, tudo isso pertence a tal ideologia. Bem entendido: exatamente em enganos desse tipo insinua-se a relação deficitária da camada social dirigente,24 tanto com a massa, quanto com poderes mais profundos.

Assim, também a genial expressão que qualifica a Constituição belga de "tira de papel", involuntariamente famosa, sofre por ter sido exprimida com um atraso de 150 anos, e, deveras, ela surgiu de uma atitude que tinha, talvez, abrangido o romantismo do caráter prussiano, mas que não era, em seu âmago, prussiana. Frederico, o Grande, teria tido permissão de falar assim e de, conforme a mentalidade do esclarecimento absolutista, divertir-se com cartas constitucionais escritas em pergaminhos amarelados, mas Bethmann-Hollweg tinha de saber que, hoje em dia, um pedaço de papel como aquele em que está inscrita uma constituição significa algo semelhante a uma hóstia consagrada dentro do mundo católico e que, embora rasgar contratos possa combinar bem com o absolutismo, a força do liberalismo, porém, reside em interpretá-los. Se alguém estudar a correspondência diplomática que precedeu a entrada da América na guerra, nela encontrará um princípio de "liberdade dos mares"25 que oferece um bom exemplo da maneira como, num momento como esse, deve ser emprestado ao próprio interesse particular o valor de um postulado humanitário, de uma questão universal, que toca toda a humanidade.26 A socialdemocracia alemã, um dos sustentáculos-mestres do progresso na Alemanha, havia compreendido a parte dialética de sua tarefa, ao igualar o sentido da guerra com a destruição do regime czarista, antiprogressista.

Mas isso não quer dizer nada ante as possibilidades que estavam à disposição do Ocidente para a mobilização das massas. Quem poderia polemizar que a "civilisation" está mais intimamente vinculada ao progresso do que a "Kultur",27 contestar que, nas grandes cidades, ela é capaz de falar sua linguagem natural e sabe manipular meios e conceitos que, confrontados com a cultura, mostram-se sem qualquer relação ou mesmo hostis a ela? A cultura não pode ser explorada de modo propagandístico e lhe é mesmo estranha sua encenação nesse sentido - mas, com efeito, pouco importa que fiquemos indiferentes ou até tristes quando vemos, em uma tiragem milionária, as cabeças de grandes espíritos alemães inscritas sobre o papel de selos postais e de notas bancárias.

Todavia, nós estamos muito longe de querer lastimar o inevitável. Apenas constatamos que, nessa luta, foi sempre recusado à Alemanha corresponder, de um modo que lhe fosse convincente, ao espírito da época, como quer que ele tenha vindo a se constituir. Igualmente, foi-lhe sempre recusado impor à sua própria consciência e à do mundo a validade de um princípio superior a esse espírito. Ao contrário, nós observamos tal espírito buscar, tanto em registros românticos e idealistas, quanto em registros racionalistas e materialistas, aqueles símbolos e imagens que o homem de luta anseia alinhavar à sua bandeira. Mas a validade que mora nesses espaços, que pertencem, parte ao passado, parte a uma esfera da vida estranha ao gênio alemão, não basta para assegurar ao engajamento do homem e da máquina o último grau de fé que a terrível batalha contra um mundo exige.

Tanto mais, portanto, nós temos de nos esforçar em saber por que, a despeito de tudo isso, permaneceu intacto o elemento primordial, a força originária do povo. Vemos com admiração como, no começo dessa cruzada da razão, à qual foram conclamados os povos do mundo sob o encanto de uma dogmática tão clara, tão lógica, a juventude alemã levanta o clamor pelas armas - juventude tão ardente, tão entusiasmada, tão desejosa da morte, como dificilmente houve outra em nossa história.

Se alguém perguntasse a algum desses jovens por que ele se deslocava para o campo de batalha, certamente poderia contar com uma resposta pouco clara. Dificilmente alguém ouviria que se tratava da luta contra a barbárie e contra a reação ou da luta pela civilização, pela libertação da Bélgica e pela liberdade dos mares - mas, talvez, alguém escutaria a resposta "pela Alemanha", aquela palavra com a qual os regimentos de voluntários avançaram ao ataque.

E, com efeito, essa brasa embolorada, que queimou por uma Alemanha inexplicável e invisível, bastou para um esforço que fez os povos estremecerem até a medula. Como teria sido, então, se essa brasa já possuísse direção, consciência e configuração [histórica].28

 

6

A mobilização total, como medida do pensamento organiza-cional, é apenas um indício daquela mobilização mais alta, que a época realiza em nós. Dentro desta mobilização mora uma legalidade própria, com a qual a lei humana, se deve ser efetiva, tem de correr paralelamente.

