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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003

 

TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

 

De Kant a Freud: um roteiro

 

From Kant to Freud: a reader’s guide

 

 

Zeljko Loparic

PUC-SP/PUCRS/Líder do GFPP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente comentário analisa um breve texto tardio de Kant sobre a fisiologia especulativa. Além de ilustrar muito bem os princípios metodológicos do programa de pesquisa kantiano para as ciências da natureza - segundo o qual as ficções especulativas, de valor apenas heurístico, podem ser utilizadas para observar e organizar fenômenos na procura de suas leis empíricas -, esse escrito antecipa, metodológica e epistemologicamente, os trabalhos de Freud sobre a metapsicogia fisiológica.

Palavras-chave: Kant, Freud, Fisiologia, Forças, Especulação, Heurística.


ABSTRACT

This commentary analyzes a short text by late Kant on speculative physiology. It ilustrates main metodological principles of Kant's research programme for natural sciences - according to which speculative fictions with exclusively heuristic value are allowed to be used in observing and organizing phenomena in search for empirical laws - and in addition it anticipates, both methodologically and espistemologically, Freud's writings on physilogical metapsychology.

Keywords: Kant, Freud, Physiology, Forces, Speculation, Heuristics.


 

 

Um dos problemas centrais abordados por Kant na Crítica da razão pura (1781) é a incapacidade da metafísica tradicional para resolver seus problemas teóricos, relativos à natureza, debilidade atestada pela obscuridade e por contradições reveladas nas disputas infindáveis entre os filósofos (CRP, A VII). Para remediar essa situação, Kant propõe que a metafísica tradicional seja abandonada e substituída por uma nova metafísica da natureza, constituída como um sistema de princípios a priori da razão, elaborado a partir de uma crítica prévia da capacidade da razão para resolver problemas teóricos em geral, tanto filosóficos quanto científicos (CRP, B 869). O resultado central dessa crítica pode ser expresso na seguinte tese de decidibilidade: é possível à razão humana decidir, com toda segurança, se um problema teórico é solúvel ou não, podendo chegar, caso o problema for solúvel, ao conhecimento do que é procurado (CRP, B 22).

Essa tese é baseada na teoria kantiana da solubilidade dos problemas teóricos, segundo a qual "nenhuma questão concernente a um objeto dado à razão pura é insolúvel para a mesma razão humana" (CRP, B 477; os itálicos são meus). Inversamente, "uma questão é nula" - isto é, sem sentido e, a fortiori, insolúvel - se "não lhe for dado objeto algum" (CRP, B 509n; itálicos no original). Isso significa, explicita Kant, que "é totalmente vazia uma questão sobre a natureza daquele algo que não pode ser pensado mediante nenhum predicado determinado, por ser posto totalmente fora da esfera dos objetos que nos podem ser dados" (ibid.; os itálicos são meus). Um caso particular de uma questão vazia é o formulado por meio de conceitos contraditórios; um conceito contraditório é, por definição, um conceito vazio (CRP, B 345-6). Enquanto a metafísica tradicional, por não colocar o metaproblema da solubilidade dos problemas teóricos - isto é, por permanecer dogmática -, enreda-se em problemas insolúveis, a nova metafísica de Kant, baseada na teoria da capacidade solucionadora da razão, pode chegar a uma decisão sobre os objetos de suas indagações ou, então, abandonar a pesquisa, reconhecendo, de maneira determinada e segura, os seus limites (cf. CRP, B 22).

A teoria da solubilidade de problemas teóricos - ou seja, de problemas relativos ao domínio da natureza - pressupõe, por sua vez, duas outras doutrinas, relacionadas entre si. Em primeiro lugar, uma doutrina da "dadidade" de objetos da natureza. Para Kant, um objeto é "dável" (dabile) - e, nesse sentido, possível - se for acessível à experiência, ou seja, se puder ser dado na intuição sensível, externa ou interna (sentido interno ou externo), ficando excluída a possibilidade de um objeto ser dado, como admite Descartes, na intuição intelectual. Em segundo lugar, uma doutrina dos "predicados determinados", isto é, da relação entre conceitos empregados em juízos teóricos e os objetos pertencentes à esfera da experiência possível. Esta última teoria é chamada por Kant "lógica transcendental". Diferentemente da lógica formal, ela não trata da forma, mas de conteúdos possíveis do conhecimento natural (CRP, B 80). Para tanto, a lógica transcendental procede de maneira inteiramente a priori, sem consultar a experiência, fazendo uso do conhecimento chamado "transcendental", pelo qual sabemos "que e como certas representações", entre elas, os conceitos, "são aplicadas ou possíveis unicamente a priori" (ibid.; os itálicos são meus). Sendo assim, a lógica transcendental pode ser interpretada como uma teoria a priori do significado de conceitos - e, mais geralmente, de juízos - no domínio de interpretação constituído de fenômenos naturais acessíveis à intuição. Em terminologia atual, uma semântica a priori ou transcendental do tipo construtivista.1

