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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.2 São Paulo dez. 2002

 

RESENHA

 

Zeljko Loparic

Unicamp
PUCSP
PUCRS

Endereço para correspondência

 

 

Sloterdijk, Peter 2001: Nicht gerettet. Versuche nach Heidegger. Frankfurt/M, Suhrkamp. ISBN: 123456-060504030201

Sloterdijk descreveu como desagravo a edição, pela Suhrkamp, dessa coletânea de seus 10 artigos e discursos, surgidos e publicados separadamente, entre 1993 e 2002, sobre temas relacionados à antropotecnologia. Desagravo porque um desses discursos, intitulado "Regras para o parque humano" - que trata, entre outros temas, das novas possibilidades de intervenção biotecnológica no desenvolvimento futuro da espécie humana, editado isoladamente em 1999, também pela Suhrkamp -, deu lugar a uma controvérsia inflamada na imprensa alemã, chamada "debate Sloterdijk-Habermas", em que não faltaram comentários de caráter denunciatório sobre Sloterdijk. Num trabalho que se encontra no presente número de Natureza humana, José Oscar Marques apresentou os principais momentos dessa controvérsia. Colocado no devido lugar dentro de um quadro de idéias mais amplo, apresentadas na presente coletânea, aquele discurso, recebido por alguns como escandaloso, poderá ser finalmente avaliado, espera Sloterdijk, de modo mais sereno.

Já no Posfácio à primeira edição do discurso polêmico, em 1999, Sloterdijk fez uma tentativa de combater a "descontextualização" que teria produzido a "diferença abissal" entre as suas intenções como autor e o destino da recepção do seu texto. Ele reconhece ter contribuído para tanto, pelo seu estilo provocador - baseado no uso freqüente de fórmulas elípticas e hiperbólicas, retoricamente eficazes, mas sujeitas a mal-entendidos - e também por proceder associativamente, sem fornecer as transições argumentativas necessárias. Mesmo assim, observa Sloterdijk, só uma imprensa que prefere escandalizar a informar, direcionada, como sempre, acrescenta ele, por pessoas acima de qualquer suspeita, poderia transformar em teses as suas indagações sobre as implicações dos avanços da biotecnologia atual - em particular, as que colocam o homem em condições de substituir a roleta do processo de reprodução natural da espécie e de começar a desempenhar o papel de seletor ativo e propositado, guiado por regras de um novo tipo de eugenia. Além disso, o centro lógico do discurso - a intuição, inspirada em Nietzsche, de que a clareira do ser de Heidegger depende de condições criadas pela tecnologia - não teria sido percebido nem levado em conta. O ponto decisivo afirmado é o de que o "`ser humano' não existe, precisando produzir-se a si mesmo, num contencioso permanente em torno do seu ser não-determinado". No passado, a humanidade usou sistematicamente, embora de forma inconsciente, as mais diversas técnicas antropogênicas: regras de parentesco, de casamento, de guerras (confira-se, a esse respeito, o que Kant tem a dizer sobre as guerras e, em geral, sobre a origem da cultura na socialidade insociável dos homens), de educação, de controle sexual e de práticas punitivas. Nos dias de hoje, depois do escaneamento do genoma humano, essas regras, estabelecidas por ensaio e erro, já vêm sendo substituídas pelas políticas antropotécnicas perfeitamente conscientes. Quem não vê, pergunta Sloterdijk, que, nessas condições, chegou a hora de uma filosofia não-clássica, que não permaneça presa a um realismo modelado sobre a natureza nem sonhe mais com possibilidades utópicas, mas mostre-se disposta a considerar as alternativas da antropogênese disponibilizadas pela biotecnologia?

No Prefácio da coletânea aqui resenhada, Sloterdijk inscreve os seus textos diretamente na linhagem heideggeriana: são "Conferências e ensaios" - exatamente esse é o título de uma das mais famosas coletâneas da artigos de Heidegger, recentemente publicada em português pela Editora Vozes - que visam mostrar que nem tudo o que Heidegger escreveu pertence ao passado e que ainda continua sendo "possível, aconselhável, frutífero e eventualmente escandaloso" seguir seus apontamentos e indicações. A principal contribuição de Heidegger - a que fundamenta a necessidade de ouvir a sua voz na discussão sobre os tempos futuros - consiste no fato de "ele ter trabalhado, durante toda a sua vida, sob o título da pergunta pelo ser, numa lógica da responsabilidade que, ainda antes da separação entre a ontologia e a ética, estava já rastreando o jogo mútuo, na existência dos mortais e dos nascenciais, entre tendências desintegradoras e vinculadoras" (pp. 8-9). Com essas palavras, Sloterdijk inscreve-se na corrente, cada vez mais ampla, de comentadores - eu mesmo incluo-me nesse grupo, desde a publicação de Ética e finitude (1995) - que admitem a possibilidade de uma leitura, ao mesmo tempo ontológica e ética, do pensamento heideggeriano.

Conviria, contudo, liberar-se da hipnose de Heidegger e tomar, em relação a ele, uma atitude de aproximação e, ao mesmo tempo, de afastamento. Essa atitude revela-se no próprio título do livro de Sloterdijk: Nicht gerettet (Sem salvamento).Seguindo Hölderlin, Heidegger esperava o salvamento do homem do perigo extremo da técnica de uma virada no próprio ser, isto é, de uma nova constelação da terra e do céu, dos mortais e dos divinos - na sua entrevista ao periódico Der Spiegel, em 1966, Heidegger declarou: "Só um deus pode nos salvar" - que resguardasse e assegurasse o ser-homem do homem e o ser-coisa das coisas, em oposição à armação de tudo o que há nessa terra pelo furor da técnica. Não há salvamento, ecoa Sloterdijk, a fabricação, inclusive dos humanos, é parte constitutiva do que há nos dias de hoje - um deus que ainda pudesse nos salvar não chegará tão cedo.

A quebra do encantamento pelo mestre é executada já no primeiro ensaio, "Decaída e virada" ("Absturz und Kehre"). Sloterdijk começa caracterizando o programa heideggeriano de Ser e tempo como o de elaboração de uma "cinética ontológica", pensada como o movimento de queda (chegada ao mundo), experiência (permanência no mundo) e virada ascendente (saída do mundo) - destacando a sua semelhança com o pensamento gnóstico, numa linha que eu mesmo explorei em Heidegger réu (Campinas, Papirus, 1990). Em seguida, Sloterdijk assinala que o tema da chegada ao mundo e da permanência no mundo, embora tematizado claramente em Ser e tempo (cf. parágrafo 72 dessa obra), não foi tratado por Heidegger de forma satisfatória, em razão da sua oposição ferrenha a toda antropologia, tanto filosófica quanto científica. Uma das conseqüências dessa postura é a desatenção de Heidegger para com o fenômeno da animalidade humana, em particular, diz Sloterdijk, para com o fato de o ser humano ser um animal fracassado e, por isso mesmo, desde o início da vida, um ser condicionado cultural e tecnicamente. Na medida em que cresce, como todos os animais, ele precisa satisfazer exigências operativas para tornar-se adulto, o que inclui o desenvolvimento tanto tecnológico quanto mental e espiritual. Heidegger quer que a paisagem na qual habitará o futuro homem "o sustente como uma deusa, que leva os seus filhos no colo" (p. 51), sem necessidade de recurso ao mundo externo da técnica. Mas tal colo não existe. A "ontocinemática" heideggeriana, a sua teoria do acontecer humano onto-ontológico foi, certamente, uma revolução decisiva do pensamento filosófico, mas a sua realização ficou pela metade. Embora tenha introduzido os problemas decisivos - como o da chegada ao mundo e o da permanência no mundo em condições crescentemente técnicas -, Heidegger não os pensou até o fim, acabando por jogar todas as suas cartas no advento de um período pós-voluntarista totalmente ilusório. Faltou-lhe, sustenta Sloterdijk, uma teoria da experiência ou da mobilidade horizontal do ser humano, razão pela qual não há, na obra heideggeriana, qualquer teoria do saber e da ciência (p. 56). Heidegger permaneceu um criptocatólico, que fala como o último dos metafísicos, anunciando outros mundos. Tal como a revolução, também a "virada" devora os seus filhos.

Isso dito, como pode ser pensado um ser-no-mundo ainda humano, na época em que o mundo deixou de ser um projeto do homem? Qual é o modelo do existir, no mundo de hoje, para alguém que não espera mais salvamento de um deus? O dos "marinheiros" (termo usado no original) portugueses, responde Sloterdijk. Eles se entregavam à "volta do mar" (expressão do original) que consistia em ultrapassar a fronteira da terra conhecida "a partir da qual não havia mais esperança razoável de retorno" (p. 77). Esse modelo pode ser traduzido na seguinte regra: "virar a técnica contra a técnica" (pp. 79-80). (A tentação é grande, mas deve-se, aqui, resistir a comparar esse vislumbre não desenvolvido de Sloterdijk com o modo como Álvaro de Campos, engenheiro e poeta, concebe a navegação portuguesa e, por extensão, humana, pelos mares de antigamente e pelos da tecnologia moderna.)

As idéias desse primeiro ensaio foram desenvolvidas em vários outros da presente coletânea. O tema da gnose reaparece num penetrante estudo denominado "O revanchista generoso". Nele, Sloterdijk discute o testemunho dado por E. M. Cioran - que seria um dos "mais significativos escritores filosóficos do século XX" - sobre o "fracasso da construção da realidade": enquanto o criptocatólico Heidegger chama o pensar de "ação de graça", este seu "sósia" obscuro desenvolve a tese oposta, própria da gnose negra, do pensamento como vingança. O motivo de insuperabilidade da técnica é desenvolvido em "Ferimento pela máquina" e em "Tempo da facticidade do monstruoso". No primeiro, depois de recordar as três feridas narcísicas, às quais, segundo Freud, a humanidade ocidental foi exposta - as revoluções copernicana, darwiniana e psicanalítica -, Sloterdijk enumera algumas outras, ainda pouco notadas, mas nem por isso menos impactantes: a etologia humana, a teoria evolucionista do conhecimento, a sociobiologia, a cibernética (empenhada em gerar cópias mecânicas dos seres humanos) e, finalmente, duas outras que estão ainda por acontecer: a ecológica - gerada pelo fato de os homens de culturas superativas não entenderem e destruírem os sistemas ambientais complexos - e a neurobiológica, que, prevê Sloterdijk, "partirá da aliança entre a genética, a robótica e a cibernética e fará com que, em breve, as mais íntimas manifestações egóicas da existência humana, tais como a criatividade, o amor e a liberdade da vontade sucumbirão num pantanal coberto de fogos fátuos de tecnologias reflexivas, terapias e jogos de poder" (p. 345). Essa é a ferida decisiva: o surgimento da tecnologia de fabricação dos humanos. No fundo, observa Sloterdijk, todas essas feridas, inclusive as identificadas por Freud, são, na sua essência, resumidas numa única, a idéia de que a natureza é um processo de produção de animais-máquinas, humanos e não-humanos, e de que, desse ponto de vista, a modernidade européia é, sobretudo, uma história de desenvolvimento da competência da maquinação (o termo é de Heidegger) e de sua popularização entre os consumidores. O que os habitantes de ambientes crescentemente tecnicizados precisam é de uma ontologia das rea-lidades protéticas. A sugestão de Sloterdijk pode ser resumida com a afirmação de que a metafísica tradicional da natufactualidade precisa ser refeita numa teoria mais ampla da artefactualidade. Como ele mesmo diz, "a fim de podermos permanecer humanistas, temos de nos tornar cibernéticos" (p. 365). À alma ferida pela revolução antropotecnológica resta um consolo: "o orgulho de sofrer discretamente dessa ferida" (p. 366). A idéia é a de que, na ponta da modernidade tecnicizada, a humanidade renasce do saber de que a vida é vulnerável. Essa é a versão de Sloterdijk do famoso aforismo de Heidegger retirado de Hölderlin: lá onde há o perigo, também cresce o que salva.

Em "Tempo da facticidade do monstruoso", a paisagem conceitual é a mesma. Sloterdijk refaz a tentativa de mostrar que a natureza e o ser perderam o monopólio e se vêem desafiados e substituídos pelas criações artificiais "a partir do nada" e pelo surgimento de um "mundo pós-natural" (p. 385). O autor adiciona um trabalho sobre Niklas Luhmann que se transforma no elogio de um certo naturalismo desculpabilizado, oferecendo oportunidade de estocadas irônicas à Escola de Frankfurt, em particular, a Habermas.

O artigo principal da coletânea, contudo, é o intitulado "A domesticação do ser", com o subtítulo: "A clarificação da clareira". O objetivo de Sloterdijk é explicitar a sua intuição, mencionada anteriormente, de que a clareira do ser de Heidegger depende de condições criadas pela antropotécnica, quer da natureza, quer do próprio homem. O teorema central da antropotécnica diz: o homem é, no fundo, um produto e só pode ser compreendido - dentro dos limites do saber atual - na medida em que forem identificados os procedimentos de sua produção. Depois da definição heidegge-riana da técnica como "modo de desocultamento" dos entes como tais no seu todo, a questão de saber como o ser humano é produzido não pode mais ser separada da questão sobre a "verdade" desse ente (p. 153). Isso quer dizer que novas constelações entre a ontologia e a antropologia precisam ser experimentadas. Em particular, especifica Sloterdijk, no seu estilo provocador, visto que o ser humano é um ser-no-mundo extático, devemos correr o risco de considerar algo como técnicas do êxtase. Pensar assim, admite Sloterdijk, significa pensar com Heidegger contra Heidegger.

Tentando tornar a sua proposta mais precisa, Sloterdijk se debruça sobre a pergunta: como o animal foi desanimalizado a ponto de poder entrar na clareira do ser? (p. 160). Em outros termos: como o animal, pobre de mundo, segundo Heidegger, chegou ao mundo? Enquanto em outros textos (Sphären, v. I, Frankfurt/M, Suhrkamp, 1998), Sloterdijk investiga, num estilo estonteante e inimitável, recorrendo à psicanálise, à teologia, à mitologia e à mística, o modo como um bebê humano chega ao mundo, aqui ele se detém sobre a dimensão filogenética desse mesmo fenômeno. A sua resposta não é menos estranha e fantasiosa do que a sua pergunta: por quatro mecanismos da antropogênese, variante natural, pré-tecnológica, da antropotécnica, a saber, o insulamento contra a pressão da seleção natural, o distanciamento do corpo (diminuição da necessidade de atender diretamente as exigências do corpo), o progressivo retardamento da formação somática e a transferência das propriedades do ambiente inicial para o ambiente externo. Sloterdijk sabe que esses mecanismos, retirados da teoria evolucionista alemã dos anos 20 do século passado, não bastam para explicar a antropogênese. Ainda falta, por exemplo, a cerebralização, assunto que ele prefere evitar. Mesmo assim, ele não hesita em subscrever a tese da epistemologia evolucionista, radicalmente antikantiana e pós-heideggeriana, de que a própria natureza, entendida no sentido da ciência natural moderna, criou as condições orgânicas de possibilidade da experiência (p. 196). É num produto seu - o ser humano - que a natureza toma consciência da sua tecnologia, inclusive da que foi usada na antropogênese. A forma atual dessa consciência é a biologia genética. Desse fato antropotécnico, dessa transição da natureza para a técnica, decorre uma conseqüência de importância capital: o homem de hoje não pode deixar de assumir - aqui Sloterdijk cita o teólogo católico Karl Rahner - a liberdade de uma "automanipulação categorial". Ele tem de querer ser um homem "operável". A automanipulação do ser humano já começou. Onde Platão ainda via o bem natural, o olho moderno vê o bem técnico. Agora, nada é bom que não possa constantemente ser melhorado. A competição atual sobre a decodificação do genoma humano mostra toda a força da afirmação de Pascal de que o homem ainda não é aquilo que podia ser. Vivemos numa época em que a plasticidade do humano tornou-se uma realidade fundamental, a ponto de a antítese entre a vida e a morte começar a ser desconstruída tecnologicamente. Como pensar a nossa ida para um tal futuro? Sloterdijk não tem uma resposta a dar, além da observação de que o pensamento na clareira condicionada tecnologicamente não conseguirá elaborar nenhuma ética enquanto a ontologia subjacente, no caso, a antropotécnica, permanecer desconhecida (p. 234).

Apoiados na tese de que a principal contribuição de Heidegger é uma lógica da responsabilidade, os textos de Sloterdijk evocam de maneira ousada e, em vários momentos, propositadamente estridente - como se visassem despertar os filósofos atuais do seu sonho acadêmico - os aspectos gerais do desafio que a tecnologia moderna lança tanto à cultura ocidental, quanto à humanidade, considerada não apenas como espécie, mas como ponto de referência da análise de tudo o que há. Além disso, esses escritos introduzem alguns temas específicos particularmente importantes para a continuação de um diálogo frutuoso com Heidegger, no século XXI. Entre estes, está o problema da chegada ao mundo ou da nascencialidade, apontado mas não desenvolvido em Ser e tempo; o da animalidade humana, que Heidegger tentou suprimir da definição do ser humano, mas que volta armada pela biotecnologia, e o da racionalidade objetificante que, tornando-se inteligência artificial, dispensa, malgrado Heidegger, qualquer linhagem metafísica, teoria ultrapassada do real natufactual. Em resumo, Sloterdijk deixa claro que mesmo o Heidegger da segunda fase precisa de apoios ônticos, isto é, antropológicos. Heidegger percebeu claramente que o humanismo tradicional - por desembocar inevitavelmente na tecno-antropologia, produção de um "animal tecnicizado", como ele próprio afirma em Contribuições à filosofia (1936/38) - serve tão-somente para pensar como podemos usar humanamente uns aos outros, mas não para determinar como devemos proceder a fim de cuidarmos, de maneira ainda humana, uns dos outros e de nós mesmos. Mas Heidegger não determinou, no entanto, com a necessária precisão, as condições concretas de cuidado humano para com os seres humanos. Recolocada sob condições antropológicas efetivas, a busca de uma defesa contra a intrusão técnica não será mais pensada como espera de um deus que nos salve, mas redirecionada para uma integração da técnica que, contudo, - essa é uma condição que pode ser derivada do próprio Heidegger - não poderá mais ter o caráter de uma totalização. Pensando anti-hegelianamente, à maneira de Heidegger, podemos dizer que, paradoxalmente, a condição fundamental da integração da técnica é uma nova capacidade do gênero humano, a ser criada ainda: a de permanente não-integração.

Mesmo uma leitura superficial dos textos de Sloterdijk revela que a sua imagem da modernidade pertence ao gênero de "fantasia filosófica", longe, portanto, de qualquer tratado ou ensaio. A sua "naturalização" da clareira heidegge- riana beira a paródia, além de passar por cima do mais importante fenômeno que se manifetsa nesse espaço: a multiplicidade dos sentidos do ser. Obviamente, não estamos mais no domínio da filosofia acadêmica, que discute teses, e, menos ainda, da ciência, que explica fatos, mas no âmbito de um discurso que conviria ser chamado de midiático, que chama a atenção. Uma das caraterísticas desse discurso é o uso de retoricação no lugar de teorização. O próprio Sloterdijk esforça-se no artigo: "Que é a solidariedade com a metafísica no momento de sua queda?" em tematizar a principal figura retórica de seus textos: a da hipérbole, dizendo que o sur do surrealismo, o meta da metafísica, o trans da transcendência são todos eles derivados do hiper da hipérbole. O "transcendencialista" Heidegger - que busca o ultrapassamento da técnica em termos de um destinamento do ser que se torna destino - é, no essencial, ainda um semi-hiperbólico, alguém que não atingiu a liberdade da fala baseada na eman- cipação do casual, anunciada por Nietzsche, diz Sloterdijk, e praticada exemplarmente, poder-se-ia acrescentar, por Deleuze (pp. 272-3).

Quando se lê Sloterdijk, é difícil ver, contudo, como uma mera mudança do registro de discurso, isto é, de retórica, pode ajudar - a não ser de maneira meramente inspira-cional - a tratar do problema central da pós-modernidade pós-metafísica: o do cuidado humano dos seres humanos, nas condições em que a artefactualidade vai substituindo, de modo crescente e irreversível, a natufactualidade. Concordo em dizer que o segundo Heidegger precisa ser relido numa chave antropológica. Mas essa chave não pode ser a de uma antropologia fantasiosa ou arcaica, tal como a praticada por Sloterdijk, muito menos uma antropologia que, como diz o autor num outro texto, seja, quando não a servente, então a discípula da teologia (Sphären, v. I, p. 54). Vejo ainda como grande perda conceitual o descaso de Sloterdijk com a esquizofrenia heideggeriana, isto é, com a sua insistência no caráter não objetificável e, portanto, não naturalizável do ser livre e do ser si mesmo do ser humano. Academicamente, os textos de Sloterdijk são um artifício hiperbólico que visa convencer sobretudo por incomodar. Consideradas como inspirações ou, para falar como Sloterdijk, como expirações, as sugestões ali contidas encontram-se, contudo, entre as mais interessantes leituras que oferece a língua de Goethe nos dias de hoje.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: loparicz@uol.br

Recebido em 11 de novembro de 2002.
Aprovado em 10 de dezembro de 2002.