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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.6 no.2 São Paulo Dec. 2004

 

RESENHA

 

 

Conceição A. Serralha de Araújo

Doutoranda em Psicologia Clínica - PUC-SP

Endereço para correspondência

 

 

Perla Klautau, 2002: Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan. São Paulo, Escuta. ISBN 85-7137-206-3

No atual momento da psicanálise, que luta para firmar o seu valor teórico-clínico e manter-se como terapêutica eficiente ante os avanços de algumas ciências (como a genética e a neurobiologia, entre outras) e as exigências, tomadas como necessida-des, de um mundo diferente daquele em que se instituiu, temos tido o prazer de ver surgirem trabalhos que ousam resistir à superficialidade, a qual, na maioria das vezes, é uma resposta apressada, por parte de pesquisadores mais ansiosos, ao reconhecimento de lacunas no saber veiculado, com o intuito de preenchê-las e se livrarem da angústia que elas promovem.

Sem a intenção de esgotar o assunto ou preencher todas as lacunas encontradas no tema - o conceito de objeto nas teorias de Winnicott e Lacan -, mas longe de tal superficialidade e com a boa qualidade requerida em um estudo científico, este trabalho de Klautau, que corresponde à sua dissertação de mestrado em Psicologia Clínica - defendida na PUC-RJ, sob orientação de Octavio Souza -, busca a origem desse conceito em ambos os autores e o modo como cada um o elabora, num estudo com pretensão comparativa. A autora enfatiza o valor de um estudo como este para a melhor compreensão dos dois modos diferentes de pensar a constituição do psiquismo e o tratamento psicanalítico, já que o conceito de objeto é fundamental na análise dessas duas questões.

Dentre os teóricos psicanalíticos, Winnicott e Lacan têm sido alvo de interesse e estudo cada vez maiores nos últimos anos, em razão do viés tomado por cada um para o entendimento do que é tornar-se integralmente uma pessoa. No entanto, nem sempre se tem observado o devido rigor e seriedade na realização desses estudos e as proposições dos dois autores não chegam a ser realmente compreendidas, gerando distorções lamentáveis.

Segundo a autora, a escolha desses dois teóricos para o seu estudo justifica-se pelo fato de eles conceberem a constituição da subjetividade, no contexto da relação do bebê com o outro materno, em momentos diferentes: "enquanto Winnicott toma como ponto de partida a relação de dependência física e psíquica do bebê em relação ao ambiente, Lacan parte da relação de dependência do bebê em relação à mãe inscrita pela linguagem" (p. 16). Para ela, esses diferentes pontos de partida podem ser estendidos à constituição do objeto e revelam as diferenças com que cada um compreende e conduz o processo analítico.

O grande mérito do trabalho de Klautau é perseguir historicamente a elaboração do conceito de objeto por Winnicott e Lacan, única forma de se compreender uma teoria em sua totalidade. Além disso, ela atenta para a influência da história pessoal de cada um deles, examina a trajetória da formação de ambos, reunindo, no primeiro capítulo de sua obra, elementos importantes sobre o contexto em que viveram, ou seja, a infância, a dinâmica familiar, a base religiosa e filosófica, a forma como se inseriram no meio psicanalítico, como também a crítica que fizeram à psicanálise exercida na época; uma crítica feita a partir de preocupações específicas e do modo como cada autor examinou as questões que funda-mentaram suas teorias.

Pode ser que o contato com essas informações tenha influenciado o destaque feito pela autora, no capítulo final do livro, à comparação de Clement, que menciona o aspecto trágico da teorização lacaniana sobre a constituição do psiquismo em oposição ao aspecto terapêutico da teoria winnicottiana, destaque que pode insinuar uma relação de tais concepções com as diferenças contex-tuais que os autores experienciaram desde o nascimento.

Os pontos altos do livro são os capítulos 2 e 3, nos quais a autora desenvolve de forma simples e clara, na medida em que a complexidade do tema permite, o conceito de objeto na obra dos dois teóricos. A sua exposição, com retomadas constantes de pontos-chave da obra de um e outro autor, que, num primeiro olhar, podem parecer desnecessárias, é didaticamente importante para aqueles que se iniciam no estudo de uma determinada teoria. Klautau faz isso com esmero, não deixando que o fio do pensamento se rompa, relembrando sempre o que é necessário para a continuidade do entendimento do tema em questão.

Com tal procedimento, o segundo capítulo é dedicado ao estudo do conceito de objeto na obra de Winnicott. Mencionando - sem se posicionar, inicialmente, contra ou a favor - uma mudança paradigmática no campo psicanalítico, sustentada por Loparic (1996), em que o olhar se volta para o "bebê no colo da mãe" e não mais para o "bebê na cama da mãe", Klautau destaca a ênfase da teoria winnicottiana na relação mãe-bebê como fundamento para a constituição do psiquismo.