No interior da sua teoria da solubilidade dos problemas e do significado, Kant distingue dois grupos de problemas teóricos: os filosóficos e os empíricos. Os primeiros pertencem à metafísica da natureza, sendo solúveis tão-somente pelos procedimentos a priori, enquanto os segundos competem à ciência natural e podem ser resolvidos pela pesquisa factual. Na concepção de Kant, as soluções de problemas factuais são, em parte, baseadas nas soluções de problemas filosóficos, no sentido de estas últimas servirem de guia para a pesquisa empírica. Conforme mostrarei a seguir, a metafísica kantiana da natureza é concebida, de fato, como um programa a priori de pesquisa científica, que fornece subsídios para a criação, pelos cientistas, de ficções úteis na busca e na organização de fatos empíricos, bem como para a descoberta de hipóteses explicativas empíricas desses fatos.

As posições assumidas por Kant em Observações referentes a "Sobre o órgão da alma"2 (daqui em diante: Observações), de 1796, são uma boa ilustração tanto da tese kantiana da não-solubilidade de problemas teóricos relativos aos objetos não-dados, quanto da sua distinção entre os problemas metafísicos e empíricos, bem como da sua concepção da metafísica da natureza como guia a priori da pesquisa empírica. Chamado a se pronunciar sobre os resultados da pesquisa de um médico sobre o problema do "órgão da alma" (Seelenorgan) - isto é, sobre aquilo que, nos corpos dos seres animados, torna possível a recepção distinta e a união de todas as representações dos sentidos -, Kant confessa-se embaraçado. Ele entende que Sömmering lhe fez essa consulta por acreditar que no problema científico do órgão da alma está contido também o problema metafísico da sede da alma no corpo, esperando dele, Kant, na qualidade de metafísico, uma resposta que possa completar os resultados da sua própria pesquisa científica. De fato, desde Descartes, esse é um dos problemas centrais da metafísica dogmática moderna, podendo ser formulado, sugere Kant, da seguinte maneira: como a alma (entidade não-material, não-espacial) pode receber algo do corpo e como ela pode mover o corpo (que é uma entidade material, espacial)?

O embaraço de Kant é devido ao fato de ele considerar que a metafísica não pode resolver o problema da sede da alma. É o que ele sugere inicialmente, de forma discreta, numa observação posta entre parênteses: "o oráculo [da metafísica], como dizem, está há muito tempo emudecido". Logo em seguida, ele acrescenta que a não-separação entre o problema metafísico da sede da alma e a pergunta científica pelo órgão da alma gera uma discórdia insanável entre as faculdades de filosofia e de medicina. Kant dá a entender que conflitos do mesmo tipo acontecem também entre a faculdade de filosofia e duas outras faculdades, as de teologia e de direito.

Esse ponto merece destaque. No fim da vida, Kant estava interessado, por várias razões, tanto teóricas como políticas, em estabelecer claramente o domínio de competência da filosofia. Em 1794, num decreto secreto, ele foi censurado pelo Gabinete do Rei da Prússia por supostamente defender, no seu livro Religião dentro dos limites da mera razão, de 1793, uma filosofia que desfigurava e menosprezava as doutrinas fundamentais das Santas Escrituras. Em 1798, dois anos depois de Observações, ele publicou uma compilação de três artigos, escritos anteriormente, sob o título O conflito das faculdades, nos quais se propõe a mostrar a necessidade de distinguir os problemas factuais - que cabem aos especialistas em teologia bíblica, direito positivo e medicina, e que podem e devem ser tratados por métodos empíricos - dos problemas gerados pela própria razão, que só podem ser resolvidos pelos métodos a priori, dentro dos limites da sua capacidade solucionadora.

A fim de sair da posição de metafísico dogmático, Kant levanta a pergunta de saber se o problema cartesiano da sede da alma é solúvel ou não. A sua resposta, apresentada sem o recurso explícito à sua teoria de solubilidade de problemas, é negativa: o problema em questão é insolúvel por ser formulado mediante conceitos contraditórios entre si. O conceito de lugar da alma, argumenta ele, "implica uma presença local que atribui uma relação espacial a uma coisa que é apenas objeto do sentido interno - e, nessa medida, só pode ser determinada segundo condições temporais -, o que, porém, torna esse conceito autocontraditório".

A essência desse argumento é a seguinte: tanto a alma quanto o corpo são objetos dados pelos sentidos; a primeira, apenas pelo interno e o segundo, apenas pelo externo. Sendo assim, parece que a pergunta "psicológico-metafísica" da relação espacial entre esses dois objetos deveria poder ser respondida a priori pela razão. Isso não é possível, sustenta Kant, visto que um objeto dado tão-somente no sentido interno (intuição interna) não tem propriedades espaciais. Em outras palavras, o conceito de sede da alma é autocontraditório, razão pela qual permanece vazio, sem nenhum referente que possa ser dado. O problema da sede da alma é mal formulado, implicando um erro semântico.

Deve-se notar, contudo, que a contradição afirmada não é óbvia. Ela não se segue da simples análise dos conceitos de alma e de corpo. Descartes, por exemplo, não considerava autocontraditória a relação alma-corpo, mas apenas ininteligível - isto é, inacessível na intuição intelectual - e, por isso, incognoscível. O caráter contraditório do problema, tal como apresentado em Observações, decorre da teoria kantiana da solubilidade dos problemas da razão - segundo a qual somente perguntas acerca de objetos dados à razão são solúveis -, associada à teoria de que um objeto só pode ser dado à razão na intuição sensível, pura ou empírica, jamais na intuição intelectual, operação cognitiva inexeqüível pelos seres humanos.

O mesmo argumento é retomado e melhor explicitado no parágrafo final de Observações. O problema da sede da alma, que visa determinar o local em que ela se encontra no corpo, é, reafirma Kant, não somente insolúvel para a razão, mas também contraditório em si mesmo. A fim de poder representar o lugar da alma, isto é, de mim mesmo, na intuição espacial, eu deveria me perceber por essa mesma intuição. Ora, eu só posso perceber a mim mesmo na intuição interna; portanto, não posso determinar nenhum lugar para mim mesmo enquanto objeto de intuição externa. Sendo assim, a relação espacial entre mim mesmo, intuído internamente, e um lugar qualquer no espaço, acessível tão-somente à intuição externa, é algo que não pode ser intuído. A tarefa de determinar a sede da alma, proposta a Kant por Sömmering, leva a uma "grandeza impossível", semelhante à raiz de menos um, número que não é um objeto possível por não poder ser dado (construído) na intuição sensível, assim como podem, por exemplo, os números naturais ou racionais. O local da alma no corpo não é, portanto, um "objeto dado à razão" e, pela tese kantiana da decidibilidade dos problemas da razão, nenhuma questão relativa a essa relação pode ser resolvida, nem pela filosofia nem pela ciência.

Tendo estabelecido isso, Kant esclarece os motivos da pergunta metafísica que lhe foi dirigida por Sömmering. Um fisiólogo - esta parece ser a sua avaliação - pode facilmente cair na atitude dogmática e, ao estudar fenômenos psicossomáticos, querer dar conta não somente da presença dinâmica da alma no corpo, mas também da sua presença imediata, isto é, local. É perfeitamente compreensível, portanto, que, não podendo resolver esse último problema por meios científicos e não estando familiarizado com os resultados da crítica kantiana da razão, ele recorra ao filósofo enquanto metafísico, solicitando que complemente os resultados da pesquisa empírica. O que não é admissível, contudo, é que o filósofo se comporte como o metafísico tradicional e tente resolver um problema antes de perguntar se ele é solúvel ou, pelo menos, se pode ser formulado de maneira consistente. Passou o tempo em que a filosofia podia proceder dogmaticamente. Ela deve fechar seu botequim ou tornar-se crítica e trabalhar dentro dos limites da sua capacidade solucionadora.

