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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Contribuições de Wittgenstein à epistemologia da psicanálise

 

Wittgenstein’s contribution to the Epistemology of Psychoanalysis

 

 

Marco Antonio Frangiotti

Departamento de Filosofia. Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa mostrar que a crítica de Wittgenstein a Freud pode ser epistemologicamente útil para evidenciar algumas dificuldades teóricas da parte metapsicológica da psicanálise, em especial as observações insistentes de Freud de que a sua psicologia profunda deve ser considerada como uma ciência dos fenômenos psíquicos.

Palavras-chave: Psicanálise, Ciência, Linguagem, Determinismo, Metafísica.


ABSTRACT

This article seeks to demonstrate that Wittgenstein's criticism of Freud can be epistemologically fruitful to pinpoint some insurmountable theoretical difficulties in the metapsychological aspect of psychoanalysis, especially with regard to Freud's insistent remarks that his deep psychology must be viewed as a scientific approach of psychic phenomena.

Keywords: Psychoanalysis, Science, Language, Determinism, Metaphysics.


 

 

1. Introdução

A idéia central da crítica de Wittgenstein à psicanálise consiste na tentativa de impugnar a idéia de Freud acerca do suposto caráter científico de sua psicologia profunda. De diferentes maneiras, Wittgenstein procura examinar as explicações psicanalíticas comparando-as com aquelas da ciência. Assim, ele levanta três problemas cruciais que colocam em cheque a coerência e a validade da estratégia geral de Freud. Primeiro, o caráter mitológico - e portanto não-científico - das explicações psicanalíticas. Segundo, a alegação de que a validade das explicações do analista depende, em última instância, do consentimento do paciente, o que a torna incompatível com a suposta objetividade das abordagens científicas. E, terceiro, a confusão freudiana entre razões e causas ou entre explicações baseadas em motivos e explicações causais.

No que se segue, examinaremos cada uma dessas três críticas com o intuito de pôr em evidência algumas dificuldades intrínsecas da metapsicologia freudiana. Antes, porém, procuraremos apresentar a relevância de uma abordagem epistemológica da psicanálise em geral, destacando a tentativa de Freud de oferecer um suporte teórico às suas descobertas clínicas. Do mesmo modo, procuraremos justificar a importância do debate sobre a cientificidade da psicanálise. Essas incursões gerais no universo mais propriamente filosófico servirão de base para a caracterização de Wittgenstein acerca da psicanálise.

 

2. Por que uma epistemologia da psicanálise?

Uma reflexão epistemológica da psicanálise é, via de regra, vista com reservas por alguns psicanalistas. Ao apontar as dificuldades conceituais dos princípios e pressupostos centrais da psicanálise, bem como da coerência interna da metapsicologia freudiana, os filósofos estariam negligenciando um aspecto essencial da psicanálise, a saber, a experiência clínica que eles não possuem. Nesse sentido, eles não podem comprovar a eficácia das teses freudianas na prática; portanto, eles devem ou permanecer distantes da psicanálise, ou aproximar-se dela como aprendizes e não como juízes. Para tais psicanalistas, a coerência da teoria freudiana se verifica na sessão de análise e não na reflexão do filósofo. A propósito disso, o próprio Freud assinala que, por não dispor da experiência dos fenômenos clínicos, a filosofia é incapaz de solucionar problemas como aqueles dos sonhos e da hipnose e, desse modo, conclui erroneamente que a hipótese do inconsciente é absurda e facilmente refutável através de regras lógicas (cf. Freud 1923b, p. 239).

O abismo que parece separar a filosofia da psicanálise aumenta quando levamos em conta que Freud chega a comparar os filósofos com os paranóicos - por centrarem suas reflexões na auto-observação e por produzirem ilusões - e com os esquizofrênicos - por coisificarem as representações verbais e por elaborarem suas próprias realidades ao proporem sistemas especulativos herméticos e auto-suficientes.1 O filósofo é vítima de suas próprias ilusões ao acreditar que sua doutrina apresenta um quadro completo e sem falhas da realidade e ao observar esse quadro ruir diante de novas doutrinas que se apresentam (cf. Freud 1933, p. 173). Ao mesmo tempo, por supervalorizar a magia das palavras e por idealizar o real, a filosofia guarda semelhanças com o modo animista de conceber o mundo (cf. ibid., p. 178). Assim, aparentemente, aos olhos de seu criador, a psicanálise parece não apenas prescindir da filosofia; ela contribui para dissipar problemas filosóficos, bem como abrir novos horizontes para o conhecimento do psiquismo humano (cf. Freud 1913, p. 406). Se assim é, uma filosofia da psicanálise parece ser desnecessária e perniciosa.

Freud, contudo, nem sempre se refere à filosofia de maneira negativa. Numa carta a Fliess datada de 1896, não apenas a filosofia é apresentada como um ideal a ser alcançado; a prática terapêutica é afirmada como tendo sido uma imposição: "Quando eu era jovem, a única coisa que aspirava era o conhecimento filosófico, e agora que estou indo da medicina para a psicologia, encontro-me prestes a atingi-lo. Tornei-me um terapeuta contra a vontade..." (Freud 1954, p. 132).

Muito tempo depois, já em sua última fase intelectual, ele confessa que a especulação e a teorização são essenciais no desenvolvimento de qualquer investigação:

Se nos perguntarem como e com quais recursos fazemos isso, não será fácil achar uma resposta. Podemos apenas dizer: "Deve-se, pois, recorrer à Feiticeira". A Metapsicologia da Feiticeira. Sem especular e teorizar metapsicologicamente - quase disse fantasiar -, não damos um passo à frente. (Freud 1937a, p. 69)

Tais passagens sugerem que Freud inicialmente aspirou ao saber filosófico mais do que à clínica e, após dedicar-se a esta última por várias décadas, não deixou de reconhecer a importância das especulações extra-clínicas, pois sabia que era necessário empreender um grande esforço teórico a fim de estabelecer os alicerces de suas descobertas. Assim, seria um equívoco caracterizá-lo apressadamente como um adversário da filosofia. Mas, aqui, então, encontramo-nos diante de um dilema: as passagens acima aparentemente conflitam com as referências derrogatórias à filosofia, espalhadas em escritos de diferentes épocas.

Creio, porém, que esse dilema pode ser facilmente dissipado se levarmos em conta uma distinção importante, a saber, aquela entre o saber filosófico enquanto tal, com suas doutrinas e correntes de pensamento, e o modo filosófico de refletir. Através deste último passamos a considerar os pressupostos teóricos que regem nossa concepção de mundo, a contextualizar os problemas que se nos apresentam e a comparar diferentes métodos entre si. Nesse sentido, Freud pode ser visto, ao mesmo tempo, como se opondo às doutrinas filosóficas clássicas da metafísica tradicional, por se encontrarem repletas de ilusões fantasísticas - embora ele absorva, malgré lui, muitos dos conteúdos dessas doutrinas em suas próprias teorizações; e utilizando o modo filosófico de investigar os problemas teóricos que, não obstante surgirem da prática clínica, não podem ser respondidos dentro de seus limites estritos, requerendo, pois, uma boa dose de especulação.