Nada pode confirmar de melhor maneira esta tese do que o fato de que, durante a guerra, é possível o surgimento de forças que são voltadas contra a guerra ela mesma. Porém, essas forças são mais aparentadas dos poderes da guerra do que pode parecer. Quando começa a pôr em movimento, ao invés dos exércitos da guerra, as massas da guerra civil, a mobilização total muda de domínio, mas não de sentido. Doravante, a ação irrompe em espaços que o mando de mobilização não é capaz de atingir. É como se as forças que não puderam ser captadas para a guerra também exigissem, agora, sua participação no engajamento sangrento. Destarte, quanto mais uniforme e profundamente a guerra entende reivindicar para si, de antemão, a soma de todas as forças, tanto mais segura e obstinadamente ela estará em sua marcha.

Nós vimos que, na Alemanha, o espírito do progresso pôde fazer-se móvel de maneira apenas imperfeita. Na França, por outro lado, esse processo se dispunha de maneira muito mais favorável, o que nós reconhecemos, entre milhares de outros exemplos, naquele de Barbusse.29 Em si um declarado opositor da guerra, ele viu, porém, na imediata afirmação desta guerra, a única possibilidade de corresponder às suas idéias, uma vez que, em sua consciência, ela se refletia como uma luta do progresso, da civilização, da humanidade,30 sim, da própria paz contra um elemento resistente a tudo isso. "A guerra tem de ser assassinada no ventre da Alemanha."

Ainda que essa dialética possa se comportar de modo complexo, seu resultado é de natureza inelutável. Um homem que parece possuir o mínimo grau imaginável de inclinação para a guerra vê-se, todavia, fora de condições de recusar o fuzil que o Estado lhe oferece, porque não está dada à sua consciência a possibilidade de um caminho alternativo. Nós podemos observá-lo, enquanto ele, moendo os miolos, monta guarda no ermo infinito das trincheiras e como ele, quando é chegada a hora, tal como qualquer outro combatente, abandona essas trincheiras para avançar em ataque através da terrível barreira de artilharia da batalha de armamento pesado. Mas, enfim, o que há de admirável nisso? Barbusse é um guerreiro como qualquer outro, um guerreiro da humanidade,31 que pode dispensar artilharias de barragem, ataques de gás ou mesmo a guilhotina, como a igreja cristã podia dispensar a espada do mundo. Obviamente, um Barbusse tinha de viver na França para poder ser mobilizado nessa medida.

Os Barbusses alemães acharam à sua frente uma situação mais difícil. Houve apenas algumas raras inteligências que, desde o primeiro momento, colocaram-se em campo neutro e resolveram-se por uma aberta sabotagem da condução da guerra. A imensa maioria buscou enfileirar-se nos quadros da concentração militar. O exemplo da socialdemocracia alemã já foi citado. Porém, nós desconsideramos o fato de que ela, apesar de sua dogmática internacionalista, era constituída de trabalhadores alemães e, portanto, também podia ser movida pelo heroísmo. Mas não, mesmo em sua ideologia, ela caminhou para uma revisão que, mais tarde, foi acusada de "traição do marxismo". Como esse caminho se consumou em suas particularidades, isso é algo que pode ser inferido dos discursos do período da crise proferidos pelo chefe socialdemocrata e deputado Ludwig Frank, que, em setembro de 1914, em Noissoncourt, caiu em combate alvejado na cabeça, como um quadragenário voluntário de guerra. "Nós, companheiros sem pátria, sabemos, porém, que, apesar de filhos ilegítimos, ainda somos filhos da Alemanha e que temos de lutar pela pátria contra a reação. Portanto, se uma guerra eclodir, então também os soldados socialdemocratas irão cumprir conscienciosamente com a sua obrigação" (29 de agosto de 1914). Nessa frase esclarecedora já residem ocultas, tal como em uma semente, as configurações da guerra e da revolução que o destino mantém de prontidão.