Ao percorrer o caminho feito por Winnicott para chegar à noção de objeto, a autora reconhece todas as mudanças qualitativas que o objeto sofre em sua realidade durante o processo de amadurecimento do bebê. Primeiramente, numa fase de dependência absoluta deste em relação ao ambiente, há a constatação da realidade subjetiva do objeto; este não é percebido pelo bebê como algo separado de si, formando ambiente e indivíduo uma só unidade. Em seguida, à medida que a dependência vai se tornando relativa, o objeto subjetivo adquire a realidade de objeto transicional, em parte subjetivo e em parte objetivo, até que a criança, por conseguir amadurecer recursos suficientes para experienciar a sua separação do objeto sem que isso interrompa a sua experiência de ser, consegue percebê-lo objetivamente e fazer uso dele. O mais importante nesse percurso é a constatação do fato de que, em qualquer momento qualitativo da realidade do objeto, a constituição deste depende da presença real e concreta do objeto.

Em sua pesquisa, Klautau identifica noções importantes para a compreensão de cada um desses momentos, tais como as noções de ambiente (cuidados maternos), identificação primária (dois-em-um ou unidade dupla), experiência de ser, momento de ilusão, capacidade criativa, agressividade, destruição, sobrevivência do objeto e área intermediária de experimentação (espaço potencial). É sumamente importante a sua exposição acerca da agressividade como possibilitadora do encontro com a externalidade e o papel dos objetos e fenômenos transicionais para que esse encontro não seja traumático e palco de defesas patológicas.

Tudo isso esclarece, segundo Klautau, as características de holding e de um manejo particular por parte do analista na clínica psicanalítica winnicottiana, que, por valorizarem e se adequarem ao momento maturacional do analisando, auxiliam-no a constituir-se em uma unidade, apropriando-se de um si-mesmo. Percebe que será parte essencial desse acontecimento a capacidade do analista de sobreviver à impulsividade e à agressividade do analisando. Só assim o analista terá, para aquele, uma realidade objetiva e a condição de ser usado.

Na seqüência, para chegar ao conceito de objeto na obra de Lacan, tarefa de seu terceiro capítulo, Klautau acompanha a trajetória dos seminários desse autor, do seminário 1 (1953-54), em que critica as teorias acerca da relação de objeto, ao seminário 4 (1956-57) até, logo após, 1960, quando tematiza a relação de objeto, instala a falta de objeto no seu interior e a nomeia objeto a.

Apesar dessa nomeação ter acontecido apenas em 1960, no artigo "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", Klautau verifica que o objeto a teve sua gênese no "estádio do espelho" (1936). Segundo ela: "Na operação especular assistimos ao nascimento do eu como constituição da imagem do corpo próprio: ao mesmo tempo em que o eu se constitui, a imagem especular é apreendida como objeto. Desta maneira, o eu constitui-se como objeto, objeto este equivalente à imagem própria do eu" (p. 67). Constata, então, ser este o primeiro encontro do sujeito com uma realidade que, ao mesmo tempo, é e não é realidade (apreensão virtual) e que vai, mais tarde, nos Seminários 1 e 4, servir a Lacan para preconizar que a mãe é quem sustenta esse processo de identificação; sendo assim, o seu desejo, ou o desejo do Outro, passa a prevalecer sobre o sujeito. Com a fantasia de identificação com o falo (o que falta à mãe), a criança tenta satisfazer o desejo ao qual o Outro materno atribui um determinado sentido - "o desejo sustenta a fantasia cuja função consiste em tamponar a falta do Outro" (p. 93) - alienando-se, então, a esse Outro, em seu primeiro passo na direção de constituir-se como sujeito.

Contudo, a falta fundamental prevalece, uma vez que a criança nunca consegue decifrar todo o sentido do desejo materno, ou seja, nunca consegue responder à questão "Che vuoi?" ("Você está dizendo isso, mas o que realmente significa isso?"), mesmo porque o desejo da mãe não tem consistência e uma parte do que falta ao Outro materno é destituída de sentido e é deixada de fora da operação de alienação, da mesma forma que é deixada de fora uma parte do ser da criança que não consegue se identificar com qualquer sentido.

Abre-se, então, um vazio e Lacan inscreve o objeto a, que passa a indicar uma ausência sem desaparecer com ela. O objeto a vem nomear uma área de intersecção definida pela sobreposição do que falta ao sujeito e ao Outro e, sendo assim, deixa de ser pensado como finalidade do desejo para constituir-se em causa do desejo. Desse modo, de acordo com Klautau, o objeto a se torna o que possibilita o segundo passo da constituição do sujeito, a sepa-ração do sujeito em relação ao Outro (p. 106). Porém, deve-se observar que o objeto a só se constitui com a abertura do vazio e já traz em si a separação, não sendo adequado, portanto, tomá-lