SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número1Breve nota sobre Heidegger como leitor de Jünger índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002

 

RESENHAS

 

 

Franklin Leopoldo e Silva

Professor Titular do Departamento de Filosofia da USP

Endereço para correspondência

 

 

Juliano G. Pessanha, 1999: Sabedoria do nunca. São Paulo, Ateliê Editorial. ISBN: 85-85851-76-7

A ficção constitui uma modalidade crítica de negar o mundo porque nos obriga a reconhecê-lo pelo percurso das mediações do estranhamento; a poesia nos desperta da inércia semântica quando revoluciona as significações habituais e nos atira para fora do trato rotineiro com as palavras; a teoria mostra o ineditismo das coisas que sempre julgamos decifrar com segurança. São as três maneiras, entre muitas outras, pelas quais o texto nos atinge e nos inquieta, encaminhando-nos para o limite da expe- riência do mundo e de nós mesmos, ponto em que todas as respostas reais e possíveis se concentram numa pergunta que, de tão originária, é impossível de ser formulada objetivamente,

devido às limitações internas que constroem as passagens de um dizer a outro. A prosa limita a poesia e o ensaio limita a prosa: essas transições ao outro como forma de impedir que qualquer identidade se fixe e se constitua para sempre inventam o nunca acabado de cada escrita - o fim de uma é o começo de outra, e um outro começo que impede a continuidade do mesmo, de modo que há sempre um caminho e nunca um destino. É o paradoxo dessa viagem que nos faz aceitar a fatalidade da pergunta irrespondível: onde levam os caminhos que não levam a parte alguma? O que o ato de ler possui de dramático e angustiante revela-se depois da leitura, quando se abre diante de nós um vazio, que provém desse destino dissoluto, por ser a viagem a perda do caminho, e que já não podemos preencher com a expectativa das páginas por vir. É por isso que tentamos nos situar nesse vazio formulando uma pergunta, gestada, quase sempre à nossa revelia, no percurso de transformação que ocorreu como leitura.

Mas como essa transformação não inclui qualquer fixação de forma, também não aponta para qualquer direção: independência da palavra poética, transitividade da prosa, objetividade do ensaio e isso porque aponta para todas, como se o cultivo simultâneo de todos os perfis da palavra e o acolhimento de todas as suas doações fossem uma tentativa de atingir a pletora semântica, o desordenamento incluído na obra, isto é, na refiguração textual do universo.

E por tratar-se de uma outra figura e de uma nova forma de tecer o mundo com palavras, a nossa pergunta só pode brotar da mais profunda ingenuidade, da imprevidência e do despojamento em que o texto nos surpreendeu. A última coisa que se deve esperar dessa pergunta é a sua pertinência, que só poderia existir se nos sentíssemos confortáveis neste mundo que nos é apresentado, e então não seria necessário fazê-la. No caso deste Sabedoria do nunca, o leitor a formula porque deseja, tanto quanto o autor, passar do pseudônimo ao nome: adentrar a desordem constituída, nomeá-la nomeando-se, reconstruir a identidade por meio da heteronomia, atingir o cuidado de si no limiar da própria perda - para então assumir conscientemente a origem pela qual nunca se é responsável, o próprio nascimento, esse mistério das limitações internas ao nosso surgir para a existência. A pluralidade das formas do dizer expressa essas limitações, já que as passagens de um perfil a outro das palavras querem testemunhar as incompletudes que se sustentam umas às outras, para que a autonomia da palavra poética não venha a ser o isolamento da poesia; a transitividade da prosa não enseje a dependência da recepção; para que a suficiência do ensaio não leve o pensamento ao autismo conceitual. Três recusas: a cristalização da subjetividade, a banalização intersubjetiva e a instrumentalidade anônima da palavra. O fluxo transformador da expressão nos alerta que a experiência da palavra nunca se pode consolidar; é o dizer nômade que tem de assumir a palavra para que o exílio da voz provoque a sua ressonância. Esse múltiplo vocacionado a uma unidade inatingível é como uma sinergia incompleta, convergência sempre em vias de realização. Jamais a tentativa de suprir pela agregação do diverso a precariedade do dizer singular. Porque não se trata de reunir "gêneros" para complementar significações, mas de experimentar, na fusão alterativa da escrita, um horizonte de expressão que reitera a sua distância a cada esforço de aproximação. É como se nesse horizonte houvesse um ponto de intersignificação entre o sempre e o nunca, busca e desencontro, para o qual o pensamento fosse atraído, um ponto em que possivelmente a reflexão, com primida em si mesma, viesse a revelar-se como exclamação.

É essa espécie de tensão que sustenta a pergunta, provinda certamente do compromisso primitivo que inevitavelmente mantemos com as nossas formas pseudônimas de ser: o livro de Juliano Pessanha trata da passagem da inexistência à existência, o salto de uma rememoração pré-humana a um agora inaugural que faça surgir o sujeito? É claro que essa pergunta pressupõe a diferença entre a inexistência e o não-ser, concebendo a inexistência como o ser indeterminado, ainda não existencialmente configurado. Pois sabemos que o nascimento humano não é simplesmente o vir-a-ser, mas o advento da determinação existencial. Por isso podemos supor algo como um magma informe que a precederia, ao qual talvez se possa recuar se a memória for capaz de antepor-se a si mesma e pressentir esse estágio anterior a todas as formas de subjetivação.

No entanto, como a diferença entre ser e existir não é uma oposição, já que existir é o modo humano de ser, o exercício radical da memória, no esforço de atingir o tempo anterior à existência, faz com que esse tempo seja lembrado como um existir hesitante, algo como uma quase-realidade. É isso que o narrador do conto "Deslocamento" aponta na personagem Z: "Ainda que faltasse a Z um suporte mínimo para atribuições possíveis, ele sabia atravessar algumas horas humanas imitando o repertório das vozes e dos gestos (...). O problema é que, por mais ruidosa que fosse a sua voz ou exagerado o seu comportamento, ele era roído por um excesso de timidez imanente e Z imaginava que uma criatura humana real poderia descobrir sua inexistência" (pp. 32-33). Não se trata de lembrar do passado. A inexistência de Z é presente, mas o modo de referir-se a um presente que propriamente não é só pode consistir na rememoração ou no pressentimento. A questão crucial é que, quando falamos em lembrança ou rememoração, entendemos sempre que alguém lembra o que passou, estando esse alguém situado num ponto além daquele a que sua memória se refere. Mas essa temporalidade habitual não é adequada para compreendermos a situação de Z. Pois ele só pode falar de si como uma existência projetada e na qual já se inclui o seu próprio es-vair-se, o que é chamado de "excesso de irrealidade", e contraposto à plenitude de um deus, em quem se supõe que a existência e o ser coincidam em grau máximo, o que lhe permite "demorar-se em si mesmo e ali permanecer para sempre" (p. 33). Completamente diverso é o presente tênue de Z, debilmente afirmado no próprio processo de vir-a-não-ser, conseqüência do afastamento do deus doador de ser.

Poderíamos dizer que o que transparece nessa articulação desarticuladora do si-mesmo é a radicalização da noção heideggeriana de existência. Se ex-istência significa ser fora de si, lançado ou projetado no tempo, isso não diria respeito apenas aos modos internos do existir, mas à existência enquanto tal. Existir não significa projetar-se como existente, mas projetar a existência. É como se o fizéssemos de fora dela, portanto ainda não existindo. Nesse sentido a temporalidade da existência não comportaria apenas as dimensões do passado, presente e futuro articuladas dentro dela mesma, mas sobretudo a dimensão desse ainda-não-existente, que pesa sobre nós com o seu "excesso de irrealidade". A falta, entendida como falha temporal, desconstrói o ser do existente, antes mesmo que ele se constitua. "(...) já não sou abraçado pelo tempo e nada flui às minhas costas em direção a um homogêneo mais adiante..." (p. 60). Mas então seria de se supor também que o que falta não é uma parcela do existir, mas algo que, a partir da sua irrealidade mesma, possibilita e potencializa o paradoxo da percepção da inexistência.

