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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

O outro fim para o Dasein: o conceito de nascimento na ontologia existencial*

 

Another objective of Dasein: the concept of birth in existential ontology

 

 

Róbson Ramos dos Reis

Departamento de Filosofia - Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria, RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo examina a afirmação, feita por Heidegger em Ser e tempo, segundo a qual o nascimento de um existente humano é um outro fim para o Dasein. A afirmação é analisada a partir do conceito de possibilidade existencial. Assim como a morte é interpretada existencialmente, também o nascimento ganha uma análise em termos de possibilidade. Na medida em que a possibilidade existencial é definida pela instauração de ser, e a finitude do ser-para-a-morte qualifica a morte existencial como um fim (porque determina um modo possível de estar lançado em possibilidades), o mesmo pode ser dito do nascimento. Ou seja, o nascimento é um fim, no sentido de que determina a qualificação finita do estar em possibilidades. Natalidade e mortalidade não são apenas características de um ente vivo, mas qualificações superiores da possibilidade existencial.

Palavras-chave: Heidegger, Nascimento, Possibilidade existencial.


ABSTRACT

The paper examines Heidegger's statement in Being and Time, according to with the birth of a human existent is another end to Dasein. The statement should be analized through the concept of possibility. In the same way that death is existential interpretaded, so becomes birth an analysis by the notion of possibility. In the extent that existential possibility is definid by instauration of being, and the finitude of Sein-zum-Tode qualifies existential death as an end (because it determinates a possible way of being thrown inside possibilities), the same can also be held of birth. That is, birth is an end in the sense of the finite qualifying of being thrown into possibilities. Natality and mortality are not only marks of a living being, but higher qualifications of existential possibility.

Keywords: Heidegger, Birth, Existential possibility.


 

 

Introdução

O programa ontológico da fenomenologia-hermenêutica pode ser visto em esboço na reunião de dois livros: Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia. Tomados em conjunto, os quatro grupos de problemas ontológicos fundamentais - o problema da diferença ontológica, dos modos de ser, da unidade possível nos modos de ser e o problema do caráter de verdade do ser - não deixam a menor dúvida quanto ao verdadeiro propósito da analítica existencial apresentada em Ser e tempo. A descrição e interpretação da existência humana visa essencialmente ao problema do sentido temporal de ser, a partir do qual os problemas acima mencionados poderiam ser adequadamente colocados. E mesmo a analítica existencial é apresentada em limites expressos, pois não deve ser confundida com nenhuma investigação empírica sobre o ser humano, e menos ainda como possuindo um fim em si mesma. A analítica existencial é dita preparatória e provisória, pois é retomada em uma interpretação temporal, circunscrevendo-se exclusivamente ao objetivo de uma explicitação da compreensão de ser.

No correr dessa investigação ontológico-existencial, Heidegger apresenta a dificuldade de princípio, que a retomada interpretativa da analítica existencial deve enfrentar, a saber, o problema de se o ser do existente humano, tal como exposto nos modos autêntico e inautêntico (em ambos confirmado como cuidado), estaria colocado de modo completo ou total com vistas ao momento da sua interpretação temporal. Segundo Heidegger, a Vorhabe para a interpretação temporal não estará completa se, além do ser-para-a-morte e do existir autêntico e inautêntico, ainda não for apresentada uma exposição do ser-para-o-início e do acontecer da existência entre o nascimento e a morte. Aqui inicia a consideração da historicidade da existência, entendida como a estrutura do acontecer humano entre o nascimento e a morte. Nas palavras de Heidegger:

Será que o todo do Dasein foi efetivamente levado à posição prévia da analítica existencial, no tocante ao seu ser-total autêntico? É possível que o questionamento relativo à totalidade do Dasein tenha alcançado uma genuína clareza ontológica. É possível inclusive que a pergunta tenha encontrado sua resposta no ser para o fim. Porém, a morte é apenas o "fim" do Dasein e, em sentido formal, apenas um dos fins que abrangem a totalidade do Dasein. O outro "fim" é o "começo", o "nascimento". Apenas o ente "entre" nascimento e morte apresenta o todo buscado. Desta forma, a orientação dada até aqui para a analítica ficou "unilateral", apesar de sua tendência ao ser-total existente e da genuína explicação do ser para a morte autêntico e inautêntico. (SZ, pp. 372-3)

Essa passagem ainda continua com a ênfase no fato de que tanto o ser para o início, como o estender-se da existência entre o nascimento e a morte, ficaram desconsiderados na analítica existencial. O curioso é que, na continuidade, Heidegger aparentemente dedica-se apenas à apresentação do que seria o genuíno acontecer da existência humana entre o nascimento e a morte, a historicidade da existência, mas nada ou muito pouco apresenta sobre o nascimento, o ser para o início, o outro fim do Dasein. Temos aqui um ponto interpretativo amplamente reconhecido na literatura, e que manteria, portanto, a analítica existencial na condição de unilateralidade.1

A esse tema dedica-se o presente trabalho, ou seja, ao conceito de nascimento na analítica existencial. Segundo minha hipótese, é possível a apresentação de um conceito existencial de nascimento a partir das indicações registradas a respeito em Ser e tempo e, além disso, também pode ser mostrado que essa noção é central no programa ontológico da fenomenologia-hermenêutica. A estrutura do ser-para-o-início é relevante para a inteira apresentação da finitude e do ser-total da existência humana no contexto da analítica existencial. Além disso, a partir do conceito existencial de nascimento também é possível tematizar a finitude da compreensão de ser e do desvelar-se do sentido do ser. Em conseqüência, o conceito de nascimento, a partir de sua semântica própria na analítica existencial e na ontologia fundamental, também elucidaria a finitude própria do filosofar. Por fim, creio que o conceito existencial de nascimento, juntamente com o ser-para-a-morte, permitiriam uma comparação qualificada entre a ontologia da existência e a ontologia da vida, contribuindo para a tematização das relações entre investigação ontológica, ontologia regional da existência humana e da vida, e investigação empírica desses domínios de entes.