Entretanto, a pergunta pelo órgão das sensações pode ser formulada como uma indagação anatômico-fisiológica, médica, sem levar a uma pergunta metafísica sobre a localização da alma. O caminho nessa direção é preparado por duas hipóteses. Uma delas - baseada no sentimento dos homens de que os pensamentos estão na cabeça - diz que a alma causa sensações no cérebro. Aqui, contudo, deve ser evitado o erro de sub-repção, que consiste em "confundir o juízo sobre a causa da sensação num certo lugar (do cérebro) com a sensação da causa nesse lugar". Ou seja, dizer que a alma (uma operação mental) causa um efeito sensível em um determinado lugar do cérebro não é o mesmo que dizer que a alma (a sua operação) está localizada no cérebro. A outra hipótese diz que "os traços cerebrais das impressões ocorridas sobre o cérebro acompanham, sob o nome de idéias materiais (Descartes), os pensamentos, segundo leis de associação" (os itálicos são de Kant). Aceitas essas duas hipóteses, o problema do órgão da alma fica reduzido ao "da matéria que torna possível a união de todas as representações sensíveis no ânimo". Numa nota a esta frase, Kant enfatiza que se trata de representações dos sentidos e não da consciência pura de si ou de operações do entendimento puro. Considerado neste contexto, o problema do lugar comum das sensações fica desvinculado do problema da sede da alma e a fisiologia "não se mistura com a metafísica". Ele é transformado em uma tarefa "fisiológica", isto é, científica, podendo ser tratado por métodos científicos.

No meio dessa discussão, Kant se detém sobre a natureza das duas hipóteses mencionadas. Mesmo não sendo metafísicas, isto é, apesar de estarem relacionadas com a observação (sentido interno e externo), elas são, diz Kant, "muito arbitrárias". Em outras palavras, elas não são juízos empíricos usuais por não serem - esse parece ser o sentido da sua observação - nem diretamente verificáveis nem diretamente falsificáveis no domínio da experiência possível.

Em seguida, Kant passa a analisar a "descoberta" de Sömmering, isto é, a sua solução do problema do órgão da alma, entendido no sentido anatômico-fisiológico: a água ocupando a cavidade cerebral. Ignorando por completo o que poderia haver de bizarro nesta proposta, Kant concentra as suas observações numa dificuldade conceitual de todo modelo material possível para a água como órgão da alma: por um lado, a água é um fluido - e, portanto, não-organizada; por outro, enquanto órgão da alma, ela precisa ter um mínimo de organização. Segundo Kant, do ponto de vista da razão teórica, existem dois modelos a priori possíveis para pensar a organização dessa água: um mecânico e outro dinâmico. O primeiro pode ser explicitado dizendo que o órgão da alma é organizado como uma máquina, uma configuração rígida, concebida em termos matemáticos (geométricos). Esse modelo, contudo, tem o inconveniente de conflitar com a propriedade da água de ser um fluido - matéria contínua, cada parte da qual, dentro do espaço que esta ocupa, pode ser deslocada do seu lugar através da menor das forças. Para evitar a contradição, poder-se-ia pensar aquela água como sendo, em parte, fluida e, em parte, rígida, especulação ad hoc que salva a especulação mecânica, mas ao preço de tirar parcialmente o poder "explicativo" da suposição de que o órgão imediato dos sentidos é a água.

Depois de constatar essas dificuldades do modelo mecânico, essencialmente conceituais, Kant expõe em detalhes o segundo modelo a priori possível do órgão da alma, tal como concebido por Sömmering, fundado na idéia de organização dinâmica, isto é, sobre princípios extraí-dos da teoria física das forças químicas. Segundo esse modelo, a água cerebral está sendocontinuamente organizada, sem, entretanto, jamais ficar organizada. Essa hipótese evita a dificuldade conceitual que prejudicava o modelo mecânico, alcançando, não obstante, o mesmo objetivo - o de tornar compreensível a unidade coletiva de todas as representações dos sentidos em um órgão comum.

