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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Claude Bernard e o determinismo mental

 

Claude Bernard and mental determenism

 

 

Luiz Henrique de Araújo Dutra

Universidade Federal de Santa Catarina
CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura discutir o monismo de Claude Bernard na filosofia da mente e da psicologia. Ele se recusa a aderir tanto ao materialismo quanto ao espiritualismo. Sua doutrina de que a psicologia deriva diretamente da fisiologia das funções do cérebro se destina a promover um tipo de psicologia experimental compatível com a idéia de que os fenômenos vitais (que incluem os fenômenos mentais) devem ser explicados como fenômenos físicos e químicos que ocorrem dentro do organismo, mas regidos por leis biológicas.

Palavras-chave: Filosofia da mente e da psicologia, Claude Bernard, Psicologia experimental, Materialismo, Determinismo.


ABSTRACT

This paper seeks to discuss Claude Bernard's monism in the philosophy of mind and psychology. Bernard refuses to join both the materialist and the spiritualist camps. His doctrine that psychology stems directly from the physiology of brain functions is intended to promote a type of experimental psychology compatible with his idea that vital phenomena (including mental phenomena) are to be explained as physical and chemical phenomena occurring in the organism, and governed by biological laws.

Keywords: Philosophy of mind and psychology, Claude Bernard, Experimental psychology, Materialism, Determinism.


 

 

Quando Claude Bernard procura dar uma resposta à questão sobre o tipo de ciência que deve ser a psicologia, ele já era não apenas um renomado cientista e professor no Collège de France, uma figura de destaque no domínio da fisiologia, mas também um autor consagrado. De fato, ele aborda o tema em seu Discours de Réception à l'Académie Française, pronunciado em 27 de maio de 1869, quando de sua posse naquela instituição. O texto do discurso é depois publicado no volume La Science Expérimentale (Bernard 1878), e deveria fazer um elogio de Pierre Flourens, a quem Bernard sucede na Academia, revisando algumas das idéias do predecessor.1 Esse texto se coloca entre dois outros, também importantes para o tema aqui em questão: Rapport sur les Progrès et la Marche de la Physiologie Générale en France, de 1867, e o artigo "Des Fonction du Cerveau", de 1872 (e também publicado em La Science Expérimentale).2

Em seu Discurso, Bernard vai direto ao tema da relação entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, já que era questão de um pesquisador do domínio da fisiologia juntar-se aos homens de letras e em sucessão a um autor que, embora também fosse médico de formação e um pesquisador no domínio da fisiologia, tinha se notabilizado mais por sua dedicação à psicologia e às discussões filosóficas.3 Bernard diz então a respeito:

A Fisiologia, que explica os fenômenos da vida, constitui uma ciência de algum modo intermediária, que tem suas raízes nas ciências físicas da natureza e eleva seus ramos até as ciências filosóficas do espírito. Ela parece, pois, naturalmente destinada a formar o traço de união entre as duas ordens de ciências, tendo seu ponto de apoio sólido nas primeiras, e dando às últimas o suporte que lhes é indispensável. (1878, pp. 406-7)

Ao contrário do que, obviamente, seria natural pensarmos, não se trata de pura retórica, mas de abordar uma questão filosófica que Bernard pretende levar a bom termo, dada sua concepção unitária do conhecimento humano, fundamentada em um princípio de unidade do saber, seja teórico e experimental, seja prático.4 Para Bernard, a psicologia, ou o estudo dos fenômenos ligados ao espírito humano, mostra-se como o último domínio que deve ser conquistado pelas ciências naturais. E, como ele vai procurar defender, ela se destina também a ser uma ciência experimental, tal como a fisiologia, na qual ela deve diretamente se fundamentar. O projeto é ambicioso, e é resumido pelo próprio Claude Bernard, ainda em seu discurso, nos seguintes termos: "Acreditamos, pois, poder concluir que não há realmente uma linha de separação a estabelecer entre a fisiologia e a psicologia" (1878, p. 431).

Claude Bernard vai então apresentar os fenômenos mentais (que ele denomina fenômenos "da inteligência" ou "da consciência") como não apenas fenômenos vitais a serem ordinariamente explicados pelas ciências da vida, em especial a fisiologia, mas como fenômenos vitais especiais na economia do organismo, na medida em que eles são por ele também encarados como aqueles fenômenos que possuem o papel especial de harmonizar os outros fenômenos orgânicos ou, em outros termos, regular a economia interna do organismo (Bernard, ibid., p. 415).5 Assim concebendo os fenômenos mentais, Bernard deve tomar posição no debate entre materialistas e espiritualistas. Contra esses últimos, apoiando-se em razões tiradas da fisiologia, ele vai sustentar o princípio de que não pode haver no organismo nenhum divórcio entre órgão e função, o que seria o caso, do ponto de vista dos espiritualistas, em relação ao cérebro, visto como apenas o suporte (substratum), mas não como o órgão responsável pelo pensamento.

Deste modo, à primeira vista, a posição de Bernard se assemelharia àquela da tradição materialista, que sustentava o princípio acima mencionado, e que procurava explicações meramente físicas para os fenômenos da vida mental. Contudo, para Bernard, esse tipo de materialismo implica a idéia grosseira e absurda de que o próprio pensamento seria uma propriedade da matéria (Bernard 1867, pp. 57 e 91 n208). De fato, na tentativa de situar-se com independência em face tanto da tradição materialista quanto da tradição espiritualista, Bernard vai reeditar seu modo de colocar-se que já o tinha caracterizado quando se viu em face da polêmica entre os vitalistas e, mais uma vez, os próprios materialistas.

Contra o reducionismo materialista, Bernard estava de acordo com os vitalistas a respeito do fato de que existem fenômenos vitais, embora não existam, enfatizava ele, propriedades vitais, mas apenas propriedades físico-químicas da matéria, e nisso ele se distanciava dos vitalistas. Ora, essa distinção entre fenômeno e propriedade é essencial para bem compreendermos não apenas a posição de Bernard ante a questão da natureza da vida, mas, mais especificamente, a natureza do mental. Em uma palavra, o tipo de monismo que Bernard deseja defender é nitidamente diferente daquele dos materialistas de seu tempo.

Vamos procurar analisar mais detalhadamente as discussões de Claude Bernard a este respeito nos textos acima mencionados e em outros, para podermos caracterizar, em primeiro lugar, nitidamente, o tipo de monismo defendido por ele e, em segundo lugar, com base em uma tal concepção do mental, associada a uma concepção da ciência experimental, caracterizar também o tipo de psicologia experimental por ele projetada.

Quanto a isso, como sabemos, Claude Bernard deixou suas idéias sobre a psicologia em um estágio meramente embrionário, não chegando nem mesmo a esboçar um programa de pesquisa, a não ser em suas linhas muito gerais, como veremos. Por exemplo, as questões metodológicas abordadas por ele dizem respeito, antes, à própria fisiologia, e não à psicologia. Como sabemos, para a psicologia científica nascente nos próprios dias de Bernard, na Alemanha, com Wundt e outros, a questão da introspecção e do método adequado para a psicologia era essencial, como continuou a ser, mais tarde, para a psicologia experimental behaviorista.6 Ora, esse é um ponto sobre o qual Bernard não se manifestou. Deste modo, coloca-se também a questão do parentesco entre essa possível psicologia experimental bernardiana e outros programas em psicologia experimental que a história das ciências conheceu depois. Esse é um tema que, por sua extensão, reservamos para um outro trabalho (Dutra 2003), embora a alguns de seus aspectos venhamos a fazer menção oportunamente.

 

O lugar da psicologia entre as ciências

Voltemos ainda ao discurso de Bernard à Academia Francesa. Ao ser eleito para o lugar antes ocupado por Flourens, como dissemos, Bernard deve fazer um elogio de seu predecessor, o que ele realiza de maneira apenas formal, sem entrar nos detalhes do pensamento daquele autor. De fato, há importantes diferenças entre os dois fisiologistas e, em seu discurso, Bernard também tinha de expressar suas próprias convicções, ponto ao qual ele dá claramente preferência.

Cimino (1982) analisa algumas diferenças fundamentais entre as doutrinas de Bernard e de Flourens, no que diz respeito às funções do cérebro e à relação entre esse órgão e os fenômenos mentais. Como ficará inteiramente claro no artigo "Les Fonctions du Cerveau", de Bernard, e como enfatiza Cimino, ele recusa a doutrina de que o cérebro é apenas o suporte da inteligência e não o órgão responsável pelos fenômenos intelectuais, o que ainda era aceito por Flourens.

Uma outra diferença fundamental é que esse último ainda falava de propriedades do sistema nervoso, um ponto também recusado por Bernard, que, como também já comentamos, afirmava haver apenas propriedades físico-químicas da matéria responsáveis pelos fenômenos vitais, inclusive os fenômenos mentais. Esse é um ponto de grande importância e a ele retornaremos, inclusive em conexão com a polêmica em torno do vitalismo. Assim, o texto do discurso de Bernard é interessante apenas na medida em que avança suas próprias idéias, a serem mais desenvolvidas depois, e não por fazer um exame detalhado e crítico da doutrina de Flourens.7

Segundo a visão de conjunto que Claude Bernard tem das ciências, a psicologia apresenta duas características fundamentais. Em primeiro lugar, ela é o coroamento da própria fisiologia, isto é, daquela disciplina fundamental que estuda os seres vivos e os fenômenos da vida. Em segundo lugar, apoiando-se imediatamente na fisiologia, a psicologia deve demonstrar que não há qualquer contradição ou divisão irreconciliável entre as ciências na natureza e as ciências do espírito, ou ciências metafísicas, como também diz Bernard. Ambos os pontos pedem uma explicação mais detalhada.

A fisiologia era concebida por Bernard como a base da medicina, e nesse aspecto ele é realmente inovador em relação ao saber médico aceito em seus dias, para o qual a anatomia era a disciplina médica fundamental, tal como podemos ver, por exemplo, nos antecessores próximos de Bernard e de seu mestre, predecessor no Collège de France e também eminente experimentador em fisiologia, François Magendie. De fato, se tomarmos uma figura representativa como Bichat, é a anatomia que surge como o grande empreendimento no que diz respeito aos seres vivos.8 A fisiologia estava enormemente limitada sob a influência do vitalismo e de sua concepção de que a experimentação com os seres vivos não poderia trazer grande contribuição, já que, como pensavam os vitalistas, ao interferir com os fenômenos vitais, a experimentação destruiria suas características fundamentais. Ora, é a idéia oposta, de que é a experimentação que pode trazer progressos importantes à fisiologia, que caracterizou as obras de Magendie e de Bernard, influenciados eles mesmos pelo programa de Lavoisier e Laplace, décadas antes, destinado a estudar os fenômenos físico-químicos nos organismos.9

Afastado o vitalismo, para Claude Bernard, a fisiologia pode se firmar como a disciplina médica e biológica fundamental. Ela deve, em relação à medicina, ser a base sobre a qual vão se apoiar a patologia e a terapêutica, os outros dois ramos que, segundo Bernard, devem compor a medicina. Pois, argumenta ele, não pode haver um estado patológico do organismo que não seja um desarranjo em relação a um estado (fisiológico) normal.10 Em relação à biologia e seus ramos, mais uma vez, argumenta Bernard que a fisiologia é a disciplina fundamental, já que é ela que permite a unificação da zoologia e da botânica, tal como o próprio Bernard expõe detalhadamente em suas Leçons sur les Phénomènes de la Vie Communs aux Animaux et aux Végétaux (Bernard 1966 [1878]). A fisiologia mostra que, tanto no caso dos vegetais quanto naquele dos animais, são os mesmos fenômenos vitais que se passam, sempre em virtude de condições materiais próximas e das mesmas propriedades físico-químicas da matéria.

A fisiologia não está completa, contudo, enquanto não chegar a explicar também os fenômenos da inteligência e da consciência, aqueles fenômenos que, segundo as tradições cartesiana dualista e espiritualista, furtar-se-iam à economia geral do organismo e ao domínio de pesquisa da fisiologia. É assim que Bernard diz enfaticamente em seu Rapport, ao falar daquele que lhe parece o maior problema da fisiologia do sistema nervoso:

Mas aquilo que, à primeira vista, parece impossível é compreender como a sensibilidade, primeiro, inconsciente, pode se tornar, depois, consciente. Penso que essa é uma questão que a fisiologia chegará a resolver; mas para isso é preciso considerar o problema enquanto fisiologista, e afastar do pensamento certas pré-concepções filosóficas que nos confundem. A aparência dos fenômenos sempre nos engana sobre sua realidade. É assim que nos parece que a consciência e a inteligência devam necessariamente ser uma das seguintes duas coisas: ou certos princípios imateriais independentes dos órgãos, ou os produtos de uma matéria que sente e pensa.

Nenhuma dessas duas opiniões poderia ser verdadeira. A sensibilidade consciente não é um princípio misterioso extrafisiológico que, em certo momento, vem se juntar ao organismo, estabelecendo um ponto intransponível entre os fenômenos conscientes e inconscientes do ser vivo. A sensibilidade inconsciente, a sensibilidade consciente e a inteligência são faculdades que a matéria não cria, mas que ela apenas manifesta. É por isso que essas faculdades se desenvolvem e aparecem por uma evolução ou um tipo de pleno desenvolvimento natural, na medida em que aparecem as propriedades histológicas necessárias a sua manifestação. (Id., 1867, p. 38 n55)11

Em seu discurso à Academia, Bernard volta ao tema desse último desafio à fisiologia e, de forma otimista, afirma:

A tendência da fisiologia moderna está, pois, bem caracterizada; ela quer explicar os fenômenos intelectuais do mesmo modo que todos os outros fenômenos da vida, e se ela reconhece com razão que há lacunas mais consideráveis em nossos conhecimentos, em relação aos mecanismos funcionais da inteligência, ela não admite, mesmo assim, que, por sua natureza, esses mecanismos sejam nem mais nem menos inacessíveis a nossa investigação que aqueles de todas as outras ações vitais. (Id., 1878, p. 428)

Assim, a psicologia como estudo dos fenômenos intelectuais ou de consciência é, para Bernard, o próprio acabamento da fisiologia experimental, a cuja construção ele dedicou toda sua vida de experimentador. Os fenômenos de que ela trata, e que hoje denominamos mentais, são, para Bernard, fenômenos vitais. É por isso, como já citamos, que para ele não há separação entre a fisiologia e a psicologia (Bernard 1878, p. 431). E, em relação ao segundo ponto que mencionamos, da união entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, uma psicologia científica pode demonstrar isso na medida em que se apoiar na própria fisiologia. Mais uma vez, em seu discurso a esse respeito, Bernard diz:

As manifestações da inteligência não constituem uma exceção às outras funções da vida, e não há qualquer contradição entre as ciências fisiológicas e metafísicas; apenas elas abordam o mesmo problema do homem intelectual por lados opostos. As ciências fisiológicas associam o estudo das faculdades intelectuais às condições orgânicas e físicas que as exprimem, enquanto que as ciências metafísicas negligenciam essas relações para considerar as manifestações da alma apenas na marcha progressiva da humanidade ou nas aspirações eternas de nosso sentimento.
[...]
A fisiologia, como dissemos de início, remonta naturalmente às ciências filosóficas, e serve de ponto de apoio imediato à psicologia. (Ibid., pp. 430-31.)

Entretanto, Bernard não se limita apenas a reivindicar a unidade das ciências da natureza e das ciências do espírito por meio da psicologia. Ele procura também explicar por que existem esses dois ramos do saber humano e por que não há razão para não reconciliá-los. Para Claude Bernard, como ele repete em diversos de seus textos, inclusive em seu discurso à Academia (ibid., pp. 405ss e 437), as ciências do espírito brotam de nosso sentimento natural, que nos leva a procurar as causas primeiras das coisas, enquanto que as ciências naturais se dedicam à observação, à experimentação e às causas segundas ou próximas, isto é, às condições materiais dos fenômenos. Assim, se as ciências naturais não podem mais que descrever as condições próximas do determinismo dos fenômenos naturais, o que vale também para a fisiologia e, obviamente, para a psicologia concebida por Bernard, por outro lado, nem por isso, as causas primeiras das coisas e suas causas finais precisam ser banidas do saber humano. Elas possuem um outro lugar, embora ele não possa ser a experimentação e a observação da natureza.12

Segundo Bernard, os seres humanos são constituídos de tal modo que as letras, as artes e as disciplinas filosóficas sempre surgem antes das disciplinas científicas. Esse é um tema longamente tratado por ele em seu livro mais conhecido, Introduction à l'Étude de la Médecine Expérimentale (1984 [1865]), e que retoma resumidamente em seu discurso à Academia, dizendo:

Seria um erro acreditar que o cientista, que segue os preceitos do método experimental, deva rejeitar toda concepção a priori, e impor silêncio a seu sentimento para não consultar mais que apenas os resultados da experiência. Não! As leis fisiológicas que regulam as manifestações da inteligência humana não lhe permitem proceder de outra forma que passando sempre e sucessivamente pelo sentimento, pela razão e pela experiência. [...] (Id., 1878, p. 439.)

Bernard não afirma apenas, portanto, a existência de leis biológicas, que ele denomina organotróficas, ou leis da organização, mas também leis psicológicas, que, aliás, não se distinguem das primeiras. Na Introdução, onde Bernard desenvolve longas discussões metodológicas e analisa os temas da indução e da dedução em relação a nosso modo de pensar e agir nas ciências em geral (id 1984 [1865], cap. 2, em especial, pp. 78ss), ele já avança o mesmo ponto de vista, que apenas nos textos posteriores ele vai chegar a desenvolver um pouco mais. Entretanto, ele já fala do determinismo dos fenômenos mentais, de um único procedimento fisiológico por meio do qual nossa mente funciona, ao qual ela não pode se furtar (p. 82).13 Isso já nos conduz ao tema do determinismo psicológico, que é objeto da próxima seção.

 

O determinismo dos fenômenos mentais

No Introduction à l'Étude de la Médecine Expérimentale, Claude Bernard já aborda o tema do determinismo mental. Ao discutir o fato de que determinadas propriedades se manifestam apenas no organismo, o que não faz delas propriedades vitais, e a impossibilidade de encontrá-las fora dos organismos, unicamente onde os fenômenos vitais têm lugar, ele estende seus comentários aos fenômenos psicológicos, e diz:

Estou certo de que os obstáculos que afetam o estudo experimental dos fenômenos psicológicos são em grande medida devidos a dificuldades dessa ordem. Pois, apesar de sua natureza maravilhosa e da delicadeza de suas manifestações, é impossível, a meu ver, não conduzir os fenômenos cerebrais, assim como todos os outros fenômenos dos corpos vivos, às leis do determinismo científico. (Ibid., p. 140.)

Em primeiro lugar, os fenômenos psicológicos são ali identificados com os fenômenos cerebrais.14 Mas isso, como já comentamos, não coloca Bernard do lado dos materialistas. Certamente, ele rejeita a metafísica espiritualista e, no que diz respeito à natureza dos fenômenos mentais, Bernard está de acordo com os materialistas no seguinte sentido: lidamos sempre com fenômenos do mesmo mundo material também estudado pelas outras ciências, como a física, a química, e também a fisiologia. Em outros termos, assim como os próprios fenômenos vitais, dos quais, em última instância, os fenômenos mentais fazem parte, eles são fenômenos naturais, a serem investigados pelas ciências da natureza.

