SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número2A sentença nietzschiana "Deus está morto" índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dez. 2003

 

RESENHAS

 

Leopoldo Fulgencio*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Universidade Paulista

Endereço para correspondência

 

 

Ola Andersson, 2000: Freud precursor de Freud: estudos sobre a pré-história da psicanálise. São Paulo, Casa do Psicólogo. Tradução: Luis Carlos Uchôa Junqueira Fo. ISBN: 85-7396-101-5

O psicanalista sueco Ola Andersson (1919-1990) pode ser considerado um dos precursores dos estudos acadêmicos sobre a história da psicanálise. Este livro contém: sua tese de doutorado, Studies in the Prehistory of Psychoanalysis: The Etiology of Psychoneuroses and Some Related Themes in Sigmund Freud's Scientific Writings and Letter (Stockholm, Scandinavian University Books, 1962), publicada em vida; uma conferência sobre a história de Fanny Moser (1848-1925) - nome verdadeiro de Emmy v. N., caso clínico apresen-tado por Sigmund Freud (1856-1939) no seu Estudos sobre a histeria -, proferida em 1965 e só publicada em 1979; e sua correspondência com Henri Frédéric Ellenberger (1905-1993), entre 1963 e 1976.

A maneira como Andersson aborda a história da psicanálise difere da dos que se dedicaram ao tema via análise dos aspectos psicobiográficos de Freud. Seu objetivo era analisar criticamente a evolução das idéias de Freud sobre a etiologia das neuroses baseando-se, exclusivamente, nos textos e correspondências disponíveis. Ao responder a Ellenberger, que lhe escrevera pedindo informações sobre seu trabalho, ele diz que seu livro situa-se na confluência de três disciplinas - ciências políticas, psicologia e psicanálise -, nas quais teve formação, e que ele trabalhou de acordo com o método dos historiadores da política, apoiando-se, para tal, nos documentos que pudessem comprovar as hipóteses e comparações apresentadas, procuran-do sempre deixar claro, passo a passo, o que fez e o que deixara de fazer.

Sem idealizar ou transformar Freud num mito, reverenciando e ovacionando sua genialidade e originalidade, Andersson fez valer a inserção das descobertas do pai da psicanálise na história do desenvolvi-mento das idéias científicas, em especial no próprio desenvolvimento da psicologia.

Andersson pretende mostrar que as teorias de Freud sobre a etiologia das neuroses se afastaram paulatinamente das explicações anatomofisiológicas para chegar a explicações propriamente psicológi-cas sobre esses fenômenos da psicopatologia. Nessa perspectiva, Freud propôs que a histeria fosse entendida como uma doença de gênese psíquica, fruto de um conflito entre o eu (um conjunto de representações) e outras representa-ções irreconciliáveis com esse eu, representações que, por sua vez, seriam investidas por um quantum de afeto passível de transferência, deslocamento e escoamento. Ao explicar a gênese da histeria em termos psíquicos, Freud também é levado a propor um tratamento de acordo com esse mesmo tipo de etiológica, ou seja, ele propõe um tratamento psíquico por meios que são de natureza psíquica: a palavra e o relacionamento médico-paciente.

A análise de Andersson começa justamente no ano em que Freud retorna de sua viagem de estudos a Paris e termina no ano em que, pela primeira vez, ele utilizou o termo psicanálise como método de pesquisa e tratamento. O autor mostra, focado nos documentos desse período, como estavam presentes no pensamento de Freud tanto as posições teóricas da escola alemã de psiquiatria quanto as concepções próprias à psiquiatria francesa. Na escola alemã, a figura mais respeitada era Theodor Meynert (1833-1892), que chegou a orientar Freud nas suas pesquisas iniciais, para quem as explicações dos distúrbios psíquicos eram, e deveriam ser, de natureza anatomofisiológica, opondo-se, pois, claramente, à introdução de qualquer tipo de explicação psicoló-gica. Os dois grandes representantes da escola francesa eram Jean Martin Charcot (1825-1893) e Hippolyte Bernheim (1840-1919), para os quais a descrição clínica prevalece sobre as descrições anatômicas, introduzindo, pois, explicações psicológicas para os fenômenos observáveis na histeria. Uma oposição entre essas duas linhas de pesquisa da psiquiátrica não só fazia parte do cenário científico da época como estava presente no espírito de Freud. Andersson retoma a importância de Charcot para o surgimento da psicanálise, fazendo jus ao comentário de Freud, dirigido a sua noiva Marta Beynards em 24 de novembro de1885, que Charcot (referindo-se à sua estadia de estudos em Paris) estava simplesmente demolindo suas concepções e que nenhum outro homem tivera tanta influência sobre ele.

Ainda que Charcot creditasse a etiologia da histeria à hereditarie-dade, numa perspectiva de explicação anatomofisiológica, ele também forneceu uma explicação psicológica desses fenômenos, apoiando-se nas suas descrições clínicas. Mesmo que referidas à anatomofisiologia, as explicações clínicas de Charcot - formuladas em termos de uma cisão da consciência após ocorrência de um trauma psíquico, estados hipnóides, auto-sugestão e representações inconscientes - representavam uma proposta de entendimento que se distanciava das que eram formuladas em termos das localizações cerebrais (de lesões e/ou inflamações) ou das alterações dinâmicas da funciona-mento do cérebro.

Passo a passo, Andersson analisa o desenvolvimento do pensamento de Freud sobre a etiologia da histeria. Ele comenta, assim, que em 1888 Freud escreve um verbete para a enciclopédia de Villaret, no qual ainda mantém-se no campo dos fisiólogos e suas formulações aparente-mente psicológicas - tal como a afirmação de que a causa da histeria deveria ser procurada na vida representativa inconsciente - têm apenas um significado metafórico vinculado à capacidade potencial de tais idéias tornarem-se conscientes. Entre 1888 e 1889, tal como seus contempo-râneos, Freud considerava os fenô-menos psíquicos epifenômenos dos processos fisiológicos cerebrais, eventos concomitantes aos processos fisiológicos, que poderiam, pois, ser explicados pelo funcionamento geral do cérebro.

Numa outra direção, que não a das explicações fisiológicas, estavam as descrições clínicas e as explicações de caráter psicológico dos fenômenos histéricos. Dada a ineficiência e o fracasso das explicações fisiológicas para o tratamento da histeria, Freud foi paulatinamente se aproximando desse segundo tipo de abordagem. Andersson comenta que isso não é algo propriamente freudiano, mas que fazia parte de um movimento mais amplo ao qual Freud pertenceu: "A tendência a abandonar, no campo psicopatológico, as especulações anatômicas e fisiológicas em favor de uma abordagem clínica e psicológica é evidente, por todos os lugares, no início de 1890. Tais são as propostas de pesquisadores tais como Janet, Freud, Binet, Strümpell etc. Mais ainda, estes são apenas os repre-sentantes mais conhecidos de um movimento de amplidão consi-derável" (na tradução francesa p. 130 e na tradução brasileira p. 152, doravante apenas tr. fr. 130; tr. br. 152).

O abandono, por Freud, das teorias e explicações fisiológicas não foi imediato nem definitivo, considerando-se esse período estudado por Andersson. Num certo sentido, poder-se-ia dizer que mesmo após a construção e o desenvol-vimento da psicanálise, Freud ainda mantinha a idéia de que um dia o conhecimento físico-químico do cérebro poderia substituir seu método e suas explicações psico-lógicas, tal como se pode verificar na sua afirmação de 1939, ao supor que talvez no futuro a bioquímica nos ajude a agir diretamente nas quantidades de energia e suas distribuições no aparelho psíquico (Freud 1940a: Compêndio de psicanálise, SE 23, p. 182).