Para aquele que deseja estudar essa dialética em suas singularidades, as séries de publicações de guerra dos jornais e revistas progressistas oferecem uma abundância em material menor. Assim: Maximilian Harden, o editor do Zukunft, talvez o mais conhecido dos jornalistas do período wilhelmiano, começou a alinhar sua atividade de publicista com as metas do Estado Maior. Apenas por interesse nos sintomas, seja observado que ele soube representar um papel conforme ao radicalismo da guerra tão bem quanto, mais tarde, encenou o radicalismo da revolução. Assim: o Simplizissismus , um órgão que, com a arma da espirituosidade niilista, havia criado um clima tanto contra todas as coalizões, como contra o exército, agora assumiu uma atitude chauvinista. Pode-se, ademais, observar que a qualidade dessa folha diminui à medida que o elemento patriótico nela aumenta - em que ela, portanto, abandona o campo de onde provém sua força.

Talvez, esse dilema que aqui vigora se torne o mais claramente manifesto na personalidade de Rathenau.32 Ele confere um valor trágico a uma configuração [histórica]33 à qual ele se esforça por fazer justiça. Como é possível que Rathenau, que foi mobilizado em medida significativa, que desempenhou seu papel na organização da grande armação e que, ainda um pouco antes da derrota, havia se ocupado com o pensamento do "levante das massas", pudesse, logo depois, formular aquela conhecida sentença, segundo a qual a história do mundo teria perdido seu sentido se os representantes do Reich, vitoriosos, houvessem marchado através do portão de Bradenburg, para dentro da capital? Aqui, torna-se muito claro como uma mobilização se submete às aptidões técnicas de um homem e, todavia, não pode penetrar em seu âmago.

 

7

O júbilo com o qual o exército secreto e o Estado Maior secreto, ambos cativos do progresso na Alemanha, saudaram a derrota, enquanto os últimos guerreiros ainda jaziam no campo inimigo,34 assemelha-se ao júbilo por uma batalha ganha. Esse júbilo era o melhor aliado do exército ocidental, que logo deveria transpor o Reno,35 era seu cavalo de Tróia. No protesto diminuto com que as autoridades existentes apressadamente cederam suas posições, expressava-se o reconhecimento do novo espírito. Entre os jogadores de um time e os do time contrário, não havia mais qualquer diferença essencial.

Esta é a razão por que o golpe de Estado se realizou na Alemanha em formas relativamente inofensivas. Assim, os ministros socialdemocratas do Império, ainda durante os dias decisivos, jogavam com a idéia de manter a coroa. Que outra coisa poderia significar isso, senão uma discussão de fachada? Já havia muito o edifício estava tão carregado com as hipotecas do progresso, que não era mais possível vigorar qualquer dúvida sobre a real proporção acionária entre os proprietários do imóvel.

Mas há ainda uma outra razão, além dessa, que a própria autoridade preparou, pela qual o golpe de Estado não pôde se consumar, na Alemanha, de modo tão febril quanto, por exemplo, na Rússia. Nós vimos que uma grande parte das forças progressistas já tinha sido requerida pela condução da guerra. A medida de movimento que lá fora esgotada não podia mais ser dispensada para a luta interna. Para expressá-lo de modo pessoal: há uma diferença entre a subida ao poder de antigos ministros e a subida ao poder de uma aristocracia revolucionária que se formou no exílio siberiano.

A Alemanha perdeu a guerra ao conquistar uma participação mais forte no espaço ocidental, ao ganhar a civilização, a liberdade e a paz no sentido de Barbusse. Mas como seria possível esperar um outro resultado, já que a Alemanha confirmara a intenção de tomar parte nesses valores e, a preço nenhum, haveria ousado conduzir uma luta fora daquele "muro que cinge a Europa"? Isso teria pressuposto uma revelação mais profunda dos próprios valores, outras idéias e outros aliados. A sondagem da substância teria podido acontecer com e através do otimismo progressista, tal como o processo que se insinua na Rússia.

 

8

Quando nós consideramos o mundo tal como ele proveio da catástrofe - que unidade de efeito, que rigor da lógica histórica! Na realidade, se houvessem sido recolhidas, em um pequeno espaço, todas as formações espirituais e corporais de natureza não civilizatória que ultrapassam o fim do século XIX e alcançam o nosso tempo e, com o uso de todas as peças de artilharia do mundo, houvesse sido aberto fogo contra elas, nem mesmo assim o sucesso do progresso poderia parecer mais inequívoco do que foi.

O velho carrilhão do Kremlin está adaptado à melodia da Internacional. Em Constantinopla, os alunos das escolas soletram a escrita latina em vez dos velhos arabescos do Alcorão. Em Nápoles e Palermo, os policiais fascistas coordenam o tumulto da vida meridional segundo os princípios fundamentais do moderno código de trânsito. Nos países mais longínquos do mundo e ainda quase lendários, são inaugurados prédios que abrigam parlamentos. Cresce ininterruptamente o caráter abstrato e, portanto, também a crueldade de todas as relações humanas. O patrio-tismo é desencadeado através de um nacionalismo novo, fortemente impregnado de elementos de apelo à consciência. No fascismo, no bolchevismo, no americanismo, no sionismo, nos movimentos pela independência dos países de povos de cor, o progresso prepara avanços que, até então, seriam considerados impensáveis; ele se transforma como que para continuar seu movimento sobre um plano muito mais simples, segundo um círculo dialético artificial. Ele começa a submeter a si os povos em formas que já não são mais muito distintas das de um regime absoluto, para não falar da pequeníssima medida de liberdade e conforto. Em muitos locais a máscara humanitária36 já está por cair e, em seu lugar, surge um fetichismo da máquina, meio grotesco, meio bárbaro, um culto ingênuo da técnica - justamente em lugares onde não estão disponíveis de modo imediato, produtivo, as energias dinâmicas de cuja destruidora marcha triunfal as peças de artilharia de longa distância e as esquadras militares armadas com bombas são apenas a expressão bélica. Ao mesmo tempo cresce o valor das massas. A medida de assentimento, a medida de publicidade,37 torna-se o fator decisivo da política. Em particular o socialismo e o materialismo são as duas grandes moendas entre as quais o progresso tritura o resto do velho mundo e, por fim, a si mesmo. Por mais de um século, a "direita" e a "esquerda", como que em um jogo de bola, lançaram de lá para cá as massas deslumbradas pela ilusão de ótica do direito ao voto. Sempre pareceu que uma das partes acreditava poder responder de maneira diferente às reivindicações da outra parte. Mas hoje, em todos os países, revela-se, de modo sempre mais evidente, o fato de que a identidade deles e mesmo o sonho de liberdade desvanecem como que espremidos entre as garras de aço de um alicate. É um espetáculo grandioso e terrível ver os movimentos das massas, que se configuram de maneira cada vez mais uniforme e sobre as quais o espírito do mundo lança a sua rede de arrasto. Cada um desses movimentos contribui para uma compreensão mais aguda e mais impiedosa: aqui atuam modos de coação que são mais fortes que a tortura, coações que atuam tão fortemente que o homem as saúda com júbilo. Por trás de toda solução salvadora em que esteja desenhado o símbolo da felicidade, espreitam a dor e a morte. Bem-aventurado quem entra armado nesses espaços.

 

9

Hoje nós já vemos, através das fendas e das rachaduras da torre de Babel, um mundo todo gelado, cuja visão faz estremecer mesmo o coração mais corajoso. Em breve, o tempo do progresso nos parecerá enigmático como os segredos de uma dinastia egípcia. Mas, naquela época, o mundo comemorou cada um dos seus triunfos, que emprestavam ao vencedor, por um instante, a centelha da eternidade. Com punhos demasiado violentos, mais ameaçadores que Hanibal, aqueles exércitos, cuja imagem se perde no tempo, haviam batido nos portões das grandes cidades e dos estreitos fortificados do mundo.38

No fundo de sua cratera, essa guerra possui um sentido que nenhuma técnica de cálculo prognóstico é capaz de dominar. Esse sentido foi intuído pelo júbilo dos voluntários, no qual a voz do demônio alemão veio a irromper violentamente e no qual o fastio quanto aos velhos valores aliou-se à inconsciente ânsia por uma vida nova. Quem poderia pensar que esses filhos de uma geração39 materialista poderiam saudar com tamanho ardor a morte? Assim, apenas se anuncia uma vida que é rica em abundância e que não conhece a parcimônia das gentes mendicantes. E tal como o resultado de uma vida levada de modo sincero não é senão o caráter autêntico, profundo, assim também o resultado dessa guerra não pode ser para nós senão o ganho de uma Alemanha mais profunda. Isso é confirmado pela inquietação que é marca da nova geração e que nenhuma idéia desse mundo e nenhuma imagem do passado pode apaziguar. Aqui vigora uma anarquia frutífera que surgiu dos elementos da terra e do fogo, e na qual se oculta o gérmen de uma nova dominação. Aqui se insinua uma nova armação, que se esforça por forjar as suas armas a partir de um metal mais puro, mais duro, à prova de tudo que possa oferecer-lhe resistência.

