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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Condições traumáticas na relação mãe-bebê

 

Traumatic conditions in the mother-child relationship

 

 

Orestes Forlenza Neto

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Membro do Centro Winnicott São Paulo

 

 


RESUMO

Procuramos discutir Trauma, segundo Winnicott, em relação à idéia central de seu pensamento que é pautada pelo processo de amadurecimento, ao qual se agregam idéias como: ambiente facilitador, mãe suficientemente boa, invasão, angústia de aniquilação e reações que promovem defesas de isolamento e proteção ao si-mesmo verdadeiro. Tudo dentro do desenvolvimento emocional primitivo, a partir de um estado não integrado de si-mesmo em direção à integração, personalização e separação eu-não-eu. "O conceito de trauma surge como conseqüência da imaturidade do bebê e do grau de proteção que o ambiente é capaz de fornecer para que a criança não se defronte com angústias inesperadas (inomináveis e de aniquilação). Para que se produza o Trauma são necessários o caráter repetitivo de invasões e um comportamento caótico do ambiente, que impede o estabelecimento de um padrão de expectativas na criança. Por outro lado, certas invasões que cessam e permitem a retomada do "continuar a ser" da criança servem como "bons traumas", que incidem num momento em que os cuidados ambientais já foram internalizados e o ego tem força para viver essas surpresas fora de seu controle onipotente e que leva ao reconhecimento da realidade não-eu.

Palavras-chave: Trauma, Eu, Não-eu, Ambiente, Invasão, Continuidade a ser.


ABSTRACT

We tried to discuss Trauma according to Winnicott, related to the central Idea of his thought, based on the maturational process, to which some ideas are added, such as: facilitating environment, good enough mother, invasion, annihilation anxiety and reactions that promote defenses of isolation on the true self. All this inside the primitive emotional development, beginning from a non-integrated state of self in direction to integration, personalization and me-not me separation. "The concept of trauma arises as a consequence of the baby's immaturity and of the degree of protection that the environment can give, so that the child do not face unexpected distress (nameless and annihilation anxiety)". In order to produce the Trauma, a repetitive character of invasions and a chaotic environmental behavior are needed, preventing the establishment of a pattern of expectations in the child. On the other side, certain invasions which cease and permit the retrieval of the "going on being" of the child act as "good traumas", arising in a moment in which the environmental cares have already been internalized and the ego has power to live these surprises out of its omnipotent control, and that takes to the recognition of the not-me reality.

Keywords: Trauma, Me, Not-me, Environment, Invasion, Going on being.


 

 

Para entendermos o conceito de Trauma em Winnicott, devemos salientar quais elementos vão compor o conjunto que terá como conseqüência o trauma e tentar esclarecer em relação a que processo o trauma atua. Para Winnicott (1965h [1959]) o trauma não é conseqüência de um acontecimento único, mas de uma série de repetições de falhas ambientais (maternas) no atendimento às necessidades do bebê, que incidem em um momento no qual ele não dispõe de estrutura de ego capaz de compreender e representar o que se passa, despertando angústias inomináveis ou de aniquilação que, por sua vez, provocam reações e interrompem o "continuar-a-ser" do bebê. Essas condições levam ao que Masud Khan (1963) denominou Trauma Cumulativo, numa alusão ao fator tempo, no que se refere tanto à duração como ao caráter repetitivo da falha ambiental.

As necessidades do ego imaturo não podem prescindir de um adequado apoio do ego materno; quando não satisfeitas, essas necessidades geram a angústia de aniquilação que é fundamentalmente diferente das frustrações geradas pelas pulsões não satisfeitas. Diz Winnicott:

O Trauma é um fracasso relativo à fase de dependência [...] De início, o trauma implica um colapso na área da confiabilidade no meio ambiente expectável médio, no estágio de dependência absoluta. O resultado de tal colapso mostra-se no fracasso ou relativo fracasso no estabelecimento da estrutura da personalidade e organização do ego [...] O Trauma no sentido mais popular do termo implica uma quebra da fé. (Winnicott 1989d [1965], pp. 145-146)

E, noutro lugar: "O Trauma é um impacto provindo do meio ambiente e da reação do indivíduo a ele, que ocorre anteriormente ao desenvolvimento, por esse indivíduo, de mecanismos que tornem a experiência previsível" (Winnicott 1968c [1967], p. 198).

Ele ainda salienta que o resultado do trauma é um certo grau de distorção do desenvolvimento. Refere também que ocorre algo parecido com o "pânico", contudo, o estudo do pânico não leva a nada, pois ele mesmo é uma defesa para proteger o indivíduo contra novos elementos imprevisíveis (Winnicott 1968c [1967]).