Contudo, tais fenômenos naturais, que são os fenômenos mentais, ocorrem segundo que tipo de leis? Essa é, da perspectiva de Claude Bernard, a questão fundamental a respeito do determinismo do mental, e é a esse respeito que ele vai definitivamente se afastar dos materialistas. Ao mesmo tempo, Bernard se afasta de todas aquelas doutrinas para as quais os fenômenos mentais gozam de certa espontaneidade, isto é, seriam fenômenos não-nomológicos, tais como o espiritualismo e o dualismo tradicionais. O texto mais claro a esse respeito talvez se encontre nas Leçons sur les Phénomènes de la Vie Communs aux Animaux et aux Végétaux, como já comentamos em outra parte (Dutra 2002b), onde Bernard afirma:

Aí temos o determinismo absoluto; ele diz que o mundo psíquico não é independente do mundo físico-químico; e este é um fato de experiência sempre verificado. Os fenômenos da alma, para se manifestar, têm necessidade de condições materiais exatamente determinadas. É por isso que eles aparecem sempre da mesma maneira, seguindo leis, e não arbitrária ou caprichosamente, no acaso de uma espontaneidade sem regras. (Id., 1966 [1878], p. 61)

Assim, se em face das doutrinas dualistas sobre a natureza do ser humano, Bernard abraça uma forma de monismo, ainda temos apenas uma parte de seu pensamento a esse respeito. A outra parte - e, a nosso ver, a mais importante - diz respeito ao tipo de monismo defendido por ele. Trata-se de um monismo nomológico, isto é, de uma doutrina segundo a qual os fenômenos mentais seguem leis.

Tomemos, a esse respeito, a classificação proposta por Davidson em seu Essays on Actions and Events (1980). Além de distinguir entre as doutrinas sobre aquilo de que é feito o mundo, digamos, entre as quais encontramos o monismo e o dualismo, Davidson distingue ainda, entre as doutrinas de cada grupo, aquelas que se opõem em virtude de sua visão sobre o modo de ocorrência dos fenômenos físico e mentais e da possível interação entre eles. Assim, temos a oposição entre, por exemplo, um monismo nomológico (segundo Davidson, o materialismo) e um monismo anômalo ou, melhor dizendo, não-nomológico, que é, como sabemos, a posição do próprio Davidson.15 Não vamos entrar em detalhes a esse respeito aqui, mas mencionamos essa classificação apenas para podermos situar a posição de Claude Bernard com mais clareza. Segundo as distinções de Davidson, a posição de Bernard seria a de um monismo nomológico, coincidindo, portanto, com o materialismo. Contudo, como veremos, ela é diferente, já que, ao contrário do materialismo, Bernard admite também fenômenos mentais, e não apenas fenômenos físicos.

A primeira característica do tipo de monismo nomológico defendido por Bernard, para ainda empregarmos a mesma rubrica, é a de negar qualquer espontaneidade aos fenômenos mentais, isto é, afirmar que eles são fenômenos que estão sujeitos ao mesmo determinismo ao qual está sujeito o restante da economia do organismo dos animais superiores. Em uma das passagens nas quais Bernard compara o cérebro com o relógio, para argumentar contra os materialistas, que o pensamento não é uma propriedade do cérebro, assim como o tempo não é uma propriedade dos materiais de são feitos um relógio, Bernard diz:

[...] O cérebro e o relógio são dois mecanismos, um vivo e o outro inerte, eis toda a diferença; o que não impede que tanto um quanto o outro funcione sempre apenas segundo as condições de um determinismo físico-químico absoluto. De fato, o cérebro encerra, virtualmente, por sua estrutura primordial, todos os fenômenos que ele exprime; apenas lhe são necessárias, para isso, condições que devem ser estudadas pelos fisiologistas.

O que disse acima se aplica a todos os órgãos do corpo. As glândulas estomacais, por exemplo, possuem a propriedade inata de formar o suco gástrico. Mas esse suco gástrico só se secreta normalmente sob a influência da excitação da superfície do estômago pelos alimentos. Mas não poderíamos, por causa disso, localizar a causa da formação do suco gástrico nos alimentos. Temos aí apenas uma das condições determinantes da formação do suco gástrico, que se secreta por um mecanismo pré-estabelecido no estômago, como as idéias aparecem no cérebro por causa de um mecanismo preestabelecido nas suas diversas partes. (Id., 1867, p. 137 n216)

Contudo, isso não nos mostra ainda a concepção que Bernard possui das leis que governam os fenômenos mentais. Pois, dadas suas idéias expostas na passagem acima citada, ainda poderia ser o caso de pensarmos em um determinismo para os fenômenos meramente cerebrais,e relacionarmos com cada fenômeno cerebral um fenômeno mental que, este, por sua vez, não estaria sujeito a nenhum determinismo.16 Entretanto, Bernard fala também de leis psicológicas que regem os fenômenos mentais tomados em sua especificidade ideal, como ele diz. Vejamos primeiro, como Bernard apresenta essa própria distinção entre os lados material e ideal dos fenômenos mentais e, depois, sua idéia de que as leis psicológicas dizem respeito também ao lado ideal.

Em seu Discurso à Academia, Bernard fala da diferença entre as propriedades da matéria e as funções dos órgãos e sistemas reunidos no organismo. O que ele diz se aplica claramente seja a fenômenos como a respiração e a digestão, seja a outros em relação aos quais se poderia ter alguma hesitação, por influência de posições filosóficas, tais como o pensamento, que também é, obviamente, um fenômeno, como aqueles outros mencionados. Bernard diz a esse respeito:

É preciso, pois, cuidar-se para não confundir as propriedades da matéria com as funções que elas realizam. As propriedades da matéria não explicam os fenômenos especiais que delas derivam diretamente. Nas obras da natureza e naquelas do homem, as propriedades materiais não permanecem isoladas, elas são agrupadas em órgãos e em aparelhos que as coordenam para um objetivo final de função.

Em uma palavra, em todas as funções do corpo vivo sem exceção, há um lado ideal e um lado material. O lado ideal da função se liga por sua forma à unidade do plano de criação ou de construção do organismo, enquanto que seu lado material responde, por seu mecanismo, às propriedades da matéria viva. (Id., 1878, pp. 429s.)

Acreditamos que a comparação entre o pensamento e as outras funções do organismo ajude a elucidar a posição de Claude Bernard. Com relação à digestão, por exemplo, considerando o lado material,conhecemos o mecanismo de sua realização, isto é, as substâncias que nela atuam e as propriedades do tecido estomacal que, em presença do alimento, secretam tais substâncias. Portanto, quando, no lado ideal, falamos da digestão, estamos nos referindo a todas essas ocorrências físico-químicas, assim consideradas no modo material de falar. Isso não impede, contudo, que um modo ideal de falar tenha sentido genuíno. De fato, no discurso do fisiologista, ao falar da economia do organismo e se referir a suas leis de organização (as leis que Bernard denomina organotróficas, leis fisiológicas), a digestão é um fenômeno descrito nomologicamente. Ou seja, podemos asseverar como um enunciado nomológico da fisiologia que, em condições normais, a presença de alimento no estômago vai produzir certas secreções, etc. Tal enunciado nomológico não diz respeito à matéria viva, nem a suas propriedades, nem às substâncias secretadas; ele diz respeito, antes, à digestão como um fenômeno fisiológico.

Essa distinção de Bernard entre os lados material e ideal, que denominamos aqui, de nossa parte, dois modos distintos do discurso sobre as mesmas ocorrências na natureza, está ligada à própria discussão também realizada por Bernard entre os aspectos físico e metafísico e ao problema das causas finais em biologia. Como veremos na próxima seção, Bernard não elimina as causas finais, mas as relaciona com o aspecto metafísico das coisas, ou seja, a seu lado ideal.

O que Bernard afirma para outras funções do organismo, como a digestão, obviamente, vale também para os fenômenos mentais, para o pensamento, por exemplo. E ele se expressa claramente a esse respeito. No volume póstumo Philosophie, que reúne anotações de Bernard, encontramos algumas passagens que vão diretamente a esse ponto. Elas dizem:

O estômago, por exemplo, produz suco gástrico que não poderia estar no alimento ingerido em sua cavidade, mas o suco gástrico não poderia surgir sem o alimento que se tornou seu excitante apropriado.

Nosso cérebro possui, portanto, em si todas as aptidões que são despertadas pelos excitantes externos ou internos especiais.

(...)

Todas as idéias nos vêm de objetos exteriores. Não há idéias inatas. São os excitantes cerebrais por intermédio dos sentidos. Nossos órgãos cerebrais não possuem o poder de se colocar em atividade por si mesmos, não mais que os outros órgãos. - Isso não é incompatível com a liberdade moral.

(...)

[...] Os membros caminham apenas porque eles são a isso levados por algo que lhes é externo. O cérebro age apenas porque é excitado. É aí que se encontra a dificuldade sobre a iniciativa voluntária (é uma inação). Em realidade, não há movimentos voluntários. Nós queremos, uma função se realiza. (Id., 1954, pp. 15, 22 e 32)

É claro que essas passagens fazem referência a pelo menos dois outros aspectos da questão, um certo empirismo de Claude Bernard, negando que haja idéias inatas, e o problema da liberdade moral, do qual vamos nos ocupar abaixo.17 Esse empirismo, contudo, está também relacionado ao problema do caráter nomológico dos fenômenos mentais. Cada órgão, aparelho ou sistema do organismo possui suas especificidades, e em relação, por exemplo, ao estômago, o cérebro possui a especificidade de deixar resíduos de seu funcionamento, isto é, a memória. Ou seja, depois do fenômeno da digestão, em estado normal, o estômago retorna ao mesmo estado de antes; não é esse o caso com o cérebro. Mesmo sendo levado a funcionar por excitantes externos, como diz Bernard nas passagens que acabamos de citar, o cérebro conserva certos produtos, digamos, de seu funcionamento, as idéias.18 E por isso podemos nos deixar levar pela impressão de que haveria idéias inatas. A esse respeito, mais uma vez em seu Discurso à Academia, em uma parte em que Bernard comenta o fato de que certas funções primeiro conscientes se tornam, depois, por repetição e hábito, inconscientes, o que é o caso justamente da fala, ele diz:

Mas não são apenas os movimentos dos nossos órgãos externos que se tornam automáticos. A formação de nossas idéias está submetida à mesma lei, e, uma vez que uma idéia tenha atravessado o cérebro durante um tempo, ela aí se grava, se aloja em um centro e se torna como uma idéia inata. (Id., 1878, p. 423.)

Contudo, mesmo em sua especificidade, como vemos, o cérebro, afirma Bernard, está sujeito à mesma lei que as outras partes do organismo. E a lei a que ele se refere nessa passagem é, claramente, uma lei de caráter psicológico, ou seja, que a repetição e o hábito alteram certas funções, em diversos órgãos (como andar e falar, etc.), e as funções intelectuais não são exceção.19 Poder-se-ia argumentar, contudo, mesmo que aqui estejamos nos referindo ao modo de falar ideal, como diz Bernard, e que comentamos acima, que tais leis psicológicas seriam apenas, de fato, leis fisiológicas, tal com podemos também interpretar aquelas leis que estão associadas aos fenômenos de condicionamento. Não sendo leis mentais genuínas, digamos, elas não diriam respeito, por exemplo, ao conteúdo de nossos pensamentos. Contudo, é bem nesta direção que Bernard leva seus comentários, o que lhe coloca, naturalmente, também o problema da liberdade, do qual vamos nos ocupar na próxima seção. Vejamos, antes, contudo, ainda o tema das leis psicológicas.

Retomemos um ponto que já mencionamos acima, do qual Bernard trata no final de seu Discurso à Academia, quando afirma que as leis fisiológicas que regem a inteligência humana fazem com que sempre procedamos passando sucessivamente pelo sentimento, pela razão e pela experiência (Ibid., p. 439). Ora, isso nos remete a outros textos, sobretudo do Introduction à l'Étude de la Médecine Expérimentale e dos Principes de Médecine Expérimentale, livros nos quais Bernard discute esses três estágios pelos quais, segundo ele, passa não apenas um único homem quando raciocina, mas também o próprio saber humano em geral e em sua marcha histórica.20 Na segunda dessas obras, exatamente, encontra-se o seguinte comentário a este respeito:

Apesar da desordem aparente e da variedade infinita de circunstâncias que se apresentam na história das ciências, pela análise, podemos desfazer esse caos e sempre remetê-lo às leis fisiológicas do raciocínio, o que prova que a história das ciências não se separa da história do espírito humano. (Id., 1987, p. 80)

Bernard se refere especificamente ao fato de que sempre procedemos do seguinte modo: a partir de alguma coisa que nos chama a atenção, primeiro criamos uma idéia confusa, depois observamos mais, depois emitimos uma hipótese, depois testamos tal hipótese e, se a verificamos, ela se torna uma teoria nas ciências. Assim, haveria certo determinismo no modo de raciocinarmos, mas isso não atingiria o conteúdo propriamente de nossas idéias Mas Bernard vai mais longe e, no mesmo volume póstumo Philosophie, que já citamos, afirma:

Encontramos, pois, desde o princípio, todos os sistemas filosóficos imagináveis. É impossível dizer algo de novo como idéia sobre esse assunto (e isso porque todos os homens tendo o cérebro feito do mesmo modo, eles têm todos ou as mesmas idéias, ou análogas, diante das mesmas realidades). Do mesmo modo, em uma doença mental, hipocondria, estando o cérebro lesado da mesma maneira, todos os doentes raciocinam do mesmo modo. (Id., 1954, p. 8)

Já que Bernard assume, como vimos, também uma posição empirista, esse determinismo mental não deixaria de levar a uma grande variedade de idéias, uma vez que as experiências individuais podem ser as mais variadas.21 Mas, nas mesmas circunstâncias, isto é, mediante as mesmas experiências, podemos prever os mesmos resultados, é o que afirma a passagem acima. Estas experiências são as próprias condições nas quais, segundo Bernard, os fenômenos naturais estão nomologicamente determinados, isto é, seguem uma lei. De fato, ele associa ao termo "lei" um significado preciso, que aparece na seguinte passagem:

Ora, a lei não é outra coisa que essa relação estabelecida numericamente de maneira a fazer prever a relação da causa com o efeito em todos os casos dados. É essa relação, estabelecida pela observação, que permite ao astrônomo predizer os fenômenos celestes; é ainda essa mesma relação, estabelecida pela observação e pela experiência, que permite ao físico, ao químico e ao fisiologista não apenas predizer os fenômenos da natureza, mas ainda modificá-los segundo sua vontade e com segurança, desde que ele não saia das relações que a experiência lhe indicou, isto é, da lei. Isso quer dizer, em outras palavras, que só podemos governar os fenômenos da natureza nos submetendo às leis que os regem. (Id., 1878, p. 73)

Contudo, o tema do determinismo dos fenômenos mentais não possui apenas esses aspectos que já discutimos, mas outros mais. Historicamente, a discussão sobre o determinismo mental está ligada também ao tema do determinismo entre o físico e o mental. Bernard fez também algumas observações a esse respeito, embora sem grandes desenvolvimentos; e, como veremos, na verdade, seus textos apresentam alguma dificuldade de compreensão. Para terminar essa seção, vamos examinar brevemente esse tópico.

No Rapport sur les Progrès et la Marche de la Physiologie Générale en France, Claude Bernard faz o seguinte comentário a respeito da influência recíproca entre o físico e o mental:

À medida que a fisiologia geral avançar, ela esclarecerá e precisará a natureza dessas influências nervosas sobre os fenômenos químicos, de que apenas começamos a entrever os mecanismos. Ao nos ensinar a manipular esses órgãos nervosos que servem de reguladores para as funções, ela vai nos dar os meios de ação sobre as mais elevadas manifestações vitais dos seres vivos.

Apenas então a influência recíproca, reconhecida em todos os tempos, mas sempre misteriosa, do moral sobre o físico e do físico sobre o moral será desvendada, ou seja, poderá ser explicada cientificamente. (Id., 1967, p. 91.)

Entretanto, no volume póstumo Pensées. Notes Détachées, encontramos os seguintes comentários, bastante distintos:

Para agir sobre os sentimentos do homem, seria preciso agir sobre seu físico; pois apenas o físico pode agir sobre o metafísico, mas não o metafísico sobre o físico.

[...]

Fala-se sempre da influência do moral sobre o físico ou reciprocamente. Há livros que tratam dessas duas ordens de assuntos. Cabanis, Roussel, Cerise tratam da influência do físico sobre o moral; Froissac trata da influência do moral sobre o físico. Esse último caso, não existe. Não há nunca influência do moral sobre o físico. É sempre o físico que modifica o moral, e quando se acredita que é o moral que age, é uma ilusão. Há sempre um sentido alcançado primitiva e fisicamente. [Experiência do cavalo salivando ao ver a aveia, etc.] (Id., 1937, pp. 65s.)

Naturalmente, seria interessante saber se a passagem acima é anterior ou posterior àquela publicada em 1867, no Rapport. O volume póstumo de que se trata foi organizado a partir de dois cadernos de anotações de Bernard, e apenas um deles tinha a data de seu início, que é 1872. Da parte dos editores, não há outras indicações que permitam identificar em qual dos dois cadernos está a passagem acima, nem sua data provável. Mas, fora isso, é importante lembrar que o Rapport de Bernard, no qual se encontra a primeira citação, foi redigido em um tom sempre otimista não apenas em relação às conquistas já alcançadas pela fisiologia, mas também àquelas que pareciam poder em breve estar a seu alcance. Ao contrário, o tom das notas pessoais de Bernard é sempre muito diferente e, naturalmente, crítico e sintético, sem nenhuma preocupação retórica. Isso sugere, portanto, que talvez a passagem do Rapport seja menos representativa do verdadeiro pensamento de Bernard a respeito desse assunto.

O mesmo volume dos Pensées contém outros comentários que confirmam essa visão, de que é sempre o físico que age sobre o mental, entre as quais encontramos a seguinte:

Podemos agir apenas sobre o presente e o futuro; o passado não nos pertence mais. Um fenômeno nunca tem efeito retroativo. A inteligência não pode agir sobre sua causa, não mais que a vida; ela é um resultado. Todos os resultados são metafísicos.

Um fenômeno não pode agir sobre aquele que o precede, mas sobre aquele que o sucede.

A vida é a expressão do organismo; ela não poderá agir sobre ele. A eletricidade não age sobre a pilha.

O físico age sobre o metafísico; mas o metafísico não age sobre o físico.

Que nosso espírito não possa ficar sem as forças metafísicas, eu o reconheço, eu o admito; mas que a ciência possa disso se servir eu nego. (Ibid., p. 63)

A comparação do pensamento com a eletricidade e com a vida pode parecer nos dar a chave para entendermos, afinal, a posição de Claude Bernard. Não acreditamos, contudo, que seja simples assim. A passagem acima sugere que toda realidade da qual as ciências da natureza tratam é física, e que os próprios termos "vida", "inteligência", "eletricidade", entre outros, pertenceriam apenas a um modo de falar - o modo ideal, que comentamos acima - completamente redutível ao modo de falar material.

Poderíamos ainda encontrar outros textos de Bernard que pareceriam confirmar essa posição, nos quais ele defende uma doutrina ficcionalista a respeito das entidades inobserváveis de que tratam as teorias científicas.22 Nesse caso, poderíamos dizer então que os fenômenos mentais são, para Bernard, inteiramente redutíveis a fenômenos físicos. Contudo, isso resulta incoerente com sua doutrina sobre as leis, não apenas as leis psicológicas, mas, em geral, as leis fisiológicas, cuja existência ele também defende, como vimos acima.

Assim, no que diz respeito a determinadas entidades inobserváveis de que tratam as ciências - como vida, inteligência, eletricidade, força, etc. -, podemos dizer que Bernard mantém uma posição ficcionalista, e que, sendo apenas ficções ou construções conceituais nossas, tais coisas não poderiam ser contadas entre os fatores causais físicos do mundo. Por isso a inteligência e a vida não podem agir sobre o organismo, assim como a eletricidade não pode agir sobre a pilha. Tais resultados, como diz Bernard, seriam fenômenos de outra ordem, isto é, fenômenos que não se localizam na esfera das ocorrências físicas do mundo. E, por isso, naturalmente, não pode haver influência do mental sobre o físico.

Entretanto, com esse tema, retornamos à já comentada distinção de Bernard entre fenômenos e propriedades, e que ele mesmo utiliza em sua argumentação contra os materialistas, como vimos acima.

Nas suas Leçons de Physiologie Opératoire, Bernard (1879, pp. 40ss) propõe uma distinção que nos parece esclarecedora a respeito do ponto aqui em questão. Ele argumenta que os fenômenos são fatos complexos, que podem ser reduzidos a fatos (mais) simples; e que os fatos simples são as propriedades. Segundo Bernard, em cada momento do desenvolvimento das ciências, essa distinção se estabelece de facto, de tal modo que aquilo que, para certa teoria, em um momento do desenvolvimento de uma ciência, é uma propriedade ou fato simples, pode ser, mais tarde, para outra teoria, um fenômeno ou fato complexo, redutível a determinados fatos simples ou propriedades. Ora, um dos exemplos de Bernard é a própria vida que, segundo ele, era tomada pelos vitalistas como uma propriedade do organismo e que a fisiologia experimental pôde mostrar que se trata de uma série de fenômenos que podem ser explicados com base nas propriedades físico-químicas da matéria, que encontramos no meio interno do organismo. Os fatos simples ou propriedades são, pois, uma espécie de limite para a ciência de cada tempo. Era assim que Bernard se expressava em relação à irritabilidade do protoplasma, como uma propriedade deste e que, em seu tempo, era um limite para os conhecimentos do fisiologista.

Em suma, é por isso que Bernard argumenta diversas vezes, contra os vitalistas, que há fenômenos vitais, mas que não há propriedades vitais, o que não é inteiramente correto, segundo sua própria concepção. Pois poderíamos dizer que a irritabilidade é uma propriedade vital (do protoplasma), uma vez que ela (ainda) não foi explicada com base em propriedades físico-químicas. Fora isso, de qualquer maneira, como vimos acima, Bernard admite fenômenos mentais, além dos fenômenos vitais. E se ele não admite propriedades mentais do organismo, assim como, em geral, não admite propriedades vitais, mesmo assim, as leis fisiológicas e psicológicas dizem respeito aos fenômenos vitais e mentais. E é isso o que dá especificidade ao modo de falar ideal, e impede que ele seja um discurso destituído de significado e inteiramente redutível ao modo de falar material. Essa interpretação, por sua vez, está de acordo com os diversos comentários de Bernard a respeito da ineliminabilidade do aspecto metafísico ou ideal, ou ainda moral, de nossa consideração das coisas no mundo, como discutimos antes.

Mediante essa interpretação, podemos bem compreender outras passagens de Bernard, inclusive do próprio volume Pensées. Notes Détachées, onde ele diz o seguinte:

O determinismo é o único princípio das ciências porque é uma relação entre as coisas.

As teorias são sempre relativas a nossos conhecimentos e nunca absolutas.

Em astronomia, o determinismo é a relação entre a massa e o movimento. A teoria é a atração quasi esset, disse Newton.

Em física e em química, o determinismo é a condição de calor, umidade, de produção de fenômenos; a teoria é a maneira de imaginar anatomicamente, ou de outra forma, os fenômenos.

Em fisiologia, o determinismo se torna ainda mais complexo, mas podemos fixá-lo - as teorias são mais instáv[eis] que em qualquer outra ciência.

Há um determinismo moral do mesmo modo que um determinismo físico. Um ato é relativo às condições nas quais ele se produz; é isso que faz com que haja vício, virtude, etc. (Id., 1937, p. 87)

Ora, o determinismo moral de que Bernard fala, a respeito de um ato e as condições nas quais ele se produz, dando como exemplo o vício e a virtude, diz respeito, obviamente, às circunstâncias do comportamento e da convivência das pessoas, ao domínio propriamente psicológico e, por extensão, social. Nesse sentido, não há, portanto, nenhuma redução do mental ao meramente físico. Dizer que não há propriedades mentais e dizer que não há ação do mental sobre o físico não acarreta dizer, igualmente, que o domínio mental não possui caráter nomológico.

Se essa interpretação for correta, então, as observações de Bernard, que vimos acima, sobre a impossibilidade de uma ação do mental sobre o físico e que parecem dizer respeito à polêmica que remonta a Descartes e aos modernos, inclusive Hume, sobre a interação entre o físico e o mental, não compromete sua doutrina de que há um determinismo mental. Assim, as discussões de Bernard não dizem respeito, como sugerem os contornos que as discussões em filosofia da mente e da psicologia ganham com as contribuições mais recentes, como a de Davidson, à impossibilidade de haver um domínio psicológico nomológico, como sustenta esse autor, já que, como Bernard afirma, não há ação do mental sobre o físico. A concepção de Bernard nos parece ser a de que o físico e o mental são dois domínios nomológicos distintos, com suas próprias leis e seu determinismo específico.

 

Liberdade e finalidade

De nossas discussões precedentes restam alguns pontos que ainda merecem um comentário mais detalhado, em especial, o tema da liberdade ante o determinismo mental, defendido por Bernard, como vimos antes. Esse ponto pode ser bem compreendido na medida em que pudermos entender também a posição de Claude Bernard a respeito da causalidade em geral, em especial, do lugar que as causas finais ainda podem ter nas ciências da vida. Ele está ligado também àquela distinção entre os lados ou aspectos ideal (ou metafísico) e material (ou físico), ou modos do discurso, que comentamos acima.23

Como vimos na seção precedente, ao falar do determinismo do pensamento, Bernard chega mesmo a afirmar que a constituição do cérebro leva os homens a raciocinar sempre do mesmo modo, comparando tal determinismo com aquele de certos estados mentais patológicos, como a hipocondria (Id., 1954, p. 8). O argumento de Bernard, como vimos, é que se há um determinismo dos estados mentais patológicos, tem de haver um determinismo dos estados mentais normais. Mas isso, segundo ele, não elimina a liberdade, que, em sua concepção, é o próprio resultado do funcionamento normal do organismo. São os estados mentais patológicos, por sua vez, consistindo em desarranjos da economia do organismo, que suprimem a liberdade. Para Bernard, a liberdade deve ser compreendida dentro das possibilidades materiais reais que se nos colocam. Ou seja, trata-se de uma liberdade resultante das próprias condições orgânicas mediante as quais têm lugar os fenômenos mentais. No volume Pensées, Bernard afirma a esse mesmo respeito:

Não somos livres de pensar, de sentir de uma maneira ou de outra, do mesmo modo que não somos livres de sofrer ou de não sofrer em uma circunstância dada. Somos livres apenas de dissimular ou de manifestar nosso pensamento, nossa dor, nosso prazer, etc. (Id., 1937, p. 28.)

O que Claude Bernard rejeita é a idéia vulgar da liberdade como uma ausência completa de determinação, como a possibilidade para o ser humano, no que diz respeito a sua vida mental, de escapar a todo determinismo, enquanto que, contrariamente, seu corpo, sendo material, está sempre sujeito ao determinismo físico mais estrito, uma idéia que tem origem na própria tradição filosófica, obviamente. E, ao mesmo tempo, Bernard rejeita o fatalismo de certos filósofos, entre os quais ele aponta Leibniz (id., 1987, p. 207). Para o fatalismo, no extremo oposto à idéia de liberdade moral como a completa ausência de determinação, todos os acontecimentos, sejam físicos, sejam mentais, estão predeterminados pelos acontecimentos que o antecedem. Rejeitando esses dois extremos, para Bernard, reconhecer a liberdade moral consiste em reconhecer que o determinismo dos fenômenos mentais não acarreta a determinação individual de cada evento mental, como sustentaria o fatalista.