O alemão conduziu a guerra com a ambição, demasiado barata para ele, de ser um bom europeu. Porém, uma vez que a Europa guerreou contra a Europa, quem poderia, senão a Europa, ser o vencedor? Entretanto, essa Europa, cujas superfícies ganharam, doravante, uma extensão planetária, tornou-se muito delgada, quase só verniz - ao seu ganho espacial corresponde uma perda em força persuasiva. Novos poderes emanarão dela.

Mais no fundo, abaixo dos domínios onde a dialética das metas de guerra tem sua importância e significado, o alemão se depara com um poder mais forte: ele se depara consigo mesmo. Assim, essa guerra foi para ele, ao mesmo tempo e sobretudo, o meio de realizar efetivamente a si mesmo. E, portanto, a nova armação, na qual nós estamos compreendidos desde muito tempo, tem de ser uma mobilização total do alemão - e nada além disso.

 

 

Recebido em 10 de outubro de 2002.
Aprovado em 12 de janeiro de 2002.

 

 

Tradução e notas de Vicente Sampaio*
E-mail: vasampaio@globo.com

* Mestrando em Filosofia, Unicamp.
1 Este ensaio, cujo título em alemão é Die Totale Mobilmachung, foi publicado pela primeira vez em 1930, em uma obra coletiva editada sob a direção do autor, Krieg und Krieger (Guerra e guerreiros). A presente tradução se baseia no texto que consta do tomo V da edição das obras completas: Jünger, Ernst: Werke, Ernst Klett Verlag, Sttugart, 1960.
2 O substantivo alemão "Schicht" significa, de modo geral, "camada, estrato", sendo usualmente aplicado para referir-se a classes sociais ou períodos geológicos. Mesmo considerando todas as passagens em que a palavra reincide no texto, não é possível definir com segurança absoluta seu complemento nominal, isto é, do que é essa camada. Com o uso desse termo, Jünger parece referir-se a uma camada originária, primária, da vida ou do espírito - sentido que será explorado na seqüência do texto com a metáfora do vulcão. Dado o matiz marcadamente nietzscheano do texto, não é mesmo cabível uma distinção precisa entre vida e espírito. Todavia, como o conceito de vida não é tratado de maneira direta no texto, ao passo que o do espírito, sim, optamos por traduzir "Schicht" por "camada [do espírito]", de modo a indicar com os colchetes nossa opção interpretativa.
3 Traduzimos univocamente o alemão "Gestalt"por "configuração", pois esse termo sempre se refere, implicitamente, a configurações de força no sentido nietzscheano. A importância do termo na obra de Jünger pode ser constatada, por exemplo, na leitura de seu célebre Der Arbeiter (O trabalhador), obra que já traz a palavra "Gestalt" em seu subtítulo: Herrschaft und Gestalt (Dominação e configuração). Neste livro, há um capítulo especialmente dedicado ao conceito de Gestalt, cujo título já apresenta um primeiro esclarecimento a seu respeito: Gestalt als ein Ganzes, das mehr als die Summe seiner Teile umfasst (Configuração como um todo que abrange mais do que a soma de suas partes). Heidegger oferece uma aguda discussão do termo, de modo a identificar suas origens nietzscheanas e metafísicas, em Zur Seinsfrage (Sobre a questão do ser), in Wegmarken, Gesamtausgabe 9, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1976, pp. 394-398. Em certos momentos, quando o contexto pareceu exigi-lo, traduzimos "Gestalt" por "configuração [histórica]", indicando com os colchetes a nossa liberdade interpretativa.
4 Hamann, Johann Georg (1730-1788), o "Mago do Norte", pensador alemão que opôs a Kant um pensamento fortemente marcado pelo misticismo; Goethe e Herder o reconhecem na origem do movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto).
5 "Entusiasmo" = "Begeisterung". A palavra "Begeisterung" é formada a partir de "Geist". Assim, Jünger parece apontar para o perigo por que passa a aristocracia quando, através do entusiasmo das massas, é estendida ao povo uma participação essencial na condução do espírito.