Embora o modelo dinâmico seja mais satisfatório concei-tualmente do que o mecânico, Kant deixa claro que ele continua meramente especulativo e, na melhor das hipóteses, de interesse essencialmente heurístico. Além disso, por razões explicitadas anteriormente, existem limites bem determinados de sua aplicação. Ele serve apenas para apresentar o órgão das representações sensíveis, não podendo dar conta da consciência pura de si e da sua unidade. Talvez não seja sem interesse notar que, em Princípios metafísicos da doutrina da virtude, publicado em 1797, Kant afirma que nem a experiência nem a razão permitem decidir "se o ser humano tem uma alma (no sentido de uma substância que nele habita, distinta do corpo e capaz de pensar independentemente deste, ou seja, uma substância espiritual) ou se não pode a vida, pelo contrário, ser uma propriedade da matéria" (MST, § 4). No mesmo texto, Kant vai mais longe ainda, sustentando que "a razão, como faculdade teórica, poderia muito bem ser uma qualidade de um ser vivo corpóreo" (ibid., § 3). O caráter não-corpóreo do ser humano poderia ser conhecido com toda certeza tão-somente "em relações moral-práticas, nas quais a incompreensível propriedade da liberdade é revelada pela influência da razão sobre a vontade legisladora interior" (ibid.). Deixarei em aberto a questão de saber como reconciliar a tese de a faculdade teórica da razão poder ser uma qualidade da matéria viva, enunciada em 1797, com a afirmação, defendida um ano antes, em Observações, de que para a unidade da cons-ciência de si, que é o principal produto da razão como faculdade teórica, não pode ser atribuída uma presença local no corpo humano. Anoto apenas que a solução dessa questão parece passar pelo interessante, mas não muito bem explicado, conceito kantiano de "presença virtual", que pertenceria ao entendimento e não seria "local".

As duas alternativas para a fisiologia especulativa do cérebro, consideradas por Kant em seus comentários sobre a descoberta de Sömmering, foram construídas de acordo com a metodologia a priori de pesquisa empírica, explicitada em Princípios metafísicos da ciência da natureza (1786). Seria permitido admitir hipóteses especulativas na ciência da natureza? Sim, responde Kant nesta obra, desde que elas sejam úteis na busca da formulação e da solução dos problemas empíricos (científicos). Ele advoga o uso, nas ciências empíricas, do método especulativo, pelo qual são criados, com a ajuda das idéias da razão, modelos arbitrários de processos naturais unicamente para facilitar a busca de leis e explicações, estas, sim, empiricamente controláveis. Além de observar e conectar fatos, a ciência precisa poder especular sobre eles.

Dito de outra maneira, toda ciência empírica da natureza precisa, como guia, de uma metafísica especulativa da natureza (1786, A 7).3 A base sob a qual é construída essa metafísica, com virtudes essencialmente heurísticas, são os conceitos puros da razão ou, como os denomina Kant, as idéias da razão. Essas idéias se referem aos entes da razão, não tendo nenhum referente no domínio da experiência possível. Mesmo assim, o uso dessas idéias é recomendado pela razão, por elas poderem orientar o cientista na procura das relações entre os fenômenos, tornando o conhecimento empírico o mais preciso e amplo possível. Diz Kant sobre a natureza, a função e o valor desse tipo de conceito:

Os conceitos da razão [...] são meras idéias e não têm, decerto, objeto algum em qualquer experiência, mas nem por isso designam objetos fantasiados e ao mesmo tempo admitidos como possíveis. São pensados de modo meramente problemático, para fundar, em relação a eles (como ficções heurísticas), princípios reguladores do uso sistemático do entendimento no campo da experiência. Se sairmos desse campo, são meros seres da razão, cuja possibilidade não é demonstrável e que, tampouco, podem ser postos, por hipótese, como fundamento da explicação dos fenômenos reais. (CRP, B 771; tradução ligeiramente modificada, os itálicos são meus)

Como surge a necessidade de especulação na ciência empírica? Na tentativa de estabelecer séries completas de causas de fenômenos, o cientista se defronta, inevitavelmente, com séries infinitas de causas. Sendo assim, a razão, no interesse de completar as séries de determinações causais, postula um determinante originário, incondicionado, que não precisa mais ser explicado. Esse incondicionado é objeto de uma idéia da razão meramente problemática, um ente de razão, não uma realidade empírica. Que significa dizer que um conceito é pensado de modo meramente problemático? "Chamo problemático", diz Kant, "um conceito que não contenha contradição e que [...] se encadeia com outros conhecimentos, mas cuja realidade objetiva não pode ser, de maneira alguma, conhecida" (CRP, A 225; os itálicos são meus).

