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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.2 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

Uma breve menção de Winnicott a Leonardo da Vinci*

 

A brief mention by Winnicott of Leonardo da Vinci

 

 

Rogerio LuzI

Espaço Winnicott - Estudos em Psicanálise e Cultura - Rio de Janeiro
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto assinala características e implicações teóricas presentes na referência crítica que faz Winnicott às interpretações psicanalíticas da obra e da vida de Leonardo da Vinci em termos de pulsão sexual, complexo de Édipo e sublimação. Tal referência supõe, ao contrário, o papel fundamental que desempenha para o autor, na compreensão da experiência de arte, a noção de elemento feminino puro que, anterior à constituição de uma área de jogo, encontra-se primariamente relacionado ao impulso criativo, ao olhar da mãe e ao sentimento de continuidade de ser, base para que se instaure uma identidade outra, capaz tanto de integrar processos de identificação como de retornar a estados informes.

Palavras-chave: Elemento feminino puro, Fonte da criatividade, Olhar materno, Identidade, Experiência de arte.


ABSTRACT

This text points to theoretical characteristics and implications present in the critical references that Winnicott makes to psychoanalytic interpretations of the work and life of Leonardo da Vinci in terms of sexual impulses, Oedipal Complex and sublimation. Such references suppose, on the contrary, the fundamental role that the author plays in the understanding of the experience of art, the notion of the pure feminine element that, before the constitution of an area of play, finds itself primarily related to the creative impulse, in the gaze of the mother and in the feeling of continuity of being, the basis for that which installs the identity of the other and is capable of integrating processes of identification and the return to unformed states.

Keywords: Pure feminine element, Source of creativity, Maternal gaze, Identity, Art experience.


 

 

Em seu conhecido trabalho Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, de 1910, é o caráter inacabado da maioria das obras do artista que intriga Freud e motiva-o a decifrar seu enigma pela via da interpretação, na linha do complexo de Édipo. Ele transcreve o relato que fez Leonardo de sua reminiscência:

Parece que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres: pois guardo como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios. (Freud 1997, p. 32)

Como se sabe, um equívoco de tradução para a língua alemã fez do milhafre italiano um abutre, símbolo da maternidade entre os antigos egípcios. Para estes, os abutres tinham apenas o sexo feminino e se reproduziam ao serem fecundados pelo vento. Freud utiliza tal simbolismo para demonstrar a natureza daquela lembrança arcaica, real ou imaginada. A ave, ao penetrar com a cauda a boca do menino, simboliza a felação e, mais profundamente, a mãe fálica, o falo materno. Há um famoso quadro do pintor - "Santana, a virgem e o menino" - que representaria o próprio Leonardo, sua mãe Catarina e a madrasta dele, primeira mulher legítima do pai. O contorno de um abutre, entrevisto no panejamento, pareceu a Freud confirmar sua hipótese.1

Leonardo estaria fixado à figura da mãe, objeto exclusivo de amor em seus primeiros quatro ou cinco anos de vida, já que o pai aparentemente os abandonara, partindo para Florença. Ainda segundo Freud, o artista, adulto e com fama firmada, ama a si próprio nos belos rapazes que atrai como discípulos, mas sublima, por meio do engenho e da arte, seus impulsos homossexuais. Lembra Freud que a androginia é característica de muitos deuses das antigas mitologias.2

Não importam aqui os dados históricos imprecisos que pare-ciam legitimar tal interpretação e a longa história do debate que suscitou. De qualquer modo, a lembrança de Leonardo e a confirmada incapacidade do artista em concluir seus trabalhos se transformaram em material de comparação com aquilo que Freud pôde observar em seus próprios pa-cientes. Estava em causa não tanto a objetividade dos acontecimentos que marcaram a infância de Leonardo, mas uma certa maneira de interpretar o conteúdo de recordações e o significado de condutas, para apontar neles aquilo que escondem ou disfarçam, por meio de conceitos articulados em proposições com pretensão à verdade.

Para Freud, a obra de Leonardo deve tornar-se legível a partir da fantasia que, inconscientemente, ela oculta. No exame das representações, a interpretação freudiana procura um sentido a ser desvelado. A obra é expressão do sujeito, ao mesmo tempo que mimetiza sua constelação psíquica. Seu sentido, pela via da interpretação, poderá, enfim, entrar na cadeia das significações discursivas. Se a psicanálise não pode dar conta, segundo Freud, da arte de Da Vinci e de seu singular talento, a atestação de sua tendência homossexual e a noção de sublimação dessa tendência ajudam, ao menos, a compreender o conflito que estrutura seu psiquismo, com base em sua história de vida e em características de suas obras.

Na linha de Freud, Melanie Klein explica-nos o processo de sublimação por meio do qual Leonardo não se tornou um neurótico ou um psicótico. Para ela, a situação primitiva que dava prazer não se fixou enquanto tal: foi transferida às tendências do eu. Leonardo sublimou o componente pulsional, preservando-o do recalque. Essas e outras considerações levam Klein a descrever a modalidade pela qual instala-se, em Leonardo, o processo de sublimação. Diz Klein:

(...) essa sublimação responde à fórmula de Freud: um sintoma histérico exprime freqüentemente uma fantasia sexual inconsciente, masculina, por um lado, e feminina por outro. Em Leonardo, o aspecto feminino exprime-se pela fantasia passiva da felação; a fantasia masculina parece-me presente em uma passagem dos cadernos de Leonardo, que Freud cita como uma espécie de profecia: "O grande pássaro alçará seu primeiro vôo do dorso de seu grande cisne; ele encherá o universo de estupor e todo escrito citará sua fama e ele garantirá a glória eterna ao ninho onde nasceu". Não se trata de obter da parte da mãe o reconhecimento de seus feitos genitais? (Klein 1968, p. 122)

Em Freud e em Klein, a explicação para a criatividade de Leonardo dá-se no âmbito da teoria das pulsões, sob o comando da fantasia como representação, que retorna à linguagem e ao reforço do ego na sublimação. Aspectos femininos e masculinos articulam-se na descrição e explicação desse processo.

Por meio da interpretação, o pensamento de Freud e Klein parece garantir a homogeneidade entre lembrança infantil, fantasia sexual, obra de arte e o próprio discurso teórico sobre a lembrança, a fantasia e a arte. Empresa em tudo justificada: se Leonardo deseja alguma coisa, o que ele deseja é saber. Curiosidade visual e intelectual que quer conhecer a natureza, isto é, aquilo que vem à luz, aquilo que nasce. A pintura, coisa mental, torna-se para Leonardo a suprema das artes porque examina essa natureza para repeti-la no cálculo da verdade de seu movimento, da verdade com que aparece a um olhar agora bem equipado. Na pintura, dá-se a convergência entre a representação das aparências e a representação das razões da natureza.

Para Melanie Klein, as noções de masculino e feminino operam na área das relações de objeto: a fantasia de felação de Leonardo diz respeito a uma conduta sexualmente passiva, logo, feminina. Em Winnicott, como veremos, a dualidade do masculino e do feminino não corresponde, como em Freud e Klein, à dicotomia entre elemento ativo e elemento passivo.

O exemplo de Da Vinci, particularmente se levarmos em conta a história da psicanálise, coloca a questão da interpretação da arte e daquilo que a arte nos faz experimentar. Como construímos a identidade de Leonardo e como ela própria se constituiu, na tensão entre forças discordantes? O fascínio perene que provoca sua personalidade vem talvez do fato de nos identificarmos com sua busca irrealizável.

Sobre esta incompletude essencial, esta transição ou passagem, que é a obra de arte, o ensaísta francês Maurice Blanchot afirma:

Leonardo da Vinci é um dos exemplos dessa paixão que quer elevar a obra à essência da arte e que, em última instância, só percebe em cada obra o momento insuficiente, o caminho de uma busca da qual também nós reconhecemos, nos quadros inacabados e como que abertos, a passagem que é agora a única obra essencial. (Blanchot 1987, p. 236)

É certo que Leonardo não se dedica apenas à arte, mas também à invenção técnica e ao conhecimento científico. Para Blanchot, o próprio contexto da Renascença o levou para longe da pintura. Mas, sob o medo de ter de realizar o irrealizável, permanece a busca da arte e só da arte. A angústia diante da pintura desenvolve essa busca e, diz Blanchot, a converte

em esquecimento do que é buscado, em descoberta de um puro saber inútil, a fim de que se distancie cada vez mais o momento pavoroso da realização, até o dia em que, nas suas notas, inscreve-se esta afirmação reveladora: "Não se deve desejar o impossível". (Ibid., p.236)3

Nesse sentido, uma outra lembrança de Leonardo, quando já se tornara o sábio pesquisador da natureza, parece esclarecedora. Escreve o artista:

Levado por um desejo ardente, ansioso por ver a abundância das formas variadas e estranhas que a artificiosa natureza cria, tendo caminhado uma certa distância entre rochas que pendiam, cheguei à entrada de uma grande caverna e ali me detive por um momento, estupefato, porque não me passara pela mente a sua existência; com as costas arqueadas, com a mão esquerda segurando o joelho, inclinei-me longamente, para um lado, para o outro, a fim de ver se podia discernir algo no interior, a despeito da intensidade das trevas que ali reinavam; depois de ter permanecido assim por um momento, duas emoções despertaram de súbito em mim: o medo e o desejo; medo da caverna sombria e ameaçadora, e desejo de ver se ela continha alguma maravilha... (Bramly 1989, p. 108)

O desejo de saber tem como contrapartida o medo das trevas: medo dos enigmas da fêmea natureza, medo do que ainda não se diferenciou da noite, não tomou ainda uma forma à luz do saber. Experiência que se dá toda, em suas próprias palavras, no registro do afeto. Ora, a interpretação em termos de conteúdos pulsionais, que parece se impor em um primeiro momento, dará conta da relação mais elementar entre pavor e fascínio, entre a intensa e atraente força da treva, e a fascinante maravilha que ela promete ao olhar?

 

1. A identificação e o feminino

Onde inscrever, hoje, uma fala sobre Leonardo no quadro de referência do pensamento psicanalítico?

Para entender a fonte da criatividade, Winnicott nos convida a trilhar, não a via da interpretação, mas a via da experimentação de um sentido que escapa da obra por escapar, justamente, à palavra da verdade. Um sentido que, ao escapar da obra, altera o sujeito e interfere na sua relação com o mundo. Ele acompanha de perto Freud e Klein quanto à consideração dos aspectos feminino e masculino dos processos de identificação; a ruptura com eles dá-se no modo de colocar a questão, que reformula inteiramente. Poderia o elemento feminino ser pensado em estado puro e, mesmo sem poder ser decifrado, mostrar-se ainda nos efeitos de uma palavra?

É conhecida a breve referência que faz Winnicott a Leonardo da Vinci. Em seu artigo sobre a criatividade e suas origens, ele afirma:

É possível escolher Leonardo da Vinci e tecer comentários muito importantes sobre o relacionamento entre sua obra e certos fatos que lhe aconteceram na infância. Muita coisa pode ser obtida vinculando os temas de sua obra e suas inclinações homossexuais. Mas essas e outras circunstâncias no estudo da obra e da vida dos grandes homens contornam o tema que se acha no centro da idéia de criatividade. Inevitavelmente, esses estudos tendem a irritar os artistas e as pessoas criativas em geral, e isso se prende ao fato de que, parecendo estar chegando a algo e aparentemente capaz de explicar por que aquele homem foi grande e aquela mulher conseguiu tanto, sempre desviam a indagação para o lado errado. O tema principal, o do próprio impulso criativo, continua sendo contornado. A criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista. (Winnicott 1971g, p. 100)

Segundo Winnicott, a interpretação de Freud e Klein evita o tema que está no centro da vida e da arte, o do impulso criativo. Winnicott criticava a interpretação das obras de arte baseada no simbolismo inconsciente, que supostamente nelas estaria oculto. Para ele, a interpretação partia de uma suspeita relativa à representação manifesta e permanecia no campo das representações, ao procurar, na linguagem, os enunciados mais condizentes com a verdade subjacente ao que aparece na obra, e que diria respeito às pulsões. Estas encontrariam na atividade artística um percurso, por certo tortuoso, para se apresentarem à cena do mundo.

O pensamento de Winnicott está todo no risco que ele resolve correr, ao desviar seu interesse das peripécias do destino das pulsões e concentrá-lo nas condições efetivas que tornam possível a experiência instintual.

É certo que o processo de identificação primária e de constituição de identidade pôde ser pensado por Freud em termos de auto-investimento. André Green lembra que as primeiras referências de Freud ao narcisismo encontram-se, justamente, em sua obra sobre Leonardo:

Estou chegando às mesmas conclusões que R. Dorey sobre a importância - ao lado do tema homossexual - da fantasia gemelar e do tema do duplo que é possível encontrar em Leonardo. Não se pode esquecer que é na Lembrança de infância que se encontra uma das primeiras formulações de Freud sobre o narcisismo. (Green 1994, p. 60)4

Mas, em Winnicott, a questão da identidade se encontra reformulada. Não se trata de auto-investimento. A identidade é concebida como um processo oscilatório: um si-mesmo transita rumo ao amadurecimento, ao mesmo tempo em que o caminho de volta para a imaturidade inicial continua em aberto. Winnicott nos fala da positiva capacidade de regressão, própria à natureza humana, condição mais elementar para o surgimento do impulso criativo. Trata-se da "capacidade inata que todo ser humano tem de tornar-se não integrado, despersonalizado, e de sentir que o mundo é irreal" (Winnicott 1945d, p. 275).5

Paradoxo incômodo: à luz da experiência artística, a questão das identificações é vista sob a dupla ótica da integração do ego e da não-integração do ego, relativa às condições do estabelecimento de relações objetais determinadas e de necessidade de retorno à experiência da indeterminação e da amorfia. Movimento divergente que, anterior ao Édipo falocêntrico, conecta o destino das moções ao repouso (sono, relaxamento, preguiça, negligência, distração...), a obra feita à ausência de obra, a ação conclusiva à inação interminável, a sanidade à loucura.

Winnicott afirma a irredutível dualidade entre relações de objeto e relações de identificação. Relações de objeto instintuais e masculinas dependem de um ambiente favorável aos processos de identificação para que possam ser instituídas no desenvolvimento de um self integrado, personalizado, que mantenha relação com a realidade, e que seja capaz, ainda e sempre, de regressar àqueles estados não-integrados, impessoais e irreais.

Com isso, Winnicott se inscreve em um pensamento do devir e de seus paradoxos constitutivos, colocando a linguagem ao desabrigo do princípio lógico ou metafísico da identidade. Pensamento a que o conduzem aquelas alteridades flutuantes e polimorfas, observadas na clínica de bebês e de psicóticos, e que ele acaba por estender a todo e qualquer ser humano. É esse pensamento que se encontra na base da formulação original de Winnicott sobre as relações entre o feminino e o masculino.

 

2. Identidade e olhar

Para pensar a identidade, Winnicott vai afirmar a dualidade originária entre indivíduo e ambiente. A relação à alteridade do mundo objetal, no estado mais arcaico do desenvolvimento emocional, é "subjetiva", mas não é uma fantasia. Ao falar da fonte da criatividade, Winnicott explicitará a idéia de um aspecto que independe dos instintos: relação "puramente feminina", desejável mas não desejante, ao seio, anterior a qualquer esboço de uma "realidade psíquica interior".

O estudo do elemento feminino não contaminado, "destilado", nos conduz ao SER e constitui a única base para a descoberta do si-mesmo e do sentimento de ser (a partir daí, constitui-se a capacidade de desenvolver um interior).

E logo adiante:

(...) o elemento feminino é o seio e compartilha as qualidades do seio e da mãe, que é desejável. Depois de algum tempo, o desejável torna-se comestível, e isso significa que a criança corre perigo na medida em que é desejável ou, em outra linguagem, excitante. Excitante implica: sujeito a fazer com que o elemento masculino de alguém faça algo. (Winnicott 1971g, p. 118)

Tais formulações - e isso é notável para a compreensão das artes visuais - se articulam diretamente com a relação primária do olhar entre mãe e bebê. Trata-se do sou percebido - anterior ao percebo - no e pelo olhar materno, que tornará possível a constituição do self incomunicável e isolado, em sua relação com um fundo de quietude e de inércia, que é o próprio ser, a condição mais elementar de vida e mortalidade.

Winnicott redefine dessa maneira o conceito de ambiente, sempre cultural, e sua importância na emergência de uma vida psíquica humana. Self e objeto mantêm entre si uma relação figural.6 A mãe reflete o que o bebê é, e ele não é nada - a não ser esse "é"-, nenhuma essência anterior ao olhar que o acolhe no mundo humano e que, ao mesmo tempo, remete-o à estranheza de uma realidade autônoma.

Nessa superfície de reflexão que é o olhar da mãe, o bebê acede, portanto, à primeira modalidade de experiência psíquica: a experiência de ser, base para a elaboração imaginária das funções corporais. Ser é, originalmente, ser-imagem: ser percebido ou desejável, ao contrário de perceber ou ser desejante. Esse assentimento ao ser na imagem é a base não pulsional do estabelecimento de uma identidade.

O feminino, em Winnicott, é, primariamente, o ser. Para Winnicott, a moção instintual, sempre masculina, implica atividade e também passividade, e visa ao objeto. Mas ativo e passivo guardam sua origem no ser, ou na relação puramente feminina (não-instintual) ao seio ou à mãe. Ser que é anterior à forma, ao objeto e ao outro, o indeterminado de onde algo pode surgir, e que a noção de não-integração nomeia. Como diz Winnicott, o modo de relação objetal do elemento puramente feminino está na origem da mais simples de todas as experiências: a experiência de estar sendo, anterior aos desempenhos em direção à unidade, à personalidade e à realidade.

Desejo dizer que o elemento que estou chamando de "masculino" transita em termos de um relacionamento ativo ou passivo, cada um deles apoiado pelo instinto. (...) Em contraste, o elemento feminino puro relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito. Não consigo ver impulso instintivo nisso. (Ibid., p. 113)

Essa identidade que, na linha do desenvolvimento, tornará possível fazer algo, criar e agir, é, portanto, anterior à distinção entre sujeito e objeto, eu e não-eu. Não se trata, porém, aqui, da relação narcísica do indivíduo consigo mesmo, mas de um processo, de um voltar-se para, de um tornar-se outro. Na área daquilo que Winnicott chama de objetos subjetivos, cada um é o mesmo que outro. Experimentar-se como radicalmente outro para ser o mesmo - como na relação do bebê com o olhar da mãe - é, também, correr o risco do inumano, da exterioridade pura, o perigo maior da mutilação anterior à castração, da angústia impensável, da queda infinita. Essa é a aposta da arte: devolver ao quadro da experiência o movimento de retorno em direção ao ser.

De fato, a experiência de arte pode ser descrita na simultaneidade de dois movimentos divergentes: em direção ao agir, à prática orientada por objetivos a serem atingidos, por produtos a serem finalizados, ação que transforma o mundo e que sofre o efeito das transformações do mundo. E em direção ao ser, ao fundo daquilo que é, em sua inércia - ser puramente desejável -, precário na oscilação entre emergir e afundar, aparecer e desaparecer. O feminino é, então, condição inativa de toda paixão sensória e de toda ação motora. Trata-se da neutralidade do ser, anterior ao fazer, e do fascínio de ser na imagem, de ser imagem, anterior à expressão e à representação.

Blanchot nos fala desta condição de ser da obra de arte:

(...) a obra - a obra de arte, a obra literária - não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é - e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime. Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão do que só a palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra.

A solidão da obra tem por primeiro limite essa ausência de exigência que jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada. Ela é des provida de prova, do mesmo modo que é carente de uso. Não se verifica nem se corrobora, a verdade pode apoderar-se dela, a fama esclarece-a e ilumina-a: essa existência não lhe diz respeito, essa evidência não a torna segura nem real, apenas a torna manifesta. (Blanchot 1987, p. 12)

Esta é a condição de pensamento que subjaz ao empreendimento da arte e que parece ter atraído Leonardo. O incomensurável, aquém e além das obras, é anterior à alternativa entre o acabado e o inacabado, entre a unidade da determinação formal e o ilimitado das forças.

Freud termina seu trabalho sobre Da Vinci com um comentário às enigmáticas palavras do artista: La natura è piena d'infinite ragioni che non furono mai in isperienza. Diz Freud:

Nós todos ainda sentimos muito pouco respeito pela natureza, que (nas palavras obscuras de Leonardo, que lembram o Hamlet) está cheia de inúmeras razões (ragioni) que nunca penetram a experiência. Cada um de nós, seres humanos. corresponde a uma dessas inúmeras experimentações por meio das quais as "ragioni" da natureza são compelidas a compartilhar a experiência. (Freud 1997, p. 124)

A distância incomensurável que vai da experiência às razões da natureza, compreendidas como forças, só pode ser percorrida pela imaginação criadora. É o que afirma Paul Ricoeur, quando se pergunta, por sua vez, o que podem significar estas últimas linhas do ensaio de Freud sobre Leonardo:

Vejo nessas linhas um discreto convite a identificar a realidade à natureza e a natureza a Eros. Essas "energias atuantes", estas "infinitas razões que não advêm nunca à experiência", essas "inúmeras tentativas pelas quais elas avançam rumo à experiência" não são de modo algum fatos que se constatam, mas potências, a potência diversificada da natureza e da vida. Mas essa potência, só posso apreendê-la em uma mística da criação. (Ricoeur 1965, pp. 528 e 529)

O movimento em direção à inércia primordial do ser não é relação de objeto, não constitui o outro como objeto de desejo, conhecimento verdadeiro ou ação poderosa. Em suma, é mais do que um processo finalisticamente orientado. Algo sobra depois do objeto. Seria o desejo, para além de toda necessidade satisfeita? Não em Winnicott: o que sobra, o que resta e persiste sempre é o desejável, isto é, o ser. As moções se efetivam a partir da inação originária atraente, a transição ao objeto se dá a partir da intransitividade primordial. Toda identidade, sempre em devir, se constrói sobre o fundo neutro do ser; somente daí pode emergir uma vida de relação que seja experimentada como criadora do sujeito e do mundo. E este fundo paradoxal, esta oscilação entre ser e não ser, prévia à contradição que é própria à dialética do ativo e do passivo, da sensorialidade e da motilidade, da eroticidade e da agressividade, é, para Winnicott, o elemento feminino puro.

 

3. O ambiente facilitador

No estudo sobre Leonardo, Freud afirma que a realidade externa é acaso. São acasos, por exemplo, o fato de Leonardo ser filho bastardo, ter sido abandonado pelo pai e ficado em sua primeira infância na companhia exclusiva de sua mãe camponesa, ter-se iniciado nas artes por decisão paterna, que o chama a Florença para trabalhar no ateliê de Verrochio etc. Um indivíduo, isto é, uma determinada constituição, diz Freud, enfrenta desde a infância esse acaso, que define a singularidade dos investimentos instintuais.

Em Winnicott, a realidade ambiental integra a própria qualidade de ser: de ser estranho ao mundo e, ao mesmo tempo, de estar presente no mundo. Antes de ser patológica, a relação de Leonardo com Catarina, sua mãe, é, necessariamente, a condição originária de suas criações.

A natureza - no caso, a natureza homossexual - de Leonardo da Vinci é, sem dúvida, para Freud, uma história. Mas para Winnicott tal história encontra-se suspensa a essa relação com o mais elementar, a que a obra do artista nos solicita e que nos impõe a cada vez que a encontramos. Não se trata de reconhecer, sob o princípio de uma hermenêutica geral - da suspeita ou do mistério, como pretende Paul Ricoeur7 -, a alteridade que nos apresenta a obra de Leonardo.

Para além dessa diferença alteritária, que a interpretação respeita, conciliando-nos com ela, trata-se de experimentar o estranho, o absolutamente outro que, para Winnicott, serve para atribuir à identidade do self as características mais surpreendentes: isolado, incomunicável, sem relação com a realidade.

À dicotomia do mesmo e do outro, na qual a diferença reduz-se à alteridade, substitui-se o paradoxo do self: pertença ao mundo e alheamento do mundo. Self ensimesmado/alienado, louco em seu núcleo mais do que sadio, lunático em sua origem noturna, aquática, feminina, sempre de fora das narrativas de continuidade entre as causas (necessárias ou acidentais, estruturais ou históricas) e os efeitos que se fariam sentir na conduta e na obra do artista. Isto é, o self alheio a si mesmo, porque não detém e não pode produzir um princípio de verdade que o fizesse retomar a plena posse de si, em um puro movimento de reflexão na linguagem. É nessa acepção teórica que Winnicott pôde afirmar ser impossível para ele falar do self, porque é uma noção que o domina, que domina o seu pensamento.

A indistinção primeira entre tornar-se outro e ser (sou, sou eu, sou eu mesmo), que faz o tornar-se outro base do eu-mesmo, é o que poderíamos chamar de alteridade absoluta ou de estranhamento: o bebê aliena-se na mãe (ou no seio) porque é outro, ignora que é outro, e ignora que esta é, simultaneamente, a condição de ser alheio, isto é, de ser um psiquismo autônomo, isolado e independente da realidade. Não se trata, portanto, da dialética entre identidade e alteridade, que se resolve em termos de semelhança e de diferença, de enfrentamento, reconhecimento e diálogo entre a mãe e o bebê, como entidades separadas. No registro mais arcaico, não há ainda lugar para a distinção entre normalidade e patologia, sanidade e loucura. Como nos diz Winnicott: "É importante para nós que não encontremos clinicamente qualquer linha nítida entre a saúde e o estado esquizóide, ou mesmo entre a saúde e a esquizofrenia plenamente desenvolvida" (Winnicott 1971g, p. 96).

 

4. Alguns versos de D. H. Lawrence

Gostaria de recorrer ao poema de um grande poeta de língua inglesa do século passado, D. H. Lawrence (1885-1930), mais conhecido entre nós pelas suas obras de ficção, tais como O amante de Lady Chatterly ou Filhos e amantes, romance no qual põe em cena a tumultuada relação de seus próprios pais. Foi ele quem disse: "Nunca confie no artista. Confie na obra".8

Lawrence, como sabemos, é um apologista da vida exuberante, da intuição e do instinto contra a razão e o medo, apesar ou por causa mesmo de sua saúde mais do que precária. O referido poema, intitulado Manifesto, talvez porque faça declarações extraordinárias sobre a relação ou sobre a não-relação amorosa, é muito sugestivo sobre o agenciamento entre elementos masculinos e femininos. Vamos citar apenas um pequeno trecho do poema.

VII
(...)
Ela toca-me como se eu fosse ela mesma, ela própria.
Ela não percebeu ainda esta coisa horrenda, que eu sou o outro,
ela pensa que somos uma peça só.
Isto é dolorosamente falso.

Quero que ela me toque afinal, na raiz e na essência de minha escuridão
e pereça em mim, como pereci nela.

Então seremos dois e distintos, teremos cada um nosso ser separado.
E isso será pura existência, liberdade real.
Até lá, somos confundidos, uma mistura, irresolutos, não separados um
do outro.
É numa pura, indizível determinação, distinção do ser, que somos livres,
não na mistura, na fusão, na similaridade.
Quando ela colocar suas mãos
nas minhas origens mais sombrias, secretas, os mais sombrios eflúvios,
quando ela compreender, como uma morte, "isto é ele!"
ela não tem parte nisso, nenhuma parte,
é o terrível outro,
quando ela conhecer a terrível outra carne,
ah, escuridão insondável e terrível, contígua e concreta,
quando ela for morta junto a mim, e deitada numa pilha como algo fora
da casa,
quando ela falecer como faleci,
sendo empurrada contra o outro,
então ficarei alegre, não ficarei confundido com ela,
serei iluminado distinto, singular como se polido em prata,
sem aderência, nenhuma adesão em lugar nenhum
um ser iluminado, polido, isolado, único,
e ela também, pura, isolada, completa,
nós dois, indizivelmente distintos, e em conjunção indizível.

Então seremos livres, mais livres do que os anjos, ah, perfeitos.
(Ibid., pp. 115 e 116)

Creio que o poeta inglês deu voz ao self isolado e incomunicável e disse algo sobre esse self verdadeiro, esse "isso" anterior à separação entre o masculino e o feminino, mas anterior também à própria fusão ou ligação entre esses termos. Movimento de disjunção e convergência entre os dois elementos, deriva cósmica ou psíquica, que escapa à operação de transformá-los em conceito ou objetos de conceito.

Nesse poema de amor, Lawrence faz-nos experimentar relações amorosas em um quadro inédito e mesmo surpreendente. União e separação se reúnem em um paradoxo que nos conduz pela vertente das identidades, não apenas diferentes, mas mutuamente estranhas uma à outra, ao mesmo tempo "alienadas" e conjuntas em uma relação que se encontra para além do simbolismo pulsional, da representação e da sublimação na linguagem. Uma relação que não pode ser nomeada pela psicanálise, mas apenas pela poesia.

Experimentamos, por meio do poema, a condição mais arcaica e essencial do self, e isso no seio mesmo da contigüidade amorosa com o outro, necessária à liberdade total. Lawrence escolhe, para falar disso, a vertente do ser e da identidade, que corre sobre a crista da relação puramente feminina ao objeto, no repetido ciclo das gerações e degenerações próprio à existência no tempo.

Do caráter precário dessa relação dual, anterior às tríades me-diadoras, o poema parece se nutrir: nascimento e extinção, vida e morte totalmente opostas e integralmente implicadas uma na outra. O poeta nos dá acesso a essa criatividade primária inerente ao fato de ser, que torna possível o próprio poema e aquilo que ele celebra: o amor entre seres humanos.

 

5. Conclusão

Por que Winnicott menciona Leonardo da Vinci para falar da fonte da criatividade? Primeiro, para se contrapor à interpretação do simbolismo inconsciente em termos instintuais. Mas esse é o aspecto meramente negativo da crítica. Aberto o caminho, ele desdobra uma série de proposições sobre a constituição da identidade, a partir da identificação:

1. a relação do infans com o meio ambiente, através das funções e do olhar maternos, o que torna possíveis tanto sua autonomia frente à realidade quanto o acesso a ela;

2. a natureza não-instintual do vínculo primitivo, vínculo puramente feminino ao objeto, que permitirá a experiência das moções libidinais eróticas e agressivas;

3. por fim, a afirmação de que é aí que reside a fonte da criatividade.

Dentro desse quadro, que nos remete a efetivas condições originárias, anteriores à Lei, é que caberia compreender o impulso criativo de Leonardo, e mesmo o que há de irrealizável na obra a que ele se lança, seu caráter inconcluso.

Para Winnicott, o que está sendo proposto na obra de arte se dá como experiência. Não se trata de interpretar o não-dito oculto pela formação secundária, mas de indicar as condições que tornam possível experimentar a passagem das intensidades às formas, na emergência atual do afeto. Isso não se fará sem que se volte à força inercial dos começos: retornar ao puramente desejável, à fascinação da origem inominável, ao que puramente é, antes que, em um certo espaço e durante um certo tempo, possam ganhar forma as coisas existentes.9

A uma experimentação controlada desses trânsitos convida a obra de todo grande artista e pensador, como Leonardo. Ao multiplicar as metas e se desviar delas, ao evitar atingir o objetivo, em suas formas deixadas antes do fim, Da Vinci atesta o processo interminável da obra, que ele pressente mas também negligencia a impossibilidade constitutiva.

Perseguindo o sentido da natureza, de que faz parte o corpo humano, sua engenharia e suas configurações, Leonardo da Vinci é um herói sempre renascido das lendas que se alimentam de suas obras. Nessas lendas, este imortal vive ainda para nós. Uma dessas lendas é a que Freud nos contou: ela levanta uma hipótese sobre a estrutura psíquica de Leonardo, a partir da relação entre a infância dele e as múltiplas expressões de sua arte, de seus saberes e de seus ofícios. Atribuir sentido à vida é obra de ficção, jogo ilusório e necessário. Poderosa ficção, a de Freud, mas insufi-ciente para conquistar o pensamento dos que amam em Leonardo, não o que sua arte representa, mas o que ela é, na relação enigmática, mas incontornável, com a fonte da criatividade. Dessa fonte oculta, Winnicott nos traçou um esboço fascinante.

 

Referências bibliográficas

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Carreira, Eduardo (org.) 2000: Os escritos de Leonardo da Vinci sobre a arte da pintura. Brasília/São Paulo, Editora da Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado.         [ Links ]

Coutinho, Mário A. (org.) 2001: Tudo que vive é sagrado: William Blake & D. H. Lawrence. Belo Horizonte, Crisálida.        [ Links ]

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Green, André 1994: Revelações do inacabado: sobre o cartão de Londres de Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro, Imago.         [ Links ]

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______ 1971g: "A criatividade e suas origens". In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: rogerio@espacowinnicott.com.br

Recebido em 24 de novembro de 2001.
Aprovado em 8 de abril de 2002.

 

 