Andersson considera que, nesse período (1886-1896), no entanto, as tentativas de Freud de explicar a etiologia da histeria em concepções fisiológicas - chegando mesmo a propor uma fisiologia cerebral de caráter especulativo, o que era uma prática comum aos neurologistas no fim do século XIX - conviveu com suas formulações teóricas de natureza psicológica. O seu texto sobre as Afasias (1892) corresponde, ainda, a uma tentativa de explicar o aparelho da linguagem em função do funcionamento dinâmico (fisiológico) do cérebro. Essa procura de uma fisiologia especulativa é especial-mente evidente no seu Projeto de uma psicologia para neurólogos (1895). Ao comentar esse manuscrito - que tem uma parte dedicada à fisiologia especulativa do cérebro e outra dedicada à psicopatologia, que se aproxima das explicações psico-lógicas -, na perspectiva das expli-cações etiológicas das psiconeuroses, Andersson faz notar que, no mesmo momento em que Freud escrevera o Projeto, ele também proferira uma conferência sobre a histeria na Sociedade de Medicina de Viena, em outubro/novembro de 1895, na qual exprime suas opiniões apoiando-se em teses (sobre as psicopatologias) desenvolvidas no Projeto, mas afastadas do contexto fisiológico-especulativo (tr. fr. 204; tr. br. 238). Sabemos que a fisiologia especulativa do cérebro, formulada no Projeto, foi um tipo de explicação fisiológica logo abandonada por Freud, chegando a avaliá-la, numa carta a Fliess, como um tipo de aberração. Esse tipo de análise torna, pois, mais clara a oposição entre a fisiologia e a psicologia - enquanto direções-guia para as explicações procuradas no campo da psicopatologia - no pen-samento de Freud nesse período de amadurecimento em direção à psicologia propriamente dita.

Andersson comenta que a psicologia elaborada por Freud não é isenta de especulações, ao contrário, foi justamente a introdução de algumas “hipóteses auxiliares” ou “abstrações psicológicas usuais” (Freud 1894a: “As psiconeuroses de defesa”) – assim mesmo caracterizadas pelo próprio Freud –, que tornaram possível reagrupar e explicar os estados psíquicos variados, encontráveis nas psiconeuroses de defesa, a saber: a suposição de que no psiquismo, investindo as representações, há uma determinada energia que pode crescer, diminuir, escoar etc., um “quantum de afeto” ou “soma de excitação”. Anderssson comenta que essas hipóteses auxiliares não estão referidas aos aspectos fisiológicos da vida psíquica (tr. fr. 150; tr. br.180). Pode-se, pois, considerar que Freud, quando propôs a psicanálise como método de tratamento e como doutrina teórica, formulou sua teoria geral das neuroses abandonando as especulações fisiológicas do Projeto pelas propriamente psicológicas.

Ao analisar essa evolução do pensamento de Freud, Andersson também recupera a importância que a psicologia de Johann Friedrich Herbart (1776-1841) teve para a elaboração da psicologia psicanalítica freudiana. Para Herbart, o psiquismo é composto por um conjunto de unidades (átomos) que são, para ele, as representações. A relação entre essas representações, no que se refere à sua determinação recíproca e aos efeitos dessas determinações, deve ser explicada em termos de uma "mecânica das representações" (Vorstellungsmechanik) numa interação dinâmica de idéias (tr. fr. 33; tr. br. 44). A concepção de uma "mecânica das representações" e a adoção do ponto de vista dinâmico como guia para a pesquisa das explicações são elementos fundamentais da psico- logia herbatiana, cuja influência kantiana não pode ser desconside-rada. Andersson mostra, assim, que a psicanálise de Freud é construída sob forte influência da psicologia de Herbart, tanto no que diz respeito ao uso de termos e explicações propriamente psicológicas como na presença de um ponto de vista dinâmico referido às representações. Meu artigo sobre as especulações em Freud, publicado no vol. 5, n. 1, de Natureza humana, analisa mais detalhadamente esse aspecto metodológico que guia Freud na construção da psicanálise, integrado numa linha de pesquisa na qual é possível reconhecer, além de Herbart, outros intelectuais importantes para o en-tendimento das concepções metodo-lógicas de Freud, tais como G. Th. Fechner (1801-1887), H. L. F. von Helmholtz (1821-1894), E. W. von Brücke (1819-1892) e E. Mach (1838-1916).

