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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003

 

TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

 

 

Observações referentes a Sobre o órgão da alma*

 

Observations referring to regarding the Organ of the Soul

 

 

Immanuel Kant

 

 

O Honradíssimo Senhor apresenta-me, para apreciação, a sua obra recém-terminada, que versa sobre um certo princípio da força vital nos corpos animais, o qual, considerado do lado da mera capacidade de percepção, é chamado de órgão dos sentidos imediato1 ()2, mas que, considerado do lado da união de todas as percepções numa determinada parte do cérebro, é denominado lugar-comum das sensações3 (sensorium commune)4. Por esta honra, estou-lhe especialmente grato, visto que esta me foi concedida por considerar-me alguém que não deixa de ter alguma familiaridade com a ciência natural.

Mas esta sua solicitação está relacionada a uma pedido de esclarecimento dirigido à metafísica (cujo oráculo, como dizem, está há muito tempo emudecido). Isso me causa embaraço, pois não sei se devo ou não aceitar essa honra. Com efeito, também está contida aí a pergunta sobre a sede da alma5 (sedes animae),6 tanto no que concerne à sua receptividade sensitiva (facultas sensitive percipiendi) quanto no que diz respeito à sua capacidade de causar movimento (facultas locomotiva). Portanto, foi-me dirigido um pedido de consulta, sobre o qual podem entrar em conflito duas faculdades, por causa da sua jurisdição (forum competens): a médica, na sua especialidade anatômico-fisiológica, e a filosófica, na sua especialidade psicológico-metafísica. Nessa situação, como em todas as tentativas de coalizão, podem originar-se desentendimentos entre aqueles que querem fundamentar tudo sobre princípios empíricos e aqueles que exigem fundamentos supremos a priori (o que ainda ocorre nas tentativas da unificação da doutrina pura do direito com a política, enquanto empiricamente condi-cionada, bem como nas tentativas de reconciliar a doutrina pura da religião com a doutrina revelada, também empiricamente condicionada). Esses desentendimentos repousam unicamente no conflito entre essas faculdades, relativo à questão de saber a qual delas pertence a pergunta quando é feito um pedido de consulta à universidade (tomada como uma instituição que abarca toda a sabedoria). No presente caso, quem segue o médico, enquanto fisiólogo, incompatibiliza-se com o filósofo, na sua qualidade de metafísico; e, inversamente, quem segue este contraria o fisiólogo.7

No fundo, é o conceito de uma sede da alma que provoca a discórdia entre essas faculdades com respeito ao órgão comum dos sentidos. Por isso, é melhor excluí-lo inteiramente da discussão. Uma justificativa adicional para tanto advém do fato de esse conceito implicar uma presença local que atribui uma relação espacial a uma coisa que é apenas objeto do sentido interno - e, nessa medida, só pode ser determinada segundo condições temporais -, pelo que, porém, esse conceito se torna autocontraditório; ao passo que uma presença virtual - que pertence somente ao entendimento e, por isso, justamente, não é local - introduz um conceito que torna possível tratar a questão apresentada (a do sensorium commune) como um problema meramente fisiológico.

Pois, apesar de a maioria dos homens acreditar sentir o pensamento na cabeça, isso é, no entanto, tão-somente um erro da sub-repção, a saber, o de confundir o juízo sobre a causa da sensação num certo lugar (do cérebro) com a sensação da causa nesse lugar e, em seguida, fazer com que os traços cerebrais das impressões ocorridas sobre o cérebro acompanhem, sob o nome de idéias materiais (Descartes), os pensamentos, segundo leis de associação, as quais, embora sejam hipóteses muito arbitrárias, não tornam necessária qualquer sede da alma; sendo assim, o problema fisiológico não se mistura com a metafísica.

Nos temos, portanto, de nos ocupar tão-somente da matéria que torna possível a união de todas as representações sensíveis no ânimo.8 De acordo com a descoberta devida ao profundo conhecimento analítico do Senhor, a única matéria que para isso se qualifica está contida na cavidade cerebral e é meramente a água, enquanto o imediato órgão da alma, o qual, por um lado, separa, uns dos outros, os feixes nervosos que lá terminam - para que as sensações recebidas através dessas terminações não se misturem - e, por outro lado, realiza uma comunidade geral entre eles, para que algumas delas, embora recebidas pelo mesmo ânimo, não fiquem dele excluídas (o que seria uma contradição).

Agora surge, contudo, uma grande dúvida: a de que - uma vez que a água, como fluido, não pode, de modo algum, ser pensada como organizada, sendo, portanto, sem organização, isto é, sem ordenação das partes, conforme fins e persistente na sua forma - nenhuma matéria serve para ser o imediato órgão da alma e, desse modo, aquela bela descoberta ainda não atinge seu objetivo.

