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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dez. 2003

 

ARTIGOS

 

O conceito de imaginação em Wittgenstein

 

The concept of imagination in Wittgenstein

 

 

Luiz Hebeche

Departamento de Filosofia - UFSC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é mostrar que o conceito de imaginação, tal como é concebido pelo mentalismo filosófico ou psicológico, é uma ilusão gramatical que pode ser desfeita pelo regresso ao "solo áspero" da linguagem ordinária.

Palavras-chave: Wittgenstein, Imaginação, Ilusão gramatical, Linguagem ordinária.


ABSTRACT

This paper proposes to demonstrate that the concept of imagination, as it is conceived by philosophical or psychological mentalist doctrines, is a grammatical illusion, which can be solved by means of a movement back to the "rough ground" of ordinary language.

Keywords: Wittgenstein, Imagination, Grammatical illusion, Ordinary language.


 

 

"É que a imaginação se apóia sobre as palavras."
(Sartre, 2002, p. 431)

 

O entendimento do conceito de imaginação é crucial para uma "filosofia da psicologia" que pretenda ser destituída de resíduos metafísicos. Como se sabe, para Wittgenstein, a metafísica surge com o uso indiscriminado do modelo nome-objeto. A sua crítica ao modelo objeto-designação visa à eliminação da concepção da linguagem como correspondência à realidade. Ora, a noção de "correspondência" está comprometida com as noções de representar, imaginar, pensar, etc. Dentro desse modelo, concebeu-se o mundo da consciência como um âmbito privado em que se representa a realidade. Mas a gramática do mundo da consciência é uma terapia da consciência do mundo. Daí as palavras imaginação e representação deixarem de dirigir-se para algo - estado de coisas ou imagens mentais - e abrirem-se em leque para as suas regras de uso na linguagem. Com as palavras imaginar, imaginário, representar, figurar, sonhar, perceber, etc., em nenhum caso se trata de processo de produção de imagens mentais.1 Imaginar é um modo de agir expresso na linguagem; só nela se decide o que se imagina e o que se vê, se ouve ou se toca, e, portanto, não se pode confundir o que está em nosso entorno com uma paisagem distante, mas se pode distinguir o sonho da realidade, a alucinação do devaneio. A gramática da imaginação dá conta desse solo áspero expresso na diversidade desses conceitos. A imaginação de um cenário na ópera, de uma paisagem, de uma fotografia não é "menos real" do que ver a cozinha ou o quarto de dormir, como se a linguagem tivesse pesos ontológicos distintos; trata-se antes de circunstâncias distintas para o uso das palavras na linguagem. A descrição desses usos é a sua essência, ou seja, o que uma palavra é está definido pelo seu uso na linguagem; a gramática é, então, como uma teologia (Wittgenstein 1984, § 373). É no "fluxo da vida" que aprendemos a distinguir o sonho da vigília, o ver do imaginar.

A gramática do imaginar não envolve uma doutrina, mas apenas a descrição, os aspectos da palavra, isto é, as suas funções na linguagem. Logo, porém, nos deparamos com uma dificuldade, pois não se vê com clareza o papel da imaginabilidade (Vorstellbarkeit) nas investigações gramaticais (Ibid., § 395), ou seja, não se vê como a palavra imaginação pode auxiliar na tarefa de dar conta de compreender a linguagem da qual ela faz parte. Aliás, como vimos, as ilusões gramaticais sobre a imaginação estão embebidas na linguagem, de tal forma que, por "imaginabilidade", logo se entende um processo mental. A gramática dessa palavra tem de distinguir conceitualmente a natureza desses desvios do efetivo domínio técnico do imaginar, isto é, das habilidades que determinam o imaginar. E tem-se de fazer isso sem platonismo, isto é, sem recorrer a uma metalinguagem. Daí a tentativa de inventar novas analogias e conexões intermediárias entre conceitos, eles próprios vagos e imprecisos, pois os conceitos de imaginar, sentir e querer não têm uma delimitação precisa, daí a relevância da noção de vivência da significação como o domínio de técnicas afins. O conceito de imaginação tem funções próximas do de concepção, de pensamento e de suposição, bem como de crença, fingimento, atuação teatral ou de mero fantasiar. Pode-se - como faz Hacker (1990, p. 405) - substituir sem maiores problemas, em certos tipos de sentenças, a palavra imaginação pela palavra suposição, "Imagine que a Lagoa dos Patos secasse" ou "Suponha que Getúlio Vargas não tivesse se suicidado", mas já não é o mesmo caso quando se diz: "Suponha um círculo quadrado"; isto é, não poder imaginar algo não quer dizer que não se possa supor algo; frases paradoxais, como "Está chovendo, mas não creio", podem ser aceitas com mais facilidade se as colocarmos num contexto lingüístico mais complexo, como "Suponho que está chovendo, mas não creio". Associa-se também a imaginação a uma "faculdade criativa", mas não se pode falar de uma "faculdade da suposição"; pode-se imaginar vividamente um cenário, mas não se pode supor algo vividamente; a imaginação, ao contrário da suposição, está associada ao fingimento e à ilusão; o maquiavelismo é imaginação a serviço da política, o dirigente político constrói um cenário em que esconde os seus objetivos e interesses, ele imagina crenças falsas que, no jogo político, podem ser desfeitas pela imaginação dos opositores. A imaginação está associada às artes e seu domínio determina a originalidade e a criatividade dos artistas. A diversidade de usos dessa palavra mostra a indeterminação da própria gramática, que é, ao fim e ao cabo, o "solo áspero" da linguagem. A sua descrição libera-a da camisa-de-força do modelo objeto-designação. É isso que leva a comparar a significação com uma fisionomia, em que certos traços marcam uma similaridade, mas não uma universalidade ou uma super-regra, como é o caso das palavras "ver" e "observar", que têm funções próximas, mas não coincidentes na linguagem: ver meu braço é distinto de observar seus movimentos.

As ilusões gramaticais surgem quando se considera o interior da mente distinto do que está do lado de fora. As sensações são o contato com o mundo exterior. Ora, esse é o modelo objeto-designação, em que as palavras das sensações se referem aos dados dos sentidos. Porém, a distinção entre a palavra "imaginação" e as palavras das sensações é gramatical. A diferença - segundo Wittgenstein - pode ser melhor compreendida se considerarmos os dois jogos de linguagem: "Olhe esta figura" e "Imagine esta figura". As sensações podem ser verdadeiras ou falsas, mas não se pode dizer com a mesma certeza das representações visuais ou auditivas, pois olhar para um objeto não é o mesmo que imaginá-lo ou representá-lo interiormente. Podemos imaginar algo sem que o estejamos vendo. Isso quer dizer que não depende da vontade deixar de ver aquilo que agora estou vendo, a mesa, o computador, a prateleira com os livros, ou de ouvir o trinado dos pássaros nas árvores próximas, sentir o calor deste dia de verão, mas posso me imaginar caminhando por Paris no inverno, com as ruas açoitadas pelo vento etc. Nesse caso, as representações dependem da vontade.2 Porém, as representações (Vorstellungen) não podem ser confundidas com figuras (Bilden), pois não posso dar conta do objeto que estou imaginando através da similaridade entre ele e a representação (Vorstellungbildes) que teria dele. O exemplo dos dois jogos de linguagem visa a mostrar como habitualmente usamos essas palavras na linguagem, isto é, não se referem a nenhum processo mental que, de modo misterioso, una as representações e a vontade, isto é, que me imaginar caminhando por Paris é um processo interno diferente do processo externo de ouvir o ruído dos pássaros ou de ver a tela e o teclado do computador na minha frente. Se as falsas imagens, embebidas na linguagem, levam a opor interior/exterior, o exemplo desses jogos de linguagem, por sua vez, presta-se a mostrar o uso dessas palavras na linguagem e, assim, desfazer a ilusão que opõe imaginar algo em mim e ver algo fora de mim; o quarto em que estou sentado e o quarto tal como o vejo para mim. Ou seja, o critério que distingue a palavra "imaginar" e a palavra "olhar" terá de ser as regras de seus usos na linguagem.

Portanto, quando Wittgenstein afirma que as representações (Vorstellungen) estão sujeitas ao querer (Willen) (id., 1980, v. 2, § 63), ele tem em vista destacar a ilusão de que haja aí um processo mental por oposição ao mundo exterior. Isto é, a falsa imagem que, ao conceber esses conceitos como processos mentais - a imaginação vinculada à vontade -, leva à afirmação de que ela nada nos informa sobre o mundo externo (ibid., v. 2, § 80). Nesse caso, ela é concebida como uma atividade (tätigkeit) semelhante ao desenhar, pois assim como posso desenhar meu quarto num papel, posso também internamente imaginá-lo, ou seja, tal como a atividade de desenhar algo numa tela, há também uma atividade de imaginar algo na mente. Assim como quem desenha contempla a paisagem, eu contemplo a imagem em minha mente. Quando se pede "Imagine uma melodia", isso parece andar junto com a noção de que "eu canto interiormente para mim mesmo". E imaginar uma melodia seria então uma atividade mental como calcular de cabeça (ibid., § 81). A imaginação ainda depende do querer, isto é, pode-se querer ou não imaginar uma melodia. Tenho as notas na cabeça e as imagino mais graves ou mais agudas, aproximo melodias que conheço de memória, acentuo certos tons, etc. Esse lidar mentalmente com a melodia depende de meu querer. Ou seja, o querer é uma espécie de motor que movimenta as representações auditivas internas. Esse motor pode evocar as imagens internas, pode dar-lhes uma certa direção e pode, ainda, pará-las a qualquer momento (ibid., § 78). Obviamente faz sentido dizer: "Imagine isso" ou "Não imagine nada agora", e também "Não quero imaginar isso"; o erro está em conceber o querer e o imaginar como processos mentais misteriosos, e que, extralingüisticamente, as representações estariam vinculadas ao querer como uma correia de transmissão está ligada ao motor que a movimenta. Como vimos, a afirmação errônea "o querer não é uma experiência" parece dizer respeito a uma atividade inefável de um motor que, sem nenhuma resistência ou volume, movimenta as representações. Esse "ponto sem extensão" surge da mesma ilusão de que se concebe o seu oposto: "o querer é uma experiência". Do mesmo tipo são as afirmações enganosas como: "as impressões sensíveis (Sinnesempfindungen) dão-nos um conhecimento sobre o mundo externo" e "as representações internas (Vorstellungen), submetidas ao querer, não nos informam nada, de certo ou errado, sobre o mundo externo" (ibid., § 80). Ou ainda: "se pudéssemos afastar as impressões sensíveis (Eindrücke) e novamente colocá-las diante de nossas mentes, então elas não poderiam nos informar sobre a realidade" (ibid., § 90). Igualmente quando se afirma: "Procure ver algo ali" e "Procure formar a imagem de algo". Num caso, tem-se de manter os olhos abertos; no outro, pode-se fechar os olhos para mentalmente melhor fazer a imagem de algo. Ver pela janela do escritório é distinto de imaginar algo; não posso mudar a paisagem que vejo da janela, mas posso mudar o que imagino. Portanto, a ilusão surge quando as imagens mentais são como objetos que podem ser visualizados internamente, são como pinturas dos objetos externos, como se em minha mente, com auxílio da minha vontade, eu tivesse um cenário a que tivesse acesso privilegiado. A questão que começa a se impor é: como poderia me assegurar internamente dessas imagens? Há certamente diferenças entre as palavras das sensações e a imaginação, mas trata-se de uma distinção conceitual. A distinção entre imaginar, querer, ver e ouvir nunca se dá por essas palavras se referirem a qualquer coisa, sejam eventos externos ou internos. Nem as palavras das impressões sensíveis nos informam sobre a realidade, nem as representações estão internamente vinculadas ao querer, que, como um motor misterioso, pode afugentá-las ou novamente convocá-las. Querer, imaginar, pensar, ver, etc. são habilidades. E o domínio dessas técnicas é uma instituição. Sem um critério público nunca se saberia o que alguém imaginou. Por isso, diz Wittgenstein, a diferença entre uma representação e uma figura, a partir da qual se pode ter uma representação, está em que uma figura pode ser mostrada a todos, enquanto que, para sabermos o que alguém imaginou, a resposta só pode ser dada recorrendo a uma figura (ibid., §§ 63 e 68). A palavra "imaginação" não se refere a um processo mental inefável. A palavra "representação" tampouco é uma imagem mental a que se tivesse acesso privilegiado, ou melhor, se o significado é seu uso na linguagem, então a palavra "representação" não se refere a nenhuma imagem, ainda que, ao contrário, uma imagem (Bild) depende da sua regra de uso. "Uma representação (Vorstellung) não é uma imagem (Bild), embora uma imagem possa corresponder a ela" (id., 1984, § 301).

O conceito de imaginação deixa de ser tomado como uma atividade que re-apresenta algo internamente e, portanto, que opere com cópias do mundo externo ou que, através de um processo misterioso, torne internamente presente o que se tornou ausente. A gramática da imaginação é, portanto, semelhante à dos conceitos psicológicos, como pensamento, intenção, emoção, etc. Como podemos falar de intenções ou de emoções? A partir de onde distinguimos o que é interno e o que é externo? Como podemos nos assegurar do que é interno? O engano surge quando concebemos o interior como um processo que parece ser acompanhado por um "olho da mente" e que depois é comunicado aos outros. Este é o caso da imaginação, isto é, ela está geralmente vinculada a processos ou estados mentais e a informação é o modo como se faz a passagem entre esses estados mentais. A informação é a concepção da linguagem como meio, através do qual se faz a passagem de uma mente para outra. Nessa concepção, a linguagem descreve objetos e, por um procedimento misterioso, apanha-os e carrega-os da mente do falante para a mente do ouvinte. Ou seja, a lógica da informação parte da noção de que há um processo interno independente dos meios que o transportam; afinal, calcular de cabeça não se assemelha ao cálculo de um computador? A corrente elétrica que circula nos semicondutores não é da mesma natureza da que circula nos neurônios? As informações guardadas em nosso cérebro também não são semelhantes às guardadas nos chips dos computadores? No método explicativo, a linguagem é um meio que transporta informações. A primeira pessoa "eu" é geralmente usada de modo semelhante à terceira pessoa "ele". Mas o que vem a ser o jogo de linguagem de informar algo (Mitteillens)? Ou melhor, o que, inadvertidamente, está em jogo quando se informa algo a alguém? Tem-se aí a noção de que apreender o sentido do que é dito envolve algo mental ou anímico (etwas Seelishes), algo que ocorre ou está guardado na memória de alguém e que pode, a qualquer momento, tornar-se manifesto pela linguagem. O que ocorre na mente é distinto da sua expressão lingüística. A linguagem é como um porta-voz daquilo a que antecipadamente já se tem acesso na mente. A consciência observa o que está dentro de si e, depois, expressa-o pela linguagem. É isso que dá ao processo anímico um aspecto de esquisitice (Merkwurdig); uma dessas esquisitices surge quando estamos a sós e nos dispomos a imaginar coisas, a pensar ou falar conosco. Esse falar consigo mesmo reforça a noção da privacidade do processo anímico, pois a mente parece ser o que nos está mais próximo. Muitas vezes buscamos refúgio no interior, reunimos nossa força interior para enfrentarmos as vicissitudes da vida ou, então, nos pomos a sonhar ou imaginar aquilo que seremos no futuro. Por vezes, concebemos o mental como um meio etéreo. O pensamento parece ser sublime, puro e o mais elevado. Como não teria essa sublimidade do anímico algo a ver com o fundamento do mundo? Como poderia não existir o pensamento mais puro e sublime? Outras vezes, porém, concebemos o anímico com a mesma natureza do mundo exterior, isto é, a última palavra é da neurologia ou fisiologia. A investigação científica dá sublimidade ao pensamento. Seja qual for a posição, a linguagem é um meio que descreve um estado de coisas. Informar alguém é reproduzir na sua mente o que se passa na mente de quem informa. Produzir esse processo interno (Seelische Vorgänge) numa outra mente é o esquisito, isto é, muitas dificuldades se cruzam aqui, como quando dizemos coisas do tipo "O relógio nos mostra as horas", embora não tenhamos todavia decidido (entschieden) o que é o tempo ou para que (wozu) se lê o tempo, e parece-nos ainda que uma coisa nada tem a ver com a outra (ibid., § 363). A lógica da informação, porém, envolve a questão de como é possível chegar às outras mentes e imaginar o que os outros imaginam. A falsa imagem que acompanha essa questão pode ser desfeita a partir do exemplo do cálculo de cabeça.

 

Calcular de cabeça

A noção de que a imaginação é uma atividade mental se parece com o "calcular de cabeça". Da maneira como se calcula, também se imagina. A imagem de uma árvore ou de um par de sapatos tem algo a ver com a imagem do número 2 ou dos sinais + ou -, ou seja, esses signos também são retidos na mente. Assim como olhamos para o número 2 na folha de papel, também parece que um olho interno olha o mesmo número na tela de nossa mente. O cálculo na imaginação é, então, tomado como um processo interno, como que acompanhando o cálculo externo no papel ou na lousa. O cálculo de cabeça parece ser menos real que o feito no papel, assim como a imagem de uma paisagem parece menos real do que a paisagem vista. Nesse caso, signos são cópias de coisas. Esse processo mental se parece, então, com uma cópia do que escrevemos no papel; ao 2 escrito no papel corresponde um 2 pintado em nossa mente, assim como as coisas externas têm imagens mentais que lhes correspondem. Numa seqüência como 2: 4: 8: 16...: 2048, temos uma impressão externa (esses signos nesta folha) e uma representação interna que lhe corresponde; quando o número é muito grande, temos de fazer um esforço para poder mentalmente visualizá-lo, podemos fechar os olhos e recorrer às imagens mentais desse cálculo, como se pudéssemos internamente buscar mais clareza para elas. Buscamos nitidez para as representações (cópias) internas. O cálculo de cabeça, porém, é um modo de seguir regras publicamente aprendidas. Aprender a calcular de cabeça é um modo de seguir as regras das operações matemáticas. Se as fazemos com ou sem o auxílio do papel, não altera a natureza da operação. Com isso não se deixa de distinguir o cálculo de cabeça do cálculo no papel, pois somos treinados a fazer cálculos no papel riscando com o lápis, garatujando e apagando, e geralmente nos sentimos mais seguros procedendo assim; o cálculo de cabeça, porém, é também uma habilidade que se pode desenvolver. Alguns têm mais habilidade para esse tipo de operação, assim como no papel pode-se ter maior ou menor segurança de se chegar ao resultado correto. Quando recorremos ao papel, tudo parece mais às claras; pode-se melhor mostrar as etapas que vamos seguindo e, com isso, reforça-se a noção de processo externo. O cálculo de cabeça, ao contrário, por ser mais rápido, reforça a noção de processo privado interno e sua rapidez dá a idéia errônea de que um ato mental de significação se antecipa à seqüência numérica. A noção de instantaneidade do saltar etapas dá a idéia de um calcular anterior à regra. Do mesmo modo, falar consigo mesmo, ter acesso às suas próprias sensações ou imaginar para si mesmo envolvem a noção de um evento mental privado que se antecipa à regra de uso da palavra, e aí nos encontramos às voltas com afirmações do tipo: "A sentença: `sensações são privadas é comparável a: paciência se joga sozinho'" (ibid., § 248). Isto é: só publicamente seguimos regras. Até um jogo que se pode jogar sozinho é publicamente aprendido, pois usamos as cartas assim e assim. Ora, tanto o cálculo no papel quanto o cálculo de cabeça são modos ou técnicas de publicamente empregarem-se os signos; até mesmo a diferença entre a maior segurança que nos dá o cálculo no papel e o modo de cálculo de cabeça são habilidades em seguir as regras da matemática, e isso nunca envolve um processo mental; portanto, fazemos cálculos de cabeça tanto quanto fazemos no papel, mas não está aí presente nunca um processo de reconhecimento mental. Calcular de cabeça é uma habilidade - uma instituição. O cálculo de cabeça (ou no papel) coincide com a práxis de seguir a regra, por isso ele não é uma atividade mental, mas o domínio de uma técnica. A regra é hipostasiada quando se colocam entre ela e sua aplicação explicações de qualquer tipo, como processos mentais ou cerebrais; ora, não se pode explicar, de modo transcendental ou pela psicofisiologia, a atividade de calcular sem que já se sigam as regras da multiplicação e divisão. Não dizemos que os computadores "calculam de cabeça". Os computadores com os chips e os cérebros com os neurônios pressupõem a práxis de seguir as regras na linguagem.

O cálculo de cabeça, ao contrapor-se ao cálculo no papel, acentua a diferença entre o real e o menos real, provocando posições filosóficas do tipo que ora consideram a origem da matemática como um processo mental a priori, ora como uma atividade real ou como produto de intuições internas; em suma, recolocam a oposição entre o interno e o externo, entre o real e ideal. O lado ideal é calcado na noção de que toma, por exemplo, a divisão, a subtração ou a adição como operações mentais que se antecipam à regra. Por serem externas à regra, isto é, ao colocarem um terceiro elemento entre a regra e a sua aplicação, dão origem às metafísicas do idealismo ou do intuicionismo. O lado real é reforçado pela noção de que é mais seguro fazer cálculos no papel do que na cabeça: "Physiker, Papier, und Tinte, Zuverlässigkeit" (id., 1992b, p. 24). A segurança que nos dão esses utensílios, porém, origina a ilusão que opõe processos internos e processos externos, pois a segurança do papel e do lápis nos leva a conceber o processo externo mais real do que o procedimento interno. Ora, esses enganos surgem da ilusão que opõe interior/exterior e que é desfeita pela noção de seguir regras. Os dois modos de calcular são apenas habilidades distintas de seguir regras. Ninguém aprende sozinho a fazer cálculos de cabeça, ou melhor, ninguém faz cálculos de cabeça apenas para si. Esse mesmo engano pode ocorrer com o conceito de imaginação. Contrapondo-se a processos externos, a imaginação também seria um processo interno, pois, tal como no exemplo do cálculo de cabeça, tende-se a considerá-la menos real do que as sensações que informam sobre o mundo externo. Porém, a compreensão de que o critério para o calcular de cabeça não é um evento mental liberará também o conceito de imaginação para a sua função pública na linguagem, pois, como não se pode descartar o cálculo de cabeça como algo corriqueiro, mas apenas mostrar a ilusão de ele ser um processo mental, tampouco se pode retirar a imaginação da linguagem ordinária do mental, ou seja, o conceito de imaginação não é um processo na cabeça, mas o domínio de certas habilidades.

