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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Osmyr Faria Gabby Jr.

Professor Associado - Departamento de Filosofia - Unicamp

Endereço para correspondência

 

 

Richard Thesein Simanke, 2002: Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo/Curitiba, Discurso Editorial/Editora UFPR. ISBN: 85-86590-35-5

A obra de Lacan tem fama de ser difícil, incompreensível, hermética. Seus adeptos, dos mais diferentes matizes, pouco fazem para alterar o quadro. Ao contrário, ao abusarem do uso de termos como "subversão","apropriação", "dialética", "sujeito" - geralmente seguidos de vários adjetivos - e outros, acabam por reforçar essa fama, levando muitos a ignorar ou achar despida de valor a doutrina lacaniana. Assim, chega-se a um quadro similar ao desenhado por Umberto Eco a respeito dos críticos da cultura de massa. No lugar da dicotomia proposta por este, apocalípticos e integrados, podemos sugerir uma outra para descrever os críticos de Lacan: adoradores e difamadores. Apesar de eles se colocarem em campos opostos, acabam por partilhar, sem saber, uma mesma atitude: teimam em ignorar o contexto da obra e substituem a análise de seu conteúdo pela do estilo. Contudo, neste último ponto, divergem: se os primeiros geralmente procuram imitá-lo sem o entender, os segundos apontam o estilo como prova de que se trata de pura verborragia.

Uma das formas de superar essa dicotomia obscurante é realizada de forma exemplar por Richard Simanke em Metapsicologia lacaniana. Ele, antes de adular ou desprezar a obra de Lacan, procura compreendê-la. Dada a sua extensão e o rigor da análise empreendida - são mais de quinhentas páginas divididas em introdução, seis capítulos e uma conclusão -, é natural que ele tenha optado por um período, o compreendido entre a Tese (1932) e o Discurso de Roma (1953), ou seja, entre dois grandes programas de pesquisa propostos por Lacan. Seria impossível realizar tarefa semelhante, com o fôlego da presente, em poucas páginas.

Na introdução, "Do conheci-mento paranóico ao `Retorno a Freud'", Simanke expõe o roteiro do trabalho, capítulo por capítulo, pressupostos e metodologia. Aconselho o futuro leitor a lê-la junto com a conclusão. Dos diversos temas abordados na introdução, escolho um como leitmotiv de meus comentários, a sua hipótese de que, "[…] se há alguma consistência teórica por trás da multiformidade do pensamento de Lacan, ela só pode se sustentar no âmbito de uma concepção metafórica da teoria, que pode, então, justificar o uso bastante livre que o autor faz das referências mais díspares" (p. 13; itálicos do autor). Embora não acredite que tal noção possa ser muito útil, dado o emprego abusivo do termo "metáfora" e dos diferentes sentidos que ele recebe no decorrer da obra de Lacan, Simanke também o utiliza para assinalar um ponto muito importante: a teoria visada por Lacan seria uma teoria da clínica. Pretendo, dadas as limitações de espaço de uma resenha, examinar apenas os três capítulos iniciais.

Ora, a clínica psiquiátrica atual está diante de um dilema que é o mesmo encontrado por Lacan na década de 30, afinal, não é só a psicologia que vive em estado de eterna juventude. Simanke o descreve com muita propriedade no seu capítulo 1, "Dilemas da psiquiatria". O objeto do psiquiatra, a doença mental, é problemático, pois a noção de doença supõe que a doença seja orgânica, portanto, uma doença do corpo. Para poder qualificá-la de mental, torna-se necessário acrescentar que se trata de uma doença do corpo que produz efeitos sobre o mental, ou seja, cujos sintomas são mentais. Mas se isso for verdadeiro, a psiquiatria será absorvida pela medicina. Se, por outro lado, o psiquiatra decidir salvar sua especificidade e acreditar na existência de uma doença mental, não corpórea, ele estará excluído da medicina e cairá nos braços incômodos da psicologia. Por conseguinte, o psiquiatra é obrigado a escolher entre o puro organicismo, que transforma a psiquiatria em medicina geral, e a psicogênese, que o leva para a psicologia; em resumo, ele deve decidir entre ser médico ou psicólogo.

A originalidade de Lacan - um psiquiatra -, na sua Tese, está em buscar uma terceira via, cuja primeira condição reside na necessidade de renovar a psicologia, de torná-la concreta. Antes de tentar entender seu significado, já podemos dizer o que ela não será. Ela não pode estar ancorada nem "[…] em um associacionismo atomista, que não passa de uma paráfrase do organicismo" e nem em uma psicologia filosófica, leia-se numa "[…] transposição das teses fenomenológicas para o território da psicologia clínica" (p. 42). Caso contrário, a terceira via não existirá.

Ainda que Simanke não deixe de insistir, sempre que possível, nas diferenças que a concepção de Lacan tem para com a de Freud, necessárias para que se possa entender corretamente o propalado retorno a Freud - uma vez que a psicanálise também pode ser entendida como uma outra tentativa de encontrar a terceira via -, ele inicia o segundo capítulo, "Paranóia como fenômeno do conhecimento", sem esclarecer o termo "concreto". Recomendo ao leitor que, antes de iniciar sua leitura, leia o terceiro capítulo, parte 2, "Diretrizes politzerianas", da mesma obra, presente entre as páginas 163 e 186. Meu apelo justifica-se pela influência decisiva, assinalada por Simanke com todas as letras, que Critique des fondements de la psychologie de Politzer - na qual se defende a possibilidade de uma psicologia concreta - teve sobre Lacan, no mínimo, quando da elaboração da sua Tese. Simanke assinala com itálico os três tópicos principais da epistemologia de Politzer: "a perspectiva da primeira pessoa, o alcance metodológico da narratividade e a teleologia da ação" (p. 167). Em outras palavras, uma psicologia concreta não descreve os processos psíquicos em terceira pessoa como se fossem independentes do sujeito em que eles se manifestam, não é associacionista, nem recorre a uma causalidade própria dos fenômenos físicos.

Na Tese, Lacan "[…] se propõe a descrever, explicar e justificar a proposição de uma nova entidade psiquiátrica - a paranóia de autopu-nição [sic] -, esboçando, para tanto, uma metodologia de análise que se pretende, não só inédita, como eficaz na orientação diagnóstica e terapêutica, e cuja validade para outras áreas da prática psiquiátrica é insinuada no final" (p. 59). Assim, confirma-se que a terceira via de Lacan consiste de fato em elaborar uma psicologia científica que não seja nem uma "paráfrase do organicismo", nem uma psicologia filosófica. Se olharmos para as diretrizes dadas por Politzer, saberemos de imediato que essa psicologia terá de abrir mão da suposição de que os objetos mentais possam ser pensados como objetos físicos, ou seja, como objetos independentes do sujeito e presentes no espaço. Não é por acaso que a primeira vítima de Politzer, ao examinar a psicanálise de Freud, seja exatamente a noção de inconsciente, por pressupor algo em si e pensado como lugar psíquico. Segundo Politzer, toda a metapsicologia deveria ser abandonada, sendo retidas da psicanálise apenas as noções clínicas que, por serem utilizadas sempre em conexão com a história do sujeito, seriam concretas. Em suma, esse autor defende uma teoria da clínica, concreta, em oposição a uma metapsicologia, abstrata. Por conseguinte, também não é de estranhar que Lacan busque uma teoria da clínica ou, como diz com muita propriedade Simanke, "[…] sua preocupação nunca foi fundar uma clínica - ele já a encontrou muito bem fundada por Freud ou por seus antecessores médicos -, mas sim propor uma teoria da clínica" (p. 85).

Para entender a perspectiva filosófica dessa teoria, basta recordar que a Critique de Politzer está inserida no horizonte da obra de Kant. Um dos efeitos negativos possíveis de uma adesão irrefletida à obra de Lacan é ler Freud como se este fosse um lacaniano incipiente. Talvez por isso alguns acreditem na existência de laços entre Freud e Kant. Na verdade, tais vínculos existem entre Lacan e Kant e eles merecem ser expostos, ainda que de forma sumária e precária.

Kant defende a impossibilidade de se construir a psicologia como ciência. Sem entrar em detalhes, examinemos as suas três noções possíveis de Eu. Entendido como substância, não pode ser objeto de ciência, uma vez que neste caso estaríamos tentando fazer ciência da coisa em si, o que para ele não tem o menor sentido. Se for pensado como algo empírico, formado no tempo, tampouco pode ser transformado em objeto científico, dado que, entre outras coisas, não pode ser intuído como grandeza extensiva, ou seja, o Eu empírico não pode ser pensado como objeto no espaço, uma das condições necessárias para que uma ciência receba o tratamento matemático que lhe é próprio. Finalmente, o Eu transcendental nada mais é que uma condição do conhecimento, inserido em um circuito de relações de implicação recíproca, no qual os outros termos são o objeto e as categorias do entendimento. Kant, na sua época, substitui a psicologia empírica de Wolff pela antropologia, um estudo sobre as ações humanas em determi-nadas condições do espaço e do tempo. Neste sentido, essa possível antro-pologia nos informaria como deter-minados homens se comportam, suas crenças, seus objetivos. Portanto, não é difícil entender que a chamada psicologia concreta de Politzer é, na verdade, um convite para construir uma antropologia no sentido de Kant.

Tendo dado uma idéia do sentido do termo "concreto", podemos abordar o capítulo 2, no qual Simanke examina a Tese de Lacan. Do visto no parágrafo anterior, já podemos antecipar que a psicologia lacaniana não adotará nem a noção substantiva de inconsciente, nem a noção empirista de Eu. Uma das conseqüências de aceitar que a psicologia deva ser uma antropologia é evitar uma armadilha, da qual Freud, por exemplo, não consegue escapar. Se a psicanálise ou a psicologia for uma ciência, o chamado comportamento anormal será entendido como uma patologia a ser corrigida. Embora a ciência descreva o que ocorre, no caso da psicanálise - o mesmo vale para a psiquiatria e para a psicologia - a conduta que foge à norma, portanto algo da natureza do dever ser, é assimilada ao ser. Em outras palavras, a transgressão deixa de ser apenas uma violação de uma regra para ser entendida como violação objetiva, ratificada por uma lei natural. Assim, o histérico seria alguém que se fixou na fase fálica do desenvolvimento normal da libido. O mesmo tipo de raciocínio permite a Freud, em Totem und Tabu, propor uma identidade entre a mente infantil, a neurótica, a selvagem e a do homem primitivo. Quando Lacan sugere que a paranóia seja entendida como um fenômeno de conhecimento, ele está defendendo que a paranóia não pode ser compreendida como fenômeno de deficiência, mas como forma distinta de constituição da realidade. O eu paranóico só pode ser explicado em relação com o mundo paranóico. Um não pode existir sem o outro. O objetivo da ciência seria traçar as regras constitutivas desse modo de ser. A psicologia transforma-se em ciência da personalidade, um belo nome para uma tentativa de esboçar uma ciência da subjetividade. Se essas observações não forem despidas de sentido, elas oferecem uma outra explicação para algo apontado por Simanke: "Tudo se passa como se Lacan visse na antropologia - numa certa versão da antropologia, mais precisamente - um solo comum em que a psiquiatria e a psicanálise pudessem encontrar sua fundamentação. Trata-se, em suma, de conceder um lugar privilegiado na explicação para a influência do meio […]" (p. 99). Defendo que a psicologia de Lacan seja entendida desde o início como uma antropologia no sentido de Kant, mas que, contrária ao ensi-namento do filósofo, ela teria de ser científica. O fato de Lacan expor apenas um único caso é conseqüência direta desse entendimento. As regras de constituição da personalidade paranóica são as mesmas para todos os paranóicos. Elas expressam relações, cujo sentido só pode ser apreendido na história individual de cada paranóico. No lugar de Comte, mencionado por Simanke, proponho que talvez Kant seja mais adequado para compreender os movimentos iniciais da teoria de Lacan.

Há ainda um outro ganho não desprezível: entender como é possível articular explicação e compreensão. Simanke, com razão, assinala que essa discussão tem como pano de fundo o problema mente-corpo (p. 59). Em Kant, a questão sobre como é possível a interação entre uma coisa extensa e uma coisa pensante - ou, em termos, mais ordinários, entre o corpo e a mente -, simplesmente não se coloca. Dado que as coisas em si não são conhecidas, mas apenas as suas representações tal como as formamos pela ação conjunta da intuição e do entendimento, o problema transforma-se em saber como se relacionam as re-presentações do corpo com as repre-sentações da mente. Nessa direção, poderíamos entender que Lacan se esforça por mostrar como os dois tipos de representação são constituídos segundo relações sociais. Dizendo de outro modo, tanto as regras que explicam a conduta, como o sentido que elas tomam em cada indivíduo, têm uma mesma determinação, rompendo, assim, a suposta hete-rogeneidade entre corpo e mente. Seria desejável que se investigasse se realmente também aqui Kant seria mais esclarecedor para as pretensões de Lacan do que Espinosa, men-cionado pelo próprio Lacan, para justificar a adoção de um tipo particular de paralelismo (p. 128).

No capítulo 3, "Conhecimento como fenômeno paranóico", são analisados tópicos da epistemologia lacaniana, baseados em artigos publicados depois da Tese, e a influência exercida por Politzer. Na mesma direção das observações anteriores, concentrarei inicialmente minha atenção na terceira seção, "Um modelo relativista para a psicologia", na qual se analisa "Au-delà du `Principe de realité'", publicado em 1936, por Lacan. Sua importância, em outros fatores, decorre de "[…] concentrar-se numa crítica da psicologia e num elogio do método freudiano" (p. 187). No entanto, já tendo examinado a influência de Politzer, meu interesse recai sobre a pretensão lacaniana de "[…] construir um modelo de cientificidade possível para a psicologia […]" (p. 189). Já vimos que, para Kant, tal pretensão está fadada ao fracasso. Se acrescentarmos as recriminações de Simanke - "Nada na proposição da psicologia como `ciência da primeira pessoa' em Politzer - uma ciência, portanto, relativa aos fatos do eu (je) - autoriza, de fato, uma aproximação, mesmo retórica, com a `relatividade restrita' einsteiniana que ecoa no título citado" (p. 190) -, por que não as endossar e passar para outro ponto? A resposta é simples. Proponho que se examine esse artigo de Lacan tendo em mente Le nouvel esprit scientifique de Bachelard, publicado em 1934. Sua leitura tornará menos arbitrária a aproximação feita com a física relativista de Einstein. Mostrar como Lacan é efetivamente devedor da epistemologia de Bachelard ultrapassa em muito os limites da presente resenha. Contento-me em indicar alguns pontos comuns.

Bachelard, que começa a publicar seus trabalhos epistemológicos em 1928, também se move no horizonte da filosofia kantiana. Para ele, trata-se de renová-la, levando em conta as descobertas da física contemporânea. Sem pretender discuti-lo em detalhe, irei deter-me sobre o último capítulo da obra citada, denominado L'Épistémologie non-cartésienne (Bachelard 1949 [1934]: Le nouvel esprit scientifique. Paris, PUF, pp. 135-79), dada a sua relevância para a compreensão das teses epistemológicas de Lacan. Bachelard defende a necessidade de criar métodos novos para poder vencer antigos hábitos e complicar a experiência. Explicitando: a renovação dos métodos supõe o abandono das formas cartesianas de pensar. Em primeiro lugar, "[…] uma condenação das naturezas simples e absolutas" (p. 141). No lugar dessas, é posta a relação, pois "Longe de ser o ser que ilustra a relação, é a relação que ilumina o ser" (p. 144). Esse apelo ao estudo da relação estaria justificado pela crença de que "o fenômeno é um tecido de relações. Não há natureza simples, substância simples; a substância é uma contextura de atributos" (p. 148, itálico do autor). Assim, tem-se como conseqüência que "[…] não se poderá esboçar o simples senão após um estudo aprofundado do complexo" (p. 148). Em suma, seria "[…] vão perseguir o conhecimento do simples em si, do ser em si, uma vez que são o composto e a relação que suscitam as propriedades, é a atribuição que esclarece o atributo" (p. 161).

As citações acima permitirão adiante esclarecer o sentido da aproximação. Lacan encerrava um pequeno artigo, publicado no primeiro número da revista Minotaure em 1933, com as seguintes palavras: "Pode-se conceber a experiência vivida para-nóica e a concepção de mundo que ela engendra como uma sintaxe original, contribuindo para afirmar, por meio dos vínculos compreensivos que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe nos parece constituir uma introdução indis-pensável à compreensão dos valores simbólicos da arte e, em especial, aos problemas do estilo - a saber, às virtudes de convicção e de comunhão humana que lhe são próprias, e não menos aos paradoxos de sua gênese -, problemas que serão sempre insolúveis para toda antropologia que não se libertar do realismo ingênuo do objeto" ("Le problème du style et la conception psychiatrique des formes paranoiaques de l'expérience", p. 69). Traduzindo, a psicologia como antropologia só pode pretender compreender algo se ela se libertar da crença da realidade do objeto e começar a entendê-lo como conjunto de relações, ou seja, se abandonar o realismo ingênuo.

Em 1935, ao resenhar uma obra de Henry Ey, Hallucinations et delires, (resenha publicada em Évolution psychiatrique, 1935, fascícule nº 1, pp. 87-91), Lacan faz um comentário que se poderia facilmente encontrar nos escritos de Bachelard: "Tocamos aqui um belo exemplo dessa transmutação recíproca entre objeto e pensamento que a história das ciências revela ser idêntica ao próprio progresso do conhecimento" (p. 88). Ou seja, Lacan endossa a crença de que a alteração da forma de pensar acarretaria a alteração do objeto e vice-versa: uma das teses mais destacadas da epistemologia bachelardiana.

O artigo já citado de 1936, "Au-delà du `Principe de realité'", inicia-se por uma crítica ao associacionismo, à concepção de que se deva começar pelo engrama, como um dado primitivo, que seria posteriormente associado a outros, ou como Lacan se expressa: "Segue-se uma construção sobre os fenômenos do conhecimento que tem como propósito reduzir suas atividades superiores a complexos de reações elementares, e reduzida a procurar no controle das atividades superiores os critérios diferenciadores das reações elementares" (Lacan 1966 [1936]: Écrits. Paris, Seuil, pp. 76-7). Ora, como Bachelard, ele igualmente supõe que o simples seja uma degeneração do complexo e não o seu elemento formador.

A física avançou quando renovou seus métodos e substituiu a substância pela relação. A psicanálise é acolhida do lado do método, uma vez que Lacan acredita que a psicanálise, pela introdução do seu método, tenha criado as condições para complicar a experiência, isto é, a psicanálise possibilitou a constituição da experiência analítica (pp. 81-2), permitindo ultrapassar o inevitável realismo ingênuo do senso comum. No caso presente, o abandono da noção de imagem como ilusão e sua adoção como forma constitutiva da subjetividade. Tanto Bachelard como Lacan - para este, no mínimo nos escritos que estamos examinando - criticam a tese de Meyerson de que o cientista deva permanecer confinado ao realismo do senso comum; este é apenas um ponto de partida, que deve ser logo abandonado, pois são as relações que definem a substância e não o contrário. Portanto, Lacan aproxima a física relativista da psicanálise para sugerir que essa nova psicologia, uma verdadeira antropologia, também dissolveria as entidades do senso comum e as reporia por relações. Esse percurso de "Au-delà du `Principe de realité'" é resumido por Simanke com as seguintes palavras: "[…] partindo de premissas politzerianas para a reforma da psi-cologia, Lacan conclui pela necessidade de uma teoria do imaginário, que parte dos conceitos freudianos de narcisismo e identificação, corrigidos por um projeto epistemológico bastante complexo" (Metapsicologia lacaniana, p. 211).