I Fundador e membro do "Espaço Winnicott - Estudos em Psicanálise e Cultura", Rio de Janeiro, Professor aposentado e pesquisador da ECO-UFRJ e Artista plástico
* Texto apresentado no VI Colóquio Winnicott - Masculino/Feminino, promovido pelo Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, São Paulo, 26 e 27 de outubro de 2001.
1 Diz ainda Freud: "Devido à sua tendência muito precoce para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades de seu instinto sexual puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim à repressão. Uma parte muito menor de sua libido continuou orientada para fins sexuais e representa a atrofiada vida sexual do adulto. Porque o amor que tinha pela mãe foi reprimido, essa parte foi levada a tomar uma atitude homossexual e manifestou-se no amor ideal por rapazes" (Freud 1997, p. 93). De fato, quando jovem, Leonardo fora processado, com outros companheiros, por prática de sodomia. Absolvido dessa eventual infração ao código canônico (não se imaginava, na época, questionar a natureza ou a estrutura de sua psique), ele viveu até a morte com seus dois criados e discípulos, que recolhera ainda jovens, e belos, a sua casa. Os hábitos da corte, no século XVI, seriam, ao que parece, mais liberais do que os da Viena protestante em que Freud cresceu. Cf. Carreira, Eduardo (org.) 2000. Introdução.
2 Cf. Freud 1997, p. 45: "Na fantasia infantil de Leonardo tomamos o elemento abutre como representante do conteúdo real de sua lembrança, ao passo que o contexto em que o próprio Leonardo coloca sua fantasia esclarece muito a importância que teve esse conteúdo para sua vida posterior". E, mais adiante, p. 53: "O menino reprime seu amor pela mãe: coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele transformou-se num homossexual". E mais adiante, ainda, p. 46: "A mitologia nos ensina que a constituição andrógina, isto é, uma combinação das características masculinas e femininas, era atributo não só de Mut mas também de outras divindades, tais como Ísis e Hathor (...) outras divindades egípcias tais como Neith de Sais (...) foram originariamente representadas como andróginas, isto é, como hermafroditas, e que o mesmo se dava com muitos dos deuses gregos, especialmente aqueles que eram associados a Dionísio, mas também a Afrodite, que mais tarde se limitou a representar uma deusa feminina do amor".
Aristófanes, no Banquete, ao discorrer sobre o deus Eros, enumera, em uma lenda bizarra, três espécies de primitivos seres humanos. Eles seriam esféricos e duplos, inclusive quanto ao sexo: masculino/masculino, cuja origem é o Sol, feminino/feminino, originários da Terra, e mistos ou andróginos, filhos da Lua, astro intermediário. Como punição por terem pretendido enfrentar os deuses, Zeus separou aquelas metades. Desde então, elas se buscam e se enlaçam. Mas é dos andróginos, filhos da Lua, que provêm, é claro, as metades procriadoras do gênero humano. Trata-se da Comédia do Eros homo e heterossexual, que Platão encena pela boca de sua personagem. Cf. Platão 1964, pp. 48-53.
3 Afirma ainda, mais adiante, o pensador francês: (...) o artista não pertence à verdade, porque a própria obra é o que escapa ao movimento do verdadeiro, que sempre, por qualquer lado, ela revoga, esquiva-se a seu significado, designando essa região onde nada reside, onde o que ocorreu, porém, não ocorreu, onde o que recomeça nunca começou ainda, lugar da indecisão mais perigosa, da confusão de onde nada surge e que, exterior eterno, é muito bem evocado pela imagem das trevas exteriores nas quais o homem é posto à prova daquilo que o verdadeiro deve negar para converter-se na possibilidade e no caminho (idem, p. 238).
4 Em seu trabalho, Green vê no Cartão uma oportunidade perdida por Freud: a de provar o acerto de sua leitura, sem as dificuldades de interpretação histórica que, em parte, desacreditaram o trabalho do mestre.
5 Cf. também Winnicott 1954a [1949].
6 Para Green, é neste terreno que se encontram Leonardo e Freud: "Encontro inesperado e despercebido por aqueles que se interessaram pelas relações Freud-Leonardo - num terreno que, sem ser comum, tem no universo mental de um e de outro uma função correspondente - é o fundamento que um e outro encontram no figurável. A pintura é para Leonardo o que a representação será para Freud. Aí se ancoram a cosa mentale e a psique, caminhos obrigatórios para o espírito. Assim, garante-se um conhecimento que terá tido como preocupação constante nunca alçar vôo emancipando-se das origens que o ligam ao corpo - em verdade, ao que prende sensualmente o sujeito ao corpo da mãe, do qual o necessário afastamento será a tarefa indefinidamente perseguida, jamais totalmente realizada" (Green 1994, p. 70).
7 Ibid. Segundo este autor, duas são as modalidades de interpretação do símbolo. A primeira é a da leitura do símbolo como ocultação de uma verdade. Nesse caso, a interpretação é desmistificação da ilusão e, na ótica da psicanálise, correção do viés imposto pelo recalque à fantasia inconsciente, viés que permitiu que esta pudesse manifestar-se no mundo compartilhado. Na segunda modalidade, a interpretação é ato de acolher e desdobrar o sagrado, no qual se enraíza a linguagem simbólica. A primeira é a via da suspeita diante do não-dito da representação. A segunda é a via da afirmação do simbolismo experimentado e retomado na palavra hermenêutica.
8 Interessado pelas descobertas de Freud, Lawrence publicou, em 1922-23, dois ensaios intitulados "Fantasia do inconsciente" e "Psicanálise e o inconsciente". Diz-nos o organizador: "Dois ensaios considerados, atualmente, como essenciais (...) em que a psicanálise é usada e criativamente extrapolada, exatamente como fez com todos os temas sobre os quais escreveu" (Coutinho 2001, p. 88).
9 René Major, ao comentar o legado de Lacan, assevera: "(...) a leitura do mundo desvendada pela leitura de Lacan como leitura do próprio inconsciente; leitura de uma abundância inesgotável de significações que, sem ser ordenadas em um sentido, convidam o leitor a inventar e reinventar constantemente `sua' gramática e `sua' retórica, como o que acontece mais de uma vez, mas cada vez sendo uma única vez. (...) reinventar incessantemente a língua na qual (a psicanálise) fala do mundo" (Major 2001, p. 6).
A psicanálise dedicou-se à tarefa de inventar a língua por meio da qual ela fala do mundo e das outras linguagens, sejam elas filosóficas, artísticas ou científicas. O estruturalismo representou, para a psicanálise, um poderoso reforço à ênfase dada à questão da linguagem. Coube a Winnicott examinar teoricamente e favorecer clinicamente, não mais uma leitura do mundo, mas o próprio processo de invenção de mundo, que é também, e paradoxalmente, invenção de si mesmo. É o caráter primário desse processo criativo que vai, ao contrário do que afirma René Major, a cada vez engendrar as modalidades com que falamos do mundo, do sujeito e da própria linguagem, e a leitura que deles fazemos. Confrontam-se, nesse caso, duas maneiras radicalmente diversas de pensar o estatuto da linguagem teórica e da prática clínica em psicanálise.