A noção de processo espiritual paralelo ao processo exterior leva a tomar o que se passa em nossa cabeça como um processo redundante em que teria sentido falar de um método de afiguração (Abbildung), um operar com representações ou imagens mentais no qual a representação (Vorstellung) do signo pode apresentar (darstellen) o próprio signo (id., 1984, §§ 366 e 367). Mas isso pressupõe a idéia de que o signo que se encontra na mente - a representação - seja algo a que privadamente se tem acesso e de que esse signo poderia, por uma atividade interna, apresentar a si mesmo (Selbstätigkeit, Spontaneität). Porém, o modo como isso é feito permanece um mistério. Ora, esse acesso direto às representações internas está enclausurado na linguagem privada, pois a questão é: como se pode reconhecer um signo x, y ou z que se tem na mente? Do mesmo modo, como se pode reconhecer que é a operação 2 x 2 que se faz de cabeça e não 2 + 2? O mesmo se passa com as representações mentais: cadeiras, mesas, árvores, tristeza, alegria, centauros, ciclopes, paisagens, a música, o canto, o cenário de uma ópera, etc. As ilusões gramaticais surgem quando se concebe a palavra representação ou imagem como algo que está no lugar de objetos. A representação é tomada como um evento mental de algo que pode ou não ser mental. Os signos que estão na mente representam objetos: eu reproduzo em minha mente a cadeira que estou vendo; eu me deparo em minha mente com a tristeza ou a dor, como se pudesse internamente afastar-me de minha dor para poder contemplá-la e, portanto, para melhor conhecê-la. Nesse caso, re-presentar (Vor-stellung) é como copiar algo para si mesmo. Essa posição da metafísica tradicional se encontra ainda na primeira filosofia de Wittgenstein: "Nós nos fazemos figuras dos fatos" (1984, 2.1). Ela também se origina na concepção agostiniana da linguagem, ou seja, nos enganos que levam constantemente a situar-se na linguagem privada em que uma imagem (ou representação) está por um processo ou estado mental. Quando, porém, é rejeitada a noção de que essas palavras (representar, imaginar, etc.) se refiram a algo fora da linguagem, rompe-se com a noção filosófica tradicional de que a mente seja um "espelho da natureza". Entende-se, agora, que na tradição baseada no cartesianismo observam-se comportamentos corporais ou, então, a consciência, por instrospecção, inspeciona minuciosamente a si mesma. E a linguagem é apenas um meio que transporta informações sobre algo que originalmente não se encontra nela. A linguagem expressa algo que não é linguagem. Mas, então, se não há estados mentais ou idéias inatas externas à linguagem, qual é o critério para o que imagino ou represento? Qual o critério para o sonho que tive na noite passada ou para o modo como vejo a cidade da minha janela? E mais: qual o critério para o que "eu imagino" e o que "ele imagina"?

Como a gente geralmente usa a descrição "Ele calcula de cabeça", "Eu calculo de cabeça". A dificuldade em que a gente se debate é a vagueza no critério quando da ocorrência dos processos mentais. Pode-se evitá-la? (Id., 1980, v. 1, § 649)

Onde aprendemos que essa cor é azul e não amarelo, que se trata do outono e não mais do verão? Como poderíamos comparar representações entre si, como saberíamos que essas comparações estão certas sem termos de apelar para os objetos que lhes correspondem? Essas questões se desfazem à medida que se entender que "uma representação mental não é uma amostra interna que possa ser comparada com a realidade" (Hacker 1990, p. 460). Tal como a palavra "eu", a palavra imagem não se refere a nenhuma imagem mental. Daí o único critério ser a exteriorização. Como veremos, o critério para o que eu imagino é a sua exteriorização.

 

Exteriorização (Äusserung)

Trata-se de evitar que a concepção imagética da imagem oculte a gramática dessa palavra e que, quando eu imagino, sonho ou vejo Porto Alegre da janela, eu me depare com um objeto privado interno a que apenas eu teria acesso, e que a linguagem seja apenas um meio de informar aquilo que lhe estaria subjacente. O único modo de escapar da noção de imaginação como evento privado é tomar como critério a sua exteriorização (Äusserung). Assim, a vivacidade de uma cor, o tom de uma nota musical, a paisagem que vejo da minha janela não têm nada a ver com comparações de representações ou imagens privadas, mas com o modo como eu as exteriorizo. A origem da ilusão gramatical está em a lógica da informação submeter a linguagem ao modo de orientar-se para objetos, nivelando, portanto, a linguagem empregada na terceira pessoa (informar) com a utilizada em primeira pessoa (exteriorizar). A informação tem critérios seguros que podem ser observados no comportamento ele caiu, ele caminha, ele está sofrendo, ele sorri, mas afirmações em primeira pessoa eu estou triste, eu tenho dor de cabeça, eu imagino que, eu sonhei que já não são observáveis; aqui, o único critério de correção de, por exemplo, quando me engano é repetir a exteriorização (Äusserung). A distinção entre o uso da primeira pessoa e a terceira pessoa só é apreendida publicamente. Por isso, podemos fingir que não sentimos uma dor que sentimos, que podemos enganar ou mentir sobre o que pensamos ou imaginamos. E, se o critério para o que eu imagino é a exteriorização, isso quer dizer que não há uma imagem interna e, depois, sua exteriorização.

O critério para o que eu imagino é a descrição das imagens ou representações, isto é, o que eu digo ou o que eu faço. Aqui, porém, não há um processo interno que se antecipa à sua descrição; ao contrário, sem essa descrição não haveria critério algum para o que se imagina. Se isso é assim, então há uma certa vagueza e indeterminação nessa descrição. A descrição é uma exteriorização, daí a habilidade de expor o que se imagina, ou seja, de se fazer compreender. Um exemplo que caracteriza a exteriorização é: quando descrevo um quarto para alguém, para confirmar o que descrevi, peço-lhe que procure pintar um quadro impressionista que dê uma noção do que ele captou de minha descrição, e as cadeiras que imaginei em verde ele pinta de vermelho-escuro, o que descrevi como amarelo, ele pinta como azul. Todas essas respostas que ele dá em seu quadro não são exatamente iguais ao quarto que concebi, mas mesmo assim posso ficar satisfeito e dizer: "Está certo, ele se parece com isto" (Wittgenstein 1984, PU, § 368). Na exteriorização do que imagino estão envolvidos minha capacidade de convencimento, minha habilidade de descrever, meu rigor, minha condescendência de aceitar a sua resposta como suficiente, etc. Apenas à medida que eu as exteriorizo é que posso falar das "imagens de meu quarto". Mas como poderia corrigir uma compreensão errônea do modo como eu vejo o meu quarto? Não posso recorrer a um suposto quarto privado interno ao qual só eu teria acesso, e que, através de uma espécie de olho interno, pudesse contemplá-lo para só então descrevê-lo.3 Se meu interlocutor não compreende minha descrição, tenho de fazer-lhe uma outra, melhor. O importante é afastar a noção de que haveria um modo material ou mental de assegurar a correção dessas representações, de que as representações corresponderiam a algo a que eu poderia recorrer para me assegurar do que imagino, isto é, de que, independentemente do modo como as exteriorizo, houvesse um quarto real que só eu posso ver ao meu modo ou de sua representação mental a que só eu tenha acesso. Ora, a garantia do que imagino está no que digo ou no que faço, isto é, supor que eu tenha para mim mesmo as imagens mentais do meu quarto é a ilusão de toda a metafísica: a imagem é algo a que se refere a palavra "imagem". Noutras palavras, a representação do quarto se antecipa à exteriorização. Daí a gramática das palavras não poder ser a resposta à pergunta "o que é uma representação?", se nela está envolvido o dizer respeito a algo, como se a linguagem indicasse ou nomeasse algo, como se, para assegurar a correção de uma representação, a consciência tivesse de, misteriosamente, ajustar a representação da coisa com a coisa representada. Assim, afasta-se a noção de que o imaginar e o representar sejam processos ou eventos mentais privados internos, que ainda dependeriam de uma atividade interna misteriosa capaz de soldar uma imagem mental com a sua respectiva palavra.

A dificuldade com que se está às voltas é que, quando se descreve o que se imagina, aí está presente um evento interno que se observa para, depois, informá-lo aos outros. Mas não é fácil descrever essa imagem interna, pois parece haver aí, nesse mundo interior, um objeto do qual extraio uma descrição, mas que eu não me sinto em condições de mostrá-lo aos outros ou, noutras palavras, a dificuldade aqui é não apresentar (darzustellen) as coisas do modo como elas são para nós, como se nos deparássemos com algo que estivéssemos incapacitados de mostrar aos outros. Ora, isso revela o modo como, constantemente, somos tentados a usar (gebrauchen) uma imagem (Bild) da qual devemos nos desvencilhar para, aí sim, poder investigar o emprego (Anwendung) dessa imagem (ibid., PU, § 374). Somos constantemente tentados a associar a palavra imagem a um evento privado interno e, com isso, perdemos o modo como ela é empregada na linguagem. Desfazer a ilusão de que se possa ver uma imagem interna é sair da campânula do solipsismo. Mas descrever como vejo meu quarto pressupõe o domínio da linguagem. Como eu poderia dizer para mim mesmo que o vejo assim e não de outro modo? Como sei que vejo deste e não de outro modo? Como sei que essas representações são compreendidas pelos outros? Como posso fazer a descrição do meu quarto sem levar em conta as outras mentes? Enfim, como se podem comparar representações mentais?

 

Comparando representações

A tradição cartesiana opõe alma e corpo, consciência e objeto, espírito e cérebro. Ela se apóia, porém, na concepção agostiniana da linguagem expressa na definição ostensiva privada. Na posição "objetivista", o que ocorre no cérebro seria de algum modo relacionado com os órgãos da fala, boca, língua, laringe e pulmão. O processo de emitir sons pelo aparelho vocal teria como correspondente um sinal no cérebro; o som da letra a ou da letra z teriam também sinais no cérebro. As teclas de uma pianola teriam, para cada um de seus tons musicais, os seus correspondentes cerebrais, isto é, ao tocar uma pianola far-se-ia mover um "teclado mental" correspondente. Tanto os sons da pianola como os sons das letras seriam meios que acionariam esse mecanismo interno. Cada nota musical ou cada letra do alfabeto teria uma representação mental interna. Mas, então, onde se aprende o abc? Como sabemos que se trata de dó e não de ré, nem de mi? Como se diferenciam as letras a, b, c, z? A letra ou a nota que produzo na laringe é a mesma que ocorre no cérebro? Então, como sei que é a mesma letra que ocorre nos dois casos? Temos aqui uma similaridade com o cálculo de cabeça, como aprendo de cabeça a somar, subtrair e, enfim, a reconhecer os números no processo de cálculo? Como se ensina alguém a ler para si mesmo em voz baixa, como poderia alguém aprender por si mesmo a reconhecer um processo mental a que só ele teria um acesso privilegiado? Mas, então, como aprendo a diferenciar o número 2 do número 10? Como eu aprendi, ao ouvir o som da letra a, a diferenciá-la da letra z? Como sei que não se trata de b e y? A resposta, aqui, novamente é clara: a tentativa de explicação científica de processos na laringe e no cérebro - o paralelismo psicofísico - já pressupõe as regras de uso dessas palavras. Do mesmo tipo é a pergunta: "como comparar representações?" (ibid., § 376).

Essa pergunta pode ser melhor compreendida no contexto fregeano em que se originou. Para Frege, eu não posso comparar minhas representações com as dos outros, isto é, não posso ter certeza de que as minhas sensações são as mesmas sensações vivenciadas pelos outros. Como posso saber se as sensações da cor vermelha ou lilás que vejo e do frio ou do calor que sinto são as mesmas vivenciadas por outrem? Em Frege, não há solução para essa pergunta, aliás, sua posição é clara: não se podem comparar representações mentais. A comparação do conteúdo da minha consciência como o conteúdo da consciência de outro não é apenas precária, é impossível (Frege 1977, pp. 14-5). A pergunta como comparar representações é da mesma natureza de como se pode desviar o solipsismo da consciência. Admitindo-se, porém, que não sei que representações tem uma outra consciência, pode-se, todavia, indagar como sei das minhas próprias, como posso identificar as minhas próprias representações? Como posso, em mim mesmo, distinguir as letras a e b?

A resposta à dificuldade colocada por Frege poderia ser a explicação fisiológica ou psicológica, porém, todo esse tipo de explicação é redundante, pois como se poderia saber que o que ocorre na laringe e no cérebro é a representação da letra a ou b? Como saberia que é a representação da letra a que devo buscar no cérebro? O critério para identificar uma letra ou um número é distinto das explicações científicas - como sei que devo explicar a representação da letra a? Ou, noutras palavras, se se investiga através de processos neurológicos o que vem a ser a representação da letra a, como se sabe que é a letra a que se pretende explicar? Se se pretende explicar pela fisiologia os mecanismos do medo, como se sabe que é do medo que se está tratando? Tal como o cálculo de cabeça pressupõe um domínio de técnicas para fazer essas operações, também a representação das letras a, b, c etc. pressupõem a habilidade de distinguir publicamente as letras do alfabeto. Portanto, a questão de como comparar representações envolve uma outra: qual é o critério de identidade de uma representação? Nesse caso, temos então de indagar pelo que torna duas ou mais representações iguais, e mais, isso envolve também o domínio da palavra ou do sinal "igual", como em 2 + 2 = 4, e ainda quando digo que o muro amarelo que eu vejo é igual ao muro amarelo que outro vê. Quando se diz que tal ou qual representação é igual àquela outra, pressupõe-se o domínio da palavra "igual" (Wittgenstein 1984, PU, § 378). Ora, o que vale para a palavra igual vale também para a palavra diferente, vermelho, azul, frio, medo, angústia e para as letras do alfabeto (Hacker 1990, p. 445).