A primeira parte do livro de Andersson analisa as heranças de Freud, mostrando suas dívidas com Herbart, Charcot, Breuer, Meynert e Bernheim para a formulação de suas teorias propriamente psicológicas, bem como sua originalidade na construção do método psicanalítico. Todas as grandes descobertas desse período - a importância da sexualidade na etiologia das neuroses, a noção de um inconsciente dinâmico movido por representações carregadas de afeto ou energia de natureza sexual que procura descarga, a noção de um "eu" que se defende de certas representações, o recalque, etc. - têm nos contemporâneos de Freud referências significativas; ainda que nenhum deles tenha, de fato, conjugado todos esses elementos em função de um método específico de tratamento psíquico.

A segunda parte corresponde ao artigo de Andersson sobre a história de Fanny Moser (Emmy v. N), a quem o folclore credita ter dito a Freud "...não me toque, deixe-me falar!". Ao tornar possível reconstruir a história dessa paciente de Freud, também obtemos uma contribuição para avaliar tanto o entendimento quanto o tipo de tratamento que Freud deu a essa paciente. Este estudo desfaz alguns mitos e reenvia o método de tratamento psicanalítico para um quadro onde pode ser avaliado em sua eficiência tera-pêutica, logo, sobre a correção ou não das concepções teóricas que o guiam.

Os tradutores optaram por "traduzir a versão francesa na íntegra" (tr. br. p. 12) e, ao que tudo indica, consultaram tanto o original em inglês como a tradução italiana, dado que fizeram algumas opções que divergem da versão francesa: em especial no que se refere à eliminação dos dois primeiros parágrafos do prefácio, que constam apenas na versão francesa e não estão presentes nem no original nem na versão italiana; e na manutenção de termos em alemão, uma ou outra vez sem tradução, tal como no original, mas geralmente traduzidos na versão francesa. Dentre os termos mantidos em alemão, um mereceria ser comentado visando a esclarecer o leitor, dado que é um conceito central referido às opções metodológicas e conceituais de Freud: Vorstellungsmechanik ou "mecânica das representações". Aqui, torna-se necessário apontar um pequeno erro na versão em português, que não ocorre noutras traduções, pois leva a uma má compreensão das teses apresentadas. A frase "What mains of Herbartian psychology, however, is the basic Idea of the book: the conception of psychic phenomena as manifestations of a`Vorstellungsmechanik', a dynamic interaction of ideas" (no original, p. 13; tr. fr. p. 33) foi vertida para "No entanto, aquilo que permanece da psicologia herbartiana representa a idéia fundamental de seu livro: a concepção dos fenômenos psíquicos como manifestação de uma Vorstellungsmechanik, ou seja, de uma interação mecânica de idéias" (tr. br. pp. 43-44). Ao traduzir "a dynamic interaction of ideas" por "uma interação mecânica de idéias", substituindo a dinâmica pela mecânica, temos uma adulteração do sentido do texto que obscurece o entendimento das concepções de Herbart; pois ele considerava as representações enquanto "átomos" do psiquismo, cujo comportamento deveria ser concebido tal como forças em conflito, marcando, pois, sua aderência ao ponto de vista dinâmico (um dos princípios metodológicos do programa de pesquisa kantiano para as ciências naturais). Ao confundir dinâmica com mecânica, obscurecem-se não só as posições de Herbart como as de Freud, que terá no ponto de vista dinâmico um dos dife-renciadores de sua psicologia (Freud 1913m: "Sobre a psicanálise", SE vol. 12, p. 207), inclusive se opondo a um ponto de vista mecânico como guia metodológico na procura de explicações dos fenômenos psíquicos.

O livro de Andersson corres- ponde a uma análise histórico-crítica de uma parte da história do desenvolvimento do pensamento de Freud, contribuindo para que se possa reconhecer com mais clareza o que foi, de fato, original nas propostas de Freud e o que constitui o uso de concepções já estabelecidas em sua época. Isso não só esclarece como aprofunda nossa compreensão da psicanálise, tanto como método de tratamento quanto como doutrina teórica.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ful@that.com.br

Recebido em 3 de fevereiro de 2003
Aprovado em 6 de julho de 2003

 

 

* Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Membro do GFPP e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Professor titular Universidade Paulista