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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Humanismo e anti-humanismo Foucault e as desventuras da dialética

 

Humanism and anti humanism. Foucault and the misadventures of dialectic

 

 

Luiz Damon Santos Moutinho

Professor do Departamento de Filosofia da UFPR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo mostra que a crítica foucaultiana do humanismo é antes de mais nada uma autocrítica tornada possível pela descoberta de Foucault de que há um vínculo estreito entre as ciências humanas e experiências humanas negativas. A radicalização do negativo conduz Foucault à idéia de uma experiência sem sujeito e põe fim ao seu projeto original de tipo fundacionista, bem como a todo solo sobre o qual o humano pudesse se assentar. Para isso, Foucault teve que superar os sortilégios da dialética, verdadeira matriz de todos os humanismos, e seu interminável jogo do "mesmo" e do "outro".

Palavras-chave: Foucault, Humanismo, Loucura, Fenomenologia, Dialética.


ABSTRACT

This article argues that Foucault's criticism of Humanism is before all a self-criticism that became possible by Foucault's discovery of a tight link between Human Sciences and human negatives experiences. The radicalization of negative leads Foucault to a subjectless experience and brings his original foundational project to an end, as well as all surface on which human being can settle. Therefore, Foucault had to overcome dialectic plots, the true origin of all Humanisms, and its endless game of "self" and "other".

Keywords: Foucault, Humanism, Madness, Phenomenology, Dialectics.


 

 

Ao leitor familiarizado com o Foucault dos anos 60, que se notabilizou como um crítico severo do "humanismo", a leitura dos textos publicados em 1954 certamente causa algum espanto. E não é para menos, porque o que se lê nesses primeiros textos é um aparente alinhamento de Foucault aos motes favoritos de sua crítica vindoura. De um lado, em uma longa Introdução à tradução francesa do Traum und Existenz de Binswanger, nós o vemos retomando o projeto de fundação das ciências humanas em uma reflexão de cunho ontológico; de outro, em Doença mental e personalidade, ele adota uma perspectiva aparentemente contraditória com essa, em que o ultrapassamento da psicologia vai desaguar em uma antropologia social de viés ligeiramente marxizante. Em ambos os casos, a psicologia é limitada em nome de uma verdade de nível mais alto - ou, para retomar a expressão de Merleau-Ponty muito bem conhecida por Foucault: não se nega validade à psicologia, mas se mostram seus "direitos relativos". Ora, é esse projeto que, envolvendo o conjunto das ciências humanas, vai receber, pouco tempo depois, o amaldiçoado epíteto de "humanista". Que aconteceu no entretempo? O esforço em mostrar a gênese do "homem", seu nascimento recente e sua morte próxima? Para além dos lugares comuns da crônica filosofante, gostaríamos de mostrar que a crítica do "humanismo" foi longamente preparada por um aprofundamento da noção de negativo: vem desse aprofundamento a possibilidade de pensar uma experiência sem sujeito, até o ponto limite em que a identidade seja rompida e o "humanismo" possa ser enfim superado. E, para isso, foi necessário, antes de tudo, superar os sortilégios da dialética e seus jogos circulares entre o mesmo e o outro, jogos em que a identidade nunca é realmente posta em questão. Esse projeto, dir-se-á, não era exclusivo de Foucault: escapar à dialética era um projeto quase unânime na filosofia francesa de então; no entanto, o que há de específico em Foucault é que o caminho vislumbrado por ele não é o da crítica do negativo, mas, como procuraremos mostrar, o de sua radicalização.

 

I

Comecemos pela longa Introdução ao texto do psiquiatra suíço. Ali, o elogio que merece a Daseinsanalyse de Binswanger retoma o mote fenomenológico clássico da fundação - mote importante para nós porque assinala o lugar pensado por Foucault para o conjunto das ciências humanas. É certo que "o conteúdo significativo do homem", nota Foucault, não se esgota no "conceito redutor de homo natura" (Foucault, 1994a, p. 66). E ele não deixa de observar que esse tema data dos fins do século XIX, quando os adeptos de uma "ciência do homem" faziam oposição a uma psicologia fortemente marcada por métodos próprios às ciências da natureza. No pequeno texto escrito em 57 sobre "A história da psicologia de 1850 a 1950", Foucault faz referência a esse momento. A própria história da psicologia, segundo a sua narrativa, é marcada pela passagem do homo natura à descoberta do sentido. Do postulado inicial de que "a verdade do homem se esgota em seu ser natural" - e de que, por isso mesmo, o método científico "deve passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental" -, a psicologia teria sido levada, segundo Foucault, a renunciar àquele postulado e a "reconhecer na realidade humana outra coisa que um setor da objetividade natural" (Foucault, 1994i,p. 120). Foi o momento em que o "prejuízo de natureza" cedeu lugar à "descoberta do sentido"; a partir de então, muda o projeto da psicologia: ela já não toma o homem "no nível desse denominador comum que o assimila a todo ser vivo, mas em seu próprio nível, nas condutas em que ele se exprime, na consciência em que ele se reconhece, na história pessoal através da qual ele se constituiu" (ibid., p. 125). Abandonando os modelos físico-químicos, fisiológicos e biológicos, a psicologia (com Janet, Dilthey, Jaspers e outros) toma para si o projeto de realizar uma psicologia autenticamente humana.

É nesse contexto que se insere Binswanger. E aqui a reivindicação da especificidade humana no domínio do conhecimento empírico se coloca a tarefa mais larga a que aludimos, tarefa que é a marca de toda psicologia e antropologia de extração fenomenológica: a necessidade de ultrapassar-se em direção a uma esfera a partir da qual o próprio domínio empírico, por sua vez, possa ser fundado. Uma psicologia, uma antropologia, voltada para o domínio da psiquê, para os modos de ser do homem, deve então ser situada em um contexto mais amplo. No caso de Binswanger, o contexto, apontado por Foucault, é o de uma "reflexão ontológica [que tenha] por tema maior a presença ao ser, a existência, o Dasein" (Foucault, 1994a, p. 66). Essa última, a analítica da existência, deve se voltar para o fundamento, para as condições de possibilidade do Menschsein, objeto da antropologia,e esse, por sua vez, é conteúdo concreto do que a ontologia analisa como o Dasein. Para além das modalidades do Menschsein, que aparecem portanto como formas constituídas, é preciso, sempre segundo o relato que faz Foucault do pensamento de Binswanger, ir à "dimensão vertical", ao ponto a partir do qual a própria existência se faz "nesta forma de presença absolutamente originária em que se define o Dasein" (ibid.,p. 109). Para além, portanto, da reivindicação de uma ciência do homem que dê conta da especificidade do seu domínio, Foucault retoma ainda, a partir de Binswanger, o mote clássico da passagem do empírico para o transcendental; nesse caso, tratar-se-á da passagem do "nível antropológico da reflexão que analisa o homem enquanto homem e no interior do mundo humano" ao nível em que se acede finalmente a uma "reflexão ontológica que concerne o modo de ser da existência enquanto presença no mundo". Essa passagem da antropologia à ontologia vai requerer um ajuste de método, mas ela está inteiramente autorizada na medida em que "é a própria existência que [...] indica seu fundamento ontológico" (ibid.,p. 109). Eis aqui, enfim, um tema típico de toda antropologia ou psicologia que se coloca no horizonte da tradição fenomenológica - temas tão comuns naqueles anos 50. Como se sabe, é isso que vai mudar radicalmente no itinerário intelectual de Foucault.

Mas o "alinhamento" de Foucault à fenomenologia vai além. Um outro tema típico retomado por ele é o das relações entre signo e significado que, neste texto de 54, orienta a comparação entre Husserl e Freud - em favor do primeiro, certamente. Esse tema é importante para nós porque evidencia o conceito de experiência que vai se tramando e que Foucault se esforçará por superar logo depois; afinal, é a experiência fenomenologicamente decodificada que vai exigir a instância transcendental. Segundo o Foucault de então, Freud é incapaz de uma "apreensão compreensiva do sentido" do sonho, e a razão disso é que o seu modelo está condenado a ver entre a imagem onírica e o sentido apenas um "laço possível, eventual, contingente" (1994a,p. 71; grifo meu em "compreensiva"). A insuficiência da hermenêutica de Freud reside, para o Foucault de 54, no fato de que entre o sentido e a imagem, Freud não pode apontar mais que uma relação externa, inteiramente construída. Ele é incapaz de reconstituir "o ato expressivo [...] em sua necessidade", ele não pode apreender o sentido "se efetuando ele mesmo em uma evidência completa" (ibid.,pp. 70-71). No modelo freudiano, a imagem, porque resta ligada externamente ao sentido do sonho, tanto o indica quanto o trai. O sonho será a realização do desejo, mas na medida em que, acredita Foucault, ele "é sonho e não desejo realizado", ele é atravessado pelos "contradesejos" que se opõem ao desejo: Freud não vê no fogo onírico, por exemplo, simplesmente a "ardente satisfação do desejo sexual"; ele ajunta a essa forma que tomou o desejo tudo aquilo que o recusa e busca "apagá-lo", os contradesejos; daí precisamente porque o desejo "toma forma na substância sutil do fogo" (ibid.,pp. 69-70). O sonho é então esse "misto funcional", condenado a ser atravessado por desejos que se contradizem: eis aí o modelo de Freud; ele não reconhece na imagem senão essa contradição, ele a esgota nessa "multiplicidade do sentido". Mas a "estrutura morfológica e sintática" da imagem, o "espaço no qual ela se desdobra, seu ritmo de desenvolvimento temporal", o "mundo que ela traz consigo", nada disso conta - a imagem é apenas "alusão ao sentido" (ibid.,p. 70). Freud não chega a reconhecer ao mundo imaginário suas leis próprias, suas estruturas específicas, sua espessura - enfim, tudo aquilo que, para um fenomenólogo, torna possível uma descrição da experiência da imagem. A linguagem do sonho só interessa a Freud, nota Foucault, em sua "função semântica". Ora, o que se esconde por trás dessa crítica, da exigência de ver na imagem "um pouco mais do que a realização imediata do sentido", de que o mundo imaginário tem suas leis próprias, de que, enfim, Freud não pode apreender o sentido "se efetuando", é a clássica objeção à exterioridade, visível na hermenêutica de Freud, entre a imagem e o sentido: o imaginário em Freud, diz Foucault em metáfora reveladora, é habitado pelo Desejo como, na metafísica clássica, o mundo da física é habitado pelo querer e pelo entendimento divinos; esse modelo nos condena a uma "teologia das significações", arremata Foucault (ibid.,p. 70). Daí um curioso comentário, que vai ser retomado quase literalmente, mas em sentido inverso, alguns anos depois: Freud dá ao sonho o estatuto da fala, mas não o da linguagem; ele faz a fala apagar-se na significação que traz à luz, como se ela não existisse senão pela significação, ilusão de quem se aliena no telos de um gesto, no objeto da manifestação, e não atenta para o gesto, para as manifestações, para a linguagem - atenção que, segundo o padrão fenomenológico, requer uma "conversão do olhar", uma redução. Ora, mas a fala - é isso que Foucault quer lembrar nessa crítica do "objetivismo" freudiano - apóia-se numa linguagem que traz consigo "suas regras sintáticas e a solidez de suas figuras morfológicas" (ibid.,p. 70), ela implica um mundo de expressão que a precede e que lhe permite dizer o que ela quer dizer segundo sua estrutura de linguagem. Freud, no entanto, não chega até aí: assim como um homem perdido numa ilha reconstitui, pelas cinzas ainda aquecidas, a presença de outros homens na mesma ilha, o psicanalista simplesmente reconstrói o sentido a partir da imagem. O método da interpretação onírica é como o do "arqueólogo" para as línguas perdidas (o exemplo do arqueólogo é de Foucault): ele busca o sentido na ignorância da gramática; ainda que esse método possa conduzir a uma "probabilidade crescente", ele não faz apagar a "incerteza", do mesmo modo que a inferência feita pelo homem perdido na ilha jamais pode lhe assegurar a presença recente de outros homens na mesma ilha. O método freudiano é apenas um método de "decriptação de códigos secretos" (1994a,p. 71).

Foucault não ignora então a figura do recalque, que faz o sentido se exprimir na imagem de maneira alusiva, nem o caráter primitivamente imaginário da satisfação do desejo. Ele reconhece que essa perspectiva reata com a idéia de um "laço necessário e original entre a imagem e o sentido" (ibid.,p. 72). Mas, evidentemente, isso não pode bastar a um fenomenólogo: falta ali uma apreensão do ato expressivo ele mesmo, "em sua necessidade", única via pela qual sentido e imagem podem se vincular intimamente. Resiste então, em Freud, a impossibilidade de um acordo entre as duas ordens, que nem os seus sucessores - Melanie Klein e Lacan são citados por Foucault - conseguiram resolver. Por mais que se juntem índices objetivos (aqueles que "marcam na imagem estruturas implícitas, eventos anteriores, experiências permanecidas silenciosas; as semelhanças morfológicas, as analogias dinâmicas, as identidades de sílabas e todo tipo de jogos sobre as palavras" (ibid.,p. 74)), multiplicáveis ao infinito, eles ainda não se confundem com a significação; o sentido mesmo não se confunde com esses índices; a partir deles, apenas reconstituímos o sentido originário ou conteúdo latente, e por isso não vamos além de uma simples indução. A psicanálise, diz Foucault em fórmula típica, não chega a "fazer falar as imagens" (ibid.,p. 73).

Ora, ainda uma vez, essa crítica de Foucault é pertinente no horizonte segundo o qual o sentido pode ser apreendido em sua efetuação - no horizonte da fenomenologia, notadamente da primeira Investigação lógica de Husserl, quando ele estabelece a distinção entre índice e significação. Essa distinção é retomada por Foucault para fazer face a Freud. O índice, como se sabe, tem apenas uma relação externa com o sentido, é simples marca. O caçador vê em marcas na neve as pegadas frescas de uma lebre, mas essa estrutura de associação remonta à lebre real; do mesmo modo, a cólera não será jamais compreensível somente por suas "pegadas", isto é, ela não será jamais compreensível por uma mera apreensão significativa das palavras empregadas; a compreensão requer ainda a melodia da voz, a voz trêmula, os silêncios, os lapsos; a razão disso é que a cólera não é indicada por esses signos, ela se realiza neles. A partilha husserliana é distinta daquela da psicanálise porque separa a sintomatologia daquilo que releva da semântica: essa é a boa partilha; a psicanálise, por sua vez, as confunde porque "define o sentido pelo recorte dos signos objetivos e as coincidências da decifração" (1994a,p. 78). Daí o "laço artificial" entre sentido e expressão, impossível de ser ultrapassado. Em Husserl, ao contrário, o tema da compreensão já nos lança numa retomada, "no modo da interioridade" (ibid.,p. 79), do ato expressivo; o símbolo husserliano nos restitui a imanência do sentido à imagem porque a significação só vai aparecer "no contexto do ato expressivo que a funda" (ibid.,p. 78): é "de dentro" que os conteúdos significativos se vinculam à imagem, é a expressão mesma que nela se objetiva. A "insuficiência" da teoria freudiana do símbolo vem daqui: de que o símbolo, no limite, não será mais do que um ponto de contato entre a pulsão inconsciente e a consciência perceptiva, o ponto aonde vêm se reunir "a significação límpida e o material da imagem" (ibid.,p. 72), e por isso jamais haverá o vínculo interno entre as duas ordens: há entre elas uma exterioridade insuperável, e porque a supera a fenomenologia chega ao ponto de "fazer falar as imagens" (ibid.,p. 79). Freud deu ao sonho o estatuto da fala, aplicou sobre ele a lógica do discurso, não o de uma autêntica linguagem. É por isso - eis a surpreendente conclusão de Foucault - que ele "psicologizou o sonho"1 (ibid.,p. 80).

Mas é verdade também que nesse texto de 54 Foucault crê ser necessário ir além de Husserl, e o que o exige é a necessidade de dar objetividade à significação, pois, recolocado em seu fundamento expressivo, "o ato de significação é cortado de toda forma de indicação objetiva; nenhum contexto exterior permite restituí-lo em sua verdade; o tempo e o espaço que ele traz consigo formam apenas um sulco que logo desaparece" (ibid.,p. 78). Esse problema é aquele de toda psicologia ou antropologia que pretende encontrar seus fundamentos em uma "fenomenologia pura". O que cria dificuldades para essa fundamentação é justamente o fato de que a compreensão seja uma retomada do ato expressivo apenas "no modo da interioridade". Aquele que pretende fundar uma psicologia deve ir além, em direção à alteridade; afinal, como fundar a relação médico-paciente, como compreender uma consciência louca? Em Husserl, outrem só é implicado "de uma maneira ideal no horizonte do ato expressivo"; Husserl não vai ao ponto de fundar um "encontro real" (ibid.,p. 78). Daí porque o tema da compreensão requer um passo adiante de Husserl, e esse passo é aquele em direção a uma teoria da intersubjetividade. É ele que se espera de toda "psicologia da significação" e de toda "psicopatologia", na medida mesma em que o problema da compreensão torna-se aqui "central". Para além de uma "mística da comunicação" - que, segundo Foucault, foi o ponto a que chegou Jaspers ao tentar justificar a relação médico-paciente - é preciso fundar uma teoria válida da comunicação. É isso que promete uma análise existencial: incorporar não apenas o "fundamento expressivo de toda significação", mas também reintegrar "o momento da indicação objetiva" no qual tinha se detido a análise freudiana (ibid.,p. 79). Em sentido novo, trata-se de unir o momento "subjetivo" e o momento "objetivo", e assim fundar uma hermenêutica que vá além da significação husserliana e dos "procedimentos de escritura da psicanálise" (ibid.,p. 79). São essas possibilidades, imprescindíveis ao projeto de fundação das ciências humanas, que Foucault julga encontrar em Binswanger. E é delas que ele vai procurar se desembaraçar logo depois.

 

II

Ainda em 54, há uma outra tentativa de fundação das ciências humanas, em Doença mental e personalidade. É verdade que a publicação desse texto no curso do mesmo ano que a Introdução causa um certo mal-estar. É que ali, sem grande dificuldade, Foucault desbanca por completo o modelo da Daseinsanalyse: na passagem da primeira à segunda parte da obra, o modelo fenomenológico, até então adotado sem restrições, cede lugar a um outro, vagamente marxizante. Antes de ver nisso um ecletismo pouco rigoroso, vale a pena investigar o que exatamente Foucault aponta como os limites da fenomenologia, de quais problemas ela não pode dar conta e o que, afinal, permite superá-los. Essa superação ainda não é aquela que prepara a arqueologia vindoura, mas já assinala por quais caminhos Foucault seguirá.

O tema agora não é mais o sonho, mas a doença mental: é esse o tema que vai colocar dificuldades ao modelo fenomenológico. Sob quais condições, pergunta-se Foucault, pode-se falar em doença mental? (1954, p. 1). Toda a primeira parte da obra é dedicada às "dimensões psicológicas da doença". Ela tem um estatuto diferenciado no conjunto da obra de Foucault, que, como se sabe, se recusará a confundir sua arqueologia com uma história dos conceitos e da evolução de uma ciência. Pois, nesse texto de 54, a discussão das diferentes perspectivas em relação à doença mental é ao mesmo tempo a narrativa da história da psicologia e de sua evolução. O modelo dessa história é aquele em operação no texto sobre Binswanger: Foucault discute as diferentes versões da patologia mental tomando por base o modelo da passagem do homo natura à descoberta do sentido. E esse modelo é ainda fenomenológico em sentido mais profundo: a narrativa de três momentos da história da psicologia, da psicologia evolucionista à Daseinsanalyse, passando pela psicanálise, coincide sem dúvida com o que Foucault parece tomar como um rigor crescente; no entanto, não se trata de concluir daí um desmentido de um momento pelo outro: Foucault não se coloca jamais no nível em que se coloca a psicologia para dali tecer objeções e oferecer uma nova alternativa teórica. Trata-se antes, para ele, de mostrar que cada um desses momentos goza de seu direito relativo, no sentido que era já o de Merleau-Ponty em sua crítica dos objetivismos: esses se harmonizam diante de uma razão alargada que, menos que desmenti-los, apenas lhes concede um direito relativo. É certo que essa relatividade implica, em parte, um desmentido, mas apenas na medida precisa em que cada um deles pretende usurpar um território que não lhe pertence de direito. Assim, por exemplo, não é a psicologia que é falsa, mas o psicologismo: a psicologia, como figura do objetivismo, não pode, por princípio, abrir o território ao qual ela, e todas as objetividades, devem sua gênese; ela teria que operar uma redução que, justamente, a ultrapassa por princípio. Daí porque a idéia de relatividade. Ora, é exatamente isso que faz Foucault na primeira parte de Doença mental e personalidade, salvo que ali, curiosamente, o próprio modelo da fenomenologia é agora parte, ele próprio está incluído no que Foucault denomina as "dimensões psicológicas da doença". Se, na Introdução, a Daseinsanalyse representava o ultrapassamento de toda psicologia e antropologia, tomadas então como figuras de conhecimento empírico, agora a própria Daseinsanalyse deve ser ultrapassada, e tanto mais fortemente porque ela, mais que toda outra, pretende se alçar aos fundamentos ontológicos da ciência empírica. Foucault ainda conserva, em Doença mental e personalidade, o princípio de que é necessário ir além da psicologia, mas agora ele tem uma nova versão de quais são os fundamentos da psicologia; estes têm então uma face insuspeitada pelos fenomenólogos, que a fenomenologia, por princípio, não pode alcançar; e, inversamente, aquilo que o fenomenólogo, por sua vez, julga ser os fundamentos não será mais que uma simples "dimensão psicológica" - ou "antropológica", como Foucault dirá mais tarde. Vejamos brevemente quais são essas "dimensões psicológicas" e porque é necessário ir além delas - o que inclui agora ir além do modelo fenomenológico.

O capítulo dedicado à "doença e a evolução" mostra como a doença, na perspectiva naturalista representada pelo evolucionismo, é tomada apenas como um processo que desfaz a trama da evolução; a doença caminha para trás, descendo a corrente da história natural do organismo são: em sua forma benigna, ela ataca as estruturas mais recentes (e portanto mais evoluídas) até atingir, no seu ponto supremo de gravidade, as formas mais arcaicas. A regressão patológica é como uma operação de subtração, uma volta na contracorrente, uma involução: eis aí a lógica do absurdo patológico. Daí o mito da identidade entre o doente, o primitivo e a criança (Foucault, 1954, p. 30). É verdade, nota Foucault, que do interior do evolucionismo houve uma tentativa de alargar essa lógica simples, de tomar a desintegração como mais que simplesmente "a inversão exata da integração": "seria absurdo dizer que hemiplegia é um retorno ao estágio primitivo da aprendizagem da locomoção" (ibid.,p. 31). Nesse caso, a forma patológica não seria simplesmente uma regressão a uma forma outrora originária, mas implicaria uma "estrutura original"; portanto, não seria um fenômeno de déficit, mas teria positividade própria - o que, finalmente, levaria o evolucionismo a destacar a "tendência criadora do organismo". Mas, então, reconhecer que um esquizofrênico estrutura seu universo já seria dar um passo além do evolucionismo, em que a doença será sempre, e apenas, uma virtualidade do desenvolvimento humano. Falta introduzir, assegura Foucault, a especificidade da história pessoal do doente: "que tal pessoa seja doente, e seja doente nesse momento, dessa doença, que suas obsessões tenham tal tema, que seu delírio comporte tais reivindicações [...] a noção abstrata de regressão não pode dar conta" (ibid.,p. 34). O tema da regressão permanece válido do ponto de vista descritivo - isso sempre segundo a avaliação de Foucault -, mas esse ponto de vista deve ser complementado por um outro, em que a patologia, de simples virtualidade, apareça como uma "necessidade". Trata-se aqui da passagem do abstrato ao concreto, de um modelo em que a doença é simples virtualidade a um outro, que vai até a situação concreta, à história pessoal do doente. É necessário complementar a "dimensão evolutiva, virtual e estrutural da doença pela análise dessa dimensão que a torna necessária, significativa e histórica" (ibid.,p. 35). Eis aqui por onde o sentido é introduzido - e, com ele, Freud.

É verdade que Freud já aparecia no capítulo anterior, mas, de evolucionista de primeira hora, ele soube "aceder à dimensão histórica do psiquismo humano" (ibid.,p. 37). Enquanto a evolução integra passado e presente em uma unidade sem conflito, a história psicológica faz vir à tona a tensão, a contradição. Do anterior ao posterior, já não há simples acúmulo, pois é o presente que se destaca do passado e a ele confere sentido (ibid.,p. 37). Eis aí a passagem do Freud dos Três ensaios, em que a noção de libido traça o horizonte evolucionista, às Cinco psicanálises. Que será então a patologia? Ainda uma regressão, mas agora não mais como uma "queda natural no passado", um "processo invertido" da natureza, mas uma "fuga intencional para fora do presente" (ibid.,p. 40), uma conseqüência da história. Essa "fuga intencional do presente" é que dá ao passado a marca não de um solo originário, mas a de um passado "factício e imaginário", a contraface da irrealização do presente. O doente se defende de seu presente irrealizando-o. Há aqui a preeminência da noção de "defesa", que vai de par com a idéia de "fuga intencional". E, abaixo delas, a noção de "conflito": o conflito aparece como aquele que tece "a trama de toda vida psicológica", marcada então por uma contradição imanente - contradição que a patologia apenas aprofunda, encerrando-se nela. Ora, o problema que Foucault coloca a Freud diz respeito à matriz desse conflito. E a perspectiva adotada por ele é inteiramente fenomenológica, na medida em que, face à natureza, ele opõe o sentido: Foucault rejeita os "instintos de vida e de morte", marcas do biologismo freudiano - nomes, segundo ele, com os quais apenas se batiza o problema, sem resolvê-lo -, em proveito de uma "angústia" que é a raiz mesma do conflito, a expressão da ambivalência, "a experiência de um mesmo desejo de vida e de morte, de amor e de ódio" (ibid.,p. 49). A angústia é tomada então como a condição de possibilidade da patologia, como uma causa primeira - a angústia não como um fato da história individual, e portanto não como um fato empírico, mas como o "princípio e fundamento" da história de um indivíduo; finalmente, o "a priori da existência" (ibid.,p. 50). Eis aqui a saída para o "biologismo" no qual Freud, não obstante ter introduzido o significado em psicologia, novamente incidiu: a Daseinsanalyse de Binswanger. Ora, mas essa ultrapassagem nos leva de fato à instância de determinação, aos fundamentos buscados por Foucault? A angústia não remete, por sua vez, a uma contradição de outra natureza?

A angústia é o "elemento mórbido último, e como o coração da doença" (ibid.,p. 53). Em retrospecto, permite compreender a história e a natureza do homem, pois é ela que transforma a evolução psicológica em história individual, já que ela implica uma integração tensa entre passado e presente. E mais que isso: porque é ela que, finalmente, para além dos "instintos" de que fala a psicanálise, nos abre a dimensão do sentido, ela requer um método específico, distinto daquele próprio às ciências naturais - que toma o doente como um objeto natural - ou daquele próprio da história biográfica - que se atém ao "encadeamento", ao "determinismo da série"; em suma, como ensina a fenomenologia, esses métodos "explicam", mas não "compreendem". Compreender quer dizer: colocar-se "no interior da consciência mórbida, [...] ver o mundo patológico com os olhos do próprio doente" (ibid.,p. 54). O mote é tanto mais tipicamente fenomenológico porque o que se critica ali é menos o "naturalismo" do que o "objetivismo", de que aquele é simples modalidade. Daí porque Foucault ressalte que a verdade que a compreensão deve revelar não é da ordem da objetividade, mas da intersubjetividade (ibid.,p. 54). Quer dizer: a compreensão deve estender suas fronteiras até o universo mórbido, e essa compreensão só se dá no horizonte da intersubjetividade, em que normal e patológico se compreendem um pelo outro. É certo que esse método, ao supor um fundo comum em que o sujeito normal possa alcançar o sujeito doente, supõe também, na mesma medida, que esse último seja ele próprio aberto ao sujeito normal: o universo mórbido, diz Foucault, "não é jamais um absoluto em que se aboliriam todas as referências ao normal" (ibid.,p. 60). Por isso, a compreensão intersubjetiva é possível. Era, por sua vez, o que notava Merleau-Ponty quando lembrava o caso de uma demente senil que se queixava de encontrar pó em sua cama; quando os médicos ali colocaram, de fato, pó-de-arroz, ela reagiu: "Que é isso? Esse pó é úmido, o outro é seco" (Merleau-Ponty, 1995, p. 385). Na mesma direção, Foucault nota que é falso o mito da loucura como doença que se ignora; o médico não é aquele que, do lado da saúde, detém todo o saber sobre a doença, e o doente não é aquele que tudo ignora: ele está "ancorado" em sua doença, ele a percebe "do interior", e por isso ele tem de sua doença uma consciência distinta da do médico: não tem dela uma consciência objetiva, mas também não uma inconsciência absoluta, e isso só é possível porque ele estabelece suas distâncias com o sujeito normal, que, portanto, deve ser alcançado por ele; o mundo mórbido não suprime toda referência ao normal - o que permitirá, por sua vez, que esse possa alcançá-lo. Daí porque a compreensão intersubjetiva pode restituir a experiência que o doente tem de sua doença ("análise noética) e o universo mórbido para o qual ele se abre ("análise noemática").

Ora, é exatamente aqui, nesse ponto preciso, que Foucault vai notar a necessidade de ir além da Daseinsanalyse: a doença mental remete a fundamentos, a "raízes" que nenhuma fenomenologia pode alcançar. É a análise noemática que revela esse calcanhar de Aquiles da fenomenologia, uma especificidade do mundo mórbido que lhe escapa. E Foucault já comentava essa especificidade no texto sobre Binswanger, no momento em que se detinha no caso Ellen West, embora ali ainda não houvesse uma contestação da fenomenologia. A "análise noemática" do mundo mórbido de Ellen West o revela "inautêntico", eis o que afirmava Foucault na Introdução, porque, de um lado, "o espaço sólido do movimento real, o espaço em que se realiza pouco a pouco a progressão do devir, este espaço desapareceu. Ele se absorveu inteiramente em seus próprios limites" (Foucault, 1994a, p. 105) e porque, de outro lado, também o tempo "busca se fechar sobre si mesmo". E a temporalidade é justamente uma dessas estruturas segundo as quais melhor se pode "partilhar as formas autênticas e inautênticas da existência" (ibid.,p. 108): em Ellen West, o porvir não é assumido "como desvelamento de sua plenitude e antecipação da morte", tal como deve fazê-lo uma existência autêntica, segundo o modelo da Daseinsanalyse.

A morte, Foucault acrescenta, ela já a experimenta inscrita nesse corpo que envelhece e que pesa cada dia com um peso renovado; a morte é para ela o peso atual da carne, perfazendo uma só e mesma coisa com a presença de seu corpo [...]. Ela recusa todo alimento do mesmo modo que recusa seu passado [...] por essa presentificação da morte, nas formas da ameaça iminente, o porvir [...] não é mais aquilo por meio do qual a existência se antecipa sobre sua morte e assume ao mesmo tempo sua solidão e sua facticidade, mas, ao contrário, aquilo por meio do qual a existência se arranca a tudo o que a funda como existência finita. Essa temporalização da existência em Ellen West é a da inautenticidade. (Ibid.,p. 108)

A inautenticidade é aqui o signo de uma transcendência que não se assume enquanto tal, que, ao contrário, se assume na forma da "descontinuidade do instante", da "ruptura de si consigo". Daí porque o mundo mórbido implica uma ruptura entre o objetivo e o subjetivo, ruptura que vai exigir uma análise para além de toda fenomenologia: na patologia mental, a existência "se deixa absorver na história interior de seu delírio", e a contrapartida disso é que "sua duração se esgota inteiramente no devir das coisas": a existência, ao voltar-se para seu próprio mundo, simplesmente "se abandona a esse determinismo objetivo em que se aliena totalmente sua liberdade originária" (ibid.,pp. 108-9). Para Foucault, a análise de Binswanger traz à luz justamente esse "ponto decisivo da partilha entre as imagens em que [a existência] se aliena em uma subjetividade patológica e a expressão em que ela se realiza em uma história objetiva"2 (ibid.,p. 119). O mundo mórbido realiza aquilo que Doença mental e personalidade, por sua vez,caracteriza como uma "unidade contraditória": o "retiro na pior das subjetividades e queda na pior das objetividades" (Foucault, 1954, p. 69). A existência "se deixa absorver", se abandona, e assim "se inscreve no determinismo da doença" - o que permite que o psiquiatra dê por justificado o seu diagnóstico de que a doença é "processo objetivo" e o doente, uma "coisa inerte" (Foucault, 1994a, p. 109). Assim, o mundo mórbido se distingue do onírico na medida em que este representa a superação da partilha entre o subjetivo e o objetivo, e, portanto, a superação da particularidade, enquanto o mundo mórbido apenas a aprofunda, para além da separação imposta pelos sentidos, até o ponto limite da alienação. A morbidez é marcada por um "abandono ao mundo", por um "abandono aos eventos": "neste tempo fragmentado e sem porvir", diz Foucault em Doença mental e personalidade, "neste espaço sem coerência, vê-se a marca de um desabamento que entrega o sujeito ao mundo como a um destino exterior. O processo patológico é, como diz Binswanger, uma `Verweltlichung'" (Foucault, 1954, p. 69). Ora, é essa cisão, essa ruptura entre subjetivo e objetivo que vai exigir um passo além da fenomenologia e revelar novos fundamentos da patologia mental.