O fator tempo está intimamente ligado ao modo de Winnicott conceber o ser humano. "O ser humano é uma amostra no tempo da natureza humana" (Winnicott 1988, p. 11). O ser humano nasce com uma dotação psicossomática e, na saúde, o desenvolvimento inicial do indivíduo leva à continuidade de existência. O psique-soma inicial prossegue ao longo de uma certa linha de desenvolvimento, contanto que sua continuidade de existência não seja perturbada; em outras palavras, para que haja desenvolvimento saudável do psique-soma inicial, é necessário um ambiente perfeito. Inicialmente, a necessidade é absoluta (Winnicott 1954a [1949]). Para Winnicott, o traumático é o que interrompe o desenvolvimento, que, por sua vez, é a tendência inata fundamental que leva o ser humano desde sua criação até sua morte, em um projeto de crescimento (amadurecimento) pessoal.

A palavra "pessoal" é fundamental em toda sua concepção de ser humano. Só existe um autêntico amadurecimento a partir do núcleo mais íntimo e pessoal, para isso, é necessário que o ambiente facilite o processo maturacional, adaptando-se às necessidades específicas de cada etapa. Em falhas ambientais muito duradouras ou recorrentes, os bebês vão experimentar angústias arcaicas impensáveis ou confusões agudas, que se afiguram como traumas quando paralisam o desenvolvimento. O trauma está relacionado ao que o bebê não tem defesas e as personalidades serão reconstruídas em relação às novas defesas contra o trauma, que são arcaicas, dando origem ao que Winnicott chamou de falso si-mesmo (Winnicott 1970b [1969]). As falhas causam as invasões, que são as angústias inomináveis, que despertam as reações defensivas isolando o cerne do si-mesmo (si-mesmo verdadeiro), interrompendo o fluir da continuidade do ser. Cessada a invasão por correção ambiental, o processo do going-on-being é retomado. Na medida em que as defesas isolam o núcleo do si-mesmo, elas o protegem de ser devassado e sofrer influência direta do ambiente. "Ser estuprado e ser comido por canibais são meras bagatelas se comparadas à violação do núcleo do si-mesmo" (Winnicott 1965j [1963], p. 187). Mas esse isolamento pode, em alguns casos, ser tão intenso que nem o próprio indivíduo poderá entrar novamente em contato com seu si-mesmo verdadeiro.

Do exposto, podemos concluir que o trauma está ligado ao grau de imaturidade do bebê juntamente com o grau de proteção que o ambiente é capaz de fornecer para que as crianças não se defrontem com as angústias inomináveis e inesperadas, totalmente diferentes das angústias já descritas em psicanálise como provenientes da não satisfação dos impulsos do id que geram frustrações. São inomináveis e impensáveis porque ainda não existe um ego capaz de representá-las e pensá-las, e são de aniquilação, pois interrompem o fluir da "continuidade do ser" que configura a existência singular e pessoal. Dessa maneira, podemos concluir que o trauma se dá, em última análise, contra o processo de amadurecimento pessoal de integração, personalização, separação do "eu não-eu", aquisição de identidade pessoal e de se relacionar com os objetos e com suas funções corporais. "O colapso acha-se associado a um fator ambiental que, na época, não pode ser trazido para a área de onipotência do bebê [..] O bebê não conhece qualquer fator externo, bom ou mau, e sofre ameaça de aniquilamento" (Winnicott 1962c [1961], p. 75). Winnicott usa o "colapso" para descrever o impensável estado de coisas subjacentes à organização defensiva em relação às agonias primitivas. A psicose tem seu ponto de origem nos estágios do desenvolvimento individual anteriores ao estabelecimento de um padrão individual de personalidade em conseqüência de distorções ocorridas durante a fase de formação da personalidade (Winnicott 1989vk [1965]). O medo do colapso ou medo da loucura pode se afigurar como medo da incontinência de ações perigosas ou inconvenientes, de gritar em público, de pânico, de sensações de calamidade iminente, de agir de modo irracional e ilógico e medo da morte (que não é a morte, mas uma morte psíquica). O medo do colapso remete ao efeito do trauma precoce e devastador com suas angústias de aniquilação. Essa loucura esteve muito próxima de ser experienciada com as angústias absolutamente intoleráveis, então se estabeleceram novas defesas na ausência de um ego que pudesse representar esses fatos inomináveis. O mais próximo dessa loucura está descrito como ansiedades psicóticas de desintegração, de irrealidade, de falta de relacionamento, falta de coesão psicossomática, despersonalização e queda eterna.