É evidente que a verificação de tal hipótese excede completamente os limites da presente contribuição. Quero restringir-me a uma análise e interpretação das passagens em que o nascimento é referido em Ser e tempo, com o objetivo de sugerir algumas notas de um conceito existencial de nascimento. Duas são as perguntas que buscarei responder. Primeira: o que significa dizer que a existência é natal, nascencial (gebürtig)? E segunda: o que significa afirmar que o nascimento é um outro fim para a existência, para o Dasein? Procederei em quatro etapas. Inicialmente, com uma consideração metodológica sobre a possibilidade da reconstrução de um tratamento existencial para o conceito de nascimento, com ênfase no conceito de possibilidade existencial e na destruição do conceito natural de nascimento. A seguir, examino alguns traços do conceito existencial de nascimento, entendido como ser-para-o-início ou ser-a-partir-do-nascimento. Em terceiro lugar, analiso a finitude da existência humana, precisamente em seu caráter natal ou nascencial, explicitando o sentido em que o nascimento seria um outro fim para o Dasein. Por fim, concluirei com breves anotações sobre a finitude da compreensão de ser, exatamente em razão da finitude da existência humana enquanto mortal e natal.

 

Dificuldade e orientação na análise do nascimento

Inicialmente, a reconstrução de uma possível noção existencial de nascimento enfrenta a dificuldade da exígua documentação. Em Ser e tempo são apenas três as passagens hermeneuticamente relevantes (pp. 373, 374 e 390-1) e a Gesamtausgabe ainda não foi examinada em detalhe neste ponto.2 Tais passagens exigem, portanto, um trabalho de apropriação e devem ser vistas como indicações formais. Não obstante, a afirmação de que, como a morte, o nascimento também é um fim para o Dasein oferece uma chave interpretativa inicial. É possível formular, então, uma estratégia comparativa similar à imagem do espelho, apresentada por Lucrécio.3 Numa conhecida passagem, ele afirma que o estado temporal passado, anterior ao nascimento, seria como um espelho dado pela natureza, que mostraria o tempo que virá após a morte. Sabemos que a problemática de Heidegger difere inteiramente da de Epicuro, Lucrécio e tantos outros. Não obstante, a figura do espelho é atraente, caso seja admitida segundo as condições da ontologia existencial.

Assim, tomaríamos a interpretação do fenômeno da morte como um guia especular para a reconstrução do conceito existencial de nascimento. Dado que dispomos de uma exaustiva apresentação do conceito de morte, nela poderíamos buscar as indicações para percorrer o outro lado da analítica existencial, que não seria efetivamente unilateral, mas apenas carente de exposição explicitativa. Uma tal estratégia deve ser justificada adequadamente, o que não posso fazer agora. Entretanto, o argumento da simetria não deve ceder a uma construção sistemática dedutiva em nome do princípio fenomenológico, tantas vezes enfatizado por Heidegger, de um tratamento individualizado das estruturas ontológicas e existenciais.4 A analogia deve, sem dúvida, iniciar com as similaridades, mas, como é uma construção por simetria, deve buscar sobretudo as diferenças.

Esse ponto exige cautela, pois o próprio Heidegger afirmou que a relação para com o nascimento envolvia um caminho de retorno (Rücklauf), mas que não era simplesmente a inversão do ser-para-a-morte. Em uma passagem que buscava responder à pergunta sobre por que não havia tratado do nascimento na investigação sobre o Dasein, ele justificava tal ausência por ser da opinião que o nascimento não era meramente o outro fim do Dasein, podendo ser tratado na mesma problematização que a morte. Cito:

Exatamente em face do factum do nascimento, que de certa maneira não está pura e simplesmente atrás de nós, é válido que aquilo que nos parece ser primeiro, o que inicialmente fomos, é o mais tardio no conhecimento. Para o nascimento devemos ir necessariamente em um movimento de retorno, mas isto não é simplesmente a inversão do ser-para-a-morte. Para esse retorno é ainda necessário uma elaboração totalmente diferente do ponto de partida em relação àquele do outro caminho limite do Dasein. (GA 27, pp. 124-5)

Não obstante esta advertência, considerando o capítulo dedicado ao problema do ser-para-a-morte, teríamos os delineamentos analógicos para uma primeira apresentação do fenômeno existencial do nascimento. Seguindo os tópicos tratados no capítulo de Ser e tempo sobre o ser-para-a-morte, teríamos: a relação entre o ser-total do Dasein e o nascimento; o problema da possibilidade de uma experiência do nascimento, considerada a sua externalidade estrutural e as limitações na experiência do nas-cimento dos outros; as delimitação ante possíveis interpretações de nascimento e início; impendência, início e totalidade; a estrutura ontológico-existencial do nascimento; a cotidianidade do Dasein e o ser-a-partir-do-nascimento; o ser-para-o-início cotidiano e o conceito existencial completo de nascimento; por fim, o projeto existencial de um autêntico ser-a-partir-do-nascimento.