6 "Armação" = "Rüstung". A palavra "Rüstung" é de grande importância neste texto, porque consiste no fenômeno mais imediatamente perceptível da mobilização total. Traduzimo-la quase sempre por "armação". Às vezes, por motivos de clareza, traduzimo-la por "armação bélica". Preferimos o termo "armação" a "armamento", porque apenas o primeiro mantém a ambivalência que há no original. Com efeito, "Rüstung" tem três significados: (a) armadura de corpo (por exemplo, a armadura de um cavaleiro medieval); (b) (das Rüsten) conjunto de medidas e de meios empregados no processo de armação militar; (c) (das Gerüst): (c1) suporte, andaime, armação (no sentido de estrutura de apoio em uma construção); (c2) (sentido abstrato) estrutura fundamental, argumento fundamental de uma doutrina, de um raciocínio, de um drama. Os sentidos (b) e (c2) estão presentes no uso que Jünger faz do termo e podem ser resgatados pelo português "armação". Resumindo, "Rüstung" quer dizer, imediatamente, "armação" no sentido bélico, mas a palavra ressoa, num segundo plano, o sentido de "armação" como estrutura do mundo sob processo de mobilização total.
7 Hindenburg, Paul von Beneckendorff und von (1847-1934). Alto militar alemão, chegou ao posto de marechal. Em 1914, venceu os russos em Tannenberg. Em 1916, tornou-se chefe do Estado-Maior. Dirigiu, juntamente com Ludendorff, a estratégia alemã até o fim da guerra. Presidente da República de Weimar em 1925, reeleito em 1932, nomeou Hitler chanceler em 1933.
Ludendorff, Erich (1865-1937). Alto militar alemão, chegou ao posto de general. Chefe do Estado-Maior de Hindenburg na frente russa, em 1914 e, depois, seu adjunto no comando supremo (1916 e 1918). Dirigiu a estratégia alemã de 1917-1918. O "programa Hindenburg", de 1916, pautava-se na "idéia fundamental do serviço universal obrigatório" e, nas palavras de Ludendorff, visava "o engajamento de todo o povo no serviço da economia de guerra".
8 Conceito da mecânica transferido para a política.
9 Scharnhorst, Gerhard von (1755-1813). General prussiano que, entre 1807 e 1813, reorganizou com A. von Gneisenau o exército de Frederico Guilherme III.
10 Cf. nota 2.
11 Cf. nota 2.
12 A Batalha de Marnes aconteceu em setembro de 1914. Joseph Joffre, chefe militar francês dos exércitos do Norte e do Nordeste, comandou um conjunto de manobras e de combates vitoriosos que pararam a invasão alemã e forçaram a retirada das tropas de Gersdorff Molkte, chefe do Estado-Maior alemão de 1906-1914.
13 Metáfora geológica, que qualifica a América como um continente jovem.
14 Em alemão, pode-se fazer referência a uma derrota catastrófica por alusão metonímica à célebre batalha de Canas (Apúlia, Itália), em 216 a.C., quando Hanibal destruiu totalmente um exército romano.
15 Schlieffens, Alfred von (1833-1913). Marechal alemão, chefe do Estado-Maior de 1891 a 1906, elaborou e deu o seu nome ao plano de invasão da França empreendido por von Molkte em 1914.
16 Ravaillac, François (1578-1610). Francês, foi primeiramente um criado e, depois, tornou-se frade converso. Assassino de Henrique IV, morreu esquartejado.
17 Damiens, Robert François (1715-1757). Francês, criado que golpeou Luis XV com um punhal e foi esquartejado.
18 Cf. nota 2.
19 Assassinato de Franz Ferdinand von Habsbourg, arquiduque e herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, cometido em 28 de junho de 1914. Urdido por nacio-nalistas sérvios e perpetrado por um jovem bósnio, o crime é considerado o fato que iniciou os conflitos que vieram a ocasionar a Primeira Guerra Mundial.
20 Invasão alemã da Bélgica em fim de julho e começo de agosto de 1914, fato que rompeu o tratado entre as potências européias que garantia a neutralidade da Bélgica e que causou a entrada da Inglaterra na guerra.
21 Alusão à obra de Nietzsche.
22 Na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha e a Áustria eram chamadas de potências centrais (Mittelmächte), porque estavam rodeadas pelos Estados aliados.
23 Alusão à promessa de Kriemhild, esposa de Siegfried, de vingar o assassinato perpetrado contra ele pelos Burgonden.
24 "Camada social dirigente" = "führende Schicht". Aqui "Schicht" está sendo usado no sentido de "camada social", no caso, a antiga classe dirigente alemã. Mas há uma ambivalência nesse uso, pois nele ressoa o sentido de "Schicht" anteriormente explorado no texto, a saber, o de "camada do espírito" (cf. nota 2). Explicitada a ambivalência, poderíamos reescrever a passagem assim "[...] insinua-se a relação deficitária da camada do espírito própria da classe dirigente, relação deficitária tanto com a massa, quanto com os poderes mais profundos".