O que motiva essa conjectura é uma certa insistência no tema do exílio, recorrente nos poemas. "(...) a única coisa que guardo é o saber deste exílio (...)" (p. 61). "(...) até que seque em mim o amor da narrativa e eu seja reconduzido ao grande exílio..." (p.64). "(...) dolorido e prolongado exílio da Ficção" (p. 94). "A explosão dos limites entregou-me ao exílio..." (p. 91). Inexistência, ausência, exílio: devemos atentar não para a sinonímia aparente, mas para a reelaboração das significações. O exílio pode ser um modo interno do existir, mas não é o que importa. Trata-se do existir em exílio, por isso essencialmente vinculado à inexistência, como um atributo que revela a coisa negando-a desde dentro. Pois o exílio não se segue à existência, nem se dá como sua possibilidade; o exílio precede a existência, como algo que determinaria o existente a inexistir. Assim, o saber de si é o saber-se exilado, desde sempre, saber-se nunca abrigado à sombra de qualquer positividade: "a única coisa que guardo é o saber deste exílio". O exílio, portanto, não é o fim do abrigo nem o começo da errância; é a condição permanente do viver na impermanência, a ausência eterna, o sempre nunca, o vazio guardado ou o nascimento adiado. O que nos faz supor que a passagem da inexistência à existência é uma trajetória intrinsecamente abortada.

Se não, como entender que a existência histórica seja uma "grande armadilha dos significados" e a infância "aquela artimanha, feita de emoções" que nos empurra para essa armadilha? (pp. 34-35). Se o que precede a história é uma artimanha e se a própria história é uma armadilha, a passagem de uma à outra só pode ser descrita como um esgotamento aprisionador que ocasiona a rarefação da existência. "Era bem possível que todos terminassem rarefeitos como ele!" (p. 35). Na verdade, era bem possível que todos pudessem vir a sentir o que são, pois as afirmações da subjetividade não passam, como mostra a personagem do bêbado, de tentativas desesperadas de simular que se tem uma alma. A riqueza episódica que parece preencher com história a existência é apenas um efeito causado pela agitação inútil de quem se debate em palavras, preso na "armadilha dos significados".

Isso nos alerta para o fato de que a aparente abundância do positivo é redundante e só pode matar qualquer expectativa de uma constituição criativa do si-mesmo. É provável que o homem que pudesse coincidir autenticamente com a existência não se encontre além do homem, como pensa va Nietzsche, mas aquém. Pois a travessia intramundana já é a queda original, para a qual não há redenção. O ensaio que encerra o livro a explica: "Irromper no mundo, ceder à tentação de existir (dimensão do presente `ek-stático' de Heidegger), é cair no interior das cenas que distribuem a cada um `nome', `realidade', `duração', etc. Essa entrada é um corte; uma cisão entre a estranheza do exílio (das Unheimliche), o espaço da noite onde ainda não sou e o dia claro da história (da casa) que me tece e diz meu nome." (p. 109). Como se caracteriza a abundância do positivo se trocamos o exílio pela promessa acolhedora da casa? "Regras", "ocupações", "bens", "comportamentos", o solo firme e bem delimitado de que podem nascer as "ações". As ilusões das raízes, dos trabalhos, dos dias e do nome; a sedução da identidade, o mundo habitável, aquele em que o não-ser seria impensável se não permanecesse a descon-fiança de que posso pensá-lo se posso falar dele. As epígrafes do ensaio nos mostram Kafka e Pessoa interferindo, a um tempo ousada e sorrateiramente, na construção dessa alucinação benfazeja pela qual desejamos nos sentir em casa. É necessário que nos demos a nós mesmos um mundo, uma casa; depois é necessário que nos esqueçamos de que o fizemos, para que possamos habitar as nossas representações sem associá-las à nossa própria precariedade. Seria demasiadamente angustiante termos sempre presente que a familiaridade é uma artimanha e que a naturalidade é apenas o desejo do estrangeiro.

Haveria muito o que dizer da forma como o autor trabalha a encenação intramundana da existência e da subjetividade. Ele o faz a partir de uma leitura de Heidegger e da Psicanálise que os solicita a irem além de si mesmos. Contentemo-nos em apontar algumas questões relativas à temporalidade, que não se localizam apenas no ensaio, mas estão presentes na narrativa e nas poesias que constituem as outras partes do livro. Creio que se pode falar de algo como uma transignificação das categorias temporais. Pois, na medida em que o sujeito fala de si referindo-se a um presente ainda não existencialmente constituído, apenas pressentido, há uma espécie de intersecção de cenários passado/presente, já que é preciso falar a partir do passado para pressentir o presente. Isso ocorre porque a constituição do presente, o processo pelo qual ele estaria em vias de ser, transforma-se no processo pelo qual ele vem-a-não-ser. Conseqüentemente, o futuro sofre uma anulação enquanto aquilo que está-por-ser, uma vez que na condição de exílio permanente não se pode pensar em ponto de chegada. Portanto o passado não tem a função de gerar o presente e este, por sua vez, não ocorre como ponto de transição para o futuro, porque ele é alheio a qualquer futuro que sobrevenha. Isso retira do modo humano de viver o tempo a positividade a partir da qual julgaríamos poder construir o nosso ser no tempo. Reconhecer qualquer esperança na temporalidade é encobrir o exílio. O transitório deve ser decididamente assumido como negativo. A duração é somente a necessária reposição da certeza do tempo a cada instante.

Essa descontinuidade parece conduzir ao paroxismo da solidão. Pois é a articulação dos instantes que cria no sujeito a expectativa de que reencontrará pelo menos a si mesmo, ainda que o mundo se esvazie. Mas quando esse reencontro se revela apenas o sonho provocado pela ilusão da direção do tempo, nada mais sustenta a esperança de que possamos, a cada vez, transpor a distância de nós a nós mesmos, de que possamos, proferindo um nome que ecoe no tempo, responder ao nosso próprio chamado. "Palmilharás este deserto de solidões incríveis, e sentirás saudades de morrer" (p. 85). Talvez a sabedoria esteja no reconhecimento dessa atomização do tempo, que faz de cada instante o prenúncio do nunca mais. Algo que a ortodoxia do pensamento sempre recusou enfrentar, optando pelo repouso de um encadeamento sucessivo em que a duração aparece como permanência e não como dissolução. Mas, e se a eternidade fosse a aparência do efêmero? E se o sempre fosse uma espécie de fenômeno do nunca?

Dentre as muitas leituras possíveis do livro de Juliano Pessanha, creio que podemos incluir essa, que encontra nos textos uma inversão interna das categorias temporais, o que procuramos caracterizar há pouco como transignificação. Nesse sentido, a sabedoria deixa de ser a conformação ao contexto mundano da subjetividade, seja projetando as modalidades possíveis de existir, seja reconhecendo a gênese de uma história do sujeito. Pois ambas as perspectivas aceitam o desdobrar do tempo antropológico e suas conseqüências, as adaptações intramundanas. O que está em questão são justamente todas essas figuras do pleno que a racionalidade convencional nos impõe. Vez por outra surgem de lugar algum esses seres inominados como Z ou K, que manifestam em relação àquelas figuras um grande cansaço, antes mesmo de experimentá-las. Esses estranhos estrangeiros nada têm a nos dizer sobre o mundo em que vivemos; eles nos revelam um pouco do mundo em que morremos.*

 

 

Endereço para coorespondência
E-mail: franklin@usp.br

Recebido em 15 de janeiro de 2002.
Aprovado em 27 de abril de 2002.

 

 

* Este texto é uma versão, ligeiramente ampliada, da resenha "O tempo e seus avessos" publicada na revista Rodapé, n. 1, pp. 127-131, 2001.