A noção de critério é a resposta de Wittgenstein ao que Frege entendia como impossível: comparar os "conteúdos das consciências" e, mais ainda, a questão de como comparar os conteúdos da minha própria consciência. Com facilidade digo que isto é azul, aquilo é vermelho, tenho a sensação de alívio ou de medo, ou seja, estou sempre inclinado a contemplar o cenário da minha consciência e, a partir daí, dar uma definição ostensiva interna. O critério para compreender o que alguém imagina ou pensa é "o que ele diz ou faz", isto é, a sua descrição é o único modo de eu ter acesso ao que ele imagina. Porém, quando se trata do que ocorre em mim mesmo, eu não posso tirar de mim mesmo o critério, pois dizer para mim mesmo que vejo vermelho ou que tenho dor de cabeça não serve como critério; estaria apenas recriando uma noção de representação privada, isto é, novamente estaria às voltas com a definição ostensiva privada na qual eu me depararia comigo mesmo e seria capaz de sozinho dar conta do que se passa na minha consciência, aprenderia por mim mesmo a ser consciente de mim mesmo. Se houvesse, nesse caso, algo a que eu pudesse recorrer, então estaria às voltas com um evento privado interno. Porém, se me ocorresse ter uma representação para mim mesmo, o critério seria "absolutamente nenhum (garnichts)" (Wittgenstein 1984, PU, § 378). Se alguém me descreve como imagina a cor de uma parede, e apontando para ela diz "é esta a cor", e eu respondo que imaginei o mesmo, eu não emprego nenhum critério de identidade (Hacker 1990, p. 446). A dificuldade de se compreender essa passagem está em nossa inclinação por buscar apoio num objeto interno, sendo acrescida também pela falta de critério em mim mesmo. O critério para saber o que ele imagina é o que ele faz, mas eu não tenho critério para o que eu imagino. A ilusão está em pensar que eu tenha imagens privadas a que eu possa recorrer para, então, compará-las com os objetos descritos pelo meu interlocutor. A própria questão de se as representações de alguém são semelhantes às minhas acabam geralmente reforçando a noção de imagem privada. O reconhecimento das minhas representações, porém, jamais é um evento privado. Nesse caso, eu não tenho critério de identidade, ou seja, está excluída qualquer comparação interna privada, pois não tenho acesso privilegiado às minhas representações, as quais só eu posso reconhecer (erkennen) e dizer "sim, é essa mesma cor". A única via para comparar representações é exteriorizá-las (Äusserung), descrevendo-as. Essa exteriorização só é possível quando já se dominam as palavras na linguagem. Esse domínio é a sua "autorização" (Berechtigung). E se eu preciso dessa autorização para empregá-las, os outros também precisam dela (Wittgenstein 1984, PU, § 378). A autorização é dada pelo modo com que publicamente usamos as palavras na linguagem (eu x ele, igual x diferente, vermelho x verde, etc.). A autorização não é uma justificação a partir de uma linguagem paralela mais perfeita de objetos ou eventos privados que a consciência introspectivamente pudesse acompanhar.

A questão de julgar se "minhas representações" são iguais ou diferentes das dos outros pressupõe que antes devo reconhecê-las (erkennen) como iguais ou não, faz parte dessa inclinação por definições ostensivas privadas, como se um olho interno pudesse acompanhar e comparar representações para então constatar suas semelhanças ou suas diferenças. Não é, porém, um processo de reconhecimento interno que assegura a identidade das "minhas representações". Esse reconhecimento interno que as acompanha se colocaria como um terceiro elemento entre elas e a linguagem; o eu, a consciência ou a memória seriam como entidades mediadoras entre as representações:

(...) temos a falsa imagem dos chamados processos de reconhecimento (Wiedererkennen), como se esse processo fosse sempre feito pela comparação de duas impressões entre si. Nossa memória parece ser a mediação para tal comparação, à medida que conserva uma imagem do que foi visto antes, ou nos permite (como através de um tubo) ver no passado. (Wittgenstein 1984, PU, § 604)

Mas, reconhecer-se não é um processo interno privado e também não é uma palavra vazia, pois reconheço minha mãe na foto, reconheço essa paisagem da minha infância, reconheço que me acovardei, que fiz cálculos errados, etc., então, permanece a questão de como posso reconhecer que essa cor é vermelha, e que, nesse reconhecimento, não busco em mim mesmo uma representação dessa cor, como se tivesse em minha mente um mostruário das cores a que pudesse comparar para me assegurar de que se trata mesmo dessa cor e não de outra. Nesse caso, a linguagem seria um mero meio de transmissão de uma informação assegurada pelo mostruário mental; o reconhecimento da cor vermelha se interpõe entre o que é visto e o que é dito. Isto é, vejo algo vermelho e comparo com a amostra mental e só então digo "Isto é vermelho"; mas como sei que isso é vermelho? É como se a imagem da cor vermelha se mostrasse a si mesma, e diante dela eu a reconhecesse, observando-a internamente; mas, então, como sei que não é azul nem amarelo? Aqui temos a posição errônea do modelo objeto-designação, em que a linguagem é um meio de informar as representações mentais; a palavra azul corresponde à representação da cor azul. Ora, isso recoloca a questão de como reconheço que isto é azul. O reconhecimento de uma cor não é um processo privado interno, porque já pressupõe o domínio das palavras das cores, as quais formam uma rede, e só se pode reconhecer uma cor à medida que se domina o âmbito das cores. Não se aprende o que é a representação da cor azul buscando comparar a sua amostra mental com a realidade, aprende-se na linguagem o uso da palavra azul à medida que conjuntamente aprende-se o domínio do jogo de linguagem das cores. E reconhecê-las como tais só se pode fazê-lo publicamente, pois a questão aqui é como justificar (rechfertigen) que, com tais palavras, eu me faço essas representações? Se alguém me mostrou a representação de uma cor e me assegurou que se trata realmente dela, então poder-se-ia indagar como se pode mostrar a representação mental de uma cor sem que já não estivesse assegurado o uso das palavras das cores e, mais ainda: dizer que se trata desta representação envolve também o uso da palavra "representação" ou, como indaga Wittgenstein, "que significam as palavras `esta representação' (diese Vorstellung)? Como se aponta duas vezes para a mesma representação?" (ibid., § 382). Dizer que esta representação é vermelha ou azul envolve o domínio da linguagem e, se posso "apontar duas vezes para a mesma representação", não é porque posso assegurá-la de uma amostra mental interna, pois se recorro à mesma representação ou se a reconheço como a mesma é porque, na linguagem, já se dominam as palavras "igual" ou "idêntico, etc.; e não porque possa me destacar diante de algo e, comparando com a imagem mental interna, apontar para o objeto e dizer: "Isto é vermelho". Dizer isso só é possível quando se tem a instituição da aplicação das palavras das cores; portanto, à pergunta de como posso reconhecer que esta cor é vermelha, a resposta poderia ser: "Eu aprendi português"(ibid., § 381).

O esforço é driblar nossa inclinação filosófica tradicional de comparar mentalmente representações diante de perguntas do tipo: "Como se pode mostrar (ausschauen) uma representação correta desta cor?" ou "Como ela está arranjada (beschaffen)?" Posso aprender (lernen) isso? Isto é, essas perguntas não põem em questão que corriqueiramente possamos distinguir as diversas representações das cores a ponto de que "eu não duvido que fiz um cálculo de cabeça e não no papel" ou de que "esta cor é vermelha e não azul"; a dificuldade surge, porém, quando acreditamos que podemos, sem maiores problemas, mostrar ou descrever a cor que nós imaginamos, que, tal como posso comparar uma pessoa com seu desenho, posso também fazer uma transposição da representação para a realidade (ibid., § 386). A transposição da representação para a realidade, porém, é novamente forjada da noção de que existe uma representação interna que possa assegurar sua veracidade, comparando-a, então, com a realidade, isto é, de que, ao fim e ao cabo, há sempre objetos reais com os quais poder-se-iam comparar as representações, de que a essência da representação está além dela, de que se podem moldar as representações na realidade (Abbilden der Vorstellung in die Wirklichkeit). Aqui temos novamente a linguagem como um meio que transmite informações de estados de coisas, sendo assim, pode-se reconhecer uma cor como violeta e confirmá-la, comparando-a com a representação mental que já se tem independentemente da linguagem. A um processo interno corresponde um processo externo e a linguagem é uma ponte entre eles. Ao recorrer a um mostruário para apontar a cor violeta, estou também consultando um mostruário interno onde reconheço essa cor; se há algum conflito no reconhecimento da cor violeta, então posso dirimi-lo apontando para ela, mas, então, surge a pergunta: como sei que é a cor violeta que procuro? Se aponto para a cor no mostruário, é porque já sabia de que cor se tratava. Apontar para a cor já pressupõe o domínio do âmbito das cores. Mostrar algo pressupõe o domínio do que se mostra; onde aprendi que isto é violeta, onde aprendi a mostrar qualquer coisa? Já vimos que não é possível um reconhecimento interno como um processo interposto entre a linguagem e a representação mental, entre a palavra vermelho e a representação da cor vermelha, entre a expressão da dor e sensação de dor, etc., por isso não posso encontrar privadamente a representação correta de uma cor. De modo que aquilo que seria aparentemente fácil - mostrar a nossa representação de uma cor - revela sua dificuldade quando se pergunta: como sei que esta é a cor que realmente pretendo mostrar? Como posso saber, desde a minha representação, que é esta a cor que se mostra (ausschaut)? E mais: "Como sei que, nesta situação, posso fazer isto ou aquilo?" (ibid., § 388). Aprendemos a fazer isto ou aquilo no "fluxo da vida". Esse processo de aprender e ensinar como se usam as palavras das cores, como as reconhecemos como tais, é público; reconhecer cores ou sons é uma habilidade, uma instituição. Por isso não se ensina alguém filosoficamente a linguagem das cores, levando-o a procurar em si mesmo assegurar-se da representação exata de uma cor, isto é, não se pode aceitar a autoridade de seu pretenso testemunho (Zeugnis), de ele efetivamente conhecer que essa é a representação exata de uma cor, pois, nesse caso, seu testemunho seria uma espécie de olho interno que poderia acompanhar uma representação, como se uma definição ostensiva interna pudesse garantir a veracidade da representação. O critério não é seu próprio testemunho, mas o que ele está inclinado a dizer (geneigt), pois a noção de que ele garante a veracidade de uma representação, desde que a testemunhe em si próprio, fecha-o no solipisismo da consciência. Mas se o critério é o que ele diz ou faz, isso quer dizer que não se pode comparar uma representação com um objeto privado interno, mas que é pela sua exteriorização que se pode ter acesso a ele, e isso, como vimos, depende da habilidade em dar conta do que se "tem em mente". A palavra imagem jamais se refere a uma imagem mental. O que eu imagino só se mostra no modo como eu o exteriorizo e se meus interlocutores não o entendem, só posso recorrer a novas exteriorizações. Agora, pode-se compreender a difícil passagem: "A representação mental (Vorstellungbild) é a figura (Bild) que é descrita quando alguém descreve sua representação (Vorstellung)" (Ibid., § 367).

Uma vez que o critério para o que se imagina é a sua exteriorização, isso quer dizer que o "ter em mente" tem como critério o uso das palavras na linguagem. E, na linguagem, o uso da palavra "eu" é distinto do da palavra "ele". "Eu penso x", "eu imagino y", "eu quero z" são, portanto, exteriorizações. A descrição do que se imagina, porém, não depende da "lógica da informação" (id., 1992b, p. 78). Ao contrário, esta depende dos usos das palavras na linguagem, como imaginar, dissimular e representar um papel, etc.; do mesmo modo que afirmações de que uma pedra tenha consciência, de que as crianças falam espontaneamente com suas bonecas, de que, nos contos de fadas, até árvores ou objetos assumem o caráter dos seres humanos. Essas distinções dos usos das palavras formam a essência - o conceito - de imaginação, pois geralmente elas partem da noção de interior contraposto ao exterior, isto é, dizer que uma pedra tem consciência é um absurdo, porque pedras, ao contrário dos humanos, não têm interior. Desse modo, imaginar as coisas mais extravagantes tampouco pode envolver um processo interno; por exemplo, quando imagino que as pessoas que vejo caminhando normalmente nas ruas estão apenas representando um papel, dissimulando dores intensas, que seus corpos são apenas fachadas que escondem os sofrimentos terríveis de suas almas e, quando as vejo rirem, ponho-me a pensar em como deve ser difícil simular dores que elas deveras sentem. Enfim, faço o que uma pedra não faz, estou representando um papel (spiellen eine Rolle) em que concebo os outros estarem fingindo dores que de fato sentem. Ao fazer isso, eu mesmo estou representando um papel para mim mesmo (ich stelle mich vor). Nesse caso, o engano é de que aquilo que eu represento em mim mesmo seja um processo interno - um teatro mental - onde eu vejo a mim mesmo, representando um papel para mim mesmo, sendo um espectador de um cenário que eu construí para mim mesmo, correspondente ao papel que um ator desempenha no palco do teatro de meu bairro. Desse modo, acabo por recriar a ilusão de representações paralelas semelhante a quando me surpreendo com a afirmação de que uma pedra tem consciência, visto que não sou uma pedra, pois, ao contrário de uma pedra, algo em mim ocorre que me distingue dela. E aqui encontra-se o erro de toda filosofia ocidental, quando se põe a teorizar desde o monismo filosófico expresso na pergunta "o que é isto?". A resposta a essa pergunta está num objeto pelo qual está a palavra "isto". Novamente está-se às voltas com o engano de aceitar que o que eu represento em mim mesmo seja um processo mental interno, isto é, de que, como num teatro privado, eu pudesse ser o ator de mim mesmo, representar criativamente um papel para mim mesmo, isto é, isso que ocorre dentro de mim é um evento que eu posso contemplar. Mas o que é "eu me represento" (stelle mir vor)? Ou melhor: onde, fora da filosofia, podemos empregar as palavras ou frases "posso imaginar (vorstellen) que ele tem dores", ou "imagino que", ou "imagine-se que"? No caso de um ator, ao qual se pede que se imagine no papel de alguém que finge sentir dor, o único critério será uma performance isto é, o seu modo de atuar; e à medida que ele representa esse papel, podemos dizer que não está ainda bom, que pode melhorar, que ainda não está convincente etc. (id., 1984, PU, §§ 392 e 393). Já entendemos que a imaginação não é um processo mental e que seu significado é dado pelos diversos usos das palavras afins: imaginar, representar um papel, etc. Podemos, todavia, ampliar a compreensão dos conceitos de imaginação e de representação recorrendo a mais um exemplo dado por Wittgenstein; trata-se do jogo de xadrez entre Adelheid e o Bispo.

