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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

Physis, Natura - Heidegger e Merleau-Ponty

 

Physis, Natura – Heidegger and Merleau-Ponty

 

 

Benedito Nunes

Professor-titular aposentado da UFPa

 

 


RESUMO

Merleau-Ponty, já ligado, em A fenomenologia da percepção, ao Lebenswelt do último Husserl e ao ser-no-mundo de Heidegger, procurará manter com a ontologia deste, em sua última e inacabada obra O visível e o invisível, mais estreita ligação, mormente em trono da questão da linguagem. Não obstante com a generalidade da noção de carne, aplicada à Natureza, e também ao corpo humano, enquanto fundante de novo Cogito, uma categoria que repele a antecedência do Dasein, sem o qual não haverá mundo atual.

Palavras-chave: Linguagem, Carne, Corpo, Natureza, Mundo.


ABSTRACT

Merleau-Ponty, already connected in The Phenomenology of Perception, to the Lebenswelt of the late Husserl and the Being - in - the - World of Heidegger, seeks to closely maintain his ontology in his final and unfinished work The Visible and the Invisible, principally in terms of the question of language. Nonetheless, there is the generality of the notion of flesh, applied to Nature, as well as to the human body, as the basis for the new Cogito, a category that repels the precedence of Dasein, without which there would be no world.

Keywords: Language, Flesh, Body, Nature, World.


 

 

Heidegger viu na physis o modo grego antigo do ser: o surgimento ou presença manifesta, que se modificou, no âmbito da Física moderna, demarcado pelo termo latino natura, em movimento dos corpos, objeto de estudo iniciado por Descartes e Galileu e continuado pela investigação dos organismos desde o século XIX, pelo qual Merleau-Ponty se interessará já nos seus cursos de 56/57 e 57/58 (O conceito de Natureza), bem como em um dos últimos (Nature et Logos: Le corps humain) por ele proferido em 59/60.

Publicada em 1945, La Phénoménologie de la perception, de Merleau-Ponty, pondo em foco o corpo humano - abstraído em Ser e tempo, mas implícito às dimensões da abertura, principalmente à disposição de animo (Befindlichkeit) - não comparte a idéia de physis integrante da História do ser em Heidegger, mas recai no âmbito do "ser no mundo" , o que equivale a dizer encontrar-se essa mesma obra, como também a de Sartre, L´être et le néant (1943), sob a custódia do pensamento heideggeriano da primeira fase. A fenomenologia da percepção efetua uma retomada interpretativa da redução de Edmund Husserl, que Heidegger neutralizou ao nela deparar com o forte e não abstraível empuxe do idealismo egológico husserliano. Mas, segundo conclui Merleau-Ponty, em seu elucidativo Avant-propos daquela obra, à vista dos então inéditos desse filósofo, a exemplo de A crise das ciências européias (Die Krisis der europäischen Wissenschaften), aquela epoché ou redução fenomenológica é o primeiro acesso do Dasein como ser no mundo: "Longe de ser, como se acreditou, a fórmula de uma Filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma Filosofia existencial: o "In-der-Welt-Sein" de Heidegger só pode aparecer sobre o fundo da redução fenomenológica" (Merleau-Ponty, 1945, p. IX). Como se verá neste trabalho, Merleau-Ponty empenhou-se em husserlianizar Heidegger e em heideggerizar Husserl.

Na verdade, A fenomenologia da percepção tem como pressuposto a ontologia hermenêutica de Ser e tempo por ela absorvida, e que se resume a estatuir o princípio do ser-no-mundo enquanto Dasein. Mas ela também se decide por uma volta ao Husserl tardio da Krisis, sustentando, lado a lado com a epoché da consciência e em contraposição ao conhecimento científico, a imediatidade do mundo da vida (Lebenswelt). Essa noção husserliana confirmaria as principais teses daquele livro.

Além disso, Merleau-Ponty se aventura no domínio, tão caro aos românticos alemães no século XIX, da Filosofia da Natureza. E, ainda nesse empreendimento, uma das tonalidades de seus derradeiros cursos, é Husserl que lhe serve de prestimoso guia, antes de adentrar no estudo da Biologia, também um alvo de Heidegger entre 29 e 30, quando proferiu as lições que constituiriam a matéria do livro Die Grundbegriffe der Metaphysik (Os conceitos fundamentais da metafísica), publicado em 1983, mais de vinte anos após a morte de Merleau-Ponty.