25 A decisão alemã de afundar todo navio neutro que se dirigisse a portos britânicos, a chamada guerra submarina, decretada em fevereiro de 1915, ameaçava o comércio norte-americano com a Europa dos Aliados e foi considerada a causa imediata da entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Nas fracassadas negociações diplomáticas entre os EUA e a Alemanha que antecederam a adesão norte-americana aos Aliados, o presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson alegava que a medida alemã feria o princípio de liberdade dos mares. Ao fim da guerra, esse princípio, que constituía o segundo item da proposta de armistício dos Aliados, foi revogado a pedido da Inglaterra.
26 "humanitário" = "humanitär"; "humanidade" = "Menschheit". Esta passagem opera uma sutil distinção entre o caráter humanitário (humanitär) e o caráter humano (menschlich) dos discursos humanistas. Do ponto de vista abstrato, os discursos humanitários são universais, mas do ponto de vista propriamente humano, eles mobilizam todos os homens, toda humanidade, em torno de interesses particulares.
27 Vários acontecimentos históricos fundamentam essa oposição entre civilisation e Kultur, dentre eles a invasão napoleônica da Alemanha. Outro capítulo histórico importante que dá base a essa oposição é a Kulturkampf (literalmente "luta da cultura", traduzida pelos franceses como "combat pour la civilisation"). Trata-se de uma luta empreendida por Bismarck, entre 1871 e 1878, contra os católicos alemães, a fim de enfraquecer o Partido do Centro, acusado de favorecer o particularismo dos Estados. Essa luta exprimiu-se notadamente em leis de características anticlericais e josefinas. O josefinismo consistiu em uma política inspirada em Joseph II, imperador germânico e co-regente do Estado dos Habsburgos entre 1765-1790. "Déspota esclarecido", ele pretendeu racionalizar e modernizar o governo de seus Estados e aboliu a servidão, além de manter a Igreja sob vigiado controle. Do ponto de vista teórico, essa oposição tem formulação lapidar e muito influente em Ferdinand Tönnies, um dos fundadores da sociologia alemã. Em sua obra-prima Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e sociedade), de 1887, escreve o sociólogo: "Esta é a situação da civilização societária (gesellschaftliche Zivilisation), na qual a paz e o comércio são conservados por [uma] convenção e por [um] temor recíproco que se expressa nessa convenção. Situação que o Estado protege e à qual dá forma através da legislação e da política. Situação, enfim, que ciência e opinião pública, por um lado, buscam conceber como necessária e eterna e, por outro, glorificam como progresso para a perfeição. Porém, nos modos de vida e nas ordens comunitárias, ao contrário, o caráter de povo (Volkstum) e sua cultura (Kultur) se conservam. Portanto, o caráter de Estado (Staatstum) (a cujo conceito pode estar resumida a situação societária) contrapõe-se a esses modos e ordens, o que traz consigo, tanto um ódio que é, todavia, freqüentemente velado e, mais freqüentemente, dissimulado em hipocrisia, quanto um sentido de desprezo. Nessa medida, o caráter de Estado está desprendido do caráter de povo e lhe é estranho. Assim, também na vida social e histórica da humanidade (Menschheit), vontade de essência e vontade de arbítrio (Kürwille) tanto estão na mais profunda relação, quanto estão uma ao lado da outra e contra a outra". Cf. Tönnies, Ferdinand: Gesellschaft und Gemeinschaft, Wissenschaftliche Buchgesselschaft, Darmstadt, 1991, pp. 208-9.
28 Cf. nota 3.
29 Barbusse, Henri (1873-1935), pintor francês, foi voluntário de guerra, ainda que pacifista. Obteve, em 1917, o prêmio Goncourt, com Le Feu, primeira pintura não convencional da vida dos combatentes. Com Romain Rolland, fundou o grupo Clarté e, desde 1920, militou pelo comunismo. Morreu na Rússia soviética.
30 "Humanidade" traduz aqui "Humanität" e não o sinônimo "Menschheit". O uso do termo latino realça o caráter abstrato, moral, de todo discurso humanitário (humanitär). Cf. nota 26.
31 "Humanidade" = "Humanität". Cf. nota anterior.