Bernard é claro sobre esse ponto quando comenta uma certa espontaneidade segundo a qual ocorrem os fenômenos mentais, tais como o surgimento de nossas idéias. Vimos na seção precedente que Bernard sustenta que há leis do pensamento e que, de certa forma, elas determinam também o conteúdo de nossas idéias. Mas a variedade de circunstâncias em que cada indivíduo é colocado garante, por outro lado, que haja uma espontaneidade do pensamento, que não é ausência de determinismo mental, mas apenas ausência de fatalismo, isto é, de determinação exata de cada evento mental individual, de cada idéia que temos, por exemplo. Em um outro volume póstumo, reunindo suas anotações pessoais, o Cahier de Notes,Bernard diz a esse respeito:

As idéias se desenvolvem espontaneamente no espírito, e quando nos deixamos ir em nossas idéias, somos como um homem à janela, que olha passar os transeuntes. Olhamos, portanto, de certa forma, passarem nossas idéias. Isso não exige nenhum esforço; tem mesmo um grande encantamento. O trabalho, a fatiga está em segurar a idéia pelo colarinho, como agarraríamos o passante apesar de seu desejo de fugir, retê-la, fixá-la, dar-lhe seu caráter, etc. (Bernard 1965, p. 89)

Isso está de acordo com os muitos comentários de Bernard a respeito do método nas ciências, sobretudo no Introduction à l'Étude de la Médecine Expérimentale, que afirmam sempre o caráter hipotético de nossas idéias, e, por conseguinte, a necessidade que temos de colocá-las à prova.24 E no mesmo volume póstumo, Bernard retoma esse tema, relacionando-o ao tema da vontade, apresentando-a como resultado da própria evolução orgânica e da complexidade de funções intelectuais que encontramos no homem, e relacionando-o também aos temas da liberdade, da razão e da loucura. Ele diz:

Quando estamos em nossa janela ideal, são os órgãos cerebrais que agem de acordo com sua evolução, sob a influência do freio sangüíneo - mas temos o freio voluntário que intervém para parar ou não nossa idéia, como um homem que passa na rua. É essa possibilidade de parar voluntariamente sua idéia, de dirigi-la, de refletir sobre ela, que distingue o homem do animal. Os loucos exprimem a evolução de seu cérebro sem poder pará-la com a razão, que é o freio. Isso ocorre freqüentemente apenas com um certo número de idéias. É um sonho acordado. Pois, no sonho, o freio orgânico continua funcionando, e a evolução das idéias aparece sem um freio racional, isto é, sem juízo. Além disso, a memória se abre pelo sono, mas, diferentemente, continuamos a sonhar, e isso é apenas a continuação de um único freio.

Não podemos impedir as idéias que nos passam pela cabeça de passar. É uma evolução; mas podemos pará-las ou não por nossa vontade, a elas aplicar nosso juízo, etc.

É isso o que constitui a liberdade e que pertence apenas ao homem. [...] (Bernard 1965, p. 155)

Como podemos ver, para Bernard, tanto a vontade e a razão quanto a liberdade são resultados da evolução e da especialização das funções orgânicas, cujo grau máximo encontramos no homem. Isso dá um sentido claro ao que ele diz em seu Discurso à Academia, ao afirmar que o ato racionalmente livre é o maior mistério da economia animal e de toda a natureza, em cuja explicação o fisiologista também deve se empenhar (id., 1878, p. 414). Mas a passagem que de maneira mais sintética exprime a concepção de Bernard da liberdade como resultado do próprio determinismo natural a que somos submetidos se encontra nos Pensées, onde ele diz:

Tudo é, portanto, determinismo. O determinismo não se opõe à liberdade, como parece que se acredita. Pois há também um determinismo da liberdade; somos forçosamente livres. Sem isso, a loucura não existiria. Como compreender então que haja um determinismo para a loucura e que não haja um para a razão? (Bernard 1937, p. 75)

Essa concepção de que a liberdade é o resultado da própria evolução e da complexidade incomparável do homem em relação ao restante da natureza reaparece em outros textos. No volume Philosophie, Bernard volta a esse tema, e procura argumentar em favor da espontaneidade individual, que não resulta suprimida pelo determinismo dos fenômenos mentais, recusando, portanto, o fatalismo. Em um tom bastante poético, aliás, ele diz:

[...] Existem leis do espírito humano. Mas, como há espontaneidade individual, essa espontaneidade individual, representada pelo raciocínio, se opõe à lei que, de alguma maneira, suprime o indivíduo. Com os corpos brutos, sendo conhecida a lei, ela é seguida rigorosamente. Com os outros seres vivos além do homem, a lei é ainda seguida pelas influências externas e pela fixidez das existências. Mas no homem que progride, cuja razão pode ser aperfeiçoada e elevada, assim como diminuída, a individualidade traz problemas incomparavelmente mais diversos. Os animais se batem pelo amor e por abrigo; o homem se bate por tudo. (Id., 1954, p. 39)

Vemos claramente, portanto, que o fatalismo está afastado em virtude da variedade a que os indivíduos humanos são expostos em sua experiência e em decorrência de sua própria complexidade mental. Para lembrarmos a expressão devida a Sartre, podemos dizer que, para Bernard, a liberdade é uma liberdade em situação, ou seja, é a própria necessidade de escolher entre diversas possibilidades, uma situação diante da qual repetidamente os seres humanos se encontram. O determinismo dos fenômenos - físicos, fisiológicos e mentais - pode não abrir inúmeras possibilidades de ação para os outros animais, mas o faz para o homem, e por isso ele "se bate por tudo", como diz Bernard. Exercer sua vontade, sua razão e sua liberdade é uma decorrência, portanto, do próprio determinismo dos fenômenos mentais no homem.

Entretanto, tal determinismo não está posto apenas antes, por assim dizer, de que o indivíduo humano se encontre ante diversas possibilidades. Ele está posto também depois, ou seja, para exercer sua vontade e sua liberdade, mais uma vez, o homem deve sujeitar-se ao determinismo dos fenômenos naturais em geral, inclusive dos fenômenos mentais.

É por essa própria razão, segundo Bernard, que faz sentido indagar sobre a forma de raciocinar e o método adequados para que o homem conheça o mundo - e vale lembrar que Bernard se tornou conhecido no meio filosófico exatamente em virtude de suas discussões sobre o método experimental. É porque há um determinismo da mente humana - e que se estende, aliás, como já comentamos, à própria história das ciências - que a investigação científica deve seguir certos procedimentos, certo método. Não apenas para executar uma ação, fisicamente falando, somos obrigados a nos submeter ao determinismo dos fenômenos, que está em toda parte; mas o mesmo vale quando executamos aquelas ações mentais nas quais, segundo a tradição filosófica, nosso espírito estaria livre de qualquer determinação. Aceitamos facilmente que, se queremos livremente ir até determinado lugar, temos que caminhar até lá ou sermos fisicamente até lá levados de algum modo, por algum veículo. Mas, como comenta Bernard a respeito de "segurar a idéia pelo colarinho," no nível dos fenô menos mentais, é preciso aceitar o mesmo determinismo. A espontaneidade de nossas idéias exige que ajamos sobre elas, respeitando seu determinismo, para produzir conhecimento e ciência.

Bernard procura explicar essa relação entre a liberdade (de escolha) e a realização do objetivo (escolhido) por meio de uma distinção que ele aplica também ao caso da própria distinção entre causas finais e causas próximas e ao caso da distinção entre os domínios físico e metafísico. Trata-se da distinção entre um período diretivo e um período executivo da ação, que está relacionada àquela entre forças legislativas e forças executivas. Em seu Rapport, ao argumentar que as ciências devem não apenas conhecer a natureza, mas também controlar seus fenômenos, Bernard afirma:

O princípio da ação como fim da humanidade substitui a contemplação e hoje está em toda parte, nas ciências, na história, na moral. As ciências modernas, admitindo o determinismo, fazem dele a própria condição da liberdade, o que distingue radicalmente o determinismo do fatalismo. De fato, o ato livre só pode existir no período diretivo dos fenômenos; mas, uma vez no período executivo, o determinismo deve ser absoluto, para que a liberdade dele decorra necessariamente. O determinismo é, portanto, forçoso, e os próprios deuses a ele estariam submetidos, segundo a idéia dos antigos. Eu repito, o determinismo não exclui a liberdade. (Id., 1867, p. 233)

Em resumo, o determinismo natural, que atinge nossa vida mental, coloca-nos em situações em que temos de escolher e, assim, dele decorre nossa liberdade. Mas, uma vez feita a escolha e exercida a liberdade, a realização da ação se passa novamente segundo o mesmo determinismo natural. Assim, o momento diretivo de nossa ação, quando atuam a vontade e a liberdade, deve necessariamente ser seguido pelo momento executivo, no qual devemos seguir o determinismo dos fenômenos. Bernard aplica essa mesma distinção ao problema da causalidade e da possibilidade de manter explicações teleológicas em uma ciência natural que se dedica ao estudo das causas próximas ou condições físico-químicas dos fenômenos vitais, a fisiologia. A esse respeito, ele apresenta a distinção entre força legislativa e força executiva, sendo a primeira física e a segunda, metafísica.

Claude Bernard apresenta essa distinção entre os dois tipos de forças num dos momentos em que discute o vitalismo e a noção de força vital que os vitalistas defendiam. Ele concorda com eles, que há nos organismos alguma coisa que não há nos corpos inanimados; cada organismo, segundo ele, constitui um todo que parece constituído segundo um plano. Além disso, no organismo, todas as funções parecem dirigidas para ele mesmo, isto é, para a manutenção das condições necessárias a sua sobrevivência. Portanto, é inevitável pensar em certa finalidade associada ao organismo, que resultaria de um projeto ou desígnio preestabelecido. Bernard admite a idéia de uma finalidade individual ou particular do organismo, uma finalidade meramente intra-orgânica e, portanto, local, ao mesmo tempo em que rejeita a idéia de uma finalidade geral da natureza, como ele argumenta longamente em suas Leçons sur les Phénomènes de la Vie Communs aux Animaux et aux Végétaux (id., 1966 [1878], cf. pp. 388ss). Mas o plano que, em seu desenvolvimento, o organismo realiza, para Bernard, está fora do alcance da fisiologia experimental, embora, de um ponto de vista especulativo e metafísico, não possamos deixar de nele pensar. Para Bernard, a fisiologia experimental de seu tempo encontra aí mais um de seus limites. O plano que cada organismo desenvolve é a ele legado por seus ancestrais. É nesse contexto que Bernard comenta:

A mais simples meditação nos faz perceber um caráter de primeira ordem, um quid propium do ser vivo nessa ordenação vital pre-estabelecida.

Todavia, a observação nos ensina apenas o seguinte: ela nos mostra um plano orgânico, mas não uma intervenção ativa de um princípio vital. A única força vital que poderíamos admitir seria um tipo de força legislativa, mas de modo algum executiva.