Segundo Kant, há duas idéias básicas que servem para o propósito de pensar problematicamente o incondicionado causal: a de átomo e a de força motriz. A primeira está relacionada ao ponto de vista mecânico, segundo o qual todo movimento deve ser referido, em última instância, a corpúsculos elementares que o transmitem uns aos outros. As forças, por outro lado, correspondem ao ponto de vista dinâmico, de acordo com o qual o movimento entre os corpos é resultado de forças originárias interagindo entre si. O que decide pela escolha de uma ou outra idéia é, depois de feita a análise conceitual, tão-somente seu valor heurístico, não sua validade objetiva (empírica). A escolha é feita em função da consistência interna e da utilidade dessas idéias na pesquisa empírica, e não em função de eventuais provas de um ou outro modelo, o que é impossível, dado que ambos são apenas ficções heurísticas.4

Em Observações, procedendo de acordo com essa concepção heurística da metafísica da natureza, Kant admitirá - inspirado, sem dúvida, em hipóteses sobre a interação entre a alma e o corpo elaboradas por Descartes em Regras para a direção do espírito5- dois modelos especulativos do órgão da alma, ou seja, do cérebro: um feito do ponto de vista mecânico e outro, do ponto de vista dinâmico. O propósito da criação desses modelos não é o de representar fielmente a natureza, mas o de ajudar a busca científica por leis de associação que conectam os traços cerebrais, supostamente produzidos pela alma, e as representações sensoriais.

Ao longo do século XIX, foram feitas muitas propostas sobre a fisiologia especulativa do cérebro, bem como sobre o modo de funcionamento especulativo do psiquismo, umas privilegiando as especulações anatômico-fisiológicas, isto é, mecânicas (por exemplo, as propostas de Meynert, Griesinger e Jackson sobre um aparelho do espírito descrito em termos fisiológicos), e outras, dinâmicas. Entre as últimas encontram-se as produzidas na Escola de Helmholtz, de inspiração kantiana, à qual pertencia Freud. Merece também ser citado Herbart, pois foi ele, na qualidade de sucessor de Kant na Universidade de Königsberg, quem iniciou essa linha de pesquisa. Para Herbart, o psiquismo era um conjunto de representações cujas relações de determinação recíproca (que ele denominava "mecânica das representações") deveriam ser explicadas em termos dinâmicos, entendendo que as representações agiam umas sobre as outras como uma dinâmica de forças.

Em Projeto de uma psicologia para neurólogos (1895) Freud continua essa linha de pesquisa. Na tentativa de modelar o psiquismo, em particular a dinâmica das representações, pelos acontecimentos fisiológicos da matéria cerebral, ele recorreu a conceitos especulativos, tais como "energia nervosa", "soma de excitação", "neurônios" e "vias facilitadas". Dessa forma, Freud produziu um modelo para o órgão da alma, misturando o ponto de vista mecânico com o energético - um ponto de vista pós-kantiano, inspirado em W. Ostwald, mas próximo do ponto de vista dinâmico de Kant. Isso se depreende, por exemplo, da intenção de Freud de querer "examinar que forma irá assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos considerações quantitativas, uma espécie de

economia da força nervosa" (carta a Fliess de 25 de maio de 1895; os itálicos são meus) . O Projeto é uma fisiologia ficcional, formulada de acordo com os preceitos do programa kantiano de pesquisa empírica para as ciências da natureza. Freud está perfeitamente ciente de que suas "hipóteses auxiliares" - forças, energias, aparelho psíquico, etc. - não pertencem ao campo dos conceitos empíricos:

Nestas últimas semanas, tenho dedicado cada minuto livre a esse trabalho; tenho gasto horas noturnas, das onze às duas, com fantasias, interpretações e palpites e, invariavelmente, só me detenho quando, em algum momento, esbarro num absurdo ou sinto-me real e seriamente esgotado pelo trabalho, de modo que nenhum interesse me resta por minhas atividades médicas diárias. (Carta a Fliess de 25 de maio de 1895)

O objetivo de Freud era produzir um constructo esquemático - poder-se-ia, também, dizer metafórico - que fosse útil, tal como as ficções heurísticas de Kant, para a resolução de problemas médicos específicos. De resto, foram precisamente a impossibilidade de apresentar, mediante o modelo do Projeto, certas funções mentais (por exemplo, a intencionalidade) e as dificuldades da sua aplicação na compreensão de fatos clínicos, somadas ao reconhecimento de que a fisiologia e a psicologia não se misturam, que levaram Freud, muito rapidamente, a considerar o Projeto uma aberração (carta a Fliess de 29 de novembro de 1895).6