A lista apresentada segue formalmente as etapas da apresentação do ser-para-a-morte. Creio que a dificuldade apresentada por Heidegger ao iniciar a abordagem dos conceitos de fim e totalidade (§ 48) é decisiva para que não se perca a especificidade do fenômeno do nascimento. A caracterização dos conceitos de fim e totalidade é dita provisória, pois não exige apenas a apresentação da estrutura formal dos fenômenos de fim e totalidade em geral.5 Também é necessária a desformalização dos fenômenos do fim e da totalidade em diferentes regiões de objetos, o que pressupõe uma interpretação dos diferentes modos de ser por meio de uma diferenciação regional da totalidade dos entes. Entretanto, tudo isso suporia já uma idéia clarificada de ser, o que é precisamente o que se está buscando no programa de Ser e tempo (SZ, p. 241). Aqui se poderia acrescentar que o conceito de início também exigiria tais complementações, em particular no tocante à relação com o conceito de totalidade. Este ponto é de significância decisiva para o caráter de fim que é atribuído ao nascimento; a ele retornarei posteriormente, pois também o nascimento é integrante do possível ser-total do Dasein, que será apresentado em termos do modo finito de estar em possibilidades existenciais.

O conceito existencial de morte é obtido, então, a partir da análise do ser-para-o-fim, discriminando a estrutura existencial do ser-para-a-morte como a possibilidade da impossibilidade. O ser-para-a-morte é determinado como a possibilidade mais própria, irrelacional, certa, indeterminada e insuperável (SZ, pp. 263-5). O modo cotidiano inautêntico do ser-para-a-morte é a expectativa da morte, no esquecimento de si e na fuga diante do ser-para-o-fim. Ao contrário, o autêntico ser-para-a-morte é a antecipação decidida, que abre a diferença entre autenticidade e inautenticidade, permitindo assim o estar decidido, isto é, a projeção própria nas possibilidades existenciais finitas. Ao singularizar o existente, rompendo a dispersão cotidiana e permitindo a projeção livre em suas possibilidades finitas, o ser-para-a-morte proporciona a totalização de que é capaz o Dasein. O ser-para-a-morte, como é bem conhecido, ainda é definido em termos de angústia (SZ, p. 266). Angústia é a disposição afetiva que abre o existente humano como mortal, ou seja, como possibilidade negativada, ser-para-a-morte.

Seguindo o argumento da simetria, poder-se-ia esperar um desenvolvimento que culminasse em formulações análogas para o conceito de nascimento. Não me parece que existam impedimentos de princípio para tal construção, apesar de que estaríamos diante das formulações quase paradoxais trazidas pelo tratamento existencial. O conceito existencial de nascimento seria obtido pela análise do ser-para-o-início, discriminando a estrutura do ser-a-partir-do-nascimento. Seria ela também uma possibilidade? As cinco determinações formais do ser-para-a-morte também se aplicariam ao ser-a-partir-do-nascimento? Quais seriam os modos autêntico e inautêntico de ser-a-partir-do-nascimento? O ser-a-partir-do-nascimento também representaria um modo de ser total do Dasein? Qual seria a disposição afetiva que abriria o Dasein em sua condição nascencial?

Ela seria diferente da angústia? Caso a resposta fosse afirmativa, o privilégio metodológico atribuído à angústia deveria ser estendido também ao sentimento diante do ser-a-partir-do-nascimento? Não posso desenvolver todo este programa agora, por isso vou me concentrar em dois dos tópicos acima mencionados: o conceito existencial de nascimento e por que ele é um fim para o Dasein. Antes, porém, quero frisar a característica existencial da abordagem.

 

Existência e possibilidade

Quando a expressão existencial é empregada para qualificar uma abordagem filosófica, um modo de tratamento ou uma estrutura conceitual, ela deve ser entendida em significação estritamente ontológica. Ou seja, existência denota um domínio muito peculiar de entes, diferente de outros domínios ou regiões de objetos. Na base de tal noção está a exigência feita por Heidegger de ampliar a problemática ontológica da tradição ocidental, que teria se preocupado exclusivamente com as perguntas sobre o que é um ente e se ele é. Essência e existência seriam as maneiras tradicionais de articulação do conceito de ser, mas o problema do modo de ser, de como (wie) os entes são, não teria sido colocada expressamente. Essa ampliação tem um alcance muito grande, pois a pergunta pelo modo de ser pode questionar a validade universal da tese de que todo e qualquer ente pode ser articulado em essência e existência. Talvez seja exatamente o caso de um tipo de ente existir de um modo tão peculiar, que dele não se possa falar em essência e existência da mesma maneira que sobre as demais classes de entes. O problema do modo de ser diz respeito, portanto, à relação entre o ente e suas determinações. Talvez existam entes que possuam determinações de um modo distinto de todos os restantes, implicando com isso que até mesmo o sentido do termo "determinação" deveria ser diferenciado para cada tipo ontológico.

Ora, precisamente este é o caso para o tipo de entes que são os seres humanos. Segundo Heidegger, os humanos não possuem determinações do mesmo modo que todos os demais entes, e em razão disso eles não podem ser adequadamente descritos como portadores de propriedades. Seres humanos não são portadores de propriedades, mas são apenas modos ou maneiras de ser. O modo como os humanos podem ser determinados é diferente e suas determinações são apenas modos ou, mais precisamente, possibilidades.

Assim, não é adequado, apesar de possível, descrever a existência humana em termos de substrato de propriedades, sejam elas materiais ou mentais. A existência ainda não é adequadamente concebida na forma das identificações funcionais de finalidade, holisticamente definidas nas remissões instrumentais. Tampouco é adequado descrever a existência a partir do conceito de vida, e menos ainda a partir de puras relações formalizadas.6 Assim sendo, a existência humana individual não deve ser concebida como uma série estendida no tempo, como um substrato determinado por propriedades, animadas e inanimadas, algumas delas cambiantes e outras não. Tampouco pode ser descrita como uma seqüência de vivências ou estados mentais conectados, estendida a partir de um começo até um encerramento final. Menos ainda pode ser determinada pelas identificações remissivas e finalísticas que eventualmente pode ser levada a sustentar.