Mais especificamente, os dados clínicos colhidos pelo psicanalista apresentam certos fatos básicos recorrentes, como a repressão, a resistência e a transferência,2 que se encontram enraizadas, via de regra, na história sexual do paciente, em especial no problema edipiano (cf. Freud 1913, pp. 407 e ss. e Freud 1916c, p. 341). Assim, é preciso enfatizar que a psicanálise se desenvolve a partir dos dados colhidos da análise clínica (cf. Freud 1925a, p. 104 e ss. e Freud 1916c, p. 250). Ora, ocorre que as descrições empíricas suscitam questões inevitáveis, que não podem ser respondidas com mais experimentos e exigem, ipso facto, uma "superestrutura especulativa (spekulativen Überbau)" (Freud 1925b, p. 58), cuja lógica interna prescinde da realidade experimental.3 As especulações, na verdade, levam-nos a manipular abstrações que nem sempre exibem conexão com a experiência:

Mesmo na descrição, não se pode evitar o emprego de certas idéias abstratas ao material trabalhado, idéias provenientes de diversas fontes, não apenas das novas observações [...] Enquanto se encontram nessa condição, compreendemos seu significado através de repetidas remissões ao material de experiência do qual parecem ter provindo, mas o qual, na verdade, é submetido a elas. (Freud 1916a, p. 210)

Os dados da clínica precisam ser organizados e interconectados a fim de garantir a compreensão e a explicação dos fenômenos psíquicos. A observação pura e simples é impraticável. As abstrações, que acabam se impondo aos dados empíricos, vão se tornando cruciais no decorrer da pesquisa. Tais idéias nada mais são do que as hipóteses, pressupostos e postulados teórico-metodológicos que alicerçam explicações; elas extravasam o âmbito da experiência e inauguram um tipo de reflexão que se ocupa não tanto da prática propriamente dita, mas das relações internas estabelecidas entre conceitos.4

A coerência e o poder explicativo dessa reflexão servem, entre outras coisas, para assegurar a supremacia teórica da psicanálise (Freud 1916c, p. 13). Isso explica a necessidade que Freud cedo mostrou de elaborar uma metapsicologia, destinada "a esclarecer e aprofundar as suposições teóricas subjacentes a um sistema psicanalítico" (Freud 1916b, p. 412n). Nessa tarefa, a remissão à metafísica elaborada pelos filósofos é fundamental: seus sistemas nada mais são do que psicologias projetadas no mundo exterior e podem servir de guia para a elaboração de uma psicologia do inconsciente (cf. Freud 1901, p. 288).

Ao mesmo tempo, a metapsicologia se torna um instrumental teórico indispensável, por exemplo, no momento em que a psicanálise é confrontada com as psicologias clássicas da consciência, que trabalham com a suposição de que o psíquico se restringe tão-somente à consciência.

[N]esse caso, a Psicologia limitar-se-ia a distinguir entre os fenômenos psíquicos as percepções, os sentimentos, os processos de pensamento e as volições. No entanto, [...] esses processos conscientes não formam séries contínuas [...]; assim, não haveria alternativa para a pressuposição de que existem processos [...] mais completos que as seqüências psíquicas, visto que alguns teriam processos conscientes paralelos a eles, mas outros não. Desse modo, é natural tratar, em Psicologia, desses processos somáticos, reconhecendo neles o autêntico psíquico [...]. (Freud 1940, pp. 79-80)

Por não disporem de um quadro teórico a partir do qual se possa conceber um inconsciente por trás da consciência ou por considerarem essa idéia absurda, as psicologias da consciência se limitam a descrever os fenômenos psíquicos tais como eles se nos apresentam, sem jamais poderem explicar as interrupções dos processos conscientes. Elas, na verdade, não obtêm êxito "no sentido de revelar o que é inconsciente ao paciente. Antes, [elas tornam esse paciente] (...) incapaz de superar suas resistên-cias mais profundas e, em casos mais graves, invariavelmente fracassam" (Freud 1912, p. 384).

A superioridade da psicanálise ante as psicologias tradicionais advém da hipótese do inconsciente, que é estabelecida, por sua vez, das observações dos dados clínicos. Essa hipótese, contudo, traz consigo questões teóricas que exigem a elaboração de modelos conceituais de explicação. Em virtude disso, Freud introduz três pontos de vista na caracterização metapsicológica do aparato psíquico: o dinâmico - no qual os processos mentais são descritos por intermédio de forças que muitas vezes se opõem umas às outras; o topográfico - no qual os processos mentais são descritos com base em regiões da mente com funções específicas; e o econômico - no qual a ênfase explicativa recai sobre as energias psíquicas e suas atuações no aparelho psíquico (Freud 1915, p. 281). Tais abordagens, vale notar, não pretendem de modo algum ser exaustivas. Nada impedirá o psicanalista de voltar à experiência e rever sua elaboração teórica, "podendo qualquer parte [dessa elaboração] ser sacrificada ou alterada, sem prejuízo ou pesar, no momento em que a sua insuficiência tenha sido demonstrada" (Freud 1925b, p. 58; cf. Loparic 2001, pp. 100-1).

Tomadas em conjunto, essas considerações permitem-nos dirimir as reservas dos psicanalistas com respeito à reflexão epistemológica sobre a psicanálise apontadas acima. Em primeiro lugar, a reflexão epistemológica incide mais diretamente sobre os modelos teóricos encontrados na parte metapsicológica da psicanálise, investigando a coerência, a consistência e a força explicativa dos modelos propostos. Isso quer dizer que a epistemologia não está interessada em avaliar a prática psicanalítica ante outras formas de psicoterapias; essa questão foge ao alcance do epistemólogo e deve ser respondida no âmbito da clínica, com exemplos de sucesso ou insucesso terapêuticos, com generalizações empíricas, com comprovações ou refutações de hipóteses, etc. Mesmo que as reflexões epistemológicas nos levem a concluir que a metapsicologia freudiana apresenta inúmeras insuficiências teórico-metodológicas, disso não se segue a impugnação pura e simples da parte clínica da psicanálise. O máximo que essas insuficiências podem indicar é que o sistema especulativo apresentado é insatisfatório ante a riqueza dos dados empíricos colhidos da prática e precisa, a fortiori, ser revisto, aumentado e aperfeiçoado.

Mas isso não é tudo. Se, de um lado, é um equívoco advogar a insuficiência clínica levantando dificuldades epistemológicas, também é preciso pôr em evidência, de outro lado, o equívoco de se recorrer ao sucesso clínico para resolver os problemas epistemológicos. Melhor dizendo, as questões epistemológicas são essencialmente conceituais e não podem ser resolvidas com exemplos práticos apenas. Isso seria o mesmo que tentar justificar epistemologicamente a astrologia enumerando os sucessos preditivos já alcançados. Tal justificação, ao contrário, deve ser constituída a partir de uma investigação acerca das bases teóricas das explicações astrológicas e não pelo sucesso ou insucesso de suas práticas. O mesmo pode ser dito de áreas menos controversas, como a astronomia ou a física. O modelo newtoniano de explicação do universo, por exemplo, ainda hoje permite ao estudioso dos astros determinar, com grau razoável de precisão, a posição de um planeta em uma determinada época do ano ou a velocidade média de um automóvel, dadas a distância percorrida e o tempo gasto. Nem por isso, entretanto, seus pressupostos teóricos (e.g., o determinismo, a concepção euclidiana do espaço, etc.) são considerados válidos. Como salienta Eysenck, "não podemos testar as hipóteses freudianas `no divã', do mesmo modo como não podemos decidir entre hipóteses rivais de Newton e Einstein indo dormir sob a macieira" (Eysenck 1963, p . 220).

 

3. A relevância do debate acerca da cientificidade da psicanálise

O ponto de vista epistemológico pode ser particularmente proveitoso para avaliar a adequação, por exemplo, da insistência de Freud com relação ao caráter científico da psicanálise. À primeira vista, esse parece ser um pseudoproblema. Hoje em dia, os psicanalistas parecem não considerar relevante essa discussão. Por um lado, tantas são as críticas à cientificidade da psicanálise que dificilmente poder-se-á encontrar uma defesa desse ponto de vista. Wittgenstein, por exemplo, põe em evidência o aspecto mitológico e/ou metafísico da psicanálise, procurando distingui-la da ciência, como veremos nas seções seguintes. Popper, por sua vez, afirma que as hipóteses psicanalíticas, por não poderem ser falseadas, não devem ser consideradas científicas; elas assemelham-se, antes, àquelas hipóteses encontradas na astrologia e na teoria da história de Marx (cf. Popper 1989, pp. 37-38). Grünbaum, ao contrário, sustenta que o problema da psicanálise é que suas hipóteses podem sim ser falseadas e devem, ipso facto, ser caracterizadas como não científicas (cf. Grünbaum 1984,

p. 280 e Grünbaum 1998, pp. 168 e ss.). Por outro lado, a própria concepção tradicional de ciência, que influenciou Freud e sua geração, foi sistematicamente questionada e impugnada por filósofos da ciência do século XX. Que ele pressupôs essa concepção, não há a menor dúvida. Por exemplo, ao comentar sobre o abandono da técnica de hipnose, Freud afirma que "essa experiência correspondeu muito bem à minha necessidade de estabelecer uma relação quantitativa entre causa e efeito também no campo psíquico" (Freud 1893, p. 288 e p. 259). Os encadeamentos de idéias produzidos pelo método de associação livre apresentam conexões causais, tais como aquelas encontradas nas explicações científicas convencionais. Do mesmo modo, o determinismo, que oferece o pano de fundo para esse tipo de explicação, deve ser aplicado nas descrições dos processos mentais, não deixando margem para o acaso. Ao comparar o tipo de explicação do mental em relação ao do supersticioso, Freud assinala:

[É] bem verdade que acredito no acaso externo (real), mas não no interno (psíquico). Com o supersticioso é o contrário. Ele nada sabe da motivação de suas ações e atos falhos que ocorrem supostamente ao acaso, preferindo acreditar que há eventos psíquicos acidentais... (Freud 1901, p. 286)

Essa visão determinista dos fenômenos mentais não se limita aos primeiros escritos psicanalíticos. Ao comentar que as idéias apresentadas pelo paciente não são acidentais, Freud reitera:

Eu estava plenamente convicto do rigor do determinismo dos processos mentais e não podia acreditar que uma lembrança do paciente, produzida mediante grande concentração, fosse inteiramente espontânea, sem qualquer referência à representação esquecida e por nós procurada. (Freud 1910, pp. 27-28)

Igualmente, em uma elucidação do método de associação livre, Freud afirma que o mesmo não tem nada de artístico: sua validade advém da idéia de que "todos eventos mentais são completamente determinados" (Freud 1920c, p. 311). Assim, a psicanálise deve ser vista como um sistema explicativo que visa o estatuto de ciência (cf. Freud 1940, p. 184); ao mesmo tempo, ela oferece um complemento indispensável ao saber científico:

Como uma ciência especializada [...], a psicologia profunda ou psicologia do inconsciente é totalmente incapaz de construir por si mesma uma visão de mundo, tendo de adotar a visão de mundo científica [...] A psicanálise tem um direito particular de seguir uma visão de mundo científica nesse ponto, pois não pode ser acusada de ter negligenciado aquilo que é mental na imagem do mundo. Sua contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental. E, aliás, sem tal psicologia, a ciência estaria bastante incompleta. (Freud 1933, pp. 170-171)

Como partes constituintes de um saber científico, as hipóteses da psicanálise podem ser comprovadas cientificamente. Com relação às hipóteses sobre os sonhos, Freud (1933) assinala que vários estudos foram realizados para comprová-las. Pacientes sob influência hipnótica eram instruídos a sonhar sobre temas sexuais:

Por exemplo, foi dito a uma mulher que sonhasse com relação sexual com uma amiga. Em seu sonho, ela aparecia com um saco de viagem no qual estava colado o letreiro: "Só para Senhoras". Experimentos ainda mais impressionantes foram efetuados por Betlheim e Hartmann, em 1924. Eles estudaram pacientes que sofriam daquilo que se conhece como psicose confusional de Korsakoff. A esses pa-cientes foram contadas histórias de cunho claramente sexual [...] Também aí surgiram os símbolos de órgãos sexuais e de relação sexual que conhecemos [...]. (Freud 1933, p. 23)

Ora, essa visão determinista da ciência já não pode mais ser sustentada epistemologicamente. Popper, por exemplo, inspirado em Hume, argumenta, entre outras coisas, que, em virtude do problema da indução, não há como garantir a verdade de proposições universais candidatas a leis científicas; a ciência deve se limitar a elaborar hipóteses e descartá-las quando sua força explicativa não puder mais dar conta de experimentos recalcitrantes e cruciais (cf. Popper 1972, cap. I). Thomas Kuhn assinala os aspectos histórico-sociológicos na produção do conhecimento científico, os quais muitas vezes se sobrepõem aos aspectos teórico-metodológicos dos paradigmas científicos (cf. Kuhn 1970). Feyerabend, por sua vez, expande o ponto de vista de Kuhn e procura desmistificar o método científico, nivelando as explicações produzidas por meio dele com explicações tradicionalmente colocadas fora da esfera científica (cf. Feyerabend 1975). Ora, em virtude desses pontos de vista, a aproximação que Freud tanto almejou entre psicanálise e ciência, quer seja legítima ou não, deve ser evitada a todo custo.

Creio, porém, que a relevância de um estudo sobre a cientificidade da psicanálise reside não tanto na legitimidade dessa aproximação tentada por Freud, mas, antes, no fato de, ao proceder dessa forma, Freud demonstrar suas reais intenções. Mais exatamente, o que se busca com uma consideração epistemológica sobre o status científico da psicanálise é examinar a convicção inabalável de Freud de estar elaborando a verdadeira teoria acerca dos fenômenos psíquicos ou que sua psicologia profunda, tal como uma teoria científica, apresenta uma supremacia indiscutível ante as outras teorias psicológicas. Essa convicção está fundamentada em uma classe de noções psicanalíticas que não são negociáveis, i.e., que não são passíveis de abandono ou alteração substancial. Portanto, um exame dos argumentos que dão sustentação a essas noções - argumentos esses apresentados por Freud em suas considerações sobre o caráter científico da psicanálise - constitui-se numa tarefa não apenas relevante, mas indispensável para a garantia da legitimidade das explicações psicanalíticas. Assim, no que se segue, colocamos em foco essa discussão e os argumentos que a compõem. Isso será realizado mediante remissão à crítica de Wittgenstein a Freud.

 

4. As críticas de Wittgenstein ao caráter científico da psicanálise

Wittgenstein, como de costume, oferece apenas considerações esparsas sobre a psicanálise. É possível, porém, reuni-las em torno da discussão sobre o estatuto de cientificidade da psicanálise. Para negar-lhe o status de ciência, Wittgenstein indica pelo menos três grandes restrições ao projeto metapsicológico freudiano, que ao mesmo tempo se interpenetram e se complementam. A primeira baseia-se na tese de que Freud produz uma mitologia ou um saber de cunho metafísico e não um saber científico. Nesse sentido, ela chega mesmo a tomar de empréstimo alguns dos principais pressupostos da metafísica. A segunda restrição, por sua vez, consiste no assentimento do paciente como critério de validação das construções explicativas do analista. Como esse assentimento depende, em última instância, do acesso do paciente aos seus próprios estados mentais, explicações desse tipo apresentam um grau de subjetividade que as coloca em desvantagem em relação às explicações científicas.

Finalmente, a terceira restrição diz respeito à suposta confusão freudiana entre razão (ou motivo) e causa: Freud teria, ao fim e ao cabo, oferecido explicações racionais como se fossem explicações causais, o que o distanciaria ainda mais da ciência. Vamos analisar cada uma delas nas seções abaixo.

4.1. A primeira restrição de Wittgenstein: mitologia e metafísica em Freud

Um ponto importante a partir do qual se pode perceber uma base metafísica em Freud consiste na relação entre o inconsciente e o consciente, assim como na suposta possibilidade de traduzir a linguagem do primeiro para a aquela do segundo. Nas palavras de Freud, "pode-se salientar que as interpretações feitas por psicanalistas são, antes de tudo, traduções de um método estranho de expressão para outro que nos é familiar" (Freud 1913, p. 403). A partir de agora, tentar-se-á demonstrar que tal possibilidade se baseia em uma concepção metafísica da mente. Com isso, poder-se-á evidenciar o caráter mitológico das teorizações metapsicológicas sobre o inconsciente.

Dentre os objetivos da psicanálise, pode-se destacar a tentativa de desvelar, ainda que de modo parcial e lacunar, a linguagem do inconsciente. Trata-se então de saber se essa tentativa é legítima. Melhor dizendo, é preciso averiguar se o inconsciente, tal como Freud o concebe, é passível de ser descrito em termos da linguagem que é, antes de tudo, uma produção do consciente. Será que o inconsciente se submete a uma descrição lingüística? Ou será que a narrativa psicanalítica dos processos inconscientes se funda numa pressuposição equivocada, a saber, que o inconsciente tem a mesma natureza do consciente?