Para resumir nosso pensamento, poderíamos dizer metaforicamente: a força vital dirige os fenômenos que ela não produz; os agentes físicos produzem os fenômenos que eles não dirigem.

A força vital, não sendo uma força ativa, executiva, não fazendo nada por si mesma, enquanto que tudo se manifesta na vida pela intervenção de condições físicas e químicas, a consideração dessa entidade não deve intervir na fisiologia experimental. Quando o fisiologista quiser conhecer, provocar os fenômenos da vida, agir sobre eles, modificá-los, não é à força vital, entidade inapreensível, que ele deverá se dirigir, mas às condições físicas e químicas que acarretam e comandam a manifestação da vida. (Ibid., pp. 51s)

Podemos compreender, então, por que, para Claude Bernard, a liberdade humana, enquanto um evento mental, ligado à vontade e à razão, pode existir em um mundo todo determinado fisicamente. Ora, a vontade, a razão e a liberdade resultam do plano orgânico que preside, como força legislativa, o desenvolvimento do organismo humano e a realização de suas funções superiores. Mas todos esses fenômenos mentais ocorrem na medida em que os agentes físicos atuam, isto é, na medida em que, como força executiva, as condições físico-químicas ou causas próximas dos fenômenos mentais se colocam.

É assim que podemos entender com clareza a afirmação de Claude Bernard de que somos forçosamente livres. Pois a liberdade, assim como a vontade e a razão, entre outros fenômenos mentais, decorre de nossa constituição animal especial, própria da espécie humana. Para colocarmos isso de forma ainda mais sintética, podemos dizer que, para Bernard, a liberdade é fenômeno, e não propriedade. Na mesma obra que citamos acima, há uma nota de rodapé que resume de forma inteiramente clara essa concepção. Nela, Bernard diz:

A liberdade não poderia ser o indeterminismo. Na doutrina do determinismo fisiológico, o homem é forçosamente livre; eis o que podemos prever. Não quero tratar aqui da questão filosófica. É suficiente dizer, do ponto de vista fisiológico, que o fenômeno da liberdade moral deve ser assimilado a todos os outros fenômenos do organismo vivo. - Se todas as condições anatômicas e físico-químicas existem no braço, por exemplo, e nos órgãos nervosos correspondentes, você poderá predizer que fará mover o membro e que o fará livremente em todos os sentidos, segundo sua vontade. Apenas que o sentido no qual você o fará mover existe em um futuro contingente que você não pode prever, mas no qual você é livre de se determinar mais tarde, segundo as circunstâncias. Da mesma forma, a presumida integridade anatômica e físico-química do órgão cerebral faz com que você prediga que suas funções se exercerão plenamente, e que você será livre de agir voluntariamente; mas você não pode prever o sentido no qual sua vontade se exercerá, porque esse sentido é dado, eu repito, pela contingência dos acontecimentos, que você ignora, ou que você não pode prever. É por isso que você continua sendo livre de agir e de escolher segundo os princípios de moral ou outros que o animem. (Ibid., 1966 [1878], p. 62 n1)

Se retomarmos aqui os termos das discussões atuais em filosofia da mente e da psicologia, como aquelas de Davidson, que já mencionamos, podemos dizer que a racionalidade e a liberdade existem enquanto eventos, segundo Claude Bernard.25 E o mesmo poderíamos dizer de uma outra noção cara aos filósofos atuais, que tratam dessas questões: a noção de intencionalidade. Bernard não se ocupou desse tema diretamente, mas, por extensão, poderíamos dizer que a intencionalidade que, segundo Davidson e outros, marcam os eventos humanos, seria também fenômeno, e não propriedade. Ou seja, certamente os eventos mentais humanos exibem intencionalidade, mas isso não nos permitiria inferir a existência de uma propriedade humana singular, a intencionalidade exatamente. Isso seria talvez para Bernard recair no erro dos vitalistas e dos espiritualistas. Para ele, a intencionalidade estaria relacionada com o aspecto metafísico e legislativo, não com o aspecto físico e executivo, dos eventos humanos. Ora, é exatamente nesse sentido que são feitos seus comentários sobre as causas finais.

O problema da intencionalidade dos eventos mentais está ligado exatamente à finalidade que eles exibem, como sabemos. E, como vimos, para Claude Bernard, as causas finais são apropriadas para pensarmos - especulativa ou metafisicamente - o organismo em sua inteireza. Mas elas não têm lugar em uma investigação que enfoca as causas próximas ou condições materiais dos fenômenos vitais. No que diz respeito aos fenômenos ou eventos mentais, do ponto de vista de Bernard, podemos dizer o mesmo, isto é, qualquer finalidade está ligada ao período diretivo dos fenômenos, não a seu período executivo. Por exemplo, o evento mental e livre, de um indivíduo humano, de querer mover um braço é intencional, mas não atua como fator executivo no movimento do braço, isto é, não está entre as causas próximas ou condições materiais do movimento do braço. O que temos aqui, de forma semelhante à análise de Hume na seção VII de seu Enquiry, é apenas a correlação que estabelecemos entre dois eventos, um mental e outro físico. Como vimos na seção anterior, para Bernard, o fenômeno mental apenas antecede no tempo o fenômeno físico. Como ele diz numa das passagens de seu Philosophie, que citamos antes: "nós queremos, uma função se realiza" (Id., 1954, p. 32). Lembremos que os fenômenos mentais pertencem ao lado ideal, não ao lado material, ao qual pertencem as condições físico-químicas no organismo. Assim, dizer que o evento mental de querer mover um braço está entre os fatores causais do movimento do braço é, para Bernard, confundir duas esferas de consideração dos fenômenos, confundir os modos material e ideal de falar.

A intencionalidade, assim como a liberdade, pertencendo à esfera dos fenômenos mentais, do ponto de vista de Claude Bernard, está apenas no nosso modo ideal de considerar as coisas. Isso não significa, como vimos também, que ela escape a qualquer tratamento nomológico. Ou seja, os eventos considerados em seu aspecto ideal ainda são concebidos de maneira nomológica. Apenas que as leis que a seu respeito possamos formular não são da mesma ordem daquelas que formulamos a respeito dos mesmos eventos considerados do ponto de vista material. Isso traz uma conseqüência importante em relação ao que dizem alguns autores atuais, como o próprio Davidson. Ora, se seguirmos o ponto de vista de Bernard sobre a liberdade e a racionalidade, e se o estendermos ao caso da intencionalidade, devemos reconhecer que ela também está, em princípio, sujeita a um tratamento nomológico, que não escapa a ele, como se costuma afirmar, exatamente em contraposição àqueles projetos em psicologia, como os behaviorismos, que visam a dar um tratamento nomológico aos eventos humanos.

 

Conclusão

Nossos comentários na seção precedente, apoiados nas interpretações que apresentamos nas demais seções acima, da concepção de Claude Bernard dos fenômenos mentais e de seu determinismo, levam-nos a uma conclusão geral com respeito à questão da possibilidade de uma psicologia científica e experimental, que nos faz ver que as afirmações de Bernard em seu discurso de recepção na Academia Francesa não eram um mero exercício de retórica. Se ele afirma em seu discurso que é possível uma psicologia científica, fundamentada na própria fisiologia que ele já praticava, na verdade, ele põe ordem em suas reflexões sobre a natureza dos fenômenos mentais e tira delas a conseqüência necessária.

Tais como encarados por Bernard, os fenômenos mentais são passíveis de um tratamento nomológico, aquele que a fisiologia já tinha realizado em relação aos próprios fenômenos vitais, também eles, antes vistos (pelos vitalistas) como fenômenos que escapariam a um tratamento científico comparável àquele das ciências físico-químicas. Como vimos, o ponto principal da concepção de Bernard da natureza do mental reside em sua idéia de que há leis mentais ou psicológicas que não são redutíveis às leis das disciplinas físico-químicas. Sem bem se compreende esse ponto, não se pode distinguir a posição de Bernard daquela dos materialistas.

Mais importante que isso, os próprios fenômenos mentais que temos como os mais característicos da condição humana, como a razão, a vontade e a liberdade, são resultado do próprio determinismo e do caráter nomológico do mental, segundo Bernard. A idéia de que a própria liberdade é evento permite à psicologia científica concebida por ele dar um tratamento nomológico aos próprios temas que, tradicionalmente, são apontados como aqueles nos quais uma psicologia experimental fracassaria. Como já comentamos, isso valeria também para o caso da intencionalidade, ainda que Bernard não tenha diretamente se ocupado desse assunto.