Se pretendermos iniciar uma ampla investigação sobre o que une e o que separa esses dois pensadores, e, portanto, sobre as suas afinidades e incompatibilidades filosóficas, teremos que levar em conta, ao discutirmos hoje a relação do pensamento de Merleau-Ponty com a concepção do Heidegger da segunda fase, posterior à Ontologia Fundamental de Sein und Zeit (Ser e tempo), expressa na decidida convergência do filósofo francês, principalmente no seu livro póstumo, Le visible et l´invisible (O visível e o invisível), com o filósofo alemão, temos que levar em conta, dizíamos, além da ontologia heideggeriana, implícita em A fenomenologia da percepção, independentemente do mútuo influxo entre eles, o trânsito de ambos pelas mesmas disciplinas ou domínios de investigação.

Uma Fenomenologia da percepção é uma Fenomenologia do ato de perceber e do percebido, da noesis e do noema; aquele se confunde com o percepiente e o último, com o percebido, seja objeto ou coisa. O percebido é que me defronta; o seu noema descrito acha-se presente, algo que também me confronta apreendido em "carne e osso". Mas é pouco chamar esse algo de objeto. Seria o percepiente apenas sujeito? Em vez de uma relação dual, não teríamos, no caso, uma relação escalar?

Não sou apenas sujeito pensante (res cogitans) e o percebido não é apenas objeto. A escala, que une os termos numa totalidade indefinida ou inacabada, é o mundo. Como ser-no-mundo, enquanto Dasein, ser aí, tenho uma visada pré-objetiva do que me cerca,1 correspondendo isso a um espaço e a um tempo. Mas o ter essa visada comparte com o que sou. Eu a tenho na medida em que existo. E existindo incorporo o que me cerca, dando-lhe sentido, o que significa transcender a situação que ocupo no mundo, situação espacialmente localizada. Mas que espaço é esse senão aquele que meu corpo ocupa? É um espaço convertido àquela medida escalar do mundo, um espaço que eu ocupo. Assim, nesse nível, posso afirmar: "Je suis [...] mon corps, au moins dans toute la mesure où j´ai un acquis et réciproquement mon corps est comme um sujet naturel, comme une esquisse provisoire de mon être total"2 (Merleau-Ponty, 1945, p. 231). Eis o que Merleau-Ponty chama de corps propre, distinto do corpo geométrico, e que é minha ancoragem no mundo (ibid., p.169). Por isso, a percepção, que nunca se concretiza como uma atividade do espírito, isoladamente do corpo, está na dependência dessa âncora que me liga a coisas e não a objetos. É preciso bem distinguir entre coisas e objetos, distinção que Heidegger também fez, mas de outra maneira.

O que eu percebo é uma coisa, a que meu corpo se alia, e não o objeto da ciência física, em movimento no espaço tridimensional, e , como coisa, o percebido é presença corporal. "C´est par mon corps que je comprends autrui comme c´est par mon corps que je perçois des `choses'"3 (idem, p. 216).

Só investido(a) no corpo o espírito ou a mente trabalha. Mas o corpo, na qual se investem, acompanha a extensão do visível; é a sua carnadura ou encarnação que sustenta a mente. É a carne, la chair, noção de longa e larga fortuna de Le visible et l´invisible, obra póstuma inacabada de Merleau-Ponty, de que trataremos mais adiante.

Atente-se, porém, para a circunstância de que a ontologia heideggeriana de Ser e tempo, como fundamento do primeiro e decisivo escrito de Merleau-Ponty, redobrava-se com o recurso a outra fonte: a imediatidade do mundo da vida, exposto por Husserl nas páginas diversificadas da Krisis (pp. 35-36), publicadas em 54, e a que, num movimento de retorno a sendas esquecidas ou inexploradas do fundador da Fenomenologia, o mesmo Merleau-Ponty tinha acesso. Antes mesmo da Krisis, num escrito de 34, Husserl bordejava o mundo da vida na experiência pré-cientifica da Terra enquanto solo imóvel dos movimentos copernicano e galileano dos planetas.

A palavra "solo" tem o sentido de matriz radical, escrevia ele em A Terra não se move. Enquanto tal, a Terra não se move, como também não se move o corpo próprio, a carne, a minha carne. "Minha carne: na experiência primordial", escreve Husserl, "ela não está nem em deslocamento nem em repouso internos, diferentemente dos corpos exteriores [...]. A Terra é, para nós todos, a mesma Terra; sobre ela, nela, acima dela, reinam os mesmos corpos, sobre ela os mesmos sujeitos incarnados, sujeitos de carnes que por todos e num sentido modificado são corpos. Mas para nós todos, a Terra é solo e não corpo no sentido pleno" (Husserl, 1989, p. 19).

Essa experiência pré-cientifica da Terra, transponível para a idéia de mundo ambiente, comporá, juntamente com o corpo, o espaço, o tempo, o movimento, o conjunto da Lebenswelt - da experiência vivida antes da análise conceptual e das formulações abstratas da ciência, cujo primeiro resultado foi a matematização galileana da Natureza. Uma coisa é o uso da matemática como suporte de hipóteses comprováveis metodologicamente; outra é a quantificação dos fenômenos naturais, que rejeita a preliminar intuição do ocorrido, transformando a hipótese em realidade única. "No mundo ambiente da intuição, quando, pela abstração, nós dirigimos o olhar para as formas puras espaço-temporais, nós fazemos a experiência dos `corpos', não dos corpos da idealidade geométrica, mas antes "dos" corpos; daqueles que nós experimentamos realmente com conteúdo que é realmente o seu conteúdo de experiência" (Husserl 1954, p. 22). A matematização opera a contrapelo dessa experiência, idealizando o espaço e o tempo, de que surge uma objetividade unívoca, afastada da intuição e aparentada à matemática. A idéia galileana, comenta Husserl na mesma obra, "é uma hipótese, e mesmo uma hipótese de um tipo altamente estranho. O estranho aqui é que a hipótese permanece, agora e sempre, uma hipótese; sua confirmação (a única que seja pensável) é uma sucessão infinita de confirmações" (idem, p. 41).

Mas a matematização não reduplica a Natureza; trata-se de um segundo nível de experiência relativamente à Lebenswelt. E, para Husserl, ambas subsistem, com noesis e noema, articuladamente, no plano intencional, dotadas de transcendentalidade fenomenológica. E eis de onde parte Merleau-Ponty e onde ele se separa de Husserl. Segundo o primeiro, a epoché, operando a redução, substitui a transcendentalidade fenomenológica por uma transcendência tout court, que desborda da consciência para o mundo na percepção. "O mundo está aí antes de qualquer análise que eu possa fazer dele", escreve Merleau-Ponty no famoso prólogo já referido, "e será artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que religariam as sensações, em seguida os aspectos perspectivísticos dos objetos" (1945, pp. IV). Diz ainda: "A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e que esses mesmos atos pressupõem" (ibid., p. V). E acrescenta: "Não precisamos perguntar se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos" (ibid., p. XI).

O mundo é o que nós percebemos, e com o mundo percebemos o espaço, o movimento, o corpo como corpo, que não é entidade geométrica, mas o corpo próprio (das Leib). Essas teses de A fenomenologia da percepção são sustentadas e autorizadas por Husserl, o autor matricial do pensamento desse livro, que, em sua parte final, discute o conceito de temporalidade em Heidegger, excludente da idéia de processo e equivalente a um sujeito verbal: a ação de temporalizar, envolvendo três êxtases, o do "futuro", o do "passado" e do "presente". A ordem temporal iria do futuro ao passado e do passado ao presente. Não assim para Merleau-Ponty, que se firmando na percepção privilegia o presente. "C´est en communiquant avec le monde que nous communiquons indubitablement avec nous mêmes. Nous tenons le temps tout entier et nous sommes présents à nous mêmes parce que nous sommes présents au monde"4 (ibid., p. 485).

A fenomenologia da percepção termina, portanto, num declarado afastamento de Heidegger pelo lado mesmo da formulação essencial do pensamento desse filósofo relativamente ao tempo. Substituiria esse afastamento uma certa aproximação ostensiva, por meio de referências ao filósofo de Ser e tempo em sua última fase, que indicam a força de atração que sobre Merleau-Ponty ele passara a exercer, e que se encontram no livro póstumo, inacabado, Le visible et l´invisible, cuja primeira denominação seria L´origine de la vérité (A origem da verdade), principalmente nas Notas de trabalho (Notes de travail) apensas ao volume. Por que essa virada?

Essa virada veio da necessidade experimentada pelo filosofo francês, com o apoio e o estímulo do pensador alemão, de um reenfoque ontológico do corpo humano, do espaço e da linguagem, que as mencionadas notas de trabalho nos deixam vislumbrar. De antemão, tal reenfoque já traduzia uma crítica à insuficiência de A fenomenologia da percepção. Qual era esse déficit? A falta de explicitação ontológica. "Eu havia descrito a coisa, o mundo, o corpo, a linguagem", acrescenta a nota, "mas guardei em parte a Filosofia da consciência". Isso teria sido o começo para atingir o que estava em causa: o Ser - "mas não ainda para assegurar nossos passos nesse país"; seria preciso destruir a ontologia objetivista dos cartesianos e depois redescobrir a physis (id., 1964, p. 237). Ao penetrar enfim no conjunto hierático do ser, Merleau-Ponty já está se referindo ao Seyn, escrito assim com "y", na segunda fase do pensamento de Heidegger, a qual também está mediando o confronto do francês com a linguagem. Não se pode ter um Cogito silencioso; o eu penso reflexivo é linguageiro. Pela linguagem se chega ao fundamento e ao abismo, ao Grund e ao Abgrund. A obra heideggeriana de referência já é Unterwegs zu Sprache (A caminho da linguagem) e nela a estonteante passagem sobre a singular queda "para o alto" nesse abismo, escrita pelo mestre alemão e citada por Merleau-Ponty num de seus cursos: "Die Sprache ist: Sprache. Die Sprache spricht. Wenn wir uns in den Abgrund, den dieser Satz nennt, fallen lassen, stürzen wir nicht ins Leere weg. Wir fallen in die Höhe. Deren Hoheit öffnet eine Tiefe"5 (Heidegger, 1959, p.13). A linguagem não só está no meio do caminho do pensamento, mas é também o seu caminho. Como então fazer uma ontologia, senão indiretamente? Por que não posso falar do ser a não ser negativamente, assim como a teologia negativa não pode falar de Deus se não negar os seus atributos.

Ainda há outro aspecto: o perspectivismo da percepção que Husserl distinguiu e examinou. Portanto, ela, percepção, não está completa a cada instante. Esse é o lado inconsciente da percepção? Não, diz Merleau-Ponty, é o lado dos existenciários, daqueles relacionamentos que de forma alguma posso constituir: a afeição (Stimmung), o ser com os outros, o ser para a morte, o encontrar-se existindo. "A percepção me tem como a linguagem. E como é preciso que eu esteja aí para falar, é também preciso que eu esteja aí para perceber" (idem, p. 244). Em toda abertura existe um lado obscuro, fechado, oculto - o não verdadeiro colado ao verdadeiro. A mesma verdade que oculta também é o que desvela. Há uma mesma totalidade finita que me cerca, ou seja, o mundo.

Desse ponto de vista, é preciso retificar o presentismo da percepção de que tratamos linhas atrás. Diz-nos Merleau-Ponty que o "presente é inapreensível de perto, nas pinças da atenção, porque estamos ligados a um englobante" (idem, p. 249). Então, o único modo conseqüente de tratar a consciência é focalizá-la como abertura (Offenheit) (p. 252). Considerando-se isso, a Filosofia só pode ser o estudo do Vorhabe do Ser (p. 257), o que não é conhecimento. A experiência do Ser mostra-nos o que a ciência não aprova. Estudando essa experiência - eis o paradoxo -, a Filosofia atravessa o Rubicon da linguagem para reencontrar o silêncio. Mas não só o silêncio. A Filosofia também reencontra o invisível que a percepção já apreendeu no visível. O invisível não está acima do visível, mas nele incluído, como a significação invisível se inclui na palavra visível e como o ente visível se inclui no ser invisível que o redimensiona.

Não há dúvida de que as posições todas de Merleau-Ponty nestas notas são tateantes, e que, se adere ao Ser heideggeriano, ele o faz de uma maneira muito singular, como veremos depois de refletirmos sobre tal hesitante adesão.

O principal entrave a essa adesão é haver Merleau-Ponty mantido o primado da percepção - contra o pensamento mesmo de Heidegger, segundo o qual a precedência ontológica cabe ao Ser. Segundo observa Michel Haar, não há, de acordo com Heidegger, percepção bruta, factual. Toda percepção "pressupõe que seja dado e compreendido um mundo, com seus reenvios significantes e um modo de doação ou um sentido do ser dos entes que podem ser reencontrados [...]. Por outros termos, a percepção se define pelo sentido do que percebemos e não o inverso" (Haar, 1998, pp.128-129).

Segundo o mesmo comentarista, Merleau-Ponty terá buscado em Heidegger um meio de escapar do primado da consciência perceptiva, assim fugindo à metafísica da subjetividade esboçada em Husserl. Ele teria, de fato, escapado desse antropocentrismo, sem, de maneira nenhuma, atentar para a crítica heideggeriana da percepção. Mesmo assim adotaria a tese de Heidegger admitindo a posse da linguagem sobre nós e o efetivo nexo da linguagem com o silêncio.

O que nos traria o primado ontológico da percepção? Um equivalente existencial do esse est percipi de Berkeley? Ser é ser percebido. Mas pode-se dizer o mesmo do percepiente. Como sujeito desse ser, o percepiente é quem sente; ser percebido e ser percepiente se entrosam num relacionamento duplo, num duplex sensível recortado sobre a finita totalidade do mundo. Duplex igualmente é o tocar e o ser tocado. Ambos ultrapassam meu corpo, remetendo-me a um único sensível carnal que de outro ou de outros também é. Merleau-Ponty quer contrabalançar o fugidio domínio do percepiente e do percebido, por uma dobra sensível, estendida para além dos corpos: a carne, como verdadeira tessitura do mundo.

Para esconjurar o sortilégio de uma alma do mundo, à maneira de Plotino ou de Giordano Bruno, Merleau-Ponty conceberia o mundo como um todo orgânico, mas carnal, como um entrosamento vivo de corpos interligados pelo extensivo sensível a eles comum. A carne recobre o corpo e é mais do que corpo: o sensível estendido ao mundo e que discutido se encontra antes das Notas de trabalho, nas últimas páginas de Le visible et l´invisible, as quais promovem o julgamento da Filosofia reflexiva, do intuicionismo bergsoniano e da dialética hegelo-marxista já sob a pressão, embora difusa, da idéia heideggeriana da História do Ser.

A Filosofia reflexiva jamais poderá ceder à instância do ser bruto em torno do qual gira a experiência sem convertê-lo em idéia. A dialética tentará circunscrevê-lo na idéia contrária, esbarrando na impossibilidade de síntese. Finalmente, o bergsonismo pretende surpreendê-lo em estado puro, abstendo-se de símbolos, fora da linguagem, num ato de identificação de filósofo com a coisa.

Tais julgamentos não podem separar-se da primeira correção que em O visível e o invisível se faz de A fenomenologia da percepção, de 1945: o dado a considerar não é a percepção propriamente dita, a percepção tout court, mas a fé perceptiva, na qual nos encontramos, como medida preliminar que nos entrosa ao mundo e ao ser, e que de qualquer de nós faz um Dasein, levando-nos de volta às coisas sob a mediação da linguagem. A mediação da linguagem. Eis como entender o lema guerreiro da Fenomenologia - de volta às próprias coisas.

É a propósito da linguagem que veríamos melhor como se pode e como não se pode voltar às coisas mesmas. Se nós imaginamos reencontrar o mundo natural ou o tempo por coincidência [...] a linguagem é uma potência de erro, porque corta o tecido contínuo que nos une vitalmente às coisas [...]. A linguagem é uma via, é a nossa via e a delas. Não que a linguagem se aposse dela e a conserve: que teria ela a dizer se não houvessem senão coisas ditas? [...] Melhor do que qualquer outra pessoa, o filósofo sabe que a vivência é vivência falada, que, nascida nessa profundeza, a linguagem não é uma máscara aposta ao Ser, mas se nós sabemos recuperá-la com todas as suas raízes e com toda a sua fronde, o mais válido testemunho do ser [...]. (Merleau-Ponty, 1964, p. 167)

Nesse ponto, temos que levar em conta a distinção estatuída em ensaios anteriores de Merleau-Ponty e no livro concluído e abandonado pelo autor, La prose du monde, entre linguagem constituída e linguagem constituinte ou operante, ou seja, entre a linguagem sedimentada da tradição e a linguagem inovadora que se une ao pensamento descobridor, como um logos em demanda da verdade. A linguagem operante seria arma, sedução e ação ofensiva; fazendo "aflorar todas as relações profundas das vivências entre as quais se formou" (Merleau-Ponty, 1969, p. 168), ela é o próprio tema da Filosofia. A Filosofia é "linguagem, repousa sobre a linguagem; mas isso não a desqualifica nem para falar da linguagem nem para falar da pré-linguagem e do mundo silente que as redobra: ao contrário, ela é linguagem operante, essa linguagem que só se pode conhecer por dentro, pela prática, aberta às coisas, chamada pelas vozes do silêncio, e continua um ensaio de articulação que é o Ser de todo ser" (ibid., p. 168).

O tocar e o ser tocado, o vidente e o visível, que se estendem para além do corpo no tecido carnal do mundo de que antes falamos, são colhidos na móvel trama dessa linguagem operante. Nenhuma tradição da Filosofia ocidental sustenta, de fato, a extensividade cósmica e ontológica emprestada por Merleau-Ponty a esse termo"carne", configurando, na tradição apostólica cristã, o corpo enquanto passível de juízo religioso e escatológico. A carne não é nem a matéria nem a forma da antiga Filosofia. Como nos diz Laurent Jenny, a carne, que desborda do corpo, também é latência: "Ela é esse fundo inesgotável , esse recurso de uma obscuridade cega, um `invisível' tenebroso do qual emergem sem cessar novas diferenciações formais. Desse ponto de vista [continua a mesma autora], a teoria da carne, em Merleau-Ponty, tem qualquer coisa de uma embriologia do ser" (Jenny 1997, pp.136-7). Mas não é a carne que se opõe ao espírito, assim como a alma se opõe ao corpo, o interior ao exterior, o pensamento à matéria?

Esses conceitos não representam realidades nem opostas nem complementares; acham-se entrosados sem que disso resulte duplicação. Do entrosamento, como o que se dá entre os nervos óticos (um chiasmo) e do qual decorre uma só imagem, deriva o recorte unindo as duas bandas de uma só coisa: o visível ao invisível, o anímico ao corporal, o visual ao palpável, o interno ao externo, o individual ao coletivo, o subjetivo ao intersubjetivo. Na obra interrompida, tanto no seu texto central como nas notas de trabalho, é onde melhor podem os leitores enxergar os traços da luta a cada momento travada pelo filósofo com a linguagem - do filósofo que também é escritor - nos limites da expressão possível, em demanda desses chiasmos que se situam e nos situam aquém da realidade objetiva, onde não mais vige a proposição. Nesse domínio, ologos se instilaria na Natureza. Husserl ou Merleau-Ponty alcança os limites da Fenomenologia. Chamou-se Logos et Nature. O Corpo humano, o último curso das quintas feiras no Colégio de France, proferido pelo nosso autor em 1960. Aí se diz que não é o olho que vê mas o corpo , porque entrosado está pela sua carne à carne do mundo. Um renovo da Filosofia romântica da Natureza? Nem tanto assim. A Filosofia romântica preparou a noção vitoriosa do Espírito no idealismo germânico. O logos despontará na Natureza, na carnalidade do mundo, à custa das instâncias científicas do orgânico, pacientemente estudadas por Merleau-Ponty, como a embriologia de Driesch e a etologia de Uexkull.

Desde logo separa-se ele da Filosofia da Natureza como superciência, ao mesmo tempo conhecimento supra-sensível. No entanto, o intuito de Merleau-Ponty é extrair do conceito de Natureza a sua ontologia. Mas essa ontologia não pode cindir-se das investigações sobre a gênese demandadas à embriologia (Driesch) e à conduta dos animais em seu meio-ambiente, o Umwelt (mundo ambiente) de Uexkull.

Com a gênese, um destino possível se delineia, como se houvesse um espaço de ordem do qual resultará um tipo. Mas isso implica o aparecimento de órgãos definidos com a sua locação específica no corpo. Quando há regeneração, a atividade celular segue um rumo determinado com regulações prévias que o organismo mesmo produz. E o desenvolvimento ou o ciclo evolutivo? Como funcionam as regulações? Uma forma predomina à maneira de enteléchia, mas moldada por um conjunto de desaparitions d´équilibres (Merleau-Ponty, 1995, p.300). Após Driesch, o vitalismo continua, sem que cesse a luta contra o mecanicismo. Mas nessa matéria, não devemos nem platonizar nem aristotelizar (ibid., p. 206). E é preciso evitar dois erros: colocar por detrás dos fenômenos um princípio positivo (idéia, essência, enteléchia) e não ver de modo algum princípios reguladores (ibid., p. 207).