Conseqüentemente, e de modo simétrico ao conceito de morte, o nascimento existencial não deve ser descrito como o ponto inicial de uma série. Tampouco o nascimento é o extremo não efetivo de uma conexão de vivências pontuais efetivas ou o início de um processo de construção ou desenvolvimento. E ainda, o nascimento não é a passagem para a vitalidade de um ente subsistente, a transição da pura subsistência para a subsistência animada pela vitalidade. O conceito existencial de nascimento não se refere a um evento não mais subsistente, ocorrido num momento datado como passado. Ao recusar a imagem da existência humana como a extensão entre dois pontos não efetivos, nascimento e morte, Heidegger afirma:

Compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser algo passado, no sentido de algo que não subsiste mais, tampouco como pertence à morte o modo de ser do resto (pendente) que ainda não subsiste, mas que virá. (SZ, p. 374)

Em termos existenciais, o nascimento não é um evento, um fato, um acontecimento entre outros. Essas conclusões demandam não apenas uma adequada justificação, mas sobretudo uma qualificação posterior a partir do exame das relações entre a ontologia da existência e a ontologia da vida.7 Antes de tudo isso, porém, o fenômeno existencial do nascimento requer uma descrição adequada a partir da ontologia do modo de ser existencial.

O conceito existencial de possibilidade é central na ontologia da existência, pois é a determinação formal última do Dasein. Por ora destaco os traços da noção de possibilidade que são relevantes para a apresentação do fenômeno do nascimento. Inicialmente, a possibilidade existencial é referida à relação entre o existente e suas determinações; ela diz respeito ao modo como cada existente é um "portador" de determinações. Negativamente, não se trata de sustentar propriedades, nem mesmo no modo da autoconsciência, em que as vivências seriam portadas pela consciência ou pela mente no modo da autoconsciência.8 Positivamente, o modo como o Dasein é qualificado por alguma determinação é sempre pela compreensão de tal determinação. Assim sendo, as características do Dasein não são de estado, mas de habilidade. As possibilidades existenciais podem ser vistas como habilidades, como competências (Blattner 1999, p. 38). Tomando o sentido técnico do termo "compreensão", as possibilidades existenciais são as habilidades em que o Dasein se lança, as finalidades identificadoras de metas e os objetivos para os quais desdobra-se a existência. Que o estar em determinações seja uma compreensão também implica que as características de habilidade sempre estão interpretadas, o que não significa tematização e conceitualização explícitas. É esse traço que faz das possibilidades existenciais apenas modos ou maneiras de ser, e nada mais.

As possibilidades ainda são estruturalmente qualificadas pela socialidade da existência. Na medida em que a existência é ser-com, as habilidades estão normativamente instituídas. Elas perfazem uma estruturação sistêmica, pois estão orientadas nas três direções da transcendência do Dasein (para si, para os outros e para os entes que não são Dasein). A padronização normatizada é uma condição para a sua instituição (Brandom 1992 e Haugeland 1982), na medida em que o desempenho da habilidade requer o domínio de regras práticas definidas impessoalmente. Em conexão sistemática, as possibilidades existenciais discriminam formas de existir em que cada existente se coloca e em função das quais sustenta-se nas possibilidades. Não obstante, o distintivo das possibilidades existenciais é que, mesmo sendo características de habilidade normativamente reguladas por algo assim como posições sociais (Blattner 1999, p. 83), a sua projeção não implica a colocação estável no domínio da possibilidade.9 Assim, as possibilidades existenciais possuem algo como uma natureza inatingível, inalcançável (Blattner 1999, pp. 81-5), no sentido de que jamais se está imune à perda da projeção na habilidade. A finitude da possibilidade inviabiliza o pleno uso, portanto, da noção de papel social. Por fim, as possibilidades existenciais são descobridoras de entes. Elas são os modos nos quais a projeção de ser pela compreensão de ser se efetiva propriamente, não representando apenas as determinações possíveis para os entes que não são substratos de propriedades. Mais ainda, as possibilidades existenciais abrem o espaço para que os entes venham ao encontro e apareçam como entes.10 Assim sendo, o conceito existencial de possibilidade também é parte do programa de apresentação do sentido do ser em geral. Se os conceitos de nascimento e morte são apresentados em termos da modalidade existencial, então a mortalidade e natalidade da existência também devem qualificar a finitude do desvelamento de ser.

O tratamento existencial do fenômeno de nascimento deve ser visto em paralelo com o tratamento dado para o fenômeno da morte. A morte é um fenômeno existencial e sua abordagem foi "puramente existencial" (SZ, p. 240). Nesse sentido, a morte foi mostrada como um modo de ser que se apropria da existência enquanto ela é. O fenômeno existencial da morte é obtido quando se o considera como uma possibilidade (SZ, pp. 245, 248, 250, 255 e 261). Assim, também o nascimento deve ser apresentado em termos de possibilidade, ou seja, das modalidades existenciais. É o próprio Heidegger quem indica a direção para uma construção do fenômeno do nascimento:

O Dasein fáctico existe nascencialmente, e nascencialmente ele também morre no sentido do ser-para-a-morte. Ambos os "fins" e seu "entre" são apenas enquanto o Dasein existe facticamente, e são da única maneira como isto é possível: na base do ser do Dasein como cuidado. Na unidade do estar lançado e do ser para morte, fugaz ou antecipador, nascimento e morte conectam-se segundo a maneira do Dasein. Enquanto cuidado, o Dasein é o "entre". (SZ, p. 374)

A passagem oferece as indicações suficientes para a exposição do conceito existencial de nascimento. O nascimento deve ser visto em relação ao conceito de cuidado, o que significa que ele é um momento no todo concreto que é o ser do Dasein. Ser nascencial não é separável de ser mortal e ser mortal não é separável de ser nascencial. O conceito de nascimento estará referido ao momento estrutural do já-ser-em, que compõe o cuidado. No entanto, é a indicação inicial, de que o Dasein existe de modo natal ou nascencial, que possibilita iniciar a exposição do conceito existencial de nascimento.