Aqui podemos perceber a fecundidade das idéias de Claude Bernard, que permitiria buscar respostas mesmo para questões que só foram mais detalhadas muito depois dele, como o problema do caráter não-nomológico da intencionalidade. Se suas idéias e sua polêmica com os vitalistas nos servirem de inspiração, podemos talvez dizer que é a defesa desse caráter não-nomológico da intencionalidade que constitui um entrave ao desenvolvimento de uma psicologia científica aceitável, e não sua base, como argumentam alguns defensores dessa idéia. Assim, talvez a história futura das ciências possa julgar os intencionalistas do mesmo modo que hoje julgamos os vitalistas.26

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: lhdutra@cfh.ufsc.br

Recebido em 11 de dezembro de 2002
Aprovado em 2 de abril de 2003

 

 

1 Em agosto do mesmo ano de 1869, Bernard é nomeado para o Senado do Segundo Império.Vale lembrar ainda que ele havia sucedido Magendie no Collège de France desde 1847, que já tinha ganhado dois prêmios da Academia de Ciências (em 1848 e 1851, respectivamente, pelas descobertas da função do pâncreas na digestão e da função glicogênica do fígado). Entre 1855 e 1859, publicou diversos de seus cursos (alguns dos volumes intitulados Leçons...), e, em 1865, seu livro mais conhecido, L'Introduction à l'Étude de la Médecine Expérimentale. Bernard morre nove anos após sua posse na Academia Francesa, em 11 de fevereiro de 1878. Sobre outros aspectos biográficos, cf. o excelente livro de J. M. D. Olmsted e E. H. Olmsted (1952), assim como o de F. L. Holmes (1974). Sobre o pensamento de Bernard em geral, cf. R. Virtanen (1960).
2 De fato, há diversas passagens de Bernard a respeito do tema, em diversos de seus outros livros, que serão oportunamente citadas. O Rapport de Bernard (1867) já coloca os "fenômenos da inteligência", como ele mesmo diz, como objetos de estudo da fisiologia, após fazer uma recapitulação geral dos progressos dessa ciência e projetar alguns de seus desenvolvimentos futuros, entre os quais encontram-se, obviamente, os que dizem respeito à psicologia, como analisaremos a seguir.
3 Flourens se dedicou, entre outros tópicos, à anatomia e fisiologia do sistema nervoso central, tendo tido o mérito de associar as diversas funções sensitivas e intelectuais do organismo dos animais superiores às diversas partes que compõem aquele sistema. Cf.Cimino (1982), Flourens (1824, 2000) [1858]), volume que contém um resumo dos principais pontos expostos na primeira obra.
4 Cf.Dutra (2001), cap. 3. De fato, Bernard se liga ao ponto de vista de Bacon, segundo o qual não apenas as ciências gozam de unidade entre si, mas também com suas aplicações; ou seja, o objetivo de dominar a natureza não é estranho às próprias ciências e não pode delas ser separado.
5 Vale lembrar que, de fato, a principal contribuição de Claude Bernard à biologia é sua teoria do meio interno, que inclui a noção de secreção interna, e que vai nortear toda a fisiologia posterior, inclusive alguns de seus desenvolvimentos mais especializados, como a endocrinologia. Nesse domínio, um dos pioneiros foi um dos discípulos de Bernard, Brown-Séquart. Além disso, o próprio Cannon se refere ao conceito de meio interno de Claude Bernard, ao comentar sobre sua concepção da homeostasia; cf. Virtanen (1960), cap. 5. Sobre outros detalhes sobre a teoria do meio interno de Bernard, cf. Dutra (2001), cap. 1 e (1999).
6 Cf.Stagner (1988), cap. 5 e Hearnshaw (1989), entre outras histórias da psicologia.
7 Bernard reconhece que Flourens teve o mérito de localizar os fenômenos intelectuais no sistema nervoso central, mas, como enfatiza em seu discurso, depois de localizá-los, é preciso explicá-los, o que lhe parece que a doutrina de Flourens não permite (Bernard 1978, p. 414).
8 Cf., entre outros, Pichot (1993), cap. VI, e Bichat (1994 [1822]).
9 A este respeito, cf. Holmes (1974). Cf. ainda Dutra (2001), cap. 1.
10 Cf. Bernard (1984 [1865]; 1987 [1947]). Cf. ainda Dutra (2001), caps. 1 e 3, para uma apresentação geral desses aspectos do pensamento de Claude Bernard.
11 O uso do termo "evolução", nessa passagem e em outras que serão citadas a seguir, faz lembrar, obviamente, a teoria de Darwin. É óbvio que, por essa razão e por outras, seria procedente perguntar se Bernard conhecia tal teoria, uma vez que Darwin é um contemporâneo seu. De fato, Darwin é mencionado por Bernard em raríssimas passagens (p. ex., nos Principes de Médecine Expérimentale, 1987 [1947], p. 142). A Origem das Espécies foi publicada na França em 1862, em tradução de Clémence Royer a partir da terceira edição em inglês (de 1861, sendo que a primeira edição tinha sido feita em 1859; cf. Becquemont 1992, pp. 37ss). Até 1876, dois anos antes da morte de Claude Bernard, o livro de Darwin teve sucessivas edições da tradução acima mencionada, e teve mais duas novas traduções, as de J.-J. Moulinié (1873) e de E. Barbier (1876), esta feita a partir da edição em inglês considerada definitiva, de 1876, que revisou a sexta edição, de 1872. Ora, isso mostra não somente o impacto da obra de Darwin na Inglaterra, mas também sua rápida e influente penetração no meio científico francês. Assim, independentemente das referências explícitas de Darwin feitas por Bernard, está claro que este não poderia ignorar o trabalho daquele. Contudo, aparentemente, esses não são temas que atraíram especialmente a atenção de Bernard; cf. ainda Dutra 2001, pp. 111ss.
12 Cf. a esse respeito, Dutra (2001), cap. 6. Voltaremos mais adiante ao tema da causalidade e do finalismo.
13 Cf. também Dutra (2001), cap. 2, e Bernard (1954), pp. 7s, 15, 22, 32 e 39; (1987 [1947]), pp. 81s e 205ss; e Bernard (1937), com diversas passagens pertinentes, em especial, pp. 72 e 74ss, onde Bernard afirma que a própria matemática é tal como é em função do modo como é constituído nosso cérebro.
14 Para detalhes a esse respeito, cf. Dutra 2003, seção 1, onde analisamos a relação estabelecida por Bernard entre os fenômenos mentais e outros fenômenos vitais, como os fenômenos de sensibilidade e irritabilidade, e também sua posição ante as doutrinas materialistas e espiritualistas.
15 Cf.Davidson (1980), ensaios 11-13, esp. pp. 214ss; cf. também Dutra (2000; 2002a; 2002b). Os quatro tipos de doutrina ali apontados por Davidson são o monismo nomológico, o dualismo nomológico, o dualismo anômalo (ou não-nomológico) e o monismo anômalo. Fazemos aqui referência a Davidson não apenas por causa dessas distinções, mas também por ser ele um dos filósofos da mente e da psicologia, entre outros, cuja posição pode ser contrastada com aquela defendida por Bernard a respeito da discussão sobre o caráter nomológico (ou não) dos eventos mentais. A mesma discussão se encontra, obviamente, em diversos outros autores, sobretudo aqueles que defendem abordagens intencionais, estando, entre os mais conhecidos, Dennett e Searle.
16 Essa seria a posição tomada por algumas doutrinas materialistas conhecidas em filosofia da mente e parece ser também a posição de Davidson, embora com as particularidades de interpretação sobre o caráter não-nomológico dos fenômenos mentais, ou seja, para ele, os fenômenos cerebrais são nomológicos, mas os mentais não; cf. Davidson (1980). Não é, contudo, a nosso ver, a posição de Bernard, como veremos adiante.
17Curiosamente, a última das passagens acima citadas lembra a posição de Hume, no Enquiry concerning Human Understanding, seção VII, onde ele critica a posição cartesiana sobre a interação entre o físico e o mental.
18 O tema da memória não é enfocado por Claude Bernard. Ele o é, contudo, sistematicamente, por alguns psicólogos empíricos ainda no século XIX, como Théodule Ribot, que possui mesmo obras a esse respeito. Sobre a relação entre Ribot e Bernard, cf. Dutra 2003, seção 3.
19 Aqui, mais uma vez, há uma curiosa semelhança com Hume. Além disso, a esse mesmo respeito, é digno de nota um outro comentário de Bernard sobre o condicionamento. No artigo "Des Fonctions du Cerveau," ele descreve o fenômeno de salivação em um cavalo quando se lhe mostra um pouco de aveia, ou mesmo sem nada lhe mostrar, apenas fazendo o mesmo gesto associado a isso (Bernard 1878, p. 382). Isso lembra, obviamente, os trabalhos de Pavlov, como discutimos em outro trabalho (Dutra 2003, seção 2).
20 Esse tema lembra, naturalmente, a filosofia de Auguste Comte, a cujo positivismo alguns comentadores vêem Bernard ligado. Não acreditamos, contudo, nessa associação, como discutimos em Dutra (2001). De fato, Bernard é um crítico de algumas idéias de Comte, e sua concepção de estágios é diferente daquela desse autor.
21 Há também uma espontaneidade do pensamento, segundo Bernard, como veremos na próxima seção, o que preserva a liberdade e afasta todo fatalismo, embora não o determinismo do pensamento.
22 Esse tema é relativamente complexo em Bernard, e tem a ver com seu realismo científico, do qual nos ocupamos em Dutra (1999; 2001, cap. 4). Evocando a distinção de Brian Ellis (1979), e também defendida por Ian Hacking (1983), entre um realismo de entidades e um realismo de teorias, podemos dizer que Bernard adere a um realismo a respeito das teorias científicas, mas a uma forma de anti-realismo (ficcionalismo) em relação às entidades inobserváveis. É a esse mesmo respeito que Bernard (1987, pp. 195s) afirma que coisas como eletricidade, força, vida, etc., são apenas ficções de nosso espírito.
23 Alguns pontos discutidos nesta seção foram tratados também em Dutra (2001), cap. 6.
24 A esse respeito, cf. Bernard (1984) e Dutra (2001), cap. 5.
25 Para uma discussão mais detalhada a esse respeito, a partir das noções de Claude Bernard de fenômeno e propriedade, cf. Dutra (2002b), onde comentamos também as posições de Davidson e Dennett, não apenas sobre a racionalidade e a liberdade, mas também a intencionalidade.
26 O presente artigo foi elaborado como resultado da pesquisa que realizamos na Université de Paris 7 - Denis Diderot (Équipe RHESEIS - Recherches Historiques et Épistémologiques sur les Sciences Exactes et les Institutions Scientifiques), Paris, França, entre 2001 e 2002, com financiamento da Capes. Agradecemos o apoio recebido dessas instituições, assim como do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, que possibilitou nosso afastamento para realizarmos tal pesquisa. Agradecemos também as valiosas sugestões de dois consultores desta revista.