O outro capítulo de igual importância é o que diz respeito ao corpo fenomenal, isto é, o corpo que sente e age conforme seu Umwelt, noção tomada a Uexkull. Eu e os animais superiores também somos testemunhas do Umwelt, devido ao corpo fenomenal que é o mensurador do mundo. Estou aberto ao mundo e em circuito com ele; eu me vejo e me toco. "A mão que eu toco, sinto que ela poderia tocar aquela que a toca. E isso não é verdadeiro ultrapassados os limites de minha pele. Então o bloco de meu corpo tem um `interior' que é sua aplicação a si mesmo" (ibid., pp. 279-80). Eis o lado invisível do visível, do corpo, com seu peculiar simbolismo, de que a carne transborda. Mas a essa altura pergunta Merleau-Ponty se as metáforas valem para o estudo do corpo. A resposta é afirmativa.

O corpo em seu circuito, aberto às coisas e ao mundo, é o que o filósofo chama de carne, "montada sobre uma armadura invisível (articulação corpo tocado e corpo que toca) e as coisas sentidas tanto quanto o corpo tocado instalados em torno de um vazio central ou habitadas por uma estrutura que é sua realidade carnal" (ibid., p. 286). Tudo aqui é perceptível em diferentes níveis, incluindo a carne, esse tecido conjuntivo de tudo. Seria então a Natureza, de que Merleau-Ponty se ocupa, o liame do meu corpo com o corpo do mundo . Talvez se pudesse descrevê-la à semelhança de um imenso organismo animado, tal como Leonardo Da Vinci a descreveu: "Nós podemos (...) dizer que um espírito de crescimento anima a terra; sua carne é o solo; seus ossos são as estratificações sucessivas das rochas que formam as montanhas; suas cartilagens são o tufo; seu sangue, as águas correntes" (Da Vinci, 1942, v. 1, p. 91).

Daqui por diante experimentaremos inverter o ponto de vista do qual partimos, focalizando uma aproximação contrária, de Heidegger a Merleau-Ponty e não de Merleau-Ponty a Heidegger, pois que terá sido este e não aquele, segundo Pavlos Kontos, o autor de uma alta Fenomenologia da percepção. Em trabalho publicado em 1996, Pavlos Kontos nos diz que essa alta Fenomenologia se resume em determinar o componente ontológico do perceptual, buscando, portanto, o aspecto que aproximou o pensador francês do pensador alemão.

A percepção é, sem dúvida, corporal; além disso, é diversa, porquanto cumpre um ato de coordenação. O que a distingue é a apreensão de um ente; e esta só se dá quando se abre o ser desse ente: "A perceptualidade é condicionada pelo estatuto ontológico do percebido enquanto percebido" (Kontos, 1996, p. 41). Em si o percebido é ôntico. A Fenomenologia heideggeriana da percepção determinaria as condições ontológicas da mesma percepção. Uma dessas condições é temporal. A percepção só existe no presente. Desse modo, a Fenomenologia, em tal caso, descreveria as incidências da temporalidade, como no agir circunspectivo, que Pavlos Kontos considera um modo de percepção, enquanto o ente manual ou disponível é um modo do percebido (ibid., p. 48 e ss.).

Outra aproximação, no sentido contrário ao inicial, e que ficou pelo menos documentada em 65, diz respeito à focalização do corpo por Heidegger na sua fraternal discussão com Medard Boss tomada sob uma angulação ontológica já manifesta em La phénoménologie de la perception. Ao apontar para o limite da janela com o dedo, eu não termino na ponta de meu dedo. Nele está o limite do corpo? "Todo corpo é meu corpo." A frase em si é sem sentido. Mais exatamente, dever-se-ia dizer: o corpo é em cada casa meu corpo. Isto faz parte do fenômeno do corpo. O "meu" é relacionado a mim mesmo. Com "meu" quero dizer "eu". O corpo está no "eu" ou o "eu" no corpo? Em todo caso, o corpo não é alguma coisa, algum corpo material, mas sim todo corpo, isto é, o corpo como corpo é o meu corpo em cada caso. O corporar do corpo (leiben des Leibes) "determina-se a partir do modo de meu ser" (Heidegger, 2001, p. 114).

Depois dessas aproximações contrárias àquela pela qual iniciamos, podemos agora figurar o encontro dos dois filósofos na trilha dos mesmos biólogos, destacados por Merleau-Ponty num de seus cursos no Collège de France e por Heidegger no item b do Parágrafo 61 de Die Grundbegriffe der Metaphysik: Hans Driesch e Jakob Johann von Uexkull.