Botella e Botella (2001, p. 166) estudam o tema da irrepresentabilidade do trauma infantil, referindo-se ao negativo do trauma, que, em certos aspectos, é muito parecido com as concepções de Winnicott, ou seja, que o trauma infantil não tem conteúdo, pois não havia ego para representá-lo. Apontam também que a principal característica do trauma é a insuportável sobrecarga de ansiedade e um excesso de excitação junto com a ausência de sentido. Para esses autores, Freud teria se baseado no trabalho póstumo de Ferenczi de 1934 (Reflexões sobre o traumatismo), quando afirma, em Moises e a Religião Monoteísta, que "[...] as reações negativas tendem a uma meta diametralmente oposta... Os traumas esquecidos já não levam à lembrança e nada se repete... estas reações negativas contribuem de maneira considerável à formação do caráter" (Freud 1939a, p. 76).

Ferenczi tentou a técnica ativa de reproduzir e recordar o trauma, mas verificou que apenas causava outro trauma, sem elaborar o original. Botella e Botella (2001) falam de um negativo do trauma como algo que não ocorreu e deveria ter ocorrido. Esses autores procuram se opor a Winnicott, que afirma que o colapso temido já ocorreu no passado, enquanto para eles o ocorrido foi uma negatividade.

Penso que tais autores não perceberam que Winnicott já faz uma correção ao "ocorrido":

Para entender isto, é necessário pensar não em traumas, mas em nada acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido [...] Em outras palavras, o paciente tem que continuar procurando o detalhe passado que ainda não foi experienciado; esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro. (Winnicott 1974, pp. 93 e 91)

Mais, ainda, noutro lugar, ele diz:

Sobre este tema escrevi que se pode tornar como axioma que a loucura que é temida já foi experimentada. Em minha opinião, esta afirmação contém uma verdade importante, contudo, ela não é inteiramente verdadeira. Torna-se necessária uma modificação do enunciado e isto levará ao âmago de minha comunicação... Não é realmente verdadeiro dizer que o paciente está tentando recordar a loucura que houve entorno da qual as defesas se organizaram [...] no lugar original em que estas defesas se organizaram, a loucura não foi experimentada porque, pela natureza do que está sendo debatido, o indivíduo não foi capaz de experienciá-la [...]. (Winnicott 1989vk [1965], p. 124 e 127)

Em meu ponto de vista, devemos levar em consideração dois tipos de "não-experiência". Um relativo ao colapso não experimentado e não ocorrido; o outro seria o cuidado ambiental adequado que não ocorreu. Assim, o temor do colapso condensa os dois fatores não experienciados que são buscados, para vivê-los com nova provisão ambiental adequada que pode ocorrer na psicanálise. Fica sempre a indicação sobre que tipo de registro leva ao medo do colapso. Dentro do pensamento winnicottiano, o registro poderia estar ligado ao desenvolvimento que não existiu e ao congelamento da situação traumática.

Falta muito a ser dito, contudo, gostaria de concluir falando de uma etapa importante do desenvolvimento ligada à desilusão, ou seja, ao momento em que a mãe percebe as condições de seu bebê de se defrontar gradativamente com a realidade da origem exterior dos cuidados e ela irá aos poucos diminuindo a acuidade e precisão em seus cuidados. Essa retirada vai permitir nova etapa do amadurecimento de seu filho, tão importante como a primeira, da ilusão onipotente do bebê. Para que isso aconteça, é preciso que a saúde psíquica da mãe permita esse passo. Tais pequenas e dosadas falhas maternas, podemos denominar Traumas Normais.

 

Referências

Botella, César e Botella, Sàra 2001: "Lo negativo del trauma", in Botella e Botella 2003.        [ Links ]

____ 2003: La figurabilidad psiquica. Buenos Aires, Ed. Amorrortu.        [ Links ]

Freud, Sigmund 1939a: Moisés e o monoteísmo. Standard Edition, vol. XXIII. London, Hogart Press, 1975.        [ Links ]

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____ 1977: Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro, Francisco Alves.        [ Links ]

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____ 1989a: Psycho-analytic explorations. Cambridge, Harvard University Press, 1989.        [ Links ]

____ 1989d [1965]: "The concept of trauma in relation to the development of the individual within the family", in Winnicott 1989a.        [ Links ]

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Recebido em 1º de setembro de 2004
Aprovado em 15 de dezembro de 2004