32 Rathenau, Walther (1867-1922) ocupou-se da organização da economia de guerra da Alemanha a partir de 1915. Como ministro de assuntos estrangeiros da República de Weimar, ele assinou, em 1922, o Tratado de Rapallo e, pouco depois, foi assassinado por dois militantes nacionalistas.
33 Cf. nota 3.
34 Assinada secretamente na madrugada de 11 de fevereiro de 1818, a rendição alemã foi efetivada sem um prévio cessar fogo, quando os exércitos ainda se encontravam em batalha.
35 O vale do Reno foi invadido e ocupado pelos Aliados logo após o armistício.
36 "Humanitário" = "humanitär". Cf. nota 26.
37 "Publicidade" = "Öffentlichkeit". O substantivo alemão "Öffentenlichkeit" significa, ao mesmo tempo, (1) o público (o conjunto dos homens considerados na esfera pública de sua vida) e (2) o caráter de público de algo (a publici-dade, em sentido literal); o sentido do termo é, no presente contexto, intencionalmente ambivalente, querendo dizer a expressão "medida de publicidade" algo como "medida de aceitação no espaço público definido pelos meios de comunicação". Öffentlichkei, porém, não se confunde, ao menos diretamente, com "publicidade" no sentido de "marketing". Para esse sentido, o alemão reserva as palavras "Werbung, Marketing, Reklame, Propaganda, Publizität".
38 A comparação se refere ao fato de que, no antigo império egípcio, a guerra era total. Com a ordem de guerra, o faraó podia mobilizar "a terra toda" - conforme a célebre inscrição de uma peça arqueológica.
39 "Geração" = "Geschlecht". O substantivo "Geschlecht" é polissêmico. Aqui ele tanto pode significar (1) uma estirpe, uma família, uma descendência, como (2) uma geração, um certo grupo de pessoas que sucede outro grupo no correr do tempo. O tom algo profético do texto, particularmente realçado nesse último tópico, sugere que a nova geração é também, por assim dizer, uma nova estirpe. Jünger parece fazer alusão à chance histórica de fundar a raça dos além-homens. Sua análise do momento histórico do entre-guerras segue a intenção nietzscheana de encarar a história de um ponto de vista extra-valorativo no que se refere aos valores supremos de até então. Através de um niilismo ativo, abrir-se-ia a possibilidade de uma revaloração de todos os valores. Mas por que a superação tinha de ter o caráter do alemão? É curioso notar que esse tópico, que, sem dúvida, irá encontrar ressonân-cias na ideologia nazista, foi retirado do texto da última edição das Obras Coligidas, cuja edição esteve sob inspeção do autor: Jünger, Ernst: Sämtliche Werke, v. 7: Betrachtungen über die Zeit, Klett-Cotta, Sttutgart, 1980. Uma avaliação serena e suficientemente ponderada a respeito do possível caráter nazista desse texto tem de provir de um estudo aprofundado da obra de Jünger. Como essa investigação vai bem além dos propósitos desta tradução, aqui apenas reproduzimos as palavras do próprio Jünger a respeito desse seu texto:
"Olhar retrospectivo - 23 de Agosto de 1980
Quase cinqüenta anos após o aparecimento deste escrito e, desde então, ocupado com outras questões, agora eu o revisei de modo definitivo. Revisei-o muitas vezes no correr das décadas, pois, com freqüência, ele foi reimpresso. As provas deviam livrar o núcleo substancial das circunstâncias acidentais.
Ao leitor imparcial não escapará que esse núcleo é válido, tanto para antes quanto para depois, e que, decerto, ele o permanecerá por longo tempo. A armação dos poderes do mundo ganhou medida planetária, medida à qual corresponde o seu potencial. Os Estados pequenos, como há pouco, por exemplo, a Etiópia, uma vez em situação difícil, também ameaçam com a mobilização total. O conceito entrou na política, tanto na sua polêmica, quanto na sua realidade. Todos se armam e todos repreendem os outros por fazê-lo. A armação é, ao mesmo tempo, tanto percebida como um círculo vicioso, quanto celebrada nas paradas militares.
Manifestamente, algo fundamental foi avistado naquela ocasião. Face a isso, a situação particular do entre-guerras torna-se secundária, em especial a de um jovem alemão que experimentara esforços mortíferos e passara pelo Tratado de Versailles. Isso não muda nada o seu significado histórico, para o qual permanece válida a primeira impressão" (p. 142).