 

III

Por que, afinal, o paradoxo da patologia mental constrange a análise a seguir adiante? Que tipo de questão, no final das contas, se coloca Foucault que a Daseinsanalyse já não pode responder? Isso já era indicado desde o primeiro capítulo de Doença mental e personalidade, no momento em que ele mostrava a especificidade da patologia mental em relação à patologia orgânica. Pouco importa, dizia ele, qual a matriz da psicologia: se da heterogeneidade (aquela que estabelece uma ruptura entre normal e patológico), se fenomenológica (aquela que busca apreender a inteligibilidade de qualquer conduta, mesmo demente, antes de qualquer distinção entre normal e patológico) (Foucault, 1954, p. 1): nenhuma das psicologias dá conta das raízes da patologia mental, e por isso é necessário ultrapassar, de modo geral, a "dimensão psicológica". Que há de específico na patologia mental? Das três razões apontadas por Foucault, a terceira parece ser a mais importante porque ela vai diretamente à relação entre mundo mórbido e mundo comum, quer dizer, àquela ruptura apontada acima. Vale notar que essas razões são levantadas contra o modelo de psicologia fenomenológica: mais que testemunhar maior rigor da fenomenologia, isso testemunha qual adversário Foucault quer ultrapassar. Ainda que a patologia orgânica, diz ele, não possa ser separada dos métodos de diagnóstico, da prática médica, ainda que a correlação seja ali estreita, é ainda possível "isolar" o sujeito doente "em sua originalidade mórbida", o que não é mais possível quando se trata de patologia mental: aqui, o doente não pode ser isolado do seu "meio":

(...) a situação de internamento e de tutela imposta ao alienado desde o fim do século XVIII, sua total dependência em relação à decisão médica contribuíram, sem dúvida, para fixar, no fim do século XIX, o personagem do histérico. Despossuído de seus direitos pelo tutor e pelo conselho de família, caído praticamente no estado de menoridade jurídica e moral, privado de sua liberdade pela onipotência do médico, o doente tornava-se o núcleo de todas as sugestões sociais [...] Babinski, impondo de fora a sua doente o império da sugestão, conduzia-a ao ponto de alienação em que, abatida, sem voz e sem movimento, ela estava pronta para acolher a eficácia da palavra miraculosa: "Levanta-te e anda". (Foucault, 1954,p. 15)

Aqui, há uma tal relação entre o indivíduo e o seu meio que não resta qualquer autonomia psicológica da doença - seja ela tomada como uma espécie botânica (como quer o primeiro modelo de psicologia), seja ela pensada a partir de um processo em devir que defina ele mesmo a norma e o desvio (como quer a psicologia fenomenológica): é essa conclusão que Foucault vai explorar, conclusão que vai de par com o abandono ao mundo mostrado pela análise das "dimensões psicológicas da doença". Daí o curioso estatuto de toda a primeira parte do livro: nela, Foucault apenas determinou "as coordenadas pelas quais pode-se situar o patológico no interior da personalidade" (ibid.,p. 71): o "fato patológico" remete à personalidade como seu suporte, mas, se é nela que se manifestam as formas concretas da doença, ela não é a causa dessas formas. Daí a questão com a qual Foucault encerra a primeira parte: "se a subjetividade do insensato é ao mesmo tempo vocação e abandono ao mundo, não é ao mundo mesmo que é preciso perguntar pelo segredo dessa subjetividade enigmática? Depois de ter explorado suas dimensões interiores, não se é levado forçosamente a considerar suas condições exteriores e objetivas?"3 (1954, p. 69). É o mundo, finalmente, o território, a instância de determinação; daí porque a psicologia fenomenológica foi mais longe, ao limite da análise psicológica: porque ela pôs em relevo a relação entre o doente e o mundo, porque ela atou o louco ao mundo, para além de personagens míticos como os instintos de vida e de morte - embora ela não tenha sido capaz de dar o salto que a própria noção de mundo mórbido exige.

Essa passagem guarda alguns pressupostos. Doença mental e personalidade ainda supõe que os "aspectos" da doença constituem um domínio positivo, que é a vida psicológica do indivíduo; esse pressuposto, por sua vez, só faz sentido porque ele remete a uma condição derradeira, que é o "homem real" - ou a personalidade.4 Ao notar que a patologia mental deve se libertar dos postulados de uma suposta metapatologia, figura puramente "factícia" suposta pelas diversas psicologias, Foucault tira uma conclusão que a edição de 1962, em sua versão corrigida, já não vai tirar: é que se a metapatologia é factícia, resta que há um "homem real" sobre o qual é lançado essa unidade factícia - resta então, para além das psicologias, a possibilidade de uma antropologia (ibid., p. 69).5 Em 54, a questão era "analisar a especificidade da doença mental, buscar as formas concretas que ela pode tomar na vida psicológica de um indivíduo" (ibid.,pp. 16-17). Essa foi a tarefa de que a primeira parte do texto se desincumbiu: nessa primeira edição, a psicologia tem um domínio positivo sobre o qual se debruçar: a vida psicológica do indivíduo; o pressuposto básico, desaparecido da edição seguinte, é que há um "homem real" cujas formas de enlouquecimento são descritíveis pela psicologia - e porque esse homem é "real", aquelas formas são "concretas". Mas esse domínio positivo não é ainda o da determinação; ele apenas manifesta formas distintas que cabe à psicologia descrever; mas nele ainda não vislumbramos as raízes da doença. É essa insuficiência que vai tornar necessária uma antropologia - dado, evidentemente, que o pressuposto do "homem real", verdadeiro, desalienado, segue inquestionado por Foucault em 1954. Daí porque ele acrescente, na seqüência do texto citado (referindo-se agora à segunda parte da obra, aquela que deve ir além das "dimensões psicológicas da doença"): "depois" de traçadas as formas concretas que a doença pode tomar na vida psicológica de um indivíduo, é necessário "determinar as condições que tornaram possíveis esses diversos aspectos [da doença mental] e restituir o conjunto do sistema causal que os fundou" (ibid.,p. 17). Eis aí anunciada a passagem à instância última de determinação que torna possíveis aquelas formas concretas, a passagem às "condições reais" da doença (ibid.,p. 17), às causas reais do enlouquecimento. A remissão a esse outro território é que vai determinar a natureza mesma da antropologia que vai se seguir à descrição das dimensões psicológicas da doença e que já não será do tipo existencial. Trata-se aqui da passagem ao mundo, aquele que possui o segredo derradeiro da loucura, passagem que vai implicar um outro tipo de análise, não mais psicológica ou psicopatológica, mas social e histórica.

 

IV

Que questão essa passagem suscita? Apesar de ser colocada no interior de uma antropologia logo destinada ao esquecimento, ela vai subsistir mesmo depois de 54, o que indica por quais caminhos Foucault seguirá. Essa questão - que será retomada na edição de 62 - diz respeito ao aspecto positivo e crítico pelo qual patologia deve ser encarada. Por que isso? Se na loucura a existência se abandona aos eventos como "coisa inerte", se ali o sujeito se entrega ao mundo como a um destino exterior, então é o mundo que vai nos revelar o estatuto da subjetividade louca. Daí as objeções de Foucault - também mantidas nos anos seguintes - a uma perspectiva estritamente relativista como a do culturalismo. É certo, também para ele, que a doença só tem "realidade e valor" (ibid.,p. 71) no interior de uma cultura: o doente de uma será visionário em outra. No entanto, como os relativismos apresentam esse fato? Ora em perspectiva evolucionista, em que o patológico será signo da etapa de um momento anterior da evolução; ora a partir de uma essência humana abstrata: uma cultura pode desprezar virtudes intelectuais e valorizar condutas agressivas; o indivíduo favorecido será aquele cujos "reflexos naturais" estarão mais próximos do comportamento que caracteriza sua sociedade (ibid.,pp. 72-73). Para Foucault, que há de insuficiente nessas perspectivas? Justamente o caráter negativo e virtual pelo qual a doença é visada; isso já era notado na avaliação da psicologia evolucionista, salvo que agora aparece o viés crítico que nos importa destacar: a doença, definida por relação a uma média, a uma norma, seria, na perspectiva evolucionista e culturalista, marginal por natureza; ora, essa perspectiva faz perder o essencial, e por isso ela deve ser invertida: colocando a doença nas margens, deixamos de ver o que faz com que a sociedade a empurre para as margens; ao invés de visá-la como desvio estatístico, é preciso mostrar como ela chegou a ser desvio: "como nossa cultura veio a dar à doença o sentido do desvio, e ao doente um estatuto que o exclui?" (ibid.,p. 75). Noutras palavras, não se deve tomar a doença como um dado, ainda que marginal, mas colocar a questão de sua constituição - questão que nenhuma psicologia pode responder porque ela remete à relação que a sociedade entretém com o louco. É aqui que aparece, pela primeira vez, uma perspectiva que será sempre a de Foucault: a "doença" é uma formulação tardia de um evento originário e é esse evento que deve ser interrogado. Tudo se passa como se Foucault levasse adiante essa formulação simples: não é porque alguém é doente que ele é internado ou empurrado para as margens; antes disso, é preciso que algo tenha se passado e que leva a sociedade a definir seus marginais, empurrando-os para as margens e formulando então, finalmente, o juízo "doente"; esse momento originário é o da alienação, é ele que faz a partilha do normal e do patológico, do sentido e do não-sentido. E na medida em que essa partilha é vislumbrada, pode-se mostrar também a outra face da mesma moeda: como "nossa sociedade se exprime nessas formas mórbidas em que ela se recusa a se reconhecer" (ibid.,p. 75). Eis aqui o viés crítico que será sempre o de Foucault e que tem por objeto menos a doença do que a alienação originária, menos o fato patológico do que a partilha que traça os limites e define esse estatuto. Certamente, Foucault vai definir de outro modo essa partilha, quando, pela radicalização da figura do negativo, se libertar de toda forma de antropologia, mas essa questão já era a sua em 54.

Em 54, ele ainda conserva a idéia de que o sentido da alienação varia historicamente, segundo as épocas: há uma alienação primitiva, anterior, certamente, a seus aspectos psicológicos e ao estatuto que esses aspectos recebem ao longo da história - o que implica dizer, correlativamente, que há também um suporte desses aspectos, uma personalidade, ou o "homem real" de que falamos, igualmente trans-histórico: o que varia, pensa Foucault em 54, é o sentido, não o suporte dele. Ou, para ser mais preciso, esse é o impensado de Foucault em 54. É esse modelo que permite compreender a sua démarche. Importa-lhe mostrar, particularmente, como nossa cultura veio a dar à doença o sentido do desvio. O essencial, para Foucault, reside no processo de humanização da doença por oposição aos modelos passados que a remetem ao sobrenatural: o energoumenos dos gregos e o mente captus dos latinos eram aqueles cuja possessão transformava o homem em "outro", aqueles em quem agia "uma potência vinda de não se sabe qual exterior" (ibid.,p. 76). O essencial se passou no século XVIII: "o século XVIII trouxe sem dúvida a idéia capital de que a loucura não é superposição de um mundo sobrenatural à ordem da natureza, acréscimo demoníaco à obra de Deus, mas apenas desaparição no homem de suas faculdades mais elevadas" (ibid.,p. 78). Ora, rompida a relação com o sobrenatural, o insensato deixa de ser um possuído para tornar-se aquele que perdeu algo, um despossuído, mais um cego do que um visionário. Nesse novo contexto, a pergunta que deve ser feita é: que afinal perdeu o demente? É essa perda que vai definir o sentido moderno da alienação e que nenhuma psicologia ou psicopatologia pode mostrar.

A resposta está na "revolução burguesa", que definiu a liberdade como a faculdade mais elevada, aquela que distingue a humanidade do homem. Esse novo contexto vai gerar uma curiosa contradição, explorada insistentemente por Foucault em vários momentos posteriores de sua obra, embora em outro viés: ao processo de humanização da doença mental, vai se seguir, no século XIX, um processo de desumanização do doente, uma "prática inumana da alienação" (ibid.,p. 80): é que o doente mental será justamente aquele de quem serão contestados os direitos que o homem acabara de conquistar, expressos na Declaração dos Direitos do Homem:

(...) se o século XVIII restituiu ao doente mental a natureza humana, o século XIX contestou-lhe os direitos e o exercício dos direitos relacionados a essa natureza. Fez dele um "alienado", pois transmitiu a outros o conjunto das capacidades que a sociedade reconhece e confere a todo cidadão; ele o eliminou, de fato, da comunidade dos homens no mesmo momento em que reconhecia, em teoria, a plenitude de sua natureza humana. Ele não o recolocou em uma humanidade abstrata senão expulsando-o da sociedade concreta: é essa "abstração" que é realizada no internamento. (Ibid.,p. 81)

Eis aí o sentido moderno da alienação, experiência concreta de um homem do qual foi retirado o que a sociedade reconhece como o que há de mais humano nele. Alienação, portanto, não no sentido em que o homem se tornou estranho à natureza humana, a uma essência abstrata, mas no sentido em que ele não se reconhece "nas condições de existência que o próprio homem constituiu" (ibid.,p. 102).

Ora, mas se é assim, se é essa a alienação originária, então temos boas razões para fazer uma correção da psicopatologia. Afinal, o estatuto do desviante advém da alienação, não de uma alteração intrínseca da personalidade. As formas mórbidas descritas ao longo da primeira parte devem exprimir, correlativamente, traços distintivos da sociedade moderna e sua forma de alienação. Eis aqui a correção ortopédica que se deve fazer à psicologia, correção que a segunda parte do texto faz da primeira. Ali onde a psicanálise, por exemplo, vê um combate entre os instintos de vida e de morte, é preciso ver agora outra coisa: não uma justaposição no inconsciente humano de pulsões contraditórias, mas uma experiência contraditória que "o homem faz do homem": "as relações sociais que determinam a economia atual, sob as formas da concorrência, da exploração, das guerras imperialistas e das lutas de classe, oferecem ao homem uma experiência de seu meio humano que toca sem cessar a contradição" (ibid.,p. 86). É a experiência social da contradição, da disputa entre os homens, que Freud internaliza de forma mítica: não é o instinto de morte que explica a guerra, é o inverso; não é Freud que explica essa última, é a guerra que explica Freud. A contradição psicológica encontra suas raízes nas contradições sociais, nas experiências que o homem faz do homem (ibid.,p. 87). Analogamente, a contradição do mundo mórbido, assinalada pelo fenomenólogo, a um só tempo privado, inacessível, mas também entregue ao determinismo, essa contradição também é segunda por relação a uma "contradição real": é que o homem, corrige Foucault, já não pode se reconhecer em casa no mundo, é que ele permanece estranho às produções de sua atividade: "estranho em um mundo real, ele é remetido a um `mundo privado' que não pode mais garantir nenhuma objetividade; submetido, entretanto, ao constrangimento do mundo real, ele experimenta esse universo para o qual ele foge como um destino" (ibid.,p. 89). Trata-se, portanto, para Foucault, de assinalar que não há autonomia da psicologia; as formas descritas por ela não se identificam com suas origens reais: a psicologia apenas descreve aspectos da doença (concretos, certamente), mas ela não vislumbra suas raízes, suas condições de possibilidade, já que ela não pode alcançar a verdadeira alienação moderna.

Não deixa de causar embaraço que, depois de fazer essa correção ortopédica, Foucault passe a um capítulo dedicado à "psicologia do conflito". Mas, visto de perto, não há aqui nada de surpreendente, pois é justamente a correção ortopédica que vai nos permitir fundar a "verdadeira psicologia" (ibid.,p. 110), é ela que, partindo da alienação como situação originária, vai permitir colocar cada termo no seu devido lugar. A passagem, agora real, da contradição social à contradição psicológica, deve ser explicada porque nem toda contradição social acarreta necessariamente uma contradição psicológica: "mesmo quando essas contradições encontram um estatuto na vida psicológica do indivíduo, esse estatuto não é forçosamente o da doença" (ibid.,p. 91). A doença requer, portanto, além da contradição social, "condições psicológicas que transformam o conteúdo conflitual da experiência em forma conflitual da reação" (ibid.,p. 92). É essa passagem, de uma contradição à outra, que esse último capítulo mostra; é o momento da causalidade, aquele que, uma vez identificadas as condições de possibilidade da doença, mostra suas condições de realidade. É finalmente o momento da antropologia social, que contesta a autonomia da psicologia, mas não lhe retira o poder descritivo; a insuficiência desta última reside no fato de que ela não foi capaz de reconhecer a heteronomia das formas que descreve. Daí porque a passagem à segunda parte, à história e ao meio social, não é uma passagem a um mundo intersubjetivo mais alargado, ao momento transcendental; é uma verdadeira inflexão que ela promove, equivalente a uma ruptura: é a passagem da descrição, a que se limita a psicologia, a uma explicação, única capaz de tornar a "medicina mental" "rigorosamente científica" (ibid.,p. 2).

As noções de que vai se servir Foucault, de extração pavloviana, denunciam um ecletismo a princípio pouco rigoroso. Seria preciso ver nesse recurso nada além de uma tentativa de fundar uma "ciência do homem", uma antropologia devidamente enraizada no meio social. Quando a contradição psicológica se instaura? Segundo Foucault, "no momento em que as condições do meio não permitem mais a atividade normal do sistema nervoso, e que as contradições às quais é submetido o indivíduo não permitem mais a dialética normal da excitação e da inibição, se instaura uma inibição de defesa" (ibid.,p. 102). Defesa face a uma contradição objetiva - uma contradição tão acentuada que já não permite a dialética normal da excitação e da inibição. O indivíduo então se defende "colocando-se fora de circuito", por uma "inibição generalizada" (ibid.,pp. 101-2). Esse modelo não leva a uma psicologia da adaptação - ainda que a doença apareça como um fracasso de adaptação, pois o indivíduo doente é aquele que já não pode dominar, "no nível de suas reações, as contradições de seu meio" (ibid.,p. 102). Há que notar, no entanto, o seguinte: a doença é segunda por relação à contradição social - ela é segunda por relação à alienação, se se entende por essa última não um afastamento do homem em relação à sua essência abstrata, mas uma estranheza em relação ao mundo que ele próprio constituiu: "não é porque se é doente que se é alienado, mas na medida em que se é alienado que se é doente"6 (ibid., p. 103). Por isso mesmo, não se trata de adaptação. A prática a que é conduzida essa psicologia remete às condições sociais: "não há cura possível quando se irrealizam as relações entre o indivíduo e seu meio; não há cura, de fato, senão aquela que realiza relações novas com o meio" (ibid.,p. 109). É preciso mudar o mundo, se se quer mudar o homem, porque é na relação com o mundo que se encontra a alienação: "somente se for possível mudar essas condições [da existência humana] a doença desaparecerá enquanto perturbação funcional resultante das contradições do meio" (ibid.,p. 107). Subsiste aqui, portanto, a idéia de um homem real, verdadeiro, desalienado. A psicologia, por sua vez, envereda pelo "psicologismo" quando ela não se fundamenta em uma antropologia social, quando ela não leva em conta as condições reais a que deve seu objeto, e, ao contrário, na medida em que ela as tem no horizonte, seu fim não pode ser outro senão o de "desalienar" o homem (ibid.,p. 110).

 

V

Ora, seja conforme o modelo da Daseinsanalyse ou o da antropologia social, Foucault pretende, em qualquer dos casos, ultrapassar o "psicologismo". No primeiro caso, é a própria antropologia, como ciência do empírico, que se ultrapassa em uma analítica existencial, em uma reflexão de cunho ontológico; no segundo, o "psicologismo" não é mais um empírico que se opõe a um transcendental, mas é ainda um domínio não autônomo de investigação, que deve ser superado, dessa vez, por uma antropologia social. São dois modelos distintos: nesse último, a descrição deve ser superada por um modelo explicativo, de tal modo que a "cientificidade" aí buscada pelo autor se choca com a "cientificidade" do primeiro modelo. Ambos têm em comum o projeto mais geral de uma "ciência do homem". Ora, é esse projeto mesmo, não importa mais o modelo, que será abandonado por Foucault. E o que vai tornar os dois modelos caducos é a crítica da positividade em que eles se assentam: Foucault vai recusar qualquer substrato positivo para o domínio geral do humano e, para isso, deve radicalizar o seu conceito de negativo. Crítica única, portanto, que vai levá-lo a ultrapassar os dois modelos - e, com eles, toda forma de humanismo.

Essa inflexão vai aparecer pela primeira vez em um texto de 1957. Um texto curioso, destinado a comentar a idéia de pesquisa em psicologia. Ali, já de saída, Foucault coloca em questão o que ele denomina "uma das estruturas mais fundamentais da psicologia contemporânea" (Foucault, 1994f, p. 138), justamente a questão de sua cientificidade. Essa questão, já antiga àquela altura e na qual Foucault, desde 54, se vê imerso, é colocada por comparação com o que se passa em outros domínios: por que em psicologia se diz que se pode fazer "psicologia científica" (aquela feita em laboratório) ou "psicologia" pura e simplesmente (aquela feita por Merleau-Ponty, conforme se pensava então), enquanto na química, por exemplo, não se diz que se pode fazer "química" ou "alquimia"? (ibid.,pp. 137-8). Ao colocar a questão desse modo, Foucault não pretende oferecer um novo critério, uma nova distinção, que assegure, de uma vez por todas, a cientificidade da psicologia - ou de qualquer outra ciência do homem: é esse projeto que ele abandona. Mas tampouco se trata de recusar-lhes, sem mais, esse estatuto. A novidade de sua perspectiva consiste antes em mostrar o que esse clichê da época tem de involuntário acerto. Pois, afinal, se ele põe em relevo a idéia de que em psicologia há "uma possibilidade originária de escolha" (ibid.,p. 139), é essa possibilidade mesma que Foucault vai explorar e mostrar o quanto ela é reveladora da natureza profunda da psicologia - e, no limite, da idéia de homem. Se a pesquisa que se desenvolve em psicologia pode ou não, conforme sua escolha ou sua recusa, colocar-se, de partida, "na constelação da objetividade", se ela pode ou não se colocar um "propósito científico", é porque há aqui o reconhecimento de que "a pesquisa pode ser verdadeira ou falsa, científica ou não" e, por isso, é a própria pesquisa que, de início, "opta ou não pela ciência" (ibid.,p. 139): não é portanto de direito que ela é científica. Acontece o inverso do que acontece na química: ao invés de a pesquisa colocar-se no horizonte da ciência, horizonte constituído que de algum modo ela retoma, ela é o movimento em busca de uma ciência: não é a ciência que toma corpo na pesquisa, é a pesquisa que, de partida, opta por ela.

Esse gênero de reflexão vai conduzir Foucault a uma primeira grande inflexão: ele já não procura orientar a psicologia para o domínio em que ela pode conquistar direito relativo, como o fizera até então, quando, combatendo o "psicologismo", a usurpação de territórios por parte da psicologia, ainda procurava assegurar a essa um domínio próprio de cientificidade. Agora, em 57, o interesse é outro: não mais uma correção do "psicologismo", mas uma questão posta a essa "escolha de racionalidade"; afinal, se a pesquisa feita em psicologia não se insere no desenvolvimento da psicologia como ciência, se, portanto, o que a fundamenta "não é a objetividade constituída da ciência", a questão relevante passa a ser indagar essa pesquisa "sobre o estatuto de verdade que ela mesma confere à ciência, pois é sua escolha que faz da verdadeira psicologia uma psicologia verdadeira" (ibid.,p. 139; grifo meu), e não o inverso. É preciso voltar a esse ponto essencial; agora, é ele que pode revelar o estatuto da psicologia, e não mais questões de natureza ontológica ou epistemológica, como aquelas postas, a partir da antropologia existencial, à insuficiência do homo natura ou aquelas colocadas, a partir da antropologia social, à Daseinsanalyse. E Foucault insiste nesse ponto: que a pesquisa em psicologia não se inscreve no movimento da ciência, isso se pode ver em toda parte: o exemplo da psicanálise, que toma a própria psicologia como objeto, e que, portanto, ao fazê-lo, a toma "no nível mesmo de sua origem" (ibid.,p. 143) - basta ver as imputações de fixação narcísica ou de complexo edipiano que os psicanalistas se lançam uns aos outros -, esse exemplo é apenas o mais agudo de todos. Mas qualquer outro valeria. E o que todos eles revelam é que o desenvolvimento em psicologia não se faz por

(...) retificações sucessivas, segundo um ultrapassamento sempre renovado do erro, mas por uma denúncia da ilusão: ilusão da subjetividade [Watson], sofisma do elemento [Guillaume], mitologia da terceira pessoa [Politzer], miragens aristotélicas da essência, da qualidade e do encadeamento causal [Lewin], pressupostos naturalistas e esquecimento do sentido [psicologias de "inspiração" fenomenológica], obliteração da gênese pela estrutura e da estrutura pela gênese [Piaget]. (Ibid.,pp. 143-4)

É a psicanálise, no entanto, que traz a "ilusão" ao primeiro plano, é ela, melhor do que as outras, que provoca um "curto-circuito" no conhecimento constituído, e dela se serve Foucault para mostrar que a psicologia não conhece "progresso"; ou que o "progresso" não é ali "um momento no desenvolvimento da ciência", é antes "um arrancamento perpétuo às formas constituídas do saber" (ibid.,p. 143). As pesquisas em torno do inconsciente não vão além, no sentido de levar adiante, pelo progresso, o horizonte constituído da ciência; não é uma extensão para baixo, não é uma investigação mais geral, mais ampla, é antes "uma evasão da psicologia da consciência"; não é uma retificação, é "uma denúncia da ilusão", na medida em que para ela "os métodos, os conceitos, [...] o horizonte científico de uma psicologia da consciência" tornam-se um "objeto" (ibid.,pp. 142-3). É verdade que a psicanálise não é ainda a "contraciência" de Les mots et les choses, mas é nela que se consubstancia, de modo mais flagrante, a especificidade de toda psicologia.

A conseqüência que tira Foucault dessas críticas é que, se elas denunciam "ilusões" e não "erros científicos", é pela simples razão de que falta à psicologia a positividade própria a qualquer ciência - e é por aqui que Foucault vai se libertar dos modelos de 54. Quando a história denuncia um erro histórico, ela também denuncia uma ilusão, mas resta que a história oferece o solo a partir do qual aquela ilusão pode ser denunciada. Mas em psicologia "não há nada disso [...]: se se pode reduzir o erro psicológico a uma ilusão, reconduzir suas formas epistemológicas a condutas psicológicas não é porque a psicologia encontra na psiquê seu fundamento e sua razão de ser como saber, é somente porque nela encontra obstáculos" (ibid.,p. 145): falta à psicologia o fundamento positivo sobre o qual erguer seus conceitos e, nessa medida, todo elemento postulado como tal, será, ao contrário, apenas um obstáculo para a crítica, de modo que, inversamente, ele passa a oferecer-se, por sua vez, como elemento a ser criticado: "a psicologia não encontra jamais na psiquê senão o elemento de sua própria crítica" (ibid.,p. 145), diz Foucault. Não é, portanto, como saber positivo, mas como crítica que a psicologia começa a ganhar aqui seu estatuto; não é uma "tomada de consciência", como acontece na denúncia histórica, mas uma "desmistificação" (ibid.,p. 145). Assim, ali onde a fenomenologia pretende ver, de parte da psicologia objetivista, um esquecimento, Foucault pretende notar uma pura e simples negação. E a razão disso se encontra no fato de que a psiquê não é um "fundamento" para a psicologia, não é "elemento de positividade" que permita ao crítico reparar o erro científico e fazer avançar o conhecimento. Portanto, inversamente, onde o fenomenólogo pretende fundamentar positivamente uma psicologia, dar-lhe um fundamento ontológico, Foucault vê apenas a afirmação de um novo mito que se oferece, por sua vez, a uma nova crítica, a uma nova denúncia. Na ausência de fundamento, a crítica é sempre, não um reparo, mas uma negação; apontar o esquecimento é exorcizar um mito, não restituir a verdade. Daí a conclusão de que a pesquisa em psicologia é "crítica, negativa e desmistificadora" (ibid.,p. 145).

Exorcismo curioso, já que "os deuses não estão aí" (ibid.,p. 145): na ausência dos "deuses", isto é, na ausência de positividade sobre a qual se fundar e em nome da qual fazer a crítica, restituindo assim o "erro" ao elemento da "verdade", a psicologia vive uma situação singular; ou antes, o conjunto das ciências humanas vive uma situação singular: Foucault pretende que elas retirem sua substância do negativo, é do negativo, assegura ele, que elas vivem. É essa idéia que ele vai explorar agora, é ela que lhe permite superar os prejuízos antropológicos de 54. E ele pretende encontrar a confirmação dessa suspeita na prática da psicologia. E vê-se porque: uma vez que a psicologia não tem mais um fundamento ontológico ou epistemológico, uma vez que não há fundamento a ser questionado e posto à luz, é à prática da psicologia que se deve voltar a interrogação: é ela que vai revelar sua natureza profunda. Daí uma série de referências - dessa vez, de natureza bem diferente - à estrutura econômica e social na qual a psicologia está inserida. Ele vai notar, por exemplo, um vínculo direto entre a psicologia do trabalho e certas condições econômicas: orientação e seleção profissional são estreitamente dependentes das taxas de desemprego e do nível de especialização dos postos de trabalho, o que dá a elas o sentido imediato de uma "discriminação" (ibid.,pp. 150-1). É certo, assegura Foucault, que esse é um traço característico de todas as ciências, que todas elas se acham ligadas, no final das contas, às condições da vida econômica e social. Mas também é verdade que, em psicologia - ou melhor, no domínio das ciências do homem - "o problema é um pouco mais complexo" (ibid.,p. 151). Condições econômicas podem, de fato, nota Foucault, tornar inúteis tanto a aplicação quanto o desenvolvimento de uma ciência; independentemente disso, no entanto, que não haja uma guerra, por exemplo, a apressar o desenvolvimento da ciência, "corpos continuam a cair e elétrons a girar" (ibid.,p. 151). Mas não é exatamente a mesma coisa com as ciências do homem; ali, tudo se passa de modo diferente. Em períodos de crise econômica, por exemplo, ou de aumento do preço do trabalho, a adaptação do homem a seu emprego (noção recorrente na psicologia industrial) muda de conteúdo e de sentido: a definição dessa noção vai variar segundo o contexto econômico. Mas num sentido mais forte do que no primeiro caso: enquanto a física não deixa de ser física, malgrado aquelas determinações, a psicologia perde seu fundamento porque é o próprio conteúdo da noção que varia conforme o contexto econômico; não resiste aqui uma "realidade psicológica" que receberia diferentes significações conforme o contexto; a psicologia do trabalho apenas confere um estatuto àquelas necessidades sociais e econômicas "no nível da psicologia individual" (ibid.,p. 151). A referência à estrutura econômica e social se insere, portanto, em 57, noutro contexto: ela apenas reitera a ausência de positividade da psiquê.

Mas não são tanto as relações ligando a psicologia à estrutura econômica e social que podem mostrar a relação vital entre a psicologia e o negativo. Ao passar para o domínio da prática, é antes a história da psicologia que mostra definitivamente esse vínculo:

(...) é curioso constatar, diz Foucault, que as aplicações da psicologia nunca saíram de exigências positivas, mas sempre de obstáculos no caminho da prática humana. A psicologia da adaptação do homem ao trabalho nasceu das formas de inadaptação que se seguiram ao desenvolvimento do taylorismo na América e na Europa. Sabe-se como a psicometria e a mensuração da inteligência saíram dos trabalhos de Binet sobre o retardamento escolar e a debilidade mental; o exemplo da psicanálise e do que se chama agora a "psicologia das profundezas" fala por si mesmo: elas se desenvolveram inteiramente no espaço definido pelos sintomas da patologia mental. (Ibid.,p. 152)

Eis aqui o ponto crucial, também destacado em texto do mesmo ano, "A história da psicologia de 1850 a 1950": toda a questão gira em torno disso, de que, na ausência de fundamentos ontológicos ou epistemológicos, a positividade da psicologia vem das "experiências negativas que o homem chega a fazer de si mesmo" (ibid.,p. 153), e de que, portanto, o laço com o negativo tem aqui um sentido constitutivo. É verdade que as ciências da natureza também mantêm um "laço apertado e constante com a prática" (Foucault, 1994i, p. 121), também é verdade que uma pesquisa nasce no momento em que a prática alcança seus limites, reconhece Foucault. No entanto, há ainda uma especificidade da psicologia: enquanto, nas ciências da natureza, é uma situação de necessidade que permite compreender a prática e a pesquisa científicas, enquanto a prática se confronta ali apenas com uma "limitação provisória" (ibid.,p. 121) que a ciência busca superar, na psicologia, ao contrário, esses limites são antes as contradições "do homem consigo mesmo" (ibid.,p. 123), o "elemento absoluto de sua contradição" (Foucault, 1994f, p. 153). Menos que limitação provisória, o negativo representa para a psicologia o fundo a partir do qual ela própria (e o "homem", evidentemente) se constitui: a psicologia, arremata Foucault no pequeno texto sobre a sua história,

(...) nasce nesse ponto em que a prática do homem encontra sua própria contradição; a psicologia do desenvolvimento nasceu como uma reflexão sobre as paradas do desenvolvimento; a psicologia da adaptação, como uma análise dos fenômenos de inadaptação; a da memória, da consciência, do sentimento, apareceu de início como uma psicologia do esquecimento, do inconsciente e das perturbações afetivas. (Foucault, 1994i, pp. 121-2)

O negativo tem aqui, portanto, a função constitutiva de traçar o círculo de giz no interior do qual transita a psicologia; nesse sentido, a prática a ele vinculada não é uma simples etapa do desenvolvimento do saber, mas o lugar da verdade psicológica do homem: é o inconsciente que permite traçar uma psicologia da consciência que não seja uma pura reflexão transcendental; é a perversão que vai dizer a verdade sobre o amor que não seja uma ética; é o retardamento que vai dizer a verdade sobre a inteligência sem recorrer a uma teoria do saber (Foucault, 1994f, p. 152).7 A negatividade não é referida a nenhuma positividade prévia; é ela, ao contrário, que se torna o "solo de positividade da psicologia" (ibid., p. 154). Daí a nova avaliação que Foucault faz de Freud, distinta daquela feita em 54: menos que mostrar a origem sexual do amor, das relações sociais, etc., o interesse de Freud está na maneira pela qual ele o fez, tomando a experiência da contradição do homem para desvelar "sua verdade mais simples": a importância do freudismo, nota agora Foucault, "consiste na descoberta da sexualidade apenas de uma maneira derivada e secundária; ela reside, de uma maneira fundamental, na constituição dessa positividade, no sentido em que o dissemos" (ibid.,p. 154): Freud não referiu a negatividade da natureza a uma positividade qualquer, ele a tomou diretamente como "positividade". A fenomenologia, por sua vez, não foi tão longe: é que ela ainda reserva à patologia mental um papel agora recusado por Foucault: o de distinguir "estruturas escondidas" que uma reflexão direta sobre o homem normal não teria o poder de revelar, o de destacar, por contraste, "processos normais" (ibid.,p. 153). Esse papel, tão explorado por Merleau-Ponty, - na análise do caso Schneider, por exemplo -, parece ainda tímido para Foucault, porque, embora normal e patológico não sejam definidos a priori, embora eles se afirmem, ao contrário, um pelo outro, e não relevem, portanto, da natureza nem de uma essência humana abstrata - o que tinha um sentido político forte naqueles anos 50 -, eles ainda se assentam em uma teoria da intersubjetividade, eles ainda fazem apelo a uma experiência a ser descrita; é justamente essa experiência o solo de positividade do fenomenólogo; é por ela, portanto, que ainda se afirma um resíduo de positividade anterior ao negativo; daí porque a patologia torna destacável um processo normal e vice-versa. Seria preciso, ao contrário, ir diretamente ao negativo, sem qualquer limitação. Tudo se passa, para Foucault, como se a posição da fenomenologia ainda fosse tímida. A razão disso é que, para ele, o positivo já não tem o poder de limitar o negativo e, nessa mesma medida, ser por ele limitado, numa relação a partir da qual ambos se definiriam, como quer o fenomenólogo.8 Para Foucault, o positivo perdeu qualquer "positividade"; ele se define, ao contrário, a partir do negativo. Daí porque ele afirme que a patologia mental não permite ao homem reconhecer "o rosto de sua verdade"; nela, ele simplesmente descobre "a noite dessa verdade e o elemento absoluto de sua contradição" (ibid.,p. 153; grifos meus).

Desse giro em direção ao negativo, resulta finalmente compreensível o involuntário acerto daquele clichê de época acerca do estatuto da psicologia. É que há de fato uma escolha de positividade, uma possibilidade originária de escolha a partir da qual a psicologia reivindica seu domínio objetivo. Mas isso não porque essa escolha se fundamente em um domínio que seria ontológica ou epistemologicamente mais adequado ou verdadeiro do que outro; mas, ao contrário, porque a positividade reivindicada advém, ela sim, da escolha pela qual o homem faz a experiência do negativo. Se há aqui uma "opção de positividade", não é porque ela se inscreva "no desenvolvimento espontâneo da ciência, da pesquisa e da técnica" (ibid.,p. 153), mas porque a positividade se define a partir do negativo e o negativo, por sua vez, não é mais que uma experiência que o homem faz de si mesmo. É nesse nível que se pode falar em "escolha"9. Daí também uma nova inversão, que vai matizar o elogio a Freud: é verdade que Foucault começa por dar um estatuto crítico à psicologia, na medida em que ele a vê como uma denúncia de ilusões, como desmistificação, e não simples retificação de erros. E assim se passa porque a psicologia não tem fundamento positivo: a pesquisa em psicologia não representa "nem a emergência de uma objetividade, nem o fundamento ou o progresso de uma técnica, nem a constituição de uma ciência, nem a revelação de uma forma de verdade", ela é "inteiramente negativa" (ibid.,p. 157). Mas, na avaliação de Foucault, essa etapa é apenas preliminar. Uma vez realizado o giro em direção ao negativo, uma vez mostrado que o negativo é o solo da psicologia - portanto, a partir do negativo -, é um outro estatuto que a psicologia recebe, e esse estatuto vai variar conforme ela "se esqueça da negatividade do homem e de sua vocação eternamente infernal" (ibid.,p. 158; grifo meu). Entende-se porque: é que se o negativo torna-se o "positivo" da psicologia, o homem posto como positividade torna-se por sua vez negação daquele, na forma do recobrimento, do esquecimento, do ocultamento. Se Freud, diz Foucault, soube, melhor do que ninguém, dar primazia ao negativo, ele também contribuiu, "mais do que ninguém, para recobri-lo e escondê-lo" (ibid.,p. 158), afirma Foucault sem precisar no entanto sua avaliação; em 57, essas referências a Freud são pouco elaboradas; mas, para nós, o essencial nesse momento é menos a avaliação em si do que o fato de que a passagem ao negativo oferecerá a Foucault o instrumento a partir do qual ele pode avaliar a psicologia e denunciá-la, na medida precisa em que ela "se esquece" da negatividade e se lança no "mito da positividade" (ibid.,p. 158). Portanto, não se trata mais de fazer uma correção ortopédica da psicologia, não se trata tampouco de superá-la em direção a uma analítica existencial; agora, trata-se de avaliar a psicologia, o que se tornou possível porque a sua positividade ela a deve inteiramente a uma escolha originária.

 

VI

Ora, mas se é assim, resta saber o que define o negativo. Se não há um solo positivo sobre o qual a psicologia possa se assentar, se o negativo tem esse estatuto não por ser "desvio" dele, não por estar em relação com ele, se o negativo não é mais compreendido a partir de um laço dialético que o liga ao positivo, na ausência, portanto, de uma referência mínima ao positivo, parece que não nos resta caminho por onde discriminar o negativo.

É aqui que a referência tardia de Foucault a esse momento de inflexão pode nos ajudar a compreender o que está em jogo em 57. Pois é a esse momento que ele parece se referir no Prefácio não publicado ao segundo volume da História da sexualidade, escrito em 1984. Ali, Foucault lembra que seu projeto de estudar "formas de experiência" é um tema que lhe veio "de um projeto mais antigo: o de fazer uso dos métodos da análise existencial no campo da psiquiatria e no domínio da doença mental" (Foucault, 1994e, p. 579). O projeto mais antigo de Foucault é, de fato, aquele de 54, que aparece em Doença mental e personalidade e na "Introdução" a Binswanger. Esse projeto, recorda Foucault, já o deixava então "insatisfeito". E ele arrola duas razões. A primeira delas estava na insuficiência da noção existencial de "experiência" - e a saída para essa dificuldade ele a via então em uma "teoria geral do ser humano", em uma "antropologia filosófica" (ibid.,p. 579). Vimos, de fato, como Foucault, no texto sobre Binswanger, mostrava as vantagens do modelo husserliano sobre o modelo freudiano de significação e como, para além desse modelo, parecia-lhe necessário dar objetividade à significação, o que exigia uma teoria da intersubjetividade ausente em Husserl: o que se chamava então o método "compreensivo" exigia um alargamento em direção à alteridade, alargamento tanto mais urgente porque se pedia à fenomenologia a fundação das ciências humanas ou, como precisa Foucault em 84, pedia-se a ela o ordenamento teórico do campo específico da psiquiatria e do domínio da doença mental. No universo da psicopatologia, o tema da compreensão é central. Ora, era isso que prometia uma análise existencial: uma teoria da comunicação e, com ela, a união do momento subjetivo da significação e do momento objetivo da indicação. No entanto, uma vez considerado justamente o domínio da doença mental, mesmo esse modelo alargado da análise existencial parecia insuficiente - daí a "insatisfação" a que ele se refere. A noção de "mundo mórbido" levantava problemas que também a antropologia filosófica deixava em suspenso, pois ele implicava uma ruptura entre o "subjetivo" e o "objetivo": o mundo mórbido, notava Foucault em 54, realiza uma unidade contraditória que é ao mesmo tempo enclausuramento em um mundo privado e abandono ao determinismo objetivo, perda da liberdade. Daí as limitações do modelo existencial, já que a perda da liberdade insere um elemento novo que não se confunde mais com um mundo intersubjetivo: a objetividade traz à luz o mundo objetivo como instância de determinação. O segundo motivo de "insatisfação" dizia respeito à "prática psiquiátrica", que seu projeto de fazer uso dos métodos de análise existencial, de modo ambíguo, ao mesmo tempo "ignorava e supunha" - e a saída para essa segunda dificuldade ele a via então, conforme recordação tardia, no "recurso tão freqüentemente repetido ao `contexto econômico e social'" (ibid.,p. 579). Foucault reconhece, em 84, que essa segunda dificuldade é enfrentada de "outra maneira" que a primeira e não deixa de frisar que o recurso a uma antropologia filosófica e a uma história social era o "dilema então dominante". E, de fato, basta nos lembrarmos de Sartre que, naqueles anos 50, procurou conciliar, à sua maneira, o seu existencialismo com o marxismo, em um projeto não muito diferente desse a que Foucault faz alusão. Conforme vimos, ele definia então para a prática psiquiátrica o objetivo de "desalienar" o homem - o alvo psiquiátrico era visto sob a luz mais geral de um alvo social. Também essa saída era insuficiente, e a razão principal parece estar mesmo na combinação de modelos distintos; daí porque ele se colocou a questão, segundo seu relato tardio, de não mais "jogar sobre essa alternativa", mas "pensar a historicidade mesma das formas da experiência" (ibid.,p. 579). Ora, a inflexão de que falamos acima e o abandono dos modelos alternativos que a ela se segue são exatamente o que os textos de 57 trouxeram à luz; resta saber se a direção apontada pelas recordações de 84 nos permite compreender até o fim o que está em jogo em 57.

É certo que o novo modelo, conforme Foucault, implicava de início "duas tarefas negativas": primeiro, uma "redução `nominalista'" da antropologia filosófica e das noções que se apóiam nela. Ora, foi isso que Foucault fez no texto de 57 sobre a pesquisa em psicologia, ao recusar qualquer positividade à psiquê e, finalmente, ao homem mesmo. Esse "nominalismo" não é ali - nem será jamais em Foucault - um evento autônomo da linguagem, o que explica as aspas: por trás da idéia de que as formas psicológicas tomadas pela doença - que em Doença mental e personalidade eram ainda "concretas" e que passam a ser, na edição de 62, formas "assinaladas pela psicologia" (Foucault, 1995b, p. 17), - por trás desse giro nominalista, existe uma "escolha": é que a positividade da psicologia, ao perder todo fundamento, passa a se definir apenas a partir do negativo e o negativo, por sua vez, remete a uma "escolha" porque ele é apenas uma experiência que o homem faz de suas contradições. Eis o fundo da redução "nominalista". Mas essa tarefa tem que ir de par com uma outra, aquela que deve operar "um deslocamento por relação ao domínio, aos conceitos e aos métodos da história das sociedades" (Foucault, 1994e, p. 579). As duas tarefas se ligam intimamente: uma vez realizada a redução "nominalista", um "deslocamento" se impõe porque, na mesma medida em que o positivo - a psiquê, o homem - perde sua "positividade", ele perde igualmente sua "historicidade", isto é, a sua história não é mais a narrativa do seu processo de constituição, de sua gênese. Esse vínculo íntimo entre as duas tarefas negativas torna manifesto apenas um prejuízo comum aos dois modelos de 54, de que já falamos: a suposição de um homem verdadeiro, solo positivo de uma análise existencial e de uma antropologia social, prejuízo que o nominalismo e o deslocamento histórico pretendem superar.

Ora, mas do deslocamento histórico não se segue que não reste para Foucault nenhuma historicidade. A partir daqui surge toda uma série de dificuldades acarretadas pelo novo modelo: o deslocamento a que Foucault se refere em 84 diz respeito a um giro que vai do positivo ao negativo, sem que se perca de vista que esse negativo, ou antes, as experiências negativas que o homem faz de si mesmo, são o "solo" da psicologia. Mas essas experiências são elas mesmas históricas. É verdade que o giro em direção ao negativo tirou da psicologia o seu chão; a psiquê, o homem não têm mais "positividade" e, nessa medida, a sua "história" não revela mais o seu segredo: a história já não tem o poder de revelar o homem verdadeiro para além dos erros psicologistas, na mesma medida em que tampouco uma psicologia pode revelá-lo; também a história já não é o lugar da verdade. Mas isso não porque a própria história tenha simplesmente desaparecido: a história que se deve abandonar é aquela presa à positividade, aos objetos pelos quais a psicologia vive fascinada como se fossem objetos últimos e verdadeiros, não toda e qualquer história. O giro em direção ao negativo leva consigo toda tentativa de, para além da psicologia, fazer uma correção histórica do psicologismo porque ele leva consigo o fundamento mesmo que embasa seja a psicologia, seja a história: o homem verdadeiro. Essas conseqüências já se faziam visíveis no texto de 57, na medida em que o corte ali operado entre o positivo e o negativo exigia pensar esse último na ausência de toda e qualquer "positividade". A dificuldade que Foucault devia vencer então era simplesmente aquela de todo pensamento obcecado pelo objeto, que ora quer fazer sua psicologia, ora sua história. Essa tarefa é a de toda fenomenologia - e não é à toa que Foucault use o termo "redução", que visa justamente superar toda forma de "objetivismo" -, mas, para ele, era preciso ir além, em um sentido que não é mais o da fenomenologia, mas que lhe era exigido pelo corte radical entre o negativo e o positivo: para que a "redução", à sua maneira, se completasse, era necessário que ela também alcançasse a forma de unidade dada pela história porque também essa forma de unidade se assenta em uma positividade. No entanto, o giro em direção ao negativo não implica um salto para fora da história. Vem daí que no texto de 84 Foucault afirme que a tarefa que se impunha então, uma vez relizadas as tarefas negativas, era justamente a de "pensar a historicidade das formas de experiência"; tratava-se de descrever experiências que o homem faz de suas contradições e que não são eternas: elas se formam, se desenvolvem e se transformam (ibid.,p. 579), elas são históricas. E são elas que constitutem a psiquê e o homem, são elas que instauram "o jogo do verdadeiro e do falso" (ibid.,p. 579); elas são, a um só tempo, a priori e históricas. Ora, mas é possível combinar essa recordação com o modelo de 57, que, ao conceder primazia ao negativo, parece tornar excludentes o domínio do originário e o domínio da história?

Não se deve perder de vista que o tema de 57 é ainda a psicologia, ou antes: a avaliação da psicologia. Assim, não é à toa que Foucault conclua o texto sobre a pesquisa lembrando à psicologia que, para reencontrar seu sentido - ou parafraseando o Foucault dos anos 60: para não adormecer de um sono dogmático -, a psicologia deveria furtar-se ao "mito da positividade": ela só se salvará, diz ele em fórmula literária, "por um retorno aos Infernos" (Foucault, 1994f, p. 157). Ora, esses "Infernos" são justamente o lugar a partir do qual o jogo do verdadeiro e do falso é decidido, e lugar que não é desenvolvido nesse pequeno texto; eles são o elemento absoluto da contradição do homem consigo mesmo que está na origem da psicologia; seu lugar é indicado e requerido, porquanto a psiquê (e, com ela, a "doença mental") recebe um estatuto histórico de objeto constituído distinto do estatuto do negativo, da experiência negativa à qual ela remete. Acontece a mesma coisa no texto "A história da psicologia de 1850 a 1950": também ali aparece o tema da contradição, posto em cena por um comentário da prática da psicologia, e também ali Foucault conclama a psicologia a levar a sério as contradições que a fizeram nascer. Mas agora, de forma explícita, ele afirma que isso só será feito "pela análise das condições de existência do homem e pela retomada daquilo que há de mais humano no homem, isto é, sua história" (Foucault, 1994i, p. 137; grifo meu). Certamente, trata-se aqui da história que já tenha sofrido o "deslocamento" que o novo projeto foucaultiano requer, isto é, trata-se da história que não é mais obcecada pelo objeto e que visa portanto aquelas formas a priori que estão na origem da psiquê e do homem, formas que remetem a uma escolha originária. Portanto, é o próprio Foucault, em 57, que parece não ver contradição entre o domínio da história e o domínio originário. Eis porque, afinal de contas, ele se lança em uma história da loucura, os "Infernos" a que ele se referia então. A História da loucura representa assim a passagem à tarefa que então se impunha, conforme o texto da recordação tardia, e segundo um modelo que é menos aquele a que as recordações aludem do que aquele que esses textos de 57 já indicavam. Em 1960, Foucault vai finalmente resolver as dificuldades que temos apontado - sejam as dificuldades relativas à definição do negativo, sejam as dificuldades concernentes à sua relação com a história.

 

VII

É no Prefácio da primeira edição de Loucura e desrazão na era clássica10que Foucault volta aos temas de 57. Ali, ele retoma a distinção entre a esfera originária e a esfera constituída e as dificuldades que essa distinção acarreta. Mas, já de início, ele apresenta uma novidade que os textos de 57 desconheciam: é que não são mais separados, pura e simplesmente, uma experiência negativa e o domínio da psiquê; dessa feita, o escopo é bem maior: o que se encontram separadas são a Loucura e a Razão. Como entender esse alargamento? Foucault já notava que a prática da psicologia mostra um vínculo entre sua esfera positiva e o negativo de que ela se nutre; essa vinculação, por sua vez, não deve levar mais a um domínio que se encarregaria, como na segunda parte de Doença mental e personalidade, de fazer a correção do psicologismo; afinal, é uma pura experiência negativa, e não, por exemplo, um homem verdadeiro e desalienado, que "funda" a psicologia. Esse negativo, por oposição a toda positividade, se afirma também como não-histórico, aquém de qualquer figura histórica, não simplesmente daquelas que marcam a psicologia; é assim que ele pode começar a ganhar o estatuto de condição da história. Mas esse salto, correlato da purificação do negativo, os textos de 57 hesitavam dar, muito embora houvesse ali a nítida oposição entre o negativo e o positivo. Mas, uma vez dado esse salto, segue-se um alargamento que leva Foucault bem além da psicologia: essa nova figura do negativo já não será condição simplesmente de uma psicologia do normal. Ela se torna oposta à razão e à história, como condição delas. Mas então, nessa mesma medida, ela vai se opor, na pena de Foucault, às diversas figuras históricas da loucura e é a esse negativo assim concebido que Foucault vai denominar desrazão. Razão e loucura se opõem, certamente, mas no interior de uma figura histórica, como o sentido e o não-sentido (o louco e o não-louco variam conforme as épocas). Mas, antes disso, essa nova figura da desrazão implica uma oposição mais larga à própria história - ou, mais especificamente, à história da cultura européia: "toda a cultura européia" é medida pela "sua própria desmesura" (Foucault, 1994d, p. 161; grifos meus). A purificação do negativo, portanto, e o conseqüente alargamento do escopo inicial, levam Foucault bem além de uma crítica da psicologia e permitem compreender, ao mesmo tempo, porque ele foi levado a postular a controversa figura de uma loucura pura; essa purificação, por sua vez, vem da necessidade em que se vê Foucault de escapar de uma relação dialética entre o positivo e o negativo, o ser e o não-ser; é ela que lhe permite superar os prejuízos passados e é também ela que acarreta novos problemas: as questões relativas ao negativo e à sua relação com a história tornam-se agora questões relativas à desrazão (que, aliás, não é citada nos textos de 57): que é afinal essa loucura em sua pureza primitiva que não se confunde com as diversas figuras históricas da loucura, que é essa desrazão, esse grau zero, como fazer sua história?

Todas as tentativas de apreendê-la em seu estado selvagem são condenadas ao fracasso, pois elas "pertencem necessariamente a um mundo [que já a capturou]" (ibid.,p. 164). Nenhuma linguagem pode apreendê-la, nem mesmo a linguagem "neutra", livre de terminologia científica. Ela não aparece jamais a um olhar direto simplesmente porque é impossível dar um salto, puro e simples, para fora da história. Mas resta que, se a loucura em sua pureza primitiva não é apreensível, há pelo menos um viés vertical que alcança uma região, um domínio "em que o homem de loucura e o homem de razão, se separando, não estão ainda separados [...] [em que] loucura e não-loucura, razão e não-razão estão ainda confusamente implicadas: inseparáveis no momento em que não existem ainda e existindo uma para a outra, uma por relação à outra, na troca que as separa" (ibid.,p. 160). O que aparece é, portanto, uma cesura originária, uma "obscura raiz comum, [um] afrontamento originário" (ibid.,p. 164), e é a partir dela que vai se estabelecer, de um lado, uma "distância" (ibid.,p. 159), dessa vez histórica, entre razão e não-razão, sentido e não-sentido, louco e não-louco, e de outro lado, a postulação dessa loucura em estado selvagem, não-histórica, inapreensível. O viés vertical implica, não um salto para fora da história (quer dizer, para essa loucura primitiva, no entanto postulada), mas um movimento para baixo, para o domínio em que loucura e não-loucura ainda estão confusamente implicadas, em que sentido e não-sentido não estão ainda definidos, e que é a região da cesura originária. Eis o que vai se constituindo como a instância originária a partir da qual as ciências humanas vão ganhar seu novo estatuto, longe do "homem verdadeiro" e "desalienado" de 54. Certamente, não é tal ou tal momento histórico, mas toda a história da cultura que vai implicar esse "fundo". O modelo, dir-se-á, é heideggeriano, já que o "nada" faz aqui as vezes de um começo absoluto, de um não-fundamento absoluto.11 No entanto, é preciso notar que esse "nada" é e só pode ser um domínio em que razão e não-razão estão ainda confusamente implicadas, reconciliadas e em afrontamento; é esse o domínio originário e é ele que Foucault vai denominar "estrutura trágica", só apreensível por um viés vertical. Daí os limites do heideggerianismo de Foucault.

Mas, então, Foucault faz história do quê? Daquilo que se oferece ao viés vertical e que aparece. "Viés vertical" quer dizer: um viés que abre o domínio da cesura originária entre razão e não-razão. Mas esse domínio só pode ser entrevisto na medida em que, não ainda separadas, um ato já separa razão e não-razão: é esse ato que aparece a uma perspectiva vertical, é ele o ato pelo qual a cultura "exerce suas escolhas essenciais" (ibid.,p. 161): o viés vertical não nos leva a um nada puro, ao lado de lá da história, mas à decisão fulgurante "que liga e separa ao mesmo tempo razão e loucura"; daí porque essa decisão é, a um só tempo, "heterogênea ao tempo da história" e "inapreensível fora dele" (ibid.,p. 164): ela nos leva aos "confins da história" mas também ao "nascimento da história" (ibid.,p. 161). É por isso que é ela, e não a loucura primitiva, que é descritível. Que é ela, afinal? Foucault dirá que é uma estrutura constituída por "noções, instituições, medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos", em suma, um "conjunto histórico" denominado por ele "estrutura da experiência da loucura". Essa estrutura é descritível na justa medida em que ela é já uma separação, uma recusa, uma imposição de silêncio (por aqui, diga-se de passagem, Foucault poderá redefinir seu conceito de "alienação") - ou seja, ela é descritível sob o viés vertical, que faz vir à tona a "estrutura trágica", a reconciliação e o afrontamento entre razão e não-razão: a estrutura é histórica, certamente, mas se assenta "em seus confins, lá onde [a história] se decide" (ibid.,p. 164). Ora, mas justamente porque se trata aqui de uma "decisão" e de um fundo falso, sem positividade, dizer que um viés vertical nos leva ao nascimento da história não é dar razão da história, não é emitir a lei da história. A estrutura histórica de que fala Foucault não é temporal, não é uma res temporalis: não é o tempo que a forma, não é a história tomada como totalidade em devir que a explica; daí porque justamente Foucault a denomina uma "estrutura". Assim, "ser histórico" não quer dizer "ter na história a chave de sua constituição, o segredo de sua formação". "Fazer história" quer dizer então: fazer um estudo estrutural, descrever uma estrutura, não desvelar uma res temporalis; e fazer "história da loucura" quer dizer: estudo de uma estrutura que lança para o exterior o vazio que rejeita e sobre o qual se "funda", estrutura que, nessa medida mesma, constitui o que será para ela o sentido e o não-sentido. Assim, a forma "doença mental" faz parte de um conjunto histórico, e por isso é tardia em relação a uma decisão prévia; "assentada", como o conjunto de que faz parte, no vazio que rejeita, ela é uma forma histórica de partilha entre o sentido e o não-sentido. A partir dela, poder-se-á traçar o devir horizontal da razão, seus progressos, suas retificações, seu encadeamento, sua teleologia - devir, no entanto, que sofre, da parte de Foucault, aquela "redução `nominalista'", já que a positividade aí pressuposta não tem estatuto ontológico; é por isso que, se se quer fazer história - história vertical - é preciso operar aquele "deslocamento" de que fala Foucault e que consiste em definir novamente o que é "histórico".

Já não haverá um modelo continuísta marcado pela idéia de uma "longa narrativa linear" - a própria fonte da história e sua ausência de fundamento positivo tornam esse modelo caduco.12 Não se busca mais suprimir a descontinuidade em proveito de uma síntese; a descontinuidade não é mais obstáculo, mas "conceito operatório" (Foucault, 1969, p. 17): importa agora notar os momentos de ruptura, pois são justamente eles que permitem individualizar diferentes estruturas. Mas, do fato de que a ausência de fundamento impede uma síntese geral e de que a estrutura não é uma res temporalis, não se segue que se descrevam apenas estados e não transformações, que se estabeleçam cortes absolutos e não passagens. Isso só seria verdadeiro se permanecesse válida a oposição entre estrutura e devir; nesse caso, para admitir as passagens de uma estrutura a outra, seria necessário supor um devir que se esconderia por baixo das estruturas (devir legível, por exemplo, a partir da praxis humana) e que daria razão suficiente das passagens. Ora, o que se esconde por trás desse argumento é, novamente, a síntese geral, o princípio de totalização que dê razão da história. Esse princípio foi recusado desde o momento em que a história apareceu como sem fundamento positivo e as experiências descritas, como estruturas. Assim, trata-se certamente de descrever as passagens, as transformações, as mudanças, mas não em devir, ordenadas por um princípio geral; daí porque é a própria descontinuidade entre as estruturas, por meio de uma relação entre elas, que nos mostra a forma da passagem, a passagem de uma estrutura a outra.13 E é isso que faz Foucault em 1960 - muito embora, a essa altura, ele ainda não tenha elaborado sua teoria da história: será necessário, diz ele, "dar conta da passagem da experiência medieval e humanista da loucura a essa experiência que é a nossa, e que confina a loucura na doença mental" (Foucault, 1994d, p. 165). Vejamos o modelo foucaultiano em operação.

 

VIII

Vimos que não é possível recuperar a loucura em sua forma primitiva, que o viés vertical só nos leva até a região originária em que razão e loucura ainda estão em troca perpétua, confusamente implicadas, inseparáveis, existindo uma para a outra, uma por relação à outra, formando uma obscura raiz comum. É essa estrutura que Foucault denomina o trágico. E ela só se oferece a um viés vertical, e na medida em que um ato de separação, separando razão e loucura, razão e desrazão, as apreende como não ainda separadas. Esse ato nos leva aos confins da história e ao seu nascimento. Ora, por que, tendo estabelecido que essa estrutura é possibilidade da história em geral, Foucault afirma, ainda no Prefácio, que ela seja visível sobretudo na era clássica (ibid.,p. 164)? Certamente, esse corte para a era clássica é da ordem do exemplo. Mas não é sem ambigüidade que Foucault usa o termo "desrazão" ao longo de História da loucura, que subjaz tanto à possibilidade de uma história em geral - e, por consequência, das figuras históricas da loucura - quanto designa especificamente a loucura clássica. Isso se explica, como se verá, pelo fato mesmo de que a loucura na era clássica, como figura histórica, é de tal modo excluída e silenciada que não há ali senão o espaço da razão, do sentido; quanto ao não-sentido, ao não-ser, ele não tem qualquer estatuto, mera sombra de um positivo pleno, como se loucura já coincidisse com desrazão; o vasto domínio da razão já remete, portanto - ao "olhar vertical" do arqueólogo, evidentemente -, à desrazão ameaçadora.14 É essa forma de partilha que prepara a passagem à experiência moderna; foi ela, diz Foucault, que "precedeu e conduziu a formação de uma psiquiatria considerada por nós como positiva" (ibid.,p. 164). Ora, tudo vai se passar para o historiador como se a exclusão da loucura na era clássica permitisse a passagem a uma experiência da loucura que vai reduzi-la ao nível humano, que, como se verá, é própria à psiquiatria: a exclusão da loucura representa uma conjuração de seus poderes ameaçadores a ponto de permitir que o homem aprenda a fazer a partilha da loucura e da não-loucura a partir dele mesmo, dando nascimento assim ao que Foucault vai denominar a era antropológica. Tudo se passa então como se, para além de uma tese geral sobre a história, Foucault procurasse simplesmente traçar a história das condições de possibilidade da psicologia, reatando assim com seu antigo projeto de compreensão do estatuto das ciências humanas, e apenas a partir daí fosse levado a operar um recuo histórico, condição mesma, doravante, de uma crítica.

O recuo histórico leva Foucault até a Renascença, para mostrar que já ali era preparada a experiência clássica da loucura. Ele a denomina "experiência crítica".15 Nessa experiência, a loucura deixa de ser uma "figura da escatologia", a noite "de onde nascem as formas do impossível"; ela é então "amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas". É então que um pesado esquecimento vai cair sobre o mundo, e a loucura, dominada, vai fazer parte "das medidas da razão e do trabalho da verdade"; ela agora "diz o verdadeiro e a mentira, ela é sombra e luz", "signo irônico que embaralha as marcas do verdadeiro e do quimérico, guardando mal a lembrança das grandes ameaças trágicas" (Foucault, 1995a, pp. 53-5). Se é verdade, contudo, que a experiência clássica nasce na Renascença, é verdade também que essa experiência faz parte de uma outra estrutura. Ali onde a Renascença liberava as "vozes" da loucura - mas cuja violência era já "dominada" -, o período clássico vai "reduzi-la ao silêncio". É aqui que aparece o "estranho golpe de força" (ibid.,p. 56) (a "decisão fulgurante", a "escolha essencial" do classicismo) do qual a Primeira Meditação é um aspecto - e apenas um aspecto, no nível de uma "experiência filosófica" (ibid.,p. 59).

É que a estrutura da argumentação cartesiana, durante o trajeto da dúvida, implica, desde o começo, afastar a possibilidade de que o sujeito meditador seja louco. Na leitura foucaultiana de Descartes - leitura vertical -, o sujeito meditador pode supor que sonha e se identificar ao sonhador; mas ele não pode fazer o demens, como faz o dormiens, "ele não pode supor, mesmo em pensamento, que é louco, pois a loucura é justamente condição de impossibilidade do pensamento" (ibid.,p. 57). Na resposta tardia às objeções que Derrida lhe fez, Foucault se explica melhor sobre sua leitura do texto cartesiano. O argumento do sonho, diz ele, implica que o sujeito meditador retome uma situação que lhe ocorre freqüentemente ("quantas vezes, à noite, ocorreu-me sonhar que eu estava nesse lugar..."); em sua meditação, o sujeito fará então como se estes olhos que ele abre sobre seu papel, estas mãos que estende, fossem imagens de sonho - ele o fará até o ponto em que essa experiência possa vir se alojar "nas balizas do aqui e do agora" (Foucault, 1994h, p. 289). Já os insensatos são caracterizados por Descartes como aqueles que se tomam por reis, que crêem ter um corpo de vidro, etc.: essas imagens escolhidas por Descartes não reproduzem mais uma situação costumeira que possa ser retomada pelo sujeito meditador: "o louco está alhures, em outra cena" (ibid.,p. 289). O sujeito meditador não pode reproduzi-la porque ele então se desqualificaria, ele faria uma meditação extravagante e não uma meditação válida sobre a extravagância (ibid.,p. 287): "seria extravagância supor que se é extravagante" (Foucault, 1995a, p. 58). No que se refere à loucura, portanto, diferentemente do que acontece com o sonho e outras formas do erro, não é mais que tal coisa possa ser falsa, mas que o eu que pensa, esse eu não pode ser louco. Daí porque Foucault nota um "desequilíbrio fundamental" entre a loucura, de um lado, e o sonho e o erro, de outro. Ora, que isso revela a uma leitura vertical? Que a Razão se encerrou em uma "plena posse de si" na medida em que "o perigo da loucura desapareceu do exercício da Razão": a purificação da Razão se deveu a esse "golpe de força" pelo qual a loucura foi rejeitada para fora de seus domínios, para fora do domínio, portanto, da relação do sujeito com a verdade. Nesse novo domínio assim purificado, não há troca entre Razão e Irrazão, não há, como ainda havia no século XVI, a figura de uma Razão irrazoável e de uma razoável Irrazão. A um olhar vertical, portanto, o advento da ratio moderna implica o exílio da loucura, o rompimento com a Desrazão (ibid.,pp. 57-58).

Mas, para além da experiência filosófica, outros signos vão "trair" esse evento clássico, essa exclusão, e o principal deles, que pertence "a uma superfície cultural muito larga" (ibid.,p. 59), é o internamento - "criação institucional própria ao século XVII" (ibid.,p. 90). Visto na perspectiva da "história da desrazão", sob o viés vertical, o internamento traça uma nova linha de "banimento": ele designa o "momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de se integrar ao grupo". São "valores éticos" que designam uma nova "sensibilidade". O espaço da ordem é então resguardado, ele não afronta mais a desordem; nele, a razão - purificada - não tenta mais "desviar-se" do seu caminho e ela pode então "reinar" (ibid.,pp. 90-91). Evidentemente, o internamento trai uma experiência da desrazão da qual "seria absurdo" dizer que ele é a causa; antes dele, uma "primeira alienação" foi efetuada - quer dizer, o fato histórico do internamento, visto verticalmente, supõe uma primeira exclusão da desrazão (já que a história remete ao trágico): se a sociedade designa esses loucos como "alienados", é porque antes a desrazão foi posta em silêncio, exilada, "contornada e encerrada em uma quase-objetividade" (ibid.,p. 118), é porque nessa mesma sociedade a desrazão foi, enfim, alienada: eis aqui como Foucault define agora a alienação originária, antes pensada a partir da figura positiva do homem verdadeiro. A desrazão "deixou de ser experiência na aventura de toda razão humana [...] ela não pode mais animar a vida secreta do espírito, nem acompanhá-lo com sua constante ameaça. Ela é posta à distância" - eis aqui, enfim, a condição do internamento, internamento que vai assegurar que essa distância "não é somente simbolizada, mas realmente assegurada na superfície do espaço social pelo fechamento das casas de internamento" (ibid.,p. 118).