 

O conceito existencial de nascimento

O conceito existencial de morte pode ser lembrado brevemente para introduzirmos o conceito existencial de nascimento. Inicialmente, a morte é tomada como algo que sempre pertence à existência. Ela não diz respeito ao acabamento ou ao estar no fim da existência, mas a um modo de relacionar-se com o fim. Mais precisamente, o conceito existencial de morte refere-se ao ser-para-o-fim. Ser para o fim não é uma relação com algo ou com um momento na série da existência, mas é uma possibilidade existencial. Trata-se de um relacionamento com o fim, mas com o fim que se encontra em toda possibilidade existencial, significando, portanto, uma das formas em que se determina o existente humano. No entanto, ela é uma possibilidade muito especial e extrema. Pode-se dizer que é uma possibilidade de segunda ordem, formulada como a possibilidade da impossibilidade. Tal expressão não designa a possibilidade de que a existência termine, como já foi dito, ou de que as possibilidades existenciais desapareçam e deixem de estar no mundo. Que as possibilidades terminam, ou podem terminar a qualquer momento, é uma formulação metafórica para a natureza mesma da possibilidade existencial. Ou seja, que elas não são alcançadas como propriedades de estado e que sempre é requerida a projeção para que elas se mantenham como possibilidades. O ser-para-o-fim, enquanto possibilidade da impossibilidade, é a maneira de estar em possibilidades, é uma possibilidade de segunda ordem relativa ao caráter negativado da possibilidade existencial.

O existente humano é um ser-para-a-morte, no sentido de que se relaciona com tal possibilidade. O ser-para-a-morte não é uma aspiração de realizar a morte fáctica, nem um pensamento sobre a morte. Mais adequadamente, a partir da negatividade da possibilidade existencial, torna-se manifesto para cada um em particular que suas determinações requerem projeções próprias, que elas não são propriedades, mas características de habilidade que demandam projeção. Como ser-para-a-morte, abre-se para o ser humano a alternativa do existir autêntico ou inautêntico, do estar própria ou impropriamente nas possibilidades existenciais. A existência de cada ser humano, porém, também modaliza o ser-para-a-morte nos modos autêntico ou inautêntico.11 No modo autêntico de ser-para-a-morte, a antecipação decidida da negatividade das possibilidades existenciais, pode acontecer a singularização da existência. Ou seja, a singularização que acontece quando as possibilidades que já se é forem assumidas de modo decidido, sendo, então, projetadas propriamente (ou até mesmo abandonadas). Com isto, rompe-se a dispersão na identidade existencial, atingindo-se a única consistência e determinidade factível para entes que são apenas maneiras de ser.

Também o fenômeno existencial do nascimento deve ser conceitualizado a partir de possibilidades de segunda ordem, que podem ser chamadas de ser-para-o-início e ser-a-partir-do-nascimento. De modo análogo ao conceito existencial de morte, o ser-a-partir-do-nascimento é modificável nos modos autêntico e inautêntico. Inicialmente, portanto, o nascimento nos é acessível na relação para com o início, no ser-para-o-início. Porém, não se trata de uma relação com um evento ou acontecimento, mas com uma possibilidade. Mais especificamente, o ser-para-o-início é um modo de estar atualmente em possibilidades. O ser-para-o-início, de modo similar ao ser-para-o-fim, denota uma possibilidade de ordem superior. No caso do ser-para-o-fim, temos a possibilidade da impossibilidade. Creio que, pelo argumento da simetria, podemos falar que o ser-para-o-início denota a possibilidade da necessidade.12

Esta expressão significa que as possibilidades que determinam cada existente em particular são momentos de um herança comum, ou seja, originam-se de um lastro comum de outras possibilidades existenciais. Também essas possibilidades formam sistemas integrados, constituindo, por assim dizer, uma fonte ou reservatório de projetos compartilháveis. Ser-para-o-início significa, então, que as possibilidades em que cada um se encontra têm sua origem em um todo de possibilidades no qual já se está colocado. Essa herança não precisa ser concebida apenas como anterior ao nascimento biológico, mas sim como originada de outras pessoas. O essencial é que a herança escapa ao domínio próprio e que estar em possibilidades originadas de uma herança significa o compartilhamento com algo alheio. O ser-para-o-início, portanto, refere-se ao compartilhamento das possibilidades em que cada ser-humano em particular se projeta. As possibilidades existenciais que demandam projeção são um ganho, pois são enviadas a partir de uma origem que ultrapassa a própria projeção.

O ser-para-o-início é a possibilidade da necessidade, pois a herança de possibilidades é necessária. Inicialmente, porque não há possibilidade que não esteja relacionada com um reservatório comum de possibilidades. Além disso, porque é necessário estar em possibilidades, ser determinado por possibilidades. A projeção é a forma em que a possibilidade permanece como possibilidade, mas que sempre pode decair. Porém, mesmo nesse caso, não se está fora de toda a possibilidade, seja uma outra possibilidade existencial ou mesmo a forma impessoal da possibilidade inicial. A assignificatividade (Unbedeutsamkeit) não é anulação da possibilidade. De um lado, temos, portanto, o caráter inatingível da possibilidade, que nunca é uma propriedade de estado. De outro, porém, o seu caráter imperdível, pois, mesmo que não se dê mais a projeção, também não se está em uma determinação por propriedades subsistentes.