O conceito de imaginação é um âmbito que se distingue de outros modos de operar da linguagem; ver o punhal na mão de Hamlet e ver a minha faca na mesa da cozinha fazem parte de distintos jogos de linguagem. A imaginação é parte de nossa complicada forma de vida e sua importância pode ser posta assim: o que aconteceria se abolíssemos a palavra imaginação? A compreensão dessas distinções gramaticais - a "essência da imaginação" - pode ser, às vezes, bastante sutil como num trecho do drama de Goethe, Götz von Berlichingen (II, 3).

Adelheid e o Bispo jogam uma verdadeira (wirkliche) partida de xadrez? Com certeza. Eles não fingem apenas que jogam uma partida - como poderia ocorrer numa peça de teatro. Mas essa partida não tem, por exemplo, nenhum começo! - Claro que tem; senão não seria uma partida. (Ibid., PU, § 365)

Essa é uma cena fictícia: o começo do segundo ato do drama, em que o jogo está próximo do fim, no momento em que Adelheid põe o Bispo em xeque-mate. No entanto, o que está em questão nessa passagem é se eles verdadeiramente estão a jogar uma partida de xadrez, e isso é estranho, pois, se eles representam um papel num drama, como se poderia sequer indagar se o jogo deles é verdadeiro? O caráter aparentemente supérfluo dessa pergunta pode ser desfeito se considerarmos que nessa cena Adelheid e o Bispo poderiam estar fingindo estar jogando, isto é, como ocorre no teatro, representando que não estão verdadeiramente jogando xadrez, mas que suas intenções são outras. Tudo parece indicar que a distinção entre a cena e a realidade foi desfeita e que a única realidade aqui é a performance. Pois nessa passagem eles não estão a fingir nada, a intenção deles não é outra senão jogar deveras uma partida de xadrez. Não se trata de abolir a distinção gramatical entre a realidade e a ficção, mas, ao contrário, o que Wittgenstein chama a atenção aqui é a realidade da ficção, que o jogo de linguagem da imaginação não é um nada, mas que tem sua função na linguagem. Assim, nessa passagem não há fingimento, os personagens jogam verdadeiramente xadrez, eles movem as peças, aproxima-se do desfecho com a vitória de Adelheid sobre o Bispo, e isso podemos constatar olhando para o palco (ou lendo a peça), para a fisionomia, o tom da voz, a troca de olhares, que não se trata de um fingimento, que o Bispo em breve será derrotado. Representar que se joga deveras é distinto de representar que se finge jogar. A réplica de que essa partida não teve nenhum começo, pois "o jogo não começou", envolve uma confusão gramatical que perde a representação do efetivo jogo de xadrez, como se a imaginação do autor tivesse de ir paralelamente acompanhando o jogo de xadrez real. O que há é o jogo de linguagem do tempo. O tempo da ficção é distinto do tempo do relógio. Na cena, não preciso mostrar o começo do jogo para que o espectador saiba que ele deve ter tido um início; se ele está no fim, é certamente porque teve um começo. Aliás, quanto melhor for representada uma cena teatral ou cinematográfica ou quanto melhor for a imagem de uma foto em que se representa alguém jogando, tanto mais convincente será a compreensão de que o jogo teve um início e que terá um fim. Os melhores atores e diretores nos fazem até mesmo esquecer de colocar semelhante questão. No nosso caso, também Adelheid e o Bispo estão representando um jogo que teve um começo; caso contrário, não seria um jogo de xadrez. A pergunta: uma vez que não se viu o início do jogo, então não seria um jogo real? é semelhante à de se o cálculo de cabeça é menos real do que o cálculo no papel. Ora, como vimos, um e outro são modos de calcular que aprendemos em circunstâncias distintas. Adelheid e o Bispo jogam verdadeiramente uma partida de xadrez no desenvolvimento do drama, sendo distinto das vezes que jogo xadrez com meus amigos ou com o computador, mas esse jogo na imaginação só é possível uma vez que aprendemos a usar na linguagem essa palavra. Jogamos xadrez na imaginação como calculamos de cabeça. Não se trata, portanto, de prender as palavras a maiores ou menores densidades ontológicas. O que é ou não ficção é decidido na linguagem. Adelheid e o Bispo jogam uma verdadeira partida de xadrez no palco, mas poderiam também representar que fingem jogar uma partida, embora representar que se joga deveras e fingir que se joga sejam coisas distintas. Eles estariam, então, verazmente fingindo que jogam uma partida de xadrez e, neste caso, o início e o fim do jogo é irrelevante. Assim como o cálculo de cabeça é parasitário das regras da matemática, também representar o papel em que se está a jogar xadrez faz parte da regra de uso da palavra "representar" e, portanto, a questão de saber se o jogo teve um início pode originar a falsa imagem de que houvesse algo antes da regra de representar.

Permanece ainda a questão de qual o papel da imaginabilidade (Vorstellenbarkeit) na compreensão de uma sentença (Satz) e, portanto, qual a função da imaginação em compreender a própria linguagem da qual participa. Representar algo com uma frase pode ser semelhante a um desenho que se projeta a partir dela, mas que pode não acrescentar nada à sua compreensão (ibid., § 396). Por isso Wittgenstein, ao invés de imaginabilidade ou representabilidade, propõe, como vimos, a noção de apresentabilidade (Darstellbarkeit) em um meio determinado de apresentação (Mitell der Darstellung), embora reconheça que, nesse procedimento, nem tudo será produtivo, pois certas imagens podem impor-se a nós e não servir para nada (gar nichts) (ibid., § 397). Esses meios de apresentação, retirados da linguagem, são como ferramentas (Zeug) já sempre disponíveis. Mas, então, como e para que apresentar o que já está presente na linguagem? Se a trama conceitual do mundo da consciência é marcada pela palavra "imaginação", então a sua apresentação (Darstellung) é a possibilidade de, num meio determinado, dar conta da diversidade de um âmbito da linguagem ordinária. Portanto, o conceito de imaginação só pode ser "apresentado" junto daqueles que lhe são afins, do mesmo modo que uma ferramenta funciona vinculada a outras ferramentas. A falta de habilidade para lidar com essa complexidade (os "aspectos da palavra") é a cegueira para a significação, ou seja, a hipostasiação da gramática do mundo da consciência no modelo objeto-designação. Eliminar a concepção imagética da imaginação anda junto com a desconstrução dos conceitos de "querer", "ver", "pensar", etc., portanto, com a eliminação da noção de processos mentais. E isso é decisivo para a eliminação da metafísica mentalista que ronda a psicologia.

 

Referências

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____ 1992a: Culture and Value. Oxford, Blakwell.        [ Links ]

____ 1992b: Last Writings on the Philosophy of Psychology - The Inner and the Outer. v. 2. Oxford, Blakwell.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: hebeche@zaz.com.br

Recebido em 10 de novembro de 2002
Aprovado em 25 de agosto de 2003

 

 

1 Sobre a "desconstrução" wittgensteiniana da concepção mentalista dos conceitos de ver, pensar e querer, consultar Hebeche (2002).
2 A "desconstrução" da metafísica da imaginação não poderia deixar de fora a metafísica da vontade, pois o querer e o imaginar, geralmente, são concebidos no modelo da subjetividade. Ora, a relação entre a vontade e as representações (Kant, Schopenhauer, o primeiro Wittgentein, etc.) também é mais uma ilusão gramatical.
3 Ver Hebeche 2002, pp. 225-43.