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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.2 São Paulo dez. 2002

 

IN MEMORIAM

 

Pierre Fédida (1934-2002)

 

 

Leopoldo Fulgêncio

 

 

Desde primeiro de novembro de 2002, a psicanálise não poderá mais contar com Pierre Fédida. Sua morte súbita, causada por um acidente vascular cerebral, aos 68 anos de idade, interrompe uma das mais profícuas contribuições nessa disciplina, tanto no campo teórico quanto no clínico. As reflexões de Fédida sobre a situação analítica, o lugar do analista, a contratransferência, o humanismo e a ação do analista, os casos clínicos em psicanálise, o primitivo no psiquismo, o valor positivo da depressão, a feminilidade, a questão sobre a condição e a definição do próprio ser humano _ para mencionar apenas alguns de seus temas _ mostram um tipo singular de psicanalista que, sem abandonar a especificidade de sua disciplina, soube usar os conhecimentos advindos de diferentes áreas do saber (em especial da filosofia, da estética e da antropologia) para levar mais longe o pensamento analítico. Como costumava dizer, lembrando Ferenczi, "quanto mais distante for a analogia, maior a possibilidade de se obter algo novo e significativo".

Fédida manteve-se como pensador independente. Não se filiou a nenhuma escola, nem criou uma nova. Suas referências constantes a Freud, e a sua própria atividade como analista, pareciam servir como seu porto seguro e fonte de onde partia seu pensamento. Seu modo de escrever e teorizar se aproximava mais de uma intervenção clínica do que de um sistema intelectual estruturado tal como um edifício. No correr de seus textos, é-se, por vezes, surpreendido por suas formulações que, logo após, parecem velar-se no tempo, mas que acabam por permanecer ativas na memória do leitor-paciente, levando-o a novas sínteses. Teorizar era, para ele, um outro modo de pensar o material clínico, um outro modo de existir, num texto _ verbal ou escrito _ sempre pouco disposto a desvelar-se totalmente. Esse modo de teorizar não o levava, no entanto, a considerar que fazer clínica e fazer teoria fossem a mesma coisa; para ele a fala clínica, propriamente dita, tinha um regime e uma racionalidade diferente da fala do professor ou fala teórica, e caso fosse preciso passar de uma à outra, ele aconselhava que o analista pudesse dormir e tivesse, ao menos, um sonho. Ainda que fosse filósofo de formação, Fédida jamais considerou que a psicanálise fosse um tipo de filosofia, religião ou qualquer outro tipo de conhecimento que se apresentasse como uma "visão de mundo".

Pierre Fédida nasceu em 30 de outubro de 1934, em Lyon, num meio modesto, mas que lhe garantiu o solo seguro para seguir sua formação intelectual. Agrégee em Filosofia e Docteur d'Etat em Letras e Ciências Humanas, Fédida foi membro da Association Psychanalytique de France (APF), ocupando inclusive a sua presidência (1988); foi também, até o fim da vida, professor da Université Paris 7 _ Denis Diderot, onde dirigiu a Formation Doctorale de Psychopathologie Fondamentale-Psycahanalyse-Biologie. Nessa universidade, fundou o Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse e o Centre du Vivant, agregando diversos pesquisadores e colocando a psicanálise na discussão direta com outras disciplinas; teve, também, uma atividade editorial intensa, tanto em termos dos livros que escreveu sozinho (Le concept et la violence; Corps du vide et espace de séance; L'Absence; Crise et contre-transfert; O sítio do estrangeiro. A situação psicanalítica; Clínica psicanalítica: estudos; Nome, figura e memória. A linguagem na situação psicanalítica; Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia etc.) ou em parceria com outros analistas (Par où comence le corps humain; Psychopathologie de l'expérience du corps; Soinger sans risques; Qu'est-ce Qui guérit dans la psychothéerapie; Comment peut-on être vivant en Afrique; Faut-il vraiment cloner l'homme?; La sexualité a-t-elle un avenir? etc.), quanto em relação às revistas de psicanálise, tendo sido editor da Revue Internationale de Psychopathologie e membro de diversos conselhos editoriais de outras iniciativas semelhantes, entre elas, da Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas Natureza Humana e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.