Uma matéria contínua é fluida quando cada parte, dentro do espaço que esta ocupa, pode ser deslocada do seu lugar através da menor das forças. Mas esta propriedade parece contradizer o conceito de uma matéria organizada, a qual é pensada como máquina, como matéria rígida9 que resiste, com uma certa força, ao deslocamento de suas partes (como também à alteração de sua configuração interna). No entanto, pensar aquela água como em parte fluida, em parte rígida (como, por exemplo, a umidade do cristal no olho), aniquilaria parcialmente também a suposição daquela constituição do órgão imediato dos sentidos, feita na intenção de explicar a sua função.

Como seria se, ao invés de uma organização mecânica, que se baseia em uma justaposição das partes em vista da constituição de uma certa forma, eu propusesse uma organização dinâmica, que repousa em princípios químicos (assim como aquela, em princípios matemáticos) e que pudesse coexistir com o estado fluido daquela matéria? Tal como a divisão matemática de um espaço, e da matéria que o ocupa (por exemplo, da cavidade cerebral e da água que a preenche), vai ao infinito, o mesmo pode dar-se com a divisão química, enquanto divisão dinâmica (separação de diferentes tipos, dissolvidos um no outro, de modo mútuo, numa matéria), de modo que ela, tanto quanto nós sabemos, igualmente vai ao infinito (in indefinitum).

A água pura e comum, até pouco tempo tida como elemento químico, é separada agora, através dos ensaios com gases, em dois diferentes tipos de ar. Cada um desses tipos de ar tem ainda em si, além de sua base, a matéria calórica, que, por sua vez, talvez se deixe decompor pela natureza em matéria luminosa e alguma outra matéria, assim como a luz, por seu turno, em diferentes cores, e assim por diante. Se considerarmos, além disso, a imensa variedade de elementos, em parte voláteis, que o reino vegetal consegue produzir a partir daquela água comum, presumivelmente através da decomposição e da ligação de um outro tipo, pode-se imaginar a variedade de instrumentos que os nervos encontram, nas suas terminações, na água cerebral (a qual, talvez, nada mais seja do que água comum), a fim de, por meio disso, serem receptivos para o mundo dos sentidos e, reciprocamente, poderem atuar sobre este.

Tomemos agora como hipótese que no pensamento empírico, isto é, na dissolução e composição de representações sensíveis dadas, subjaz ao ânimo uma capacidade de os nervos decomporem, de acordo com suas diferenças, a água contida na cavidade cerebral em aquelas matérias-primas, pondo em jogo, através da liberação de uma ou de outra matéria, diferentes sensações (por exemplo, as da luz, através do nervo da visão excitado, ou as do som, através dos nervos da audição etc.), de tal maneira, contudo, que essas matérias, depois do término do estímulo, imediatamente confluam. Nessa hipótese, poder-se-ia dizer que essa água está sendo continuamente organizada, sem, entretanto, jamais ficar organizada, alcançando-se, através disso, exatamente o mesmo que se visa com a organização permanente, a saber, tornar compreensível a unidade coletiva de todas as representações dos sentidos em um órgão comum (sensorium commune), mas somente segundo sua análise química.

Mas o problema fundamental, tal como formulado por Haller, ainda não está resolvido. Ele não é meramente fisiológico, pois a sua solução deve também servir como meio de representar a unidade da cons-ciência de si (que pertence ao entendimento) na relação espacial da alma com os órgãos do cérebro (que pertencem aos sentidos externos), portanto, também com a sede da alma, com sua presença local - o que é um problema para a metafísica; contudo, não somente insolúvel para esta, como também, em si mesmo, contraditório. Pois, se eu quisesse representar intuitivamente o lugar da minha alma, isto é, do meu si-mesmo absoluto, em qualquer lugar do espaço, eu deveria perceber a mim mesmo através do mesmo sentido pelo qual eu também percebo a matéria mais próxima que me circunda; tal como acontece quando eu quero determinar o meu lugar no mundo como homem, considerando o meu corpo em relação a outros corpos externos a mim. Ora, a alma só pode perceber a si mesma através do sentido interno; o corpo, pelo contrário, seja o de fora ou o de dentro, somente através dos sentidos externos. Portanto, ela não pode determinar absolutamente nenhum lugar para si mesma, visto que, para este fim, ela deveria tornar-se objeto de sua própria intuição externa e se deslocar para fora de si mesma, o que é contraditório. Por conseguinte, a solução solicitada do problema da sede da alma, que se exige da metafísica, conduz a uma grandeza impossível (raiz de -2). Pode-se, então, conclamar, com Terêncio: nihilo plus agas, quam si des operam, ut cum ratione insanias.10 Entretanto, não se pode levar a mal o fisiólogo - ao qual basta ter perseguido a presença dinâmica, na medida do possível, até o imediato - por ter pedido ao metafísico uma compensação11 por aquilo que ainda falta na solução desta tarefa.