É verdade que o classicismo mantém separadas duas experiências que o antropologismo vai unir: a experiência social, que se formula em termos absolutos de "inocente ou perigoso", e a experiência jurídica, relativa ao "sujeito de direito", sensível às questões de limites e de graus. De fato, os clássicos, segundo Foucault, podiam falar em "desarranjo de espírito", "grande mentiroso", "espírito inquieto", designando por isso não doenças, mas "formas de loucura que seriam percebidas como a ponta extrema de vícios [défauts]" (ibid.,p. 150). Não doença (como será mais tarde), mas também não sátira moral (como o fora antes): o insensato da Renascença é insensato na medida em que ele é "arrastado pela força viva da loucura" (ibid.,p. 151; grifo meu); o insensato clássico, ao contrário, é insensato não porque perdeu o uso da razão, não porque sua razão é perturbada, mas porque sua vontade é : "é na qualidade da vontade, e não na interioridade da razão, que reside finalmente o segredo da loucura" (ibid.,p. 151): era assim o abade Bargedé, um usurário sem "nenhum sentimento de caridade"; era assim a moça de dezesseis anos que dizia não haver lei que a obrigasse a amar seu marido - segundo os relatos de Foucault. A loucura se assenta, na experiência clássica, em um erro ético.16 A alienação e a maldade andam juntas, loucura e crime não se excluem, mas se implicam a ponto de que o sujeito pode ser um pouco mais insensato, um pouco mais criminoso, mas lá no extremo de sua loucura ele ainda será mau. Não há desculpas para a loucura, ela é cúmplice da maldade. Eis aqui, depurada por Foucault, a experiência social - como o internamento, "uma criação própria ao mundo clássico" (ibid.,p. 149). Ela não se confunde com a experiência jurídica porque ela reconhece a prerrogativa de uma vontade livre. Daí porque, comentando a ausência de desculpas para a loucura, Foucault observa que isso nos leva "ao extremo oposto dessa regra fundamental do direito de que `a verdadeira loucura tudo desculpa'", sendo ela mesma, segundo reza o verbete de um Dicionário de direito e de prática do século XVII, uma "punição suficiente" para o insensato. Nesse caso, já não se reconhece vontade própria ao insensato, ao contrário da experiência social, em que alguém é internado por ter um "caráter violento" e ser "um grande mentiroso" (ibid.,p. 153). No limite, essa vinculação entre loucura e maldade torna frouxa a diferença entre loucura involuntária, aquela que se apossa do homem, e loucura fingida por sujeitos lúcidos: mesmo a loucura involuntária se assenta numa vontade pervertida e má - o que torna ainda mais evidente a diferença entre essa experiência e a experiência jurídica porque o direito, por sua vez, vai buscar, em detalhes, os traços de uma verdadeira loucura; afinal, só os loucos verdadeiros não serão condenados à pena que seu crime mereceria. Na experiência jurídica, não é a vontade que é atingida, mas a razão - o que, segundo Foucault, data do direito romano e passa pelos juristas do século XIII; é porque atinge a razão que a loucura altera a vontade do louco, "tornando-a inocente". Segundo o mesmo Dicionário de direito e de prática, no artigo "Loucura", citado por Foucault:

(...) a loucura ou extravagância é uma alienação do espírito, um desregramento da razão que nos impede de distinguir o verdadeiro do falso, e que, por uma agitação contínua do espírito, coloca aquele que é atingido por ela sem condições de poder dar qualquer consentimento. (Ibid.,p. 155)

Na experiência social, é simplesmente a vontade má que está na origem da loucura - e com um aspecto desconhecido pela Idade Média e pela Renascença: a loucura não se liga ao Mal "sob a forma das transcendências imaginárias"; dessa feita, "ela comunica com ele pelas vias mais secretas da escolha individual e da intenção má" (ibid.,p. 152). Essa primazia da vontade não é - nem poderia ser - explícita nos textos consultados por Foucault, "mas ela se trai através das motivações e dos modos de internamento" (ibid.,p. 153; grifo meu). Afinal, apenas em seu aspecto exterior o internamento pode passar por um "exorcismo exitoso" e indicar que a razão enfim conjurou os poderes da desrazão. Mas, em verdade, ele apenas trai "uma partilha ainda mal assegurada": ele "prova que a desrazão, na era clássica, não é repelida para os confins de uma consciência razoável solidamente fechada em si mesma; mas que sua oposição à razão se mantém sempre no espaço aberto de uma escolha e de uma liberdade". Eis aí o que o internamento, apesar de si mesmo, revela: que a partilha entre razão e desrazão se realiza "como uma opção decisiva" (ibid.,p. 156).

Mas isso não se vê apenas no internamento. No nível da "experiência filosófica", é ainda Descartes que permite entrevê-lo. Vimos como, para Foucault, o texto cartesiano excluía a loucura do domínio da Razão. A questão que ele se coloca agora é: que essa exclusão revela quanto ao estatuto da desrazão na era clássica? Há uma vontade de duvidar em Descartes, uma vontade resoluta de manter-se desperto, uma decisão sempre reiterada de abrir os olhos para o verdadeiro, de despertar do entorpecimento, de vencer a preguiça que o arrasta para o curso da vida ordinária. A dúvida, reitera Foucault, é animada por uma "vontade de despertar" que é, a todo instante - eis o que a dúvida voluntária trai - uma exclusão dos "encantamentos involuntários da desrazão": se a loucura não intervém na economia da dúvida, é porque, desde sempre, desde o início, ela já estava excluída "do propósito de duvidar e da vontade que a anima desde o ponto de partida" (ibid.,p. 156). A vontade de duvidar trai a vontade de excluir a loucura, e de excluí-la a cada instante, porque há "uma perpétua tentação de sono e de abandono às quimeras que ameaçam a razão". Na origem da razão clássica, bem antes do cogito, há portanto a ética "como escolha contra a desrazão" (ibid.,p. 157): é esse o solo da razão clássica. E se a primeira alienação da desrazão, que a põe à distância, a exila e a reduz ao silêncio, está na origem não só do internamento, mas também do conhecimento antropológico, vê-se o que terá que fazer o século XIX para constituir o seu solo de "necessidade positiva", a sua categoria de objeto (a exigir, de parte do arqueólogo, uma "redução" bem mais profunda do que a redução fenomenológica): ele terá que afastar esse caráter de escolha fundamental do solo da razão; tudo vai se passar, na versão foucaultiana, como se a razão, no século XIX, já não tivesse que se desvencilhar da loucura, mas "reconhecer-se como anterior a ela"; e, conseqüentemente, a loucura já não viria à luz, como na era clássica, em um clarão de liberdade (ibid.,p. 158); não haverá uma escolha original, "constitutiva da razão e por conseqüência do próprio homem"; ao contrário, nesse novo solo de positividade, a loucura será algo que acontece, do exterior, à razão, ela não será mais que um "acidente humano" (ibid.,p. 159) que já não põe em questão o próprio homem. Não há uma escolha constitutiva do homem porque o espaço mesmo da razão - e por conseqüência do humano - se afirma como positividade. Daí porque o século XIX "poderá se indignar com o tratamento inumano que a era precedente impôs aos loucos" (ibid.,p. 158): é que agora, uma vez afastada aquela partilha originária, ética, entre razão e loucura, uma "consciência `moral'", como "relação segunda entre razão e moral", poderá nascer; é relação segunda porque a positividade já se dá como estabelecida e a loucura não tem mais o poder de contestá-la. Se o século XVII, por sua vez, não colocava em questão o tratamento "humano" para a loucura, era porque essa já era "de pleno direito inumana", quer dizer, ela era o outro lado de uma escolha que tornava possível o exercício da razão, o outro lado de uma escolha que constituía o humano; se o humano, ao contrário, é um solo já dado, já objetivado, a loucura é um acidente que o ataca de fora, sem poder de contestá-lo, já que não esteve na origem de sua constituição. Daí porque Foucault dirá que a loucura é agora reconhecida sobre um fundo de natureza, que se afirma como positividade, e não mais no horizonte clássico da desrazão; vem daí que a loucura apareça agora como simples queda no determinismo, que só tenha o poder de nos mostrar as "regularidades naturais de um determinismo", que ela só ameace o homem com "o retorno ao mundo morno das bestas e das coisas" (ibid.,p. 174; 170), enquanto no racionalismo a desrazão mantém seu poder perpetuamente ameaçador, a exigir uma escolha continuada. Numa palavra, destacada e distinguida da desrazão, a loucura tornar-se-á acidente humano, doença mental. É nesse sentido que Foucault compreende a figura do Gênio Maligno: o perigo representado por este se encontra bem aquém do homem e "poderia impedi-lo definitivamente de aceder à verdade", pois, ainda que o cogito seja um "começo absoluto", é verdade também que "o gênio maligno lhe é anterior"; daí porque a desrazão clássica nada tem que ver com um evento psicológico ou com o patético humano (ibid.,p. 175).

 

IX

Essa versão do classicismo torna mesmo necessária a distinção entre as duas experiências da loucura de que fala Foucault, a social e a jurídica, já que se trata, para ele, de mostrar a razão clássica fundada em uma escolha originária contra a desrazão. E, inversamente, é a união entre elas, por um novo "golpe de força", que o século XIX, com o pano de fundo da natureza, deverá realizar. Que a desrazão, na experiência clássica, não se confunda com um evento psicológico, isso pode ser notado já no fato de que a medicina clássica não assumia a separação entre a substância pensante e a substância extensa "no nível de seus problemas e de seus métodos" (ibid.,p. 347). A distinção entre o orgânico e o mental, nesse nível, vai supor o abandono do horizonte da desrazão e, conseqüentemente, que a loucura seja "confiscada" em uma intuição moral, tornada apenas doença; só assim ela pode receber um "estatuto puramente psicológico e moral"17 (ibid.,p. 341). Nesse caso, erro e falta já não implicam uma retirada do mundo e da verdade, não são mais da ordem do não ser; elas são tomadas à luz daquela relação moral, encerradas simplesmente na noção de culpabilidade: elas são parte de uma interrogação do sujeito responsável.18 Foi a prática da sanção, assegura Foucault, e não uma conjuração dos poderes da desrazão, que separou no louco "as medicações do corpo e da alma" (ibid.,p. 347); foi então que se definiu a "interioridade psicológica" na qual o homem busca sua verdade - quer dizer, foi então que se separou aquilo que releva do orgânico e que demanda uma "terapêutica física" (terapêutica que será a cura do "determinismo inocente") e aquilo que pertencia outrora à desrazão e à transcendência de seu discurso e que demanda um "tratamento moral" (tratamento que será a cura da "liberdade culposa" [fautive] (ibid.,p. 346)). A condição, portanto, para que uma medicina psicológica se torne possível é que a loucura se encontre "alienada na culpabilidade" (ibid.,p. 347). Daí porque a psicologia não é a verdade da loucura, mas "signo de que a loucura é agora destacada de sua verdade que era a desrazão"; a partir de então, a loucura não é mais que um "fenômeno à deriva, insignificante, na superfície indefinida da natureza" (ibid.,p. 360). Diferentemente da época clássica, que não distinguia a consciência de loucura e a de desrazão, a modernidade toma a loucura no horizonte humano, e por isso ela não significa mais uma "perda absoluta da verdade": já não é a verdade que o homem perde, mas sua verdade, "não são as leis do mundo que lhe escapam, mas ele mesmo que escapa às leis de sua própria essência": foi ele mesmo que se perdeu (ibid.,p. 400). Aqui, o a priori antropológico já está constituído, com sua natureza paradoxal de a priori histórico: sendo histórico, ele é já necessariamente tardio. E é também ele que garante que o homem não se perca jamais inteiramente, que não é o homem inteiro que a loucura contesta, pois ela aparece em um espaço de positividade, sem aquele poder negativo e ameaçador de contestação que ela ainda tinha na época clássica, quando ainda não se distinguia da desrazão; em regime antropológico, a loucura não goza dos prestígios que a tornavam uma figura conjurada; ela torna-se uma "forma observada, coisa investida pela linguagem, realidade que se conhece; ela torna-se objeto" (ibid.,p. 463; grifo meu). Daí porque o novo espaço de internamento não só aproxima loucura e razão; ele também as torna distantes uma da outra, em um "desequilíbrio que não poderá mais ser invertido", pois essa queda na objetividade torna a loucura não mais o "inverso sempre iminente [da] existência, mas um evento possível no encadeamento das coisas. Essa queda na objetividade domina a loucura mais profundamente e melhor do que sua antiga sujeição às formas da desrazão" (ibid.,p. 463). É ela que torna possível a experiência positivista da doença mental. Daí porque a tese do enraizamento da psicologia nas figuras do negativo, tese tão cara a Foucault, ganha agora novos contornos: é ainda certo para ele que a verdade da lembrança, por exemplo, só é estabelecida pela patologia da memória, mas, uma vez que a psicologia é vista agora à luz de uma estrutura antropológica, o negativo é tomado como objetividade (de que a loucura, em sua entrega absoluta aos eventos do mundo, é o paradigma) pelo fato mesmo de que ele é tomado no interior daquela estrutura: o verdadeiro negativo escapa à psicologia - e escapa por princípio, razão pela qual o louco é reduzido a uma "coisa inerte". Daí porque a loucura não é mais objeto de temor: ela não é mais a forma absoluta da contradição, ela é infância, menoridade (ibid.,p. 509). Outrora, ela se colocava no exterior, entregue ao arbítrio dos poderes da razão; agora, ela é julgada continuadamente; ela escapa ao arbítrio para entrar em um

(...) processo indefinido para o qual o asilo fornece policiais, instrutores, juízes e carrascos [...] o asilo na era positivista [...] não é um livre domínio de observação, de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço judiciário em que se é acusado, julgado e condenado. (Ibid.,pp. 522-3)

Não foi uma liberação que ocorreu nos fins do século XVIII: a história vertical descrita por Foucault permite-lhe fazer uma retificação da tese humanista e positivista da liberação. Afinal, já na experiência clássica, a liberdade estava implicada na noção mesma de loucura; não uma liberdade dada, oferecida em um gesto positivo, mas aquela localizada no "ponto virtual de escolha", no momento "muito originário, muito obscuro, muito dificilmente assinalável da partida e da partilha", pelo qual o louco é livre para abandonar sua liberdade e encadear-se à sua loucura, renunciar à verdade e sombrear no erro (ibid.,pp. 532-3). Não é de liberaçãoque se trata no fim do século XVIII, mas de uma objetivação do conceito de liberdade (ibid.,p. 533). É porque a liberdade foi objetivada que se pode estabelecer, a um só tempo, um determinismo que a nega e uma culpabilidade que a exalta (ibid.,p. 534): o louco é inocente face aos determinismos que o constrangem (determinismo inocente); mas um ato será julgado louco justamente na falta de uma razão que o justifique (ibid.,pp. 538-9) (liberdade culposa); ele é olhado, mas com neutralidade, já que uma cadeia determinista o exaure na condição de objeto; mas também é olhado com paixão, pois o louco revela as verdades profundas do homem, e por isso o médico não poderá reconhecê-lo sem reconhecer-se; no entanto, se ele se reconhece, ele vai se proteger desse reconhecimento e não acolhê-lo como o fará a experiência lírica dos heróis foucaultianos: ele vai se proteger afirmando que o louco é coisa e coisa médica (ibid.,p. 538). Eis aqui a unidade antropológica, unidade que sintetiza, a partir de um golpe de força, aquelas duas experiências que a era clássica separava. Assim, a estrutura antropológica envolve uma série de antinomias típicas que a fazem girar em círculo. Por trás desse sistema de contradições, Foucault quer notar uma coerência escondida, uma estrutura ternária que se superpõe à estrutura clássica, de tipo binária, que separa ser e não-ser, verdade e erro, mundo e fantasma, dia e noite. Se a experiência lírica dos heróis de Foucault (Hölderlin, Nerval, Nietzsche, Roussel, Artaud) é capaz de acolher essas antinomias na forma de uma "dualidade reconciliada consigo mesma", em uma "linguagem não ainda partilhada" (ibid.,p. 540), a reflexão, por sua vez, rompe com essa estrutura porque não pode se reconciliar com a desrazão. Daí a estrutura dialética de três termos: o homem, sua loucura e sua verdade. É o que Foucault mostra a propósito da figura da paralisia geral (que condensa, nas suas palavras, tudo o que há de filistino na medicina mental (ibid.,p. 542)); a propósito da "insanidade moral", que guarda para ele um privilégio já evidenciado desde sua versão do classicismo: afinal, é essa a loucura que não afeta a esfera da razão e que tem parentesco com uma vontade má; ora, por secreta que seja essa loucura, diz agora Foucault, ela só existe na medida em que se objetiva em violência, em assassinato, etc.; ela é o modelo de toda psicologia possível porque é por ela que a loucura se torna a forma principal de objetivação do homem e, portanto, da verdade do homem. A fórmula foucaultiana reza que "o homem só se torna natureza para ele mesmo na medida em que é capaz de loucura": é na loucura que o homem se torna "coisa inerte", o devir-objeto do homem vem dessa passagem espontânea à objetividade, de que a loucura moral, mais que toda outra, é o modelo. Essa passagem à objetividade estava excluída da experiência clássica porque ali havia uma estrutura de dois termos. Agora, ao contrário, o caminho até a verdade do homem passa pelo homem louco, que é o homem objetivado: "o paradoxo da psicologia `positiva' no século XIX é só ter sido possível a partir do momento da negatividade: psicologia da personalidade por uma análise da duplicação; psicologia da memória pelas amnésias". Mas, então, paradoxalmente, "a verdade do homem só [será] dita no momento de sua desaparição; ela só se manifesta tornada outra que não ela mesma" (ibid.,p. 545). Eis aí o "círculo antropológico".