Ainda que tenha abandonado as especulações de tipo fisiológico, Freud manteve-se fiel, nas sucessivas formulações de modelos teóricos para o funcionamento do psiquismo humano, ao método especulativo de pesquisa, combinando o ponto de vista dinâmico, o mecânico e o energético. Procedendo assim, ele constituiu a psicanálise como uma psicologia empírica, organizada com a ajuda de uma metafísica metafórica da natureza de tipo kantiano - superestrutura especulativa com fins apenas heurísticos e, por isso mesmo, não-fundante -, à qual deu o nome de "metapsicologia".7 Em resumo, o texto de Kant aqui comentado ilustra, de maneira esclarecedora, as principais teses da teoria kantiana da solubilidade dos problemas filosóficos e científicos, a sua concepção da semântica transcendental, fonte de critérios de solubilidade, bem como a sua metafísica da natureza, concebida como um programa a priori de pesquisa científica. Ele ilumina, também, o método de Freud usado na elaboração do seu Projeto de uma psicologia para neurólogos, permitindo que sejam estabelecidos vários paralelos entre os dois autores. Há, contudo, uma diferença essencial entre eles. Enquanto Kant considera contraditória qualquer tentativa de naturalizar por completo a consciência de si, Freud se satisfaz em constatar o fracasso dessa tentativa. Ainda que atribua o surgimento do Projeto a um ataque de insônia, ao longo da sua obra Freud defendeu a posição de que, mesmo considerando indecidível a questão de saber se o inconsciente é físico ou psíquico, não há nenhuma razão de princípio para excluir a possibilidade de, no futuro, a ciência da consciência, tanto teórica quanto moral, ser formulada em termos meramente físicos, possibilidade explicitamente excluída por Kant.

 

Referências bibliográficas

Fulgencio, Leopoldo 2001: O método especulativo em Freud. Tese de doutorado, PUC, São Paulo.         [ Links ]

____ 2003: "As especulações metapsicológicas de Freud". Natureza humana, v. 5, n. 1, pp. 29-73.         [ Links ]

Kant, Immanuel 1781: Crítica da razão pura (CRP, A). 2. ed. 1787 (CRP, B). São Paulo, Abril, 1980.         [ Links ]

____ 1786: Princípios metafísicos da ciência da natureza. Lisboa, Edições 70, 1990.         [ Links ]

____ 1797: Princípios metafísicos da doutrina da virtude (MST). In: Metafísica dos costumes. São Paulo, Edipro, 2003, pp. 217-335.         [ Links ]

Lipps, Theodor 2001: "O conceito de inconsciente na psicologia". Natureza humana, v. 3, n. 2, 2001, pp. 335-56.         [ Links ]

Loparic, Zeljko 2001: "Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano". Natureza humana, v. 3, n. 2, 2001, pp. 315-31.         [ Links ]

____ 2002: A semântica transcendental de Kant. 2. ed. Campinas, CLE/Unicamp.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: loparicz@uol.com.br

Recebido em 1º de março de 2003
Aprovado em 23 de junho de 2003

 

 

1 Um estudo exaustivo da lógica transcendental de Kant como uma teoria a priori da referência dos conceitos e da verdade de juízos no domínio de experiência possível pode ser encontrado em Loparic 2002.
2 Trata-se do comentário de Kant que se encontra nas páginas 81-6 do livro Über das Organ der Seele (Sobre o órgão da alma), de Samuel Th. Sömmering, publicado em Königsberg, em 1796, por Friedrich Nicolovius. O mesmo editor publicou várias obras de Kant, em particular À paz perpétua (1795).
3 Para Kant, existem apenas duas ciências básicas da natureza: a física e a psicologia (CRP, B 874).
4 Uma interpretação mais detalhada da metafísica kantiana da natureza como programa de pesquisa empírica encontra-se em Loparic 2002, capítulo 9.
5 Veja, em particular, a regra 12, em que Descartes introduz uma antropologia hipotética, considerada como "a mais útil" (maxime utilis) para o seu projeto de formulação de um método de pesquisa científica aplicável na resolução de todos os problemas cujas incógnitas são as medidas de objetos naturais e a ordem entre eles.
6 Para uma análise mais detalhada das razões do abandono, por parte de Freud, da metapsicologia formulada em termos fisiológicos, a favor de uma metapsicologia propriamente psicológica, veja Lipps 2001, bem como o comentário desse texto em Loparic 2001.
7 Para uma análise mais aprofundada da metapsicologia freudiana como uma superestrutura especulativa próxima de uma de mitologia científica, no sentido de E. Mach, veja Fulgencio 2001 e 2003.