Freud sustenta que o inconsciente não apenas pode, mas deve ser traduzido em um sistema notacional que nos é conhecido. Referindo-se aos sonhos, que são as janelas para o inconsciente, Freud assinala:

Quando interpretamos um sonho, apenas traduzimos um determinado conteúdo de pensamento (os pensamentos oníricos latentes) da "linguagem dos sonhos" para a nossa vida desperta. Dessa forma, aprendemos as peculiaridades dessa linguagem onírica e nos damos conta de que ela pertence a um sistema altamente arcaico de expressão. (Ibid.)

Wittgenstein, contudo, sustenta que não há uma linguagem do inconsciente à parte da linguagem do consciente. Isso porque toda linguagem é passível de tradução. No caso do inconsciente, embora o psicanalista se proponha a resgatar os elementos inconscientes a partir das categorias do consciente, o reverso não se dá. Isso fica claro quando Wittgenstein contrapõe-se à idéia de uma "linguagem dos sonhos":

Suponha que você considere um sonho como um tipo de linguagem. Uma maneira de dizer algo, ou de simbolizar algo. Deve haver um simbolismo regular, não necessariamente alfabético - tal como o chinês, vamos dizer assim. Podemos então descobrir uma maneira de traduzir esse simbolismo por meio da linguagem comum ou de pensamentos comuns. Mas a tradução tem que ser possível de ambos os modos. Deve ser possível, empregando-se a mesma técnica, traduzir pensamentos comuns por meio da linguagem dos sonhos. Como Freud reconhece, isso jamais é feito e não pode ser feito. Assim, podemos questionar se sonhar é uma maneira de pensar algo, se é uma linguagem no final das contas. (Wittgenstein 1982, p. 6)

Não é possível traduzir as categorias do consciente para aquelas do inconsciente. Desse modo, o inconsciente não é lingüístico. Se insistirmos no contrário, seremos obrigados a afirmar que o inconsciente de algum modo se sujeita aos padrões categoriais do consciente; nesse caso, porém, a idéia de uma linguagem do inconsciente deverá ser considerada como uma versão codificada e obscura da linguagem do consciente. Freud, na verdade, concorda com isso. Ele concede que as observações psicanalíticas são realizadas "com o auxílio das rupturas na seqüência de ocorrências `psíquicas': preenchemos o que é omitido fazendo deduções plausíveis e traduzindo-as em material consciente" (Freud 1940, p. 81; itálico meu). Ora, esse é exatamente o núcleo da crítica de Wittgenstein à abordagem freudiana do inconsciente. O discurso sobre ele não passa de uma elaboração lingüística como outra qualquer ou uma simples maneira de falar (cf. Wittgenstein 1982, p. 10). A propósito disso, contudo, vale lembrar as palavras de Gellner:

O inconsciente congrega forças sombrias e poderosas mas, ao mesmo tempo, fala a nossa língua - como um ébrio. A linguagem tosca, alógica, acategórica, falada pelo inconsciente, uma espécie de jargão humano, é, por um lado, suficientemente rudimentar para ser entendida pelas forças sombrias e agir como porta-voz e embaixador destas; mas, por outro lado, está suficientemente próxima da fala humana real para trocar mensagens codificadas com a consciência [...] (Gellner 1988, p. 182)

Poder-se-ia dizer que esse problema da tradução, no que concerne especificamente aos sonhos, deixa de lado semelhanças óbvias entre imagens oníricas e sinais lingüísticos. Sonhos são constituídos de aglomerados de imagens; negar a uma imagem seu caráter simbólico seria um grande erro. Mas Wittgenstein não o comete. Ele admite que "parece haver algo em imagens oníricas que guarda certa semelhança com uma linguagem" (Wittgenstein 1982, p. 4). O que está em jogo aqui não é, pois, a possibilidade de uma simbologia imagética ou de uma linguagem composta de imagens, ao invés de palavras. O que Wittgenstein objeta na estratégia geral de Freud é a pressuposição de uma linguagem preexistente (cf. Bouveresse 1995, p. 110), que deve ser compreendida, ainda que de maneira distorcida e incompleta, por meio de uma gramática conhecida que impugna a possibilidade de interpretações alternativas. No entanto, como salienta Wittgenstein, um sonho pode ser interpretado de múltiplas maneiras, como se referindo, por exemplo, ao falo ou ao ato sexual, ou a nenhuma dessas coisas (cf. Wittgenstein 1982, p. 3).

Freud, de fato, sustenta que o trabalho de interpretar sonhos requer o pressuposto de uma pré-estrutura lingüística:

Através das numerosas associações realizadas pelo paciente, chegávamos ao conhecimento de uma estrutura de pensamento que não podia mais ser descrita como absurda ou confusa, que se apresentava como um produto psíquico inteiramente válido, e do qual o sonho manifesto não passava de uma tradução distorcida, abreviada e mal compreendida. (Freud 1925b, p. 69)

Ao mesmo tempo, ele recorre à metáfora do quebra-cabeça para explicar a certeza e a incorrigibilidade da análise psicanalítica:

No final das contas, o que torna [o analista] certo é exatamente a complicação do problema à sua frente, que se assemelha à solução de um quebra-cabeça. Uma figura colorida, colada sobre uma folha fina de madeira [...] é cortada em um grande número de pedaços [...]. Se for possível reorganizar esses fragmentos [...] de modo a que a figura produzida adquira um significado, que não haja lacunas em parte alguma dela e que a totalidade se ajuste à moldura - se todas essas condições forem satisfeitas, então sabemos que o enigma foi solucionado e que não existe solução alternativa. (Freud 1923a, p. 308-9; itálico meu)

Assim, de acordo com Freud, há uma linguagem subjacente ao sonho e que é também completamente independente de sua interpretação. "Um sonho", diz ele, "é, portanto, também uma projeção, uma externalização de um processo interno" (Freud 1916b, p. 414). Esse processo deve ser acessado através do método psicanalítico de associação livre para que a mensagem nele contida possa ser adequadamente decodificada, isto é, para que o seu significado real, embora oculto, possa ser apreendido. Isso fica claro quando Freud assinala que o paciente pode possuir um conhecimento prévio do sonho, embora ele não saiba "que sabe e por isso acredita que não sabe" (Freud 1916c, p. 98). Há, assim, uma linguagem já formada e completa por trás das imagens oníricas, cujos enigmas se encontram prontos para serem interpretados e resolvidos.

Essa separação entre linguagem e pensamento constitui o pano de fundo contra o qual se pode compreender a crítica de Wittgenstein segundo a qual Freud produziu uma mitologia e não propriamente uma teoria científica da mente. De fato, segundo Wittgenstein, Freud criou uma narrativa hermética, repleta de personagens com características próprias, como nas narrativas míticas.

Freud se refere a vários mitos antigos [...] e afirma que suas pesquisas explicam como aconteceu de alguém pensar ou propor um mito desse tipo. Mas Freud fez algo diferente. Ele não deu uma explicação científica do mito antigo. O que ele fez foi propor um novo mito. O atrativo da sugestão, por exemplo, de que toda a ansiedade é uma repetição da ansiedade do trauma do nascimento, é justamente o atrativo de uma mitologia. "É tudo resultado do que aconteceu há muito tempo." Quase como referindo-se a um totem [...] Há uma persuasão em dizer "sim, é claro, deve ser assim". Uma poderosa mitologia. (Wittgenstein 1982, p. 9)

Essa acusação está associada à crítica de Wittgenstein à metafísica, segundo a qual os problemas filosóficos em geral surgem do entrecruzamento de jogos de linguagem. O discurso metafísico produz um enfeitiçamento dotado de alta dose de persuasão, que ilude a mente e obscurece o uso da linguagem. O metafísico passa a ser visto como um mitólogo que, com uma narrativa sedutora, promove a solução de todos os problemas e, por meio disso, converte os indivíduos a toda uma visão de mundo (cf. Wittgenstein 1969, §§ 92, 94-7, 167, 612). Assim, o filósofo gera toda uma classe de pseudoproblemas quando, por exemplo, procura jogar o jogo da descrição do mental segundo as regras do jogo da descrição do mundo exterior. Ao tratar dos processos mentais como objetos, os filósofos produzem mitologias (cf. Hacker 1996, p. 110). Nesse sentido, linguagem e realidade passam a ser concebidas como ontológica e epistemologicamente separadas, cabendo ao metafísico realizar a correspondência entre elas. Embutido nessa concepção encontra-se o pressuposto de que há uma linguagem que descreve inequivocamente os fatos reais e que deve, portanto, sobressair-se a todas as demais descrições.

No entanto, é uma ilusão pensar que a elaboração de uma linguagem com tais características seja factível (cf. ibid., p. 121). O que os metafísicos em geral não parecem perceber é que os seus sistemas filosóficos nada mais fazem do que propor uma mudança de notação das nossas experiências a partir da idéia de uma realidade completamente à parte de nossas capacidades cognitivas. Ao supor um real independente da linguagem, ele tenta inutilmente descrevê-lo por intermédio de uma notação precisa, verdadeira e definitiva. É nesse momento que os metafísicos se deparam com um obstáculo intransponível: uma concepção como essa é, antes de tudo, uma concepção e, como tal, deve poder ser expressa lingüisticamente. Se assim é, então, a menos que se possa apresentar alguma maneira de se obter um acesso seguro a essa realidade pré-lingüística independentemente da linguagem, tal concepção é logicamente insustentável. A referência a uma realidade que preceda logicamente as nossas capacidades cognitivas já pressupõe a sua conceitualização.

Nesse sentido, segundo Wittgenstein, parece haver em Freud uma tendência a substancializar as regiões da mente, principalmente no que diz respeito ao inconsciente. Aparentemente, não há problema em se supor que determinados pensamentos, desejos e volições sejam incons-cientes. O problema surge quando a expressão "ele deseja inconscientemente que..." é interpretada em termos da expressão "seu inconsciente deseja que...". Como Wittgenstein afirma:

Imagine uma linguagem em que, ao invés de se dizer "eu não encontrei ninguém no quarto", se dissesse "eu encontrei o Sr. Ninguém no quarto". Imagine os problemas filosóficos que surgiriam de tal convenção. Alguns filósofos instruídos nessa linguagem provavelmente não se sentiriam confortáveis com a similaridade entre "Sr. Ninguém" e "Sr. Smith". (Wittgenstein 1958, p. 69)

Dizer que o inconsciente deseja, pensa ou tem volições significa atribuir-lhe o caráter de agente. Nas palavras de Bouveresse,

A nossa idéia de inconsciente nos conduz ao mitológico com a noção de um agente escondido que tem seus próprios desejos, vontades, motivos, intenções, propósitos e estratégias [...]. O princípio da mitologização está em nossa necessidade de encontrar alguém ou algo responsável por tudo o que acontece; de modo que, quando uma ação é realizada "inconscientemente" e portanto não pode ser atribuída ao sujeito consciente, somos tentados a procurar um outro autor, que acaba inevitavelmente se confundindo com a figura de um agente consciente [...]. (Bouveresse 1995, p. 34)

Conferir ao inconsciente uma agência seria, no final das contas, equipará-lo, mutatis mutandis, ao consciente. Isso, por sua vez, remete-nos à idéia de um sujeito dotado de inteligência e intenção, que se confunde com a idéia de um homúnculo instalado em nossa mente e que é descrito por meio de um instrumental lingüístico singular e definitivo. Melhor dizendo, a "coisificação" do inconsciente requer a construção de uma linguagem particular, formada por conceitos e princípios com pretensão à verdade, a partir dos quais se possam produzir explicações válidas das ações do agente coisificado. Isso, contudo, reinstala a dicotomia objeto pré-lingüístico/linguagem.

Ora, se a separação entre linguagem e realidade é insustentável, também o é a idéia de que uma realidade destacada das concepções lingüísticas possa ser descrita por intermédio de um sistema conceitual válido, i.e., um sistema notacional unicamente a partir do qual essa realidade possa ser adequadamente caracterizada. O que há são diferentes sistemas de notação que surgem das nossas experiências ou, na terminologia de Wittgenstein, diferentes jogos de linguagem que surgem das mais variadas formas de conduta humana, quer dizer, de nossas formas de vida (cf. Wittgenstein 1953, § 23 e Wittgenstein 1978, p. 335).

É possível, pois, detectar uma tensão no pensamento de Freud aqui: de um lado, ele coisifica as partes da mente, o que o obriga a pressupor uma linguagem única e definitiva para dar conta do mental. Junto com isso, encontra-se a intenção de dotar a psicanálise do estatuto de cientificidade, na medida em que é a ciência (tradicional) que supostamente deteria o monopólio do discurso válido sobre o mundo (psíquico). De outro lado, ao defender a tradutibilidade da linguagem do inconsciente para aquela do consciente, Freud transforma o inconsciente, tal como Wittgenstein aponta, numa simples maneira de falar, esvaziando-o portanto de quaisquer traços ontológicos e abrindo caminho para uma concepção mais propriamente lingüística da psicanálise, que será aprofundada principalmente por Lacan, entre outros.

4.2. A segunda restrição: a crítica do assentimento

Freud realmente destaca a importância da concordância do pa-ciente ao comentar sobre o ato falho do orador que, ao convidar os presentes a brindar à saúde do chefe, utiliza o verbo alemão "aufzustossen" (arrotar) ao invés de "anzustossen" (brindar). Diante da recusa enfática do pa-ciente em admitir a correção da interpretação apresentada, Freud afirma:

Vejo que ele mostra um forte interesse pessoal em afirmar que seu ato falho não tem nenhum sentido [...] Agora, porém, [os senhores] julgam que me têm em suas mãos. "Então essa é sua técnica", ouço-os dizer. "Quando alguém que cometeu um ato falho diz algo com o qual o senhor concorda, ele é reconhecido como autoridade decisiva e final no assunto [...] Quando, porém, o que ele diz não se ajusta ao pensamento do senhor, então tudo o que o senhor diz é que isso não tem importância - não há necessidade de acreditar nele". Isto é bastante correto. (Freud 1916c, p. 43; itálico meu)

Freud objeta a essa linha de argumento fazendo notar que, muitas vezes, não apenas o não, mas também o sim do paciente deve ser encarado com reservas.

Um simples "sim" do paciente é ambíguo [...] [P]ode também não ter sentido ou mesmo merecer ser descrito como "hipócrita", uma vez que pode convir à sua resistência fazer uso de um assentimento em tais circunstâncias, a fim de manter oculta uma verdade que ainda não foi descoberta. (Freud 1937b, p. 49)

Aparentemente, Freud está, nessa passagem, antecipando a crítica de Wittgenstein e contrapondo-se a ela. O assentimento do paciente, por si só, não garante o sucesso da análise. É por isso que Freud aconselha o analista a utilizar "formas indiretas de confirmação":

Uma delas é uma forma de expressão utilizada, como que por consenso, com muito pouca variação pelas mais diferentes pessoas: "nunca pensei" (ou "jamais poderia imaginar") [...]. Isso pode ser traduzido, sem qualquer hesitação, por: "Sim, o senhor está certo [...] sobre meu inconsciente [...]". Confirmação igualmente valiosa ocorre [...] quando o paciente responde com uma associação que contém algo semelhante ou análogo ao conteúdo da construção. (Ibid, p. 50)

O que Freud considera insuficiente é apenas o sim ou o não do paciente quando tomados isoladamente. Se não houver apoio de informações posteriores, o analista não deve se contentar com um assentimento ou uma negativa pura e simples. No entanto, a confirmação final continua sendo necessária, para que a construção proposta de algum modo esteja sintonizada com a vida mental do paciente (cf. Moore 1962, p. 310). Em uma terminologia mais filosófica, os fatos (mentais) devem corresponder à teoria que se propõe explicá-los. Ora, o tipo de confirmação disponível ao analista, no final das contas, só pode ser obtido por intermédio do testemunho do paciente. É exatamente essa característica que distancia a psicanálise das chamadas ciências naturais. Na primeira, diferentemente do que na segunda, o critério de verdade repousa na informação proveniente do paciente, que não é passível de uma confirmação observacional geral. Isso quer dizer que a confirmação em psicanálise jamais pode ser publicamente legitimada. Parece, assim, que Freud não evita a objeção de Wittgenstein.

A essa altura, é possível imaginar uma linha de raciocínio em oposição ao ponto de vista de Wittgenstein. De um lado, ele procura mostrar o caráter subjetivo das explicações racionais das quais a psicanálise se vale, ressaltando o papel do assentimento do paciente. De outro, ele procura mostrar que essas mesmas explicações são realizadas contra o pano de fundo metafísico/mitológico oferecido por Freud, criticando-o por sua tentativa de construir um saber científico. Como diz Levy,

[...] há uma tensão fundamental aqui, pois, uma vez que o estado mental foi identificado, sua correta explicação pareceria ser dada pela mitologia aplicada; contudo, o assentimento ou não do paciente deve desempenhar um papel. (Levy 1996, p. 2)

Melhor dizendo, o alegado dilema consiste em afirmar duas teses aparentemente conflitantes: primeiro, que há uma construção teórica que se impõe ao paciente - porque é mitológica e portanto persuasiva e sedutora - e, segundo, que o critério de validação dessa construção depende do assentimento do paciente. Desse modo, ou a construção teórica depende da reação e da concordância subjetiva do paciente, ou ela prescinde dessa concordância, tendo em vista que a construção em foco deve ser pensada como mitológica e, portanto, dotada de critérios independentes da chancela do paciente.

Creio, porém, que essa objeção é infundada. A tensão apontada por Levy é apenas aparente. Na verdade, os dois elementos que ele apresenta como se opondo entre si devem ser vistos como complementares. O assentimento por parte do paciente não é dissociável do convencimento ao qual ele foi submetido pelo analista. A explicação psicanalítica, assim, deve ser encarada como um jogo de persuasão do qual o assentimento é, no final das contas, um simples subproduto (cf. Assoun 1990, p. 43). Uma evidência textual da influência da construção psicanalítica na condução das reações do paciente pode ser encontrada na seguinte passagem:

Explicando-lhe as coisas, colocando-o a par do maravilhoso mundo dos processos psíquicos os quais nós mesmos só começamos a compreender através dessas análises, transformamos [o paciente] num colaborador e o induzimos a considerar-se a si próprio com o interesse objetivo de um pesquisador, e assim afastamos a sua resistência, que repousa numa base afetiva. (Freud 1893, p. 285)

Essa passagem suscita uma réplica em defesa de Freud. Os mecanismos de resistência do paciente o impedem de adquirir um entendimento satisfatório de si mesmo. É preciso, pois, que o analista forneça elementos para que o paciente possa burlar a censura e desvelar suas emoções reprimidas. Trata-se, segundo Freud, de uma atitude educativa por parte do analista:

Esse trabalho de superação [das resistências] é a função essencial do tratamento analítico; o paciente tem de realizá-lo e o médico lhe possibilita fazê-lo com a ajuda da sugestão, no sentido de uma educação. Por esse motivo, o tratamento psicanalítico tem sido corretamente caracterizado como um tipo de pós-educação. (Freud 1916c, p. 469)

Mas precisamos ter em mente, neste ponto, que é inevitável que o analista procure convencer o paciente quanto à validade da construção psicanalítica proposta: "Também aprendi (...) a manter obstinadamente minha suposição, até haver vencido a insinceridade dos pacientes e havê-los obrigado a confirmar meus pontos de vista" (ibid., p. 401).

Há, pois, um trabalho de conversão que é indispensável ao processo psicanalítico. É somente através dessa conversão que o paciente pode vencer as suas resistências e se dar conta das representações que foram reprimidas e que jazem em seu inconsciente. A confirmação disso pode ser encontrada em Freud 1920a. Comentando o insucesso do seu antigo objetivo de tornar consciente o inconsciente pura e simplesmente, Freud destaca:

A princípio, o analista [...] pretendia apenas mostrar o inconsciente oculto ao paciente [...] Uma vez que isso não solucionava o problema terapêutico, um outro objetivo rapidamente surgiu, a saber, forçar o paciente a confirmar a construção do analista [...]. [E]ra aqui que a sugestão, funcionando como "transferência", desempenhava seu papel [...]. Contudo, tornou-se cada vez mais claro que o objetivo que fora estabelecido [...] ainda não era completamente atingível [...]. O paciente não pode recordar tudo - talvez exatamente o essencial - o que nele se encontra reprimido, e não adquire nenhuma convicção da correção da construção apresentada. Ao contrário, ele precisa repetir o material reprimido enquanto uma experiência contemporânea, em vez de, como o analista preferiria ver, recordá-locomo algo pertencente ao passado [...]. Se isso é realizado, a convicção do paciente é conquistada, e com ela o sucesso terapêutico [...]. (Freud 1920a, pp. 16-7; os dois primeiros itálicos são meus)

O fracasso da antiga estratégia psicanalítica deve-se ao fato de que, por intermédio dela, o analista se vê incapaz de produzir no pa-ciente a indispensável convicção acerca das interpretações apresentadas. Impossibilitado de ser persuadido pelas relações apresentadas pelo analista, o paciente simplesmente não consegue alcançar a pretendida cura. Assim, ele precisa ser obrigado a reviver, mediante a relação transferencial, uma experiência de seu passado que se encontra reprimida no inconsciente.

Um defensor de Freud poderia, a essa altura, fazer uma ressalva com respeito ao caráter persuasivo das construções explicativas que o analista impinge ao paciente. A passagem acima mostra que Freud não apenas está consciente desse ponto, mas também que ele o considera uma etapa indispensável do processo terapêutico, sem o qual a pretendida cura jamais pode ser alcançada. Disso, porém, não se segue que a tarefa do analista seja a de remodelar, de acordo com a sua própria conveniência, a vida mental do paciente. Freud (1893) deixa claro que imposições arbitrárias são cedo ou tarde refutadas pelos dados clínicos:

[A]prendemos com admiração que não estamos em condições de impor nada ao paciente sobre as coisas que ele supostamente desconhece, nem de in-fluenciar os resultados da análise estimulando sua expectativa. Jamais consegui, ao prever algo, alterar ou falsificar a reprodução das lembranças ou a conexão dos eventos, pois isso inevitavelmente teria sido desmentido no final por alguma contradição no material. (Freud 1893, p. 300)

Freud adverte que não se deve conduzir o paciente a um ponto que satisfaça a expectativa do analista. O paciente deve chegar às suas próprias conclusões, mesmo se estas acabem entrando em conflito com a associação do analista. A mesma estratégia é afirmada em Freud 1923c:

Na psicanálise, a inevitável influência sugestiva do analista desvia-se para a tarefa atribuída ao paciente de sobrepujar suas resistências [...]. Podemos defender-nos do perigo de falsificar os dados da memória de um paciente através do uso cuidadoso da técnica. Geralmente, porém, defendemo-nos dos efeitos enganadores da influência sugestiva por meio do surgimento das resistências [...]. O analista respeita a individualidade do paciente e não procura remoldá-lo a partir de seus próprios ideais; ele fica satisfeito quando evita conselhos podendo, assim, despertar a iniciativa do paciente. (Freud 1923c, pp. 226-7)

Tais passagens, porém, são plenamente compatíveis com a idéia de que o paciente, tendo sido já introduzido no universo teórico da psicanálise, pode prescindir das produções associativas do analista para realizar ele mesmo as suas próprias associações. Uma evidência disso pode ser encontrada no seguinte texto de Freud:

Em um bom número de casos, a análise divide-se em duas fases claramente distintas. Na primeira, o analista obtém as informações necessárias do paciente, familiarizando-o com os pressupostos e postulados da análise e revelando-lhe a construção da origem de seu distúrbio [...]. Na segunda fase, o próprio paciente se apossa do material apresentado, trabalhando sobre ele, fazendo o possível para lembrar-se do que foi supostamente reprimido por ele e procurando repetir o resto de modo a revivê-lo. Pode assim confirmar, suplementar e corrigir as exposições do analista. (Freud 1920b, p. 277)

Somente após o paciente ter sido iniciado na teoria é que ele adquire autonomia, devendo, assim, seguir por si mesmo na investigação de sua história mental. O analista, como o mestre diante do aprendiz, certifica-se de que o paciente já sabe como fazer as inferências corretas e como seguir as regras próprias da interpretação psicanalítica. Como diz Assoun: "se o analisando `age', é como `parceiro' do trabalho do analista. Este comunica-lhe a sua construção - alicerçada qua materia sobre suas lembranças, mas qua forma sobre o trabalho artístico do analista: este deve, portanto `fazer alguma coisa'" (Assoun 1990, p. 64).