Ser-para-o-início caracteriza em segunda ordem a determinação modal da existência humana. O nascimento, entendido como a herança compartilhada de toda a possibilidade, é também objeto de um relacionamento, caracterizado agora como ser-a-partir-do-nascimento. A herança compartilhada chega até o ser-humano; é possível manter uma relação determinada para com ela. Ou seja, estar em possibilidades herdadas é uma forma de correspondência à herança. A herança é um ganho, mas agora no sentido de que é fruto de uma recepção, de uma correspondência. A herança, as possibilidades compartilhadas e enviadas, é necessária porque já sempre estamos em possibilidades recebidas, mas também porque já sempre respondemos a elas, sempre devemos ganhá-las própria ou impropriamente. O ser-a-partir-do-nascimento caracteriza a existência humana no sentido de que o início, a herança compartilhada de nossas possibilidades, retorna, torna-se presente, e como tal exige uma resposta, uma correspondência determinada.

Assim sendo, também o ser-a-partir-do-nascimento é modificável autêntica e inautenticamente. A correspondência autêntica a uma herança retoma as próprias possibilidades a partir de sua origem compartilhada. Retomada ou recordação é o sentido autêntico do ser-a-partir-do-nascimento, em que as possibilidades projetadas são recebidas como originadas em uma herança a que nos submetemos. Aqui o existente encontra o seu destino (Schicksal), isto é, a correspondência apropriativa à fonte das possibilidades nas quais se determina. O modo como uma herança é transmitida é também uma forma de estar em possibilidades, modificável em termos de autenticidade e inautenticidade. Caberia aqui, portanto, a elucidação dos modos de ser-a-partir-do-nascimento, analogamente a como o ser-para-a-morte está modalizado em antecipação decidida e esquecimento fugaz. Destaco apenas que a retomada (Wiederholung) é a forma expressa em que uma herança é transmitida e significa a projeção das próprias possibilidades como uma apropriação a partir de uma fonte original que ultrapassa a própria projeção. O existir de modo natal ou nascencial significa, pois, projetar-se a si mesmo a partir da apropriação determinada de uma herança compartilhada de possibilidades: fazer seu o que também é de outros. Neste sentido, o nascimento está presente na existência, não como um fato passado, mas como um modo de estar em possibilidades. Em termos autênticos, ele pode ser incorporado (einholen) ao existir, proporcionando a ruptura na dispersão existencial e oferecendo, assim, a única identidade cabível para entes que são apenas possibilidade e modo de ser. Heidegger se expressa de modo denso a esse respeito:

A decisão do si-mesmo contra a instabilidade da dispersão é em si mesma a estabilidade estendida, na qual o Dasein, como destino, mantém "incorporados" em sua existência nascimento, morte e seu "entre", de tal maneira que nessa estabilidade o Dasein se fez instantâneo para o histórico-mundial de sua situação respectiva. Na retomada destinamental das possibilidades acontecidas, o Dasein remonta-se "imediatamente", quer dizer, ex-stático-temporalmente, para o já acontecido antes dele. Porém, com este legar-se a si mesmo da herança, o nascimento fica incorporado na existência, mediante o remontar-se desde a possibilidade insuperável da morte, mas tão-somente para que a existência, livre de ilusões, assuma o estar lançado de seu próprio aí. (SZ, pp. 390-1)

Não posso analisar agora esta longa passagem. Destaco apenas que a incorporação do nascimento na existência, o modo autêntico de ser-a-partir-do-nascimento, em conjunto com a antecipação decidida da morte, proporcionam a totalidade possível para a existência.13 O ser total do Dasein é uma função do ser-para-a-morte e do ser-a-partir-do-nascimento. Nela encontramos a consistência e a estabilidade possíveis para os seres humanos, interrompendo a dispersão existencial característica da impessoalidade. Com o ser-para-a-morte, o Dasein retorna a si mesmo, abrindo a possibilidade de uma decisão na alternativa de autenticidade e inautenticidade. Temos um critério que discrimina as possibilidades existenciais em autênticas e não autênticas. Entretanto, a antecipação decidida da morte não oferece quais as possibilidades que serão decididamente projetadas. As possibilidades são recebidas da estrutura do ser-a-partir-do-nascimento (Luckner 1997, p. 159). Ou seja, na medida em que há uma herança necessária, pois sempre se está em possibilidades e a herança já sempre foi transmitida, temos o conjunto de possibilidades que serão submetidas à decisão. O ser-a-partir-do-nascimento garante que sempre seja possível encontrar possibilidades para a projeção.

Assim, na antecipação decidida da morte e na retomada apropriativa que incorpora o nascimento, cada existente particular ganha singularização e individuação. Creio que a estrutura existencial do nascimento mostra que tal singularização não é um isolamento, como em geral se afirma do ser-para-a-morte. Ao contrário, ao assumir decididamente a própria herança, apropriando-se das possibilidades existenciais, cada existente estabelece um vínculo com outros existentes, pois passa a compartilhar uma herança comum de possibilidades. A vinculação a possibilidades não propriamente instituídas significa, portanto, a estabilização existencial por meio da pertinência e da submissão a uma força normativa, por assim dizer, comum a todos que se projetam em tais possibilidades (seja no presente ou no passado). Aqui talvez esteja a indicação para um conceito de reconhecimento a partir da ontologia da existência;14 não por acaso, na seqüência da passagem citada anteriormente aparece a noção de autoridade. Cito:

A decisão constitui a fidelidade da existência para com seu próprio si-mesmo. A fidelidade, enquanto decisão disposta para a angústia, é ao mesmo tempo o possível respeito [Ehrfurcht] diante da única autoridade que um existir livre pode possuir: diante das possibilidades retomáveis da existência. (SZ, p. 391)

Essas observações já permitem uma primeira aproximação do conceito existencial de nascimento, e quero passar agora para a segunda pergunta deste trabalho: por que o nascimento é um outro fim para o Dasein?