Suas principais referências teóricas, citando apenas alguns exemplos, foram: Freud, autor que raramente deixava de citar em suas reflexões; Ludwig Binswanger, com quem iniciou sua formação como clínico; Husserl, Heidegger e Mearleu-Ponty, filósofos que lhe deram uma perspectiva específica para seu modo de pensar; Henry Maldiney, a quem considerava seu mestre; e Georges Didi-Huberman, a quem se referia como seu amigo. Seus interesses também o levaram a analisar, durante anos, a obra de Paul Klee, além de uma grande parte da produção artística relacionada às "artes negras"; estudos que ele costumava importar _ com os devidos cuidados _ para o campo analítico. Entre os psicanalistas e clínicos em geral, além de conhecer com profundeza as obras de Lacan, Klein, Bion e Winnicott, tinha também em grande apreço por Ferenczi, Harold Searles, Nicolas Abraham, Maria Torok e Kimura Bin. Interagiu com quase todos os grandes nomes da psicanálise de sua época; nos últimos anos, também vinha trabalhando com psicanalistas brasileiros, dentre eles Luis Carlos Menezes e Manoel Tosta Berlink.

Sua maneira de tratar seus alunos, às vezes de forma severa, parecia ter como função colocá-los como pesquisadores dos quais ele esperava diálogo e contribuições, e não filiações. Pude assistir suas conferências semanais na Paris 7, nas quais ele fazia um verdadeiro laboratório para seu pensamento, propondo hipóteses e temas que, às vezes, muitos acabavam por tomar como objeto para pesquisas mais aprofundadas, tais como: o psiquismo como um fóssil, o autismo como um protótipo para o psiquismo, "les moulages" de Rodin com uma perspectiva analógica para conceber a construção do psiquismo, o primitivismo da "arte negra" referindo-se ao mais primitivo no humano etc. Homem de humor fino e inteligente, Fédida gostava de divertir-se, dizendo, em poucas palavras provocativas, suas posições teóricas: "a psicossomática me irrita! Vai-se muito mais longe mantendo-se em apenas um dos campos", "a psicanálise não é um humanismo", "a psicanálise não pode, de forma alguma, constituir-se em uma teoria da comunicação", "a espécie humana não deu certo", "o indivíduo é o sintoma", "a sexualidade é um fiasco", "a cor da feminilidade? Noir, o continente negro irrepresentável" etc. Entre risos e calorosas discussões, sua mensagem estava dada e registrada afetivamente. Como Directeur de Recherche, não era paterno nem materno, exigindo sempre o mesmo rigor e dedicação que ele mesmo dirigia aos seus trabalhos, propondo aos seus orientandos um diálogo intelectualmente maduro. Ele sempre exigia que lhe enviássemos por escrito o que pretendíamos discutir com ele. Quando nos reuníamos, ele esperava que falássemos sobre o problema a ser trabalhado _ tinha-se, neste momento, a sensação de que ele não tinha lido o que lhe fora enviado _ e, depois, fazia alguns comentários sobre o núcleo de nossas preocupações, indicava leituras e, de repente, dizia algo que só poderia vir de quem lera com atenção profunda o que tínhamos escrito. Alguns de seus comentários permaneciam ressoando em nossas mentes dias a fio, e até hoje, de forma inesperada, lembro de uma ou outra de suas intervenções. Guardo de um desses encontros de orientação uma cena inesperada, carregada de simplicidade, humanidade, mas sem sentimentalismo: ao entrar na sua sala, no Laboratoire, vi que ele estava com seu filho pequeno sentado ao seu lado, desenhando; entre um comentário ou outro sobre meu trabalho, atendia às requisições de seu menino que queria mostrar-lhe o desenho de papai Fédida com seu bigode; afagando, então, os cabelos de seu filho me disse: "... il faut que vouz lisez George Didi-Hubermam, L'invention de l'histerie, pour penser l'analogie chez Freud, au sens clinique".

Foi um homem dedicado às instituições psicanalíticas, seja no interior dessas, seja na universidade, defendendo que a psicanálise devia ocupar lugar na academia, tanto para o seu desenvolvimento _ libertando-a de certos vícios das sociedades de psicanálise, e colocando-a mais próxima de parâmetros universais de avaliação e discussão _, quanto no que diz respeito às relações com outras disciplinas, em especial lutando contra os ataques advindos das neurociências, das ciências cognitivas, do experimentalismo e do comportamentalismo. Não era ingênuo, e todos sabiam disso; quanto ao futuro da psicanálise, tinha plena consciência de que "tudo está, ainda, apenas começando".

A obra de Fédida fica, pois, como uma fonte preciosa de estímulos para os psicanalistas.