Heidegger a eles atribui as duas grandes passadas da biologia moderna. "A primeira concerne o reconhecimento do caráter holístico do organismo [...]. A totalidade significa que o organismo não é um agregado composto de elementos ou partes, mas que o crescimento e a construção do organismo é governada pela sua totalidade em cada estágio" (Heidegger, 1983, p. 380). A segunda passada é a "captação da significação essencial da pesquisa concernente à maneira pela qual o animal está submetido ao seu ambiente" (ibid.). A primeira, continua Heidegger, se deve "as investigações pioneiras de Hans Driesch sobre os embriões de ouriços do mar, que representa um objeto exemplar para a biologia experimental" (ibid.). A segunda foi empreendida pelo contemporâneo daquele, Uexkull, que ultimou o liame entre Biologia e Ecologia, pesquisando a relação entre animal e seu mundo ambiente (ibid., p. 382)".

O que interessou aos dois filósofos foi a formação, a gênese, a aparição e o desenvolvimento dos organismos e, por conseguinte, de certo modo, a physis, enquanto originária de phyein, a que ambos, Merleau-Ponty e Heidegger de qualquer maneira recuaram. Antes da ulterior de decadência do conceito para natura, a physis assinalaria o início da História do Ser.

Mas, com essa História, começam o mundo e o Dasein, e é no Dasein que o mundo se abre. Por isso é aquele, o Dasein, weltbildend (articulador de mundo), em comparação com a falta de mundo (weltlos) dos minerais e a pobreza de mundo (weltarm) dos animais (ibid., p. 263). Mas essa pobreza não pode ser dimensionada e é duvidosa.

A Natureza propriamente dita, que recebemos da tradição filosófica latina (natura), mormente do atomismo de Lucrécio, e também da Física e da Astronomia dos séculos XVII e XVIII, parece constituir a retaguarda do mundo, correspondente à terra na sua qualidade de corpo físico, ao céu, na escala do espaço infinito, aos animais incluindo nossa espécie e as plantas em itinerância evolutiva. É a partir dessa retaguarda enigmática, fechada à indagação sobre o sentido, que os dois filósofos se separam.

Para Merleau-Ponty, a Natureza enquanto physis equipara-se à carne. Para Heidegger, a Natureza nessa clave depende sempre do ser manifestante e, portanto, da presença que surge ou eclode - a physis entre os antigos gregos -, como dependerá da actualitas dos Escolásticos no Medievo, da res extensa dependente do Eu penso no início da Filosofia moderna com Descartes, esses dois aspectos entrosados no Deus sive natura de Spinoza, ora natura naturans ora natura naturata. Estamos, enfim, diante da Natureza baconiana, em que ciência e poder humano coincidem, já sob a égide do ente manipulável e manipulado pelo homem, que corresponde à época das concepções do mundo, da Estética e da dominação tecnológica franqueada por outra manifestação do ser: o Gestell, desvelamento do real como reserva (Bestand), "na modalidade do cometimento". Se a técnica não é, para Heidegger, uma questão apenas técnica, também a Natureza não é natural, mas um modo entitativo do ser. A Natureza não está aí circundando o homem com uma abundância de objetos, diz Heidegger no já citado Os conceitos fundamentais da Metafísica, é isso o que devemos compreender. Ao contrário, "o Dasein humano é intrinsecamente um peculiar ser transposto [versetztsein] no envolvente círculo contextual dos seres vivos" (Heidegger 1983, p. 403; os itálicos no original).

Não há mundo senão porque há Dasein. E não há Natureza senão depois do mundo e do Dasein.

 

Referências

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Husserl, Edmund 1954: Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentalePhänomenologie (A crise das ciências européias e a Fenomenologia transcendental). Den Haag, Nijhoff.        [ Links ]

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Sartre, Jean-Paul 1943: L´être et le néant. Paris, Gallimard.        [ Links ]

 

 

Recebido em 12 de agosto de 2004
Aprovado em 15 de novembro de 2004

 

 

1 Quem tem essa visada chama-se "ser-no-mundo" (Merleau-Ponty, 1945, p. 95)
2 "Eu sou [...] meu corpo pelo menos na medida em que tenho um adquirido, e reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total."
3 "É pelo meu corpo que compreendo outrem, como é pelo meu corpo que percebo `coisas'".
4 "Comunicando com o mundo comunicamo-nos com nós mesmos. Temos o tempo todo e somos presentes a nós mesmos porque somos presentes ao mundo" (tradução do Editor).
5 "A linguagem é: linguagem. A linguagem fala. Quando nos deixamos cair no abismo nomeado por esta proposição, não nos precipitamos no vazio. Caímos para o alto. A altura deste abre uma profundidade" (tradução do Editor).