 

O nascimento e a finitude da existência

Questionar por que o nascimento é um outro fim para o Dasein é essencial para uma apresentação completa da finitude da existência, que deve poder ser apresentada nos três momentos constitutivos da estrutura do cuidado. Em sentido existencial, a finitude representada pelo ser-para-a-morte diz respeito à negatividade intrínseca da possibilidade existencial. Afirmar que o nascimento é um fim seria contraditório ou paradoxal, mas apenas sob a hipótese de que fosse tomado como o início da vida ou da existência. No entanto, em termos existenciais, o conceito de nascimento não se refere a um acontecimento ou a um evento passado; o início da própria vida, por exemplo. Assim, a finitude do nascimento liga-se ao caráter de possibilidade do ser-a-partir-do-nascimento. Trata-se da negatividade determinante da possibilidade existencial, mas derivada da qualificação de segunda ordem que é a possibilidade da necessidade.

O caráter necessário da herança de possibilidades que constitui o ser-humano mostra a negatividade da existência nascencial nos seguintes aspectos. A herança necessária não é objeto de decisão própria. É possível decidir-se propriamente por possibilidades determinadas, mas não é possível decidir ter ou não uma herança de possibilidades. Além disso, a antecipação da morte abre a liberdade para a decisão ante possibilidades, mas não sobre quais possibilidades exercer a projeção. As possibilidades são transmitidas a partir de outros, e mesmo a partir de decisões que se seguem ao longo da própria existência. As escolhas de outros e nossas próprias escolhas perfazem um lastro de possibilidades sobre o qual nos projetamos, mas que é um limite indisponível. Ainda nesta direção, as possibilidades herdadas também são alheias, no sentido de que são as projeções e decisões feitas por outros e não exclusivamente as nossas próprias escolhas decididas. O projeto é um projeto lançado, projetado a partir de outros projetos. De outro lado, a correspondência determinada à herança que nos circunda não é uma repetição pura e simples de possibilidades alheias, como se fossem propriedades de estado. A herança é um legado de possibilidades existenciais e a sua apropriação é igualmente projetiva. Como possibilidade, o modo de sua transmissão não é outro que uma correspondência apropriativa. No caso do modo inautêntico de ser-a-partir-do-nascimento, o esquecimento, não se trata de um aniquilamento da herança, mas também de uma forma de projetar-se em possibilidades.15

Por fim, a negatividade presente nas possibilidades existenciais pode ser vista num traço complexo que qualifica a herança de possibilidades. Esse traço pode ser expresso, segundo Gadamer,16 por meio de um termo filosófico cuja origem estaria em Schelling. Ou seja, o ser-a-partir-do-nascimento qualifica a existência humana como finita, porque a herança de possibilidades a qual sempre correspondemos de algum modo é "unvordenkbar", imemoriável. O lastro de possibilidades que herdamos não pode ser submetido a um controle e a uma retomada completos, como se pudéssemos nos remontar a uma origem primeira, desprovida de qualquer outra herança, para, a partir de então, governar nossas próprias decisões e correspondências à herança. De outro lado, a correspondência autêntica à herança, a submissão decidida ao destino, é sempre determinada. Como uma apropriação projetiva, ela sempre é o abandono de outras possibilidades; é o esquecimento de possibilidades presentes na herança. Porém, o que faz a herança apropriada no ser-a-partir-do-nascimento ser estruturalmente unvordenkbar é ela estar constituída por possibilidades existenciais. Há um limite no movimento de apropriação recuperadora do passado, pois esse passado não era de propriedades de estado, mas igualmente se tratava de possibilidades existenciais finitas e negativadas. A herança que recebemos é um legado de projetos e possibilidades igualmente finitos, já que igualmente mortais e nascenciais. A correspondência autêntica à herança não é uma recordação, uma rememoração de estados subsistentes que determinariam alguém ou um grupo de pessoas no passado.17 O limite na retomada apropriativa da herança está na própria negatividade da possibilidade existencial, que a faz essencialmente unvordenkbar.

No curso Introdução à filosofia, Heidegger apresentou a finitude da existência em uma direção complementar ao ser-para-a-morte e ao ser-a-partir-do-nascimento. Na medida em que existir em possibilidades é projetar ser e estar aberto para as três direções da transcendência - para si mesmo, para os outros e para entes que não são existentes -, há um compromisso, uma compensação, na efetiva concretização da abertura de ser (GA 27, pp. 333-4). Ou seja, em cada caso há um acento em uma das direções determinantes da transcendência, mas que nunca extingue as outras duas. Há um compromisso, por assim dizer, já que a preponderância em uma das direções da abertura implica a determinação das restantes. Ora, isso significa, então, que a herança de possibilidades existenciais já está sempre em uma determinação de compromisso. A herança é compromissada e a correspondência a ela é também uma atitude diante do compromisso. Creio que este traço da finitude da herança é significativo para a apresentação da finitude do desvelamento de ser, no qual também o caráter nascencial da existência é decisivo.