Tradução12 e notas de Zeljko Loparic

 

 

Recebido em 1º de março de 2003
Aprovado em 23 de junho de 2003

 

 

* Traduzido das observações de Kant que se encontram nas páginas 81-6 do livro Über das Organ der Seele (Sobre o órgão da alma), de Samuel Th. Sömmering, publicado em Königsberg, em 1796, por Friedrich Nicolovius. Acrescentei algumas notas explicativas, marcadas por (NT).
1 No original: "unmittelbare Sinnenwerkzeug" (NT).
2 O termo é de Aristóteles, De anima, 421b, 32, sendo comumente traduzido por "primeiro órgão dos sentidos". Em Aristóteles, esse órgão desempenha várias funções, em particular, a de recolher e organizar as sensações recebidas e transmitidas pelos múltiplos órgãos dos sentidos, garantindo a unidade do objeto dos sentidos (NT).
3 No original: "der gemeinsame Empfindugsplatz" (NT).
4 Uma tradução literal dos termos latinos usados por Kant neste parêntese seria "sensório comum". O termo "sensorium commune" foi introduzido por Boécio, Topica Aristotelis, 8, 5, no sentido de sede da sensibilidade física. Em Regras para a direção do espírito, Descartes emprega o termo "sensus communis" (cf. a regra 12, AT, X, 414) (NT).
5 No original: "Sitz der Seele" (NT).
6 Na interpretação de Kant, a pergunta sobre o "órgão dos sentidos" busca pelas condições fisiológicas da percepção e sobre o "lugar comum das sensações", pelas condições também fisiológicas da união de todas as percepções (representações dos sentidos, distintas de representações produzidas a priori pelo entendimento ou pela razão) na consciência empírica. Ambas tratam, portanto, tão-somente das condições corpóreas que tornam possíveis a recepção e a organização (unificação) de percepções, não da entidade (substância, comumente chamada "alma") que supostamente executaria essas operações mentais. Por outro lado, o problema da sede da alma indaga sobre o lugar físico da entidade que executa as operações mentais em geral. Essa pergunta foi formulada, de maneira paradigmática, por Descartes, sua resposta sendo: a sede da alma é a glândula pineal, pequeno lugar no cérebro em que a alma se junta ao corpo (cf. Traité des passions, art. 31). Sobre a reformulação kantiana do problema cartesiano mente-corpo, veja o meu artigo: "De Kant a Freud: um roteiro", publicado no presente número de Natureza humana (NT).
7 A questão do conflito entre a faculdade de Filosofia e as outras três principais faculdades da Universidade alemã daquela época - a teológica, a jurídica e a médica - mereceu, por vários motivos, uma atenção especial de Kant no fim da sua vida. Em 1798, ele dedicou a esse assunto um livro inteiro, intitulado O conflito das faculdades. Para comentários adicionais, veja o meu artigo citado na nota anterior.
8 Por ânimo entende-se somente a capacidade (animus) que compõe as representações dadas, efetuando a unidade da apercepção empírica, mas não a substância (anima), considerada, segundo a sua natureza, totalmente diferente da matéria, da qual então se abstrai. O ganho disso, no que diz respeito ao sujeito pensante, é que, por um lado, não fica permitido entrar no campo da metafísica - pois esta trata da consciência pura e da unidade desta a priori, na composição das representações dadas (mediante o entendimento) - e, por outro lado, na medida em que permanecemos na fisiologia, tratamos apenas da força de imaginação, podendo assumir que às suas intuições (mesmo sem a presença de seus objetos), enquanto são representações empíricas, correspondem impressões no cérebro (no fundo, o hábito da reprodução), e que elas pertencem a um todo da intuição interna de si mesmo. (NT: a tradução desta nota segue aqui a correção do texto de Kant sugerida por Tieftrunk.)
9 Ao fluido (fluidum) deve opor-se, propriamente, o rígido (rigidum), assim como Euler também usa este último termo em oposição ao primeiro. Ao sólido deve se contrapor o oco.
10 "Não faças mais que, se te deres ao trabalho, enlouquecer com a razão" (NT).
11 No original: "Ersatz" (NT).
12 A presente tradução valeu-se de uma versão preliminar elaborada por Eder Soares dos Santos (NT).