Que jogo Foucault traz aqui à luz, senão o da interminável dialética do Mesmo e do Outro? O louco é o outro do homem, mas é o outro que revela a sua verdade; na loucura, o homem encontra sua verdade, mas também o contrário de sua verdade, encontra ele mesmo e outra coisa que ele mesmo. Daí o sólido laço que ata o homem ao louco, o "laço de uma verdade recíproca e incompatível" (ibid.,p. 548). A verdade do homem está aí, no enigma do louco que ele é e não é. Ora, a astúcia antidialética de Foucault consiste em radicalizar sua "redução" da objetividade para além de toda fenomenologia, em notar, por baixo dessa estrutura, um esquecimento daquela instância originária que ele denominou, à maneira nietzschiana, o "trágico" e a partir da qual ele pode fazer sua avaliação das ciências humanas - esquecimento insuspeitado por Heidegger. Na experiência clássica, o louco era simplesmente o Insensato, o Estranho por relação ao Ser, a loucura era noite em face do dia da verdade; na experiência moderna, o louco é alienado na forma da doença, Estranho por relação a si mesmo, não mais a noite em face da verdade, mas condição mesma da verdade do homem, de que o homem tenha acesso a si mesmo como ser verdadeiro, acesso que só lhe é dado nessa forma alienada (ibid.,p. 548). Eis porque a psicologia está condenada a não falar outra linguagem que a da alienação - ou, se se quiser, condenada a não falar outra linguagem que a da dialética. Não é à toa que no momento em que mostra a estrutura "homem-loucura-verdade", Foucault tome Hegel por modelo (ibid.,p. 539). Ora, mas justamente porque deve falar a linguagem da alienação, a psicologia será sempre uma crítica - do homem ou de si mesma. Tudo se passa como se a psicologia - e, com ela, o conjunto das ciências humanas - estivesse numa encruzilhada entre Nietzsche e Hegel: ou ela aprofunda a negatividade do homem até o ponto extremo em que se pertencem o dia e a noite (e ela vai então "filosofar a golpes de martelo"); ou ela permanece nesse jogo de incessantes retomadas, de "ajustamentos do sujeito e do objeto, do interior e do exterior, do vivido e do conhecimento" (ibid.,p. 549) (é o caminho da fenomenologia que Foucault vem de abandonar). Se ela se engaja na interminável "tagarelice da dialética", a desrazão permanece muda. Outros - os heróis foucaultianos - tomaram o primeiro caminho, aqueles em quem a desrazão continua a velar em sua noite, que fazem a experiência trágica para além das promessas da dialética (ibid.,p. 554). Aqui, a loucura recupera a linguagem, e que não é mais a linguagem do fim dos tempos, do homem devorado pela animalidade; é a linguagem lírica, linguagem que anuncia aquilo que, na Introdução de 54, Foucault já buscava e que ele tomava então como a linguagem do sonho: ela supera a contradição entre o subjetivismo e o objetivismo, o desejo e o mundo, o sentido e o não-sentido, como uma "linguagem não ainda partilhada" (ibid.,p. 540), na qual "o extremo da subjetividade se identifica à fascinação imediata do objeto" (ibid.,p. 537).

 

Referências

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Merleau-Ponty, Maurice 1995: Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: luizdamon@yahoo.com.br

Recebido em 17 de fevereiro de 2004
Aprovado em 14 de abril de 2004

 

 

1 Que Freud tenha "psicologizado" o sonho, essa conclusão depende ainda de uma crítica de um postulado estabelecido pela psicologia do século XIX - de que o sonho é uma rapsódia de imagens - e que, segundo Foucault, Freud não teria ultrapassado. E porque se trata apenas de imagens, esse postulado presume que uma análise psicológica seja exaustiva - tanto uma análise no estilo mecânico de uma psicofisiologia, quanto uma análise no estilo de uma busca do seu significado: ambas se detêm na imagem. Mas o sonho, diz então Foucault, é outra coisa que uma rapsódia de imagens; ele releva da teoria do conhecimento, ele é antes uma experiência imaginária como forma específica de conhecimento, como experiência de uma verdade: o sonho é profético (ibid.,pp. 80-81). No sonho, o homem faz a experiência do que ele é e do que será, do que ele fez e do que vai fazer; nele, a verdade do mundo se antecipa, visão interior que não se deixa mais mediatizar pelos sentidos exteriores. Não é de imagem que se trata no sonho, mas da imaginação em sua atividade transcendental de constituição originária do mundo. Voltaremos a esse estatuto do sonho adiante, quando compararmos sonho e loucura.
2 Essa é a partilha entre a loucura e o sonho, mundo mórbido e mundo onírico, alienação e transcendência. O sonho tem um papel fundamental na Introdução: é nele, insiste Foucault, que a imaginação segue seu livre curso de atividade transcendental constituinte; por isso, é nele apenas (e não na consciência desperta, por exemplo, não na percepção) que é ultrapassada a distinção entre interior e exterior, subjetivo e objetivo. O sonho, dirá Foucault, é uma visão interior não mediatizada pelos sentidos exteriores; mais ainda: é uma visão que ultrapassa a distinção entre interior e exterior (ibid., pp. 86-87), distinção que, por outro lado, a loucura aprofunda; o sonho é o movimento originário da liberdade (e não dos "instintos libidinais") que faz nascer um mundo; correlativamente, o "mundo próprio" do sonho não é o mundo subjetivo por oposição ao mundo objetivo; é antes o mundo originário diante do qual o mundo dos sentidos se revela um mundo de sombras (ibid.,p. 91), já marcado por essa oposição. Daí porque o sonho não é, segundo Foucault, uma rapsódia de imagens. É a propósito da loucura, não do sonho, que se pode falar em "imagens". Foucault termina seu artigo sobre Binswanger contestando a teoria sartriana da imaginação e distinguindo, contra Sartre, imaginação de imagem, como distingue sonho de loucura. É nesse último caso que a imaginação se encontra "travada", e ela se trava justamente "na imagem": é nela que o imaginário sucumbe e termina por se suprimir: daí a "partilha" a que Foucault se refere, o ponto decisivo da partilha que conduz, de um lado, ao sonho, de outro, à patologia. O doente é aquele que se aliena nas imagens, imagens que serão tanto mais fortes, tanto mais consistentes, quanto a imaginação mais se alienar nelas. O sonho, por outro lado, vai além das imagens, ele as transcende, ele é o movimento da liberdade que se dá um mundo; aqui, a imaginação tende não para uma parada, mas para o "momento primeiro da existência em que se realiza a constituição originária do mundo". A imagem do sonho é apenas a "maneira da consciência vígil de recuperar seus momentos oníricos": é a consciência vígil que, no interior do mundo constituído, tenta reapreender o movimento da imaginação e, subindo a corrente autêntica da imaginação, a contrapelo do que é o sonho, "ela o restitui sob forma de imagens" (ibid.,p. 112). A passagem a essa instância imaginária constituinte é que vai representar, segundo Foucault, a passagem a uma "analítica ontológica", a "passagem de uma análise antropológica do sonho a uma análise ontológica da imaginação" (ibid.,p. 117). Ora, tudo se passa como se Foucault, embora notasse, na Introdução, os limites que a loucura impõe à fenomenologia, ainda afirmasse ali seu papel fundacionista porque se tratava então do sonho: a passagem pelo caso Ellen West não o levou, ali, a questionar esse alcance da fenomenologia, o que será feito apenas em Doença mental e personalidade. A contradição entre os textos é flagrante porque o papel fundacionista da fenomenologia não é restrito a uma análise do sonho e ao papel da imaginação. Tudo se passa como se a "partilha" entre sonho e loucura representasse a duplicidade teórica do próprio Foucault em 54.
3 Macherey observa, com razão, que onde se lia "dimensões exteriores", deve-se ler "dimensões interiores": houve, evidentemente, um erro de impressão.
4 Ora, é justamente esse pressuposto antropológico que a edição revista de 62, com novo título, Doença mental e psicologia, vai contestar. Foi esse o tema explorado por Macherey (1986). O artigo de Macherey é, certamente, o mais interessante a abordar esse período do pensamento de Foucault, por meio de uma comparação entre a primeira edição (Doença mental e personalidade)e a segunda (Doença mental e psicologia).No entanto, ele não mostra o que levou Foucault de uma versão (humanista) a outra (arqueológica); limita-se a constatá-la.
5 Diz o texto: "a patologia mental deve se liberar de todos os postulados abstratos de uma metapatologia: a unidade assegurada por esta entre as diversas formas de doença não é jamais senão factícia; é o homem real que conduz sua unidade de fato" (Foucault, 1954, p. 16).
6 Essa fórmula - a alienação precede a doença - será mantida por Foucault mesmo quando a noção de doença e de alienação mudar por completo de sentido.
7 Foucault não vai ao ponto de afirmar que a reflexão transcendental não diz nenhuma verdade sobre a consciência; prudente, ele diz do inconsciente que ele permite afirmar uma verdade psicológica da consciência. Noutras palavras, em 57, ele ainda evita se pronunciar sobre o lugar reservado à fenomenologia - parece bem evidente que a "reflexão transcendental" a que ele se refere aqui é a reflexão husserliana; será necessário esperar Folie et déraison dans l'âge classique e Les mots et les choses para que ele se acerte de vez com a fenomenologia.
8 Tudo se passa como se a fenomenologia ainda fosse presa de um modelo dialético que Foucault quer justamente superar. Voltaremos a isso adiante.
9 Certamente, ao falar em "escolha", Foucault não pretende retomar uma idéia qualquer de subjetividade. Voltaremos a esse tema adiante.
10 A partir da segunda edição, de 1972, Foucault muda o título, que passa a ser História da loucura na era clássica. Também a partir dessa edição, o Prefácio, que nos importa aqui comentar, será suprimido. Será suprimida ainda uma nota do último capítulo.
11 É o que sugerem tantos leitores de Foucault: Gros, 1997, p. 33; Macherey, 1986 entre outros.
12 Em duas entrevistas de 1967, "La philosophie structuraliste permet de diagnostiquer ce qu'est aujourd'hui" et "Sur les façons d'écrire l'histoire", Foucault retoma esse assunto, rejeitando ali, respectivamente, a idéia de uma "longa narrativa linear" (Foucault, 1994c, pp. 582-3) e a "concepção da história organizada sobre o modelo da narrativa como grande sequência de eventos tomados em uma hierarquia de determinações" (Foucault, 1994g, p. 586). Na Introdução à Arqueologia do saber, esse tema é vinculado explicitamente ao tema do fundamento: a idéia de continuidade requer uma instância fundante, e essa instância é ocupada pelo sujeito. Diz Foucault: "se a história do pensamento podia permanecer o lugar das continuidades ininterruptas, se ela ligava incessantemente os encadeamentos que nenhuma análise poderia desfazer sem abstração, se ela tramava, em torno do que os homens dizem e fazem, obscuras sínteses que o antecipam, preparam-no e conduzem-no indefinidamente para seu porvir - ele seria para a soberania da consciência um abrigo privilegiado. A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito [...]. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo devir e de toda prática são duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é concebido em termos de totalização e as revoluções são apenas tomadas de consciência" (Foucault, 1969, pp. 21-22). É esse vínculo entre história continuísta e sujeito que a noção de verticalidade estava destinada a romper.
13 Em 1967, em resposta àqueles que o acusam de ter admitido ou inventado um corte absoluto entre o fim do século XVIII e o início do XIX, Foucault afirma: "é o contrário de uma descontinuidade que eu quis estabelecer, pois eu manifestei a forma mesma da passagem de um estado a outro" (Foucault, 1994g, p. 586). E em 1969, na entrevista "Michel Foucault explique son dernier livre" (Arqueologia do saber): "quando algumas pessoas, felizmente pouco numerosas, me acusaram [a propósito de Les mots et les choses] de descrever apenas estados do saber e não transformações, é simplesmente porque elas não leram o livro. Se o tivessem ao menos folheado com um dedo distraído, teriam visto que a questão ali são as transformações e a ordem na qual essas transformações se fizeram" (Foucault, 1994b,p. 718).
14 Isso não torna a experiência clássica da loucura, como pretende Gros, uma "experiência trágica do trágico" (Gros, 1997,p. 34). É que o trágico não implica apenas afrontamento, separação, mas também reconciliação, não-separação. É disso que Gros se esquece. O trágico implica uma raiz comum, uma troca entre razão e não-razão, enquanto a experiência clássica é justamente aquela que separa razão e não-razão como separa o dia e a noite, a sombra e a luz, o ser e o não-ser.
15 Essa forma de experiência da loucura, descrita a partir de Brant, de Erasmo, da tradição humanista, é "tomada no universo do discurso" e não mais no "espaço da pura visão" (na pintura de Bosch, Brueghel, Thierry Bouts, Dürer, que revelam antes a experiência trágica). Ela revela uma loucura já "desarmada", tomada em outra "escala" (Foucault, 1995a, pp.38-39), não mais "ligada ao mundo e às suas formas subterrâneas, mas antes ao homem, às suas fraquezas, a seus sonhos e a suas ilusões. Tudo o que havia de manifestação cósmica obscura na loucura, tal como a via Bosch, é apagada em Erasmo": a loucura então "se insinua [no homem], ou antes, ela é uma relação sutil que o homem entretém consigo mesmo", como se não houvesse mais a loucura, mas loucuras, "formas humanas de loucura", aquelas constituídas pelo homem na relação consigo mesmo; ela não diz respeito "à verdade e ao mundo", mas "ao homem e à verdade dele mesmo" (ibid., pp. 35-36). A loucura é aí vinculada a um universo moral, com aspectos de "sátira moral", em que "o Mal não é castigo ou fim dos tempos, mas somente faltas e vícios [fautes et défauts]", em que nada lembra "essas grandes ameaças de invasão que assombravam a imaginação dos pintores"; ela é simplesmente uma "doce ilusão", vinculada a "um mundo calmo [...] facilmente dominado"; é o que permite a Foucault dizer que a loucura é então percebida "de bem longe [...] fora de perigo", "não mais figura do cosmos, mas traço de caráter do aevum" (ibid., pp. 36-37). Entre a experiência trágica e a consciência crítica, a visão cósmica e a reflexão moral, "a distância não cessará mais de se alargar", a ponto de a estrutura de afrontamento desaparecer por completo no século XVII. "Desaparecer não é exatamente o termo que convém para designar, com justeza, o que se passou." Trata-se antes de um "privilégio" ao segundo elemento, aquele que faz da experiência da loucura um confronto do homem com sua "verdade moral"; privilegia-se então o elemento que faz da loucura "uma experiência no campo da linguagem". Tudo o que releva do trágico será "esquivado", mas não, evidentemente, destruído: "sob a consciência crítica da loucura, e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica não cessou de velar" (ibid., p. 40). Daí a necessidade da "dimensão vertical": é ela que nos permite reinterpretar "a bela retidão que conduz o pensamento racional até a análise da loucura como doença mental"(ibid., p. 40): é a dimensão vertical que vai nos revelar a experiência trágica sob cada forma histórica.
16 No século XIX, chamar-se-á "loucura moral" aquela que, como essa, não atinge a razão. Voltaremos a ela adiante.
17 Um pouco adiante, Foucault afirma: "é a redução da experiência clássica da desrazão a uma percepção estritamente moral da loucura que servirá de núcleo a todas as co gancepções que o século XIX fará valer como científicas, positivas e experimentais" (ibid., p. 359).
18 A medicina positivista do século XIX admite "como já estabelecido e provado que a alienação do sujeito de direito pode e deve coincidir com a loucura do homem social, na unidade de uma realidade patológica" (ibid., p. 146). A doença mental implica assim a idéia de um sujeito juridicamente incapaz; daí porque ela superpõe as duas experiências que o classicismo não unia: a social, que se formula em termos de "inocente ou perigoso", e a jurídica, sensível às questões de limites e de graus. Ora, o humanismo da psiquiatria nascente não deixará de reconhecer o homem alienado como incapaz e louco, e assim reconcilia o tema da responsabilidade e do internamento em uma mesma unidade. É o momento em que aparecem as prerrogativas do sujeito burguês das quais a Declaração dos Direitos do Homem quis ser a expressão. A síntese entre as duas experiências forma "o a priori concreto de toda nossa psicopatologia com pretensão científica" (ibid., p. 147). A própria noção de homem normal, como a de homo natura, dadas antes da doença e por relação às quais a doença é desvio, é em verdade uma criação que deve ser situada "não em um espaço natural, mas em um sistema que identifica o socius ao sujeito de direito" (ibid., p. 147). Agora, para Foucault, a própria idéia de homem desalienado, ao contrário do que acontecia em 54, remete a esse a priori. O cruzamento entre as duas experiências torna possível o conceito de "alienação psicológica": é alienado, a partir da primeira experiência, o homem submetido ao poder do Outro; a partir da segunda, o homem que se torna Outro, "estranho à semelhança fraterna dos homens entre si" (ibid., p. 149); a primeira leva ao determinismo da doença; a segunda toma a forma de uma condenação moral. A redução dessas experiências a uma unidade será feita pelo século XIX por um golpe de força - como o classicismo fizera por sua vez com a experiência renascentista.