Assim, o ser-para-o-início e o ser-a-partir-do-nascimento mostram por que o nascimento é um outro fim para o Dasein. Em conjunto com o ser-para-a-morte, perfazem a totalidade finita que é cada existente em particular. Também podemos compreender como Heidegger pode afirmar que a finitude está ao início. Concluindo uma elucidação histórica sobre o significado da expressão "filosofia", ele afirma:

A filosofia não é finita porque nunca chega ao fim. A finitude não está no fim, mas no começo da filosofia, quer dizer, a finitude deve ser acolhida essencialmente no conceito de filosofia. O decisivo não está em que se queira percorrer até o final em sua infinitude os caminhos algumas vezes obtidos, mas sim que sempre e em cada caso se inicie um novo caminho. (GA 27, p. 24)

Aqui seria o momento em que deveríamos passar para os dois níveis finais de elucidação do conceito ontológico-existencial de nascimento, a saber: a finitude na característica nascencial da projeção de ser pela compreensão de ser e a finitude no caráter igualmente nascencial da investigação filosófica, na interpretação fenomenológica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: reis@ccsh.ufsm.br

Recebido em 16 de abril de 2003
Aprovado em 18 de agosto de 2003

 

 

* Para a sua elaboração, este trabalho recebeu o apoio da FAPERGS e do CNPq. As citações das obras de Heidegger são feitas pelas siglas SZ, para Sein und Zeit, e GA seguida do número do texto na Gesamtausgabe. Agradeço os comentários e sugestões dos pareceristas anônimos que avaliaram o presente artigo.
1 Ver, mais recentemente, Blattner (1999), Luckner (1997) e Han (1999).
2 No index de Robert Petkovsek não há outra referência a não a ser a de Ser e tempo, e o mesmo se dá no trabalho de Hildegard Feick. Em GA 27 há uma referência explícita de Heidegger ao problema da ausência de tematização do nascimento na analítica do Dasein, que retomarei a seguir. No presente trabalho, limitei-me a um exame reconstrutivo imante à obra de Heidegger, evitando o trabalho comparativo, em particular com a abordagem de Hannah Arendt.
3 Lucrécio apresenta essa imagem com o objetivo de reforçar o argumento de Epicuro acerca da irracionalidade do medo da morte (citado em Glannon 1994).
4 Ver, por exemplo, GA 20, p. 120, no contexto do conceito de a priori.
5 Recentemente tem sido mostrado que a doutrina husserliana do todo e das partes é central para a compreensão das noções e problemas mais importantes da ontologia fundamental (Æverenget 1996). A exigência de regionalização desformalizada possibilita que, no caso da existência humana, tenhamos a contribuição de Heidegger para essa temática.
6 A ontologia da existência diferencia-se, portanto, da Vorhandenheit, Zuhandenheit, vida e Beständigkeit. Há dificuldades com a questão da unidade desses modos de ser, sobretudo pelo caráter privativo da descrição da existência segundo as outras categorias. Que a existência possa ser descrita, mesmo que inadequadamente, por esses outros sentidos de ser, esta é uma das conseqüências do caráter finito da compreensão de ser, que é explicitado não apenas pela finitude da mortalidade humana, mas também, e sobretudo, pela finitude da sua natalidade.
7 De modo análogo a como Heidegger refere-se à morte, em SZ, pp. 246-7, a partir de uma tal relação entre os dois sentidos de ser, seria possível examinar os conceitos de vida e nascimento assumidos na pesquisa ôntica sobre o nascimento.
8 A análise da autoconsciência como o modo específico da subjetividade ser portadora de suas propriedades aparece em GA 24, pp. 177-8.
9 A possibilidade existencial é finita, o que é apresentado inicialmente pelo conceito existencial de morte. A análise dos conceitos de morte e nascimento, enquanto fins existenciais, permite, portanto, o desenvolvimento da conceitualização da noção existencial de possibilidade.
10 Na noção de possibilidade existencial, encontramos a contribuição especificamente heideggeriana para a análise da intencionalidade. Todo comportamento intencional possui em sua estrutura uma compreensão de ser relativa ao ente visado. Enquanto compreensão, na intencionalidade está, portanto, um projetar-se em possibilidades. Em Os problemas fundamentais da fenomenologia (GA 24), encontramos a análise da intencionalidade, presente implicitamente em Ser e tempo, na tese de que todo comportamento para com os entes pressupõe a compreensão de ser de tais entes. Ver Stapleton 1983.
11 A doutrina da modalidade existencial é complexa, pois a indexicalidade da existência não apenas modifica cada possibilidade existencial, mas também as possibilidades de segunda ordem, que são o nascimento e a morte, tomados como ser-a-partir-do-nascimento e ser-para-a-morte.
12 Portanto, o conceito existencial de nascimento não apenas deve ser apresentado em termos de um modo de estar em possibilidades, mas é também uma das vias para a apresentação completa das modalidades existenciais.
13 Talvez seja apressado afirmar, como o faz Luckner 1997, p. 105, que o nascimento seria um outro paradigma do ser total e que estaria injustificadamente desconsiderado em Ser e tempo. Em conjunto com o ser-para-a-morte, teremos uma abordagem completa do ser-total, que pode ser recuperada das indicações apresentadas.
14 A passagem também é relevante para o problema da Stimmung característica do ser-a-partir-do-nascimento.
15 Creio que o significado corrente que associa nascimento e criação, começo, abertura para o novo, é preservado no modo próprio de ser-a-partir-do-nascimento, pois a retomada de possibilidades herdadas é uma nova projeção.
16 Gadamer 1999 , pp. 64-5. O termo é trazido para elucidar o tom quase paradoxal do projeto de uma hermenêutica da facticidade. Gadamer exemplifica com o fenômeno da pátria, o que também nos faz recordar a acepção local e espacial do termo gebürtig.
17 A finitude do nascimento existencial é, portanto, um componente essencial para uma apresentação do conceito existencial de memória. Ver Motzkin 1996.