Há um outro aspecto que deve ser levado em conta acerca dessa problemática. As passagens em Freud 1893, apresentadas há pouco, sugerem que qualquer ameaça de interferência do sistema teórico nas lembranças do paciente pode ser desmascarada, cedo ou tarde, ao se considerar a riqueza dos relatos subseqüentes do paciente. Aqui Freud parece estar pressupondo que o sistema teórico, ao fim e ao cabo, tem de se sujeitar ao crivo da estrutura mental previamente constituída do paciente, e não o contrário. Se o analista inverter essa ordem, i.e., se ele procurar moldar os fatos psíquicos à luz da teoria psicanalítica, seus esforços terapêuticos não terão êxito, pois esses fatos, ao serem pouco a pouco trazidos à tona durante o processo de análise, acabarão por desmentir as construções apresentadas. Deparamo-nos aqui, mais uma vez, com o pressuposto de uma vida mental pré-constituída, epistemologicamente independente da linguagem: como apontamos na seção anterior, Freud é flagrado novamente como um tributário de uma ilusão metafísica sub-repticiamente instalada em sua metapsicologia. Disso se segue o seguinte impasse: para evitar a admissão de que as associações do paciente são dirigidas pelo analista - o que evidencia o caráter persuasivo da psicanálise -, Freud se refugia na suposição de uma independência epistemológica do mental - o que o faz, malgré lui, emaranhar-se em um mito metafísico.

4.3. A terceira restrição: razões e causas

A crítica de Wittgenstein, de que as explicações psicanalíticas confundem razões e causas, não é gratuita e pode muito bem ser deduzida da aspiração determinista de Freud no sentido de conceber os fenômenos psíquicos como conectados causalmente, possibilitando, assim, a elaboração de explicações supostamente científicas. Para Wittgenstein, a distinção entre razão e causa se baseia no fato de que a primeira consiste de motivos que são estabelecidos mediante a concordância ou não do pa-ciente, enquanto que a segunda se conecta a fatos estabelecidos mediante experimentação:

Vejo uma confusão entre causa e razão aqui. O sucesso da análise deve ser mostrado pela concordância da pessoa. Não há nada correspondente a isso na física. É claro que podemos apresentar causas para a nossa risada, mas se elas são de fato causas não é mostrado pelo fato de a pessoa concordar que sejam. Uma causa é encontrada experimentalmente [...]. "Aquilo com o qual o paciente concorda não pode ser uma hipótese quanto à causa de sua risada, mas somente que tais e tais coisas são a razão pela qual ele riu". (Wittgenstein 1982, p. 10)

Enquanto o critério de verdade de explicações baseadas em razões ou motivos é a aquiescência do analisando, o critério de verdade das explicações causais se funda nos fatos colhidos via experimentos. O primeiro critério não pode ser testado, pois os dados aos quais ele se aplica são privados e somente acessíveis ao paciente. Já o segundo critério é, a princípio, testável, uma vez que os dados em questão são publicamente compartilháveis. Assim sendo, a psicanálise não é uma ciência, não obstante as insistentes tentativas de Freud em apresentá-la como tal.

Poder-se-ia objetar a essa linha de raciocínio ressalvando-se que Freud não faz distinção entre razão e causa porque, para ele, explicações baseadas em razões são redutíveis a explicações causais. Davidson pode ser visto como defendendo Freud dessa maneira. Os defensores de uma distinção precisa entre razão e causa procuram geralmente argumentar que a relação entre razão e ação é essencialmente diferente da relação entre causa e efeito. Relações do primeiro tipo exibem como característica básica o fato de lidarem com relações internas e lógicas a partir das quais são introduzidos motivos com o propósito de tornar inteligíveis as ações examinadas. Relações do segundo tipo, por sua vez, são relações externas e empíricas entre eventos no mundo. Para Davidson, porém, explicações do primeiro tipo expressam um tipo particular de explicações do segundo tipo (cf. Davidson 1980b, pp. 9-10). Na verdade, "uma razão é uma causa racional" (Davidson 1980c, p. 233). Explicações racionais podem apresentar ações como tendo sido produzidas por certas causas, identificadas como razões ou motivos para a sua ocorrência. Ao mesmo tempo, explicações causais podem ser tornadas analíticas ou sintéticas, dependendo da maneira como elas descrevem as causas em questão. Assim, pelo menos em alguns casos, determinar o motivo real da ação resulta em identificar o agente causal que efetivamente produziu a ação.

Se Davidson está correto, a linha divisória que distingue explicações racionais de explicações causais é tênue. Wittgenstein poderia, assim, ser acusado de conceber essa distinção de uma maneira radical, i.e., de sustentar que esses dois tipos de explicação são incompatíveis. Essa conclusão, porém, é incorreta. Wittgenstein admite que ambas exibem um certo parentesco (Wittgenstein 1953, § 630). A diferença básica entre elas é a maneira como jogamos ou aprendemos esses jogos de linguagem. Mais ainda, ele admite considerar um motivo como uma causa: "apresentar o motivo de uma ação é como afirmar o objeto do medo ou da alegria; o motivo, ou o objeto, pode também ser uma causa" (Wittgenstein 1979, p. 83). O ponto crucial aqui, como nos faz ver Bouveresse, é que

[...] mesmo se uma ação ou motivo puder eventualmente ser uma causa, ela não pode ser sempre apenas uma causa. Seria antes de mais nada um exagero [...] imputar a Wittgenstein a afirmação de que uma explicação racional e uma explicação causal são incompatíveis.

O que ele na verdade afirma é que explicações do primeiro tipo não são redutíveis àquelas do segundo tipo. O próprio Davidson reconhece que não há de fato uma maneira satisfatória de determinar que tipo de causa deve ser uma razão para alguém dizer que ela racionaliza a ação. (Bouveresse 1995, p. 77)

Uma explicação racional possui características distintas de uma explicação causal; embora possamos apresentar a primeira de um modo tal que se assemelhe à segunda, tais características não estarão devidamente representadas. O jogo de linguagem das razões envolve intenções, desejos, expectativas, etc. que não podem ser descritos, sem perda de significado, por meio do jogo de linguagem das causas. Se pudessem, jamais seríamos capazes de distinguir entre as ações que realizamos e os eventos que simplesmente acontecem à nossa volta. Melhor dizendo, jamais seríamos considerados agentes livres e, portanto, passíveis de imputação de responsabilidade pelas nossas ações. Embora compatíveis, explicações racionais e causais são irredutíveis: não é possível descrever os elementos intencionais envolvidos nas explicações racionais através do jogo de linguagem das explicações causais.

Finalmente, uma réplica à crítica de Wittgenstein poderia ser a seguinte: a distinção entre explicações racionais e causais parte de um pressuposto falso, qual seja, o de que as explicações causais na ciência são objetivas, enquanto que as racionais não o são. Mas as explicações científicas não são tão objetivas quanto se poderia esperar. Feyerabend, por exemplo, mostra que os cientistas recorrem muitas vezes a expedientes não científicos para conduzir suas investigações, como a poderosa retórica de Galileu ao apresentar suas descobertas. Se assim é, a distinção que Wittgenstein procura fazer não se sustenta.

Creio, porém, que é possível responder a essa réplica colocando em foco os métodos empregados em ciência e psicanálise, a partir dos quais se elaboram explicações. Se na ciência utiliza-se o método experimental, em psicanálise utiliza-se o método de associação livre, que consiste em incentivar o paciente a expressar indiscriminadamente tudo o que lhe vem à mente, dado um tema inicial qualquer. É possível mostrar que esse método psicanalítico é essencialmente diferente do método utilizado na ciência. Para tanto, é necessário recorrer a uma passagem na qual o método de associação livre é sistematicamente empregado (cf. Freud 1901, pp. 13 e ss.). Um jovem judeu austríaco que conversa com Freud durante uma viagem, ao se queixar do tratamento aos judeus na Áustria-Hungria, resolve citar o seguinte verso de Virgílio: Exoriare aliquis nostris ex ossibus ultor ("Deixe alguém originar-se de meus ossos como um Vingador"). No entanto, ele comete um erro ao fazê-lo e diz: Exoriare ex nostris ossibus ultor: isto é, ele omite aliquis e inverte a posição dos termos nostrix ex. Freud imediatamente considera esse erro um ato falho e resolve analisar o jovem judeu, chegando à conclusão de que a causa da sua omissão de aliquis residia no receio do rapaz de ter engravidado uma mulher italiana.

As associações se iniciam com o termo aliquis, que é sucessivamente relacionado a outros termos, como a Reliquien - Liquidation - Flüssigkeit (líquido). Depois, recorrendo a São Simão de Trento - um santo criança -, ele nos faz lembrar da criança cujo assassinato foi atribuído caluniosamente aos judeus no século XV. Em seguida, chega-se a San Gennaro (São Januário) e ao milagre do sangue coagulado que se liquefaz. Finalmente, a associação põe em evidência o receio do jovem judeu da ausência do fluxo de líquido, obviamente uma metáfora da interrupção da menstruação pela gravidez.

No entanto, esse ponto de chegada poderia ter sido atingido partindo-se de qualquer outro termo da citação latina, como nos faz ver Timpanaro:

Vamos supor que, aos invés de esquecer aliquis, o jovem judeu tivesse omitido exoriare, "surgir". Ele não teria tido nenhuma dificuldade em associar esse termo com "nascer" [...]. Agora, [...] vamos supor que o ato falho tivesse se dado com ossibus: ossos são típicas relíquias de santos católicos, e tendo uma vez alcançado o pensamento de relíquias de vários tipos, o caminho estaria novamente aberto a San Gennaro [...]. Finalmente, o que aconteceria se ele esquecesse ultor? Nesse caso, muitos itinerários seriam possíveis. Ultor não soa muito diferente de Eltern ("pais" em alemão), e esta palavra teria reconduzido nosso jovem ao doloroso pensamento de si mesmo e da mulher como pais [...]. (Timpanaro 1998, p. 97)

A idéia central aqui consiste no fato de que se pode chegar a um ponto qualquer - no caso, o medo do jovem judeu de ter engravidado uma mulher - partindo-se de qualquer outro ponto. Em suma: qualquer cadeia associativa pode levar aquele que a utiliza à conclusão esperada pelo analista. Curiosamente, Freud não se mostra preocupado com essa multiplicidade de caminhos. Após ter recebido de um leitor uma diferente conexão associativa entre as palavras exorcismo e San Gennaro, ele afirma: "Eu aceito esta correção de bom grado, pois ela não enfraquece o meu ponto de vista" (Freud 1901, p. 18). Parece então que não importa muito qual cadeia associativa estamos seguindo, desde que ela nos leve ao ponto almejado. Como diz Wittgenstein,

[...] o fato é que, sempre que se está preocupado com alguma coisa, como sexo, por exemplo, então não importa de onde se começa, a associação sempre conduz final e inevitavelmente de volta ao mesmo tema. (Wittgenstein 1966, p. 50-1)

Podemos agora contrapor a explicação psicanalítica à científica mais claramente. Em ciência, não é possível afirmar que uma dada conclusão pode ser alcançada a partir de diferentes conjuntos de premissas. Ao tentar explicar a queda de um objeto qualquer, o princípio da gravitação universal deve estar invariavelmente contido no conjunto de premissas. Quer dizer, explicações científicas apontam apenas para um caminho a ser seguido. É por isso que se pode dizer que elas são rigorosas. Tal rigor, porém, não pode ser confundido com infalibilidade: a explicação fornecida pode ser incorreta, devendo ser substituída por outra. Em psicanálise, porém, parece não haver possibilidade de erro. Se qualquer associação ou conexão de idéias pode nos conduzir à conclusão esperada, então, a princípio, todas as explicações construídas com o auxílio do método de asso-ciação livre serão corretas. Mas, se assim é, então as explicações psicanalíticas, na condição de serem confirmadas pelo paciente, colocam-se como infalíveis. A partir do momento em que elas se apresentam e o paciente as corrobora, não há como contradizê-las. Aliás, como já foi dito, mesmo se o paciente se opuser a elas, ele estará simplesmente exercendo sua resistência.

 

5. Conclusão

Vimos que Freud admite utilizar-se de abstrações, teorizações e mitologias e que estas compõem uma parte essencial da psicanálise. Ora, se levarmos em conta que nem mesmo a ciência está isenta de aspectos mitológicos ou metafísicos, como inúmeros filósofos da ciência do século XX argumentaram, parece ocioso e redundante encontrar Wittgenstein questionando a cientificidade da teoria freudiana insistindo em seu caráter mitológico. Além disso, como procuramos indicar nas seções precedentes, tal afirmação também pode ser deduzida dos compromissos metafísicos do determinismo científico com uma realidade pré-lingüística. Vimos também que Wittgenstein está a par disso. Quando o cientista lança mão de um termo ou uma proposição teórica, o que ele faz, na verdade, é introduzir uma nova forma de representar o mundo, e não uma afirmação cabal sobre ele.5 Mas apesar de compartilharem desse caráter mitológico/metafísico, ciência e psicanálise são dois diferentes sistemas notacionais ou dois diferentes jogos de linguagem. No esforço de mostrar isso, Wittgenstein destaca a intenção sub-reptícia de Freud, no sentido de assegurar à psicanálise um status privilegiado enquanto verdadeira teoria explicativa do mental. Poderíamos mesmo dizer, inspirados em Wittgenstein, que Freud se rende ao "enfeitiçamento" da ciência entendida de um ponto de vista determinista e tradicional e o transfere para o domínio de sua psicologia profunda, sem se dar conta de estar produzindo mais um discurso persuasivo e sedutor composto de ilusões metafísicas.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: marcofk2@yahoo.com

Recebido em 9 de dezembro de 2002
Aprovado em 10 de janeiro de 2003

 

 

1 Essas comparações podem ser encontradas em várias obras de Freud, como, por exemplo, Freud 1919, p. 327; Freud 1914a, p. 91; e Freud 1914b, p. 165, entre outras.
2 Sobre a repressão como fato básico da psicanálise, cf. Freud 1933, p. 74; sobre a transferência e a resistência como fatos básicos, cf. Freud 1914c, p. 54.
3 Sobre a necessidade de se levar em conta as possibilidades lógicas ao se formular hipóteses, cf. Freud 1900, pp. 516-7.
4 Sobre a elaboração de hipóteses reguladoras, por exemplo, para o estudo dos sonhos, cf. Freud 1916c, p. 97; sobre o uso do pressuposto determinista da atividade mental, cf. Freud 1910, p. 27; sobre o uso de postulados, por exemplo, na teoria da libido, cf. Freud 1914b, p. 157.
5 Afirmações como esta encontram-se espalhadas em diversas obras. Por exemplo, cf. Wittgenstein 1958, pp. 56-7; Wittgenstein 1979, I § 225; e Wittgenstein 1969, §§ 512-16.
* As citações foram traduzidas por mim.