Na parte 4 do capítulo 3, "As necessidades da clínica", Simanke analisa a segunda seção do artigo "La famille", de 1938. Começo pela primeira parte desse verbete escrito por Lacan para manter meu leitmotiv (sugerir como Kant é relevante para compreender as preocupações de Lacan no período estudado por Simanke) e enumerar algumas das implicações de se supor que os complexos, pensados como "fator concreto da psicologia familiar", tenham o papel de "organizadores" no desenvolvimento psíquico (Lacan 2001 [1938]: Autres écrits. Paris, Seuil, pp. 27 e 29). Trata-se, para Lacan, de constituir uma teoria do eu, na qual este não seja entendido nem como substância, nem como objeto natural, mas como circuito de relações derivadas das relações familiares. Dessa maneira, os conceitos de eu e de narcisismo de Freud adquirem uma nova formulação. Nesta, os complexos deixam de designar formações de representações para se tornarem formas de organização da realidade, constituídas no tempo. Certamente, alguém poderia recordar que o Kant de Lacan está de forma incômoda muito próximo do Kant de Piaget. Talvez fosse melhor, para afastar essa proximidade, mencionar Wallon, sem nenhuma dúvida presente na primeira e perdida formulação do estágio do espelho de 1936. De qualquer maneira, está presente em Lacan uma dimensão temporal inequívoca. Tempo que não seria mais um tempo biológico, porém, como não poderia deixar de ser, social. Os complexos assinalados por Lacan são os de desmame, o de intrusão, o mais fundamental no seu ponto de vista, e o de Édipo. As fases da libido de Freud transformam-se, portanto, em algo parecido com os esquemas kantianos, desde que se admita que as formas de apreensão (intuição) e as categorias (entendimento) têm sua fonte nesses mesmos complexos. Todas elas, as imagos, formadas na relação com o outro - seja a mãe, os irmãos ou o pai - são respectivamente as seguintes, as imagos do seio materno, do semelhante e do pai. A conseqüência, como bem assinala Simanke, é "[…] permitir a transição de uma metapsicologia das pulsões a uma antropologia do ima-ginário" (Metapsicologia lacaniana, p. 219).

Essa antropologia, objeto do capítulo 4, "Imagens e complexos", é estudada por meio dos escritos de Lacan situados entre a primeira formulação do estágio do espelho e o artigo de 1949 que o apresenta na sua forma mais madura. Encontramos nesse capítulo uma exposição detalhada e minuciosa da teoria do imaginário de Lacan, suas relações com a filosofia de Espinosa e de Sartre. Simanke procura expor sua insuficiência como explicação da constituição do eu e como se tornou, portanto, imperativo constituir uma concepção do simbólico, sempre tendo em mente que se busca uma teoria da clínica. No capítulo 5, "Antropologias lacanianas", Simanke expõe as antropologias de Lévi-Bruhl, Mauss e Kojève, destacando o último como fonte de inspiração para a teoria do sujeito em Lacan. Finalmente, no último capítulo, "Um inconsciente para o sujeito", ele argumenta de forma convincente como a antropologia de Lévi-Strauss permitiu que Lacan obtivesse um conceito não psicológico ou representativo de inconsciente.

A simples descrição dos tópicos dos três últimos capítulos serve para indicar a seriedade e o imenso ganho que podem ser obtidos com a leitura de Metapsicologia lacaniana. Recomendo ao leitor que tenha fôlego para percorrê-la. Ao final da jornada, verá que seus esforços serão amplamente recompensados. Posso dizer, sem medo de errar, que se trata de uma das melhores obras já escritas sobre Lacan.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: osmyr@uol.com.br

Recebido em 22 de julho de 2003
Aprovado em 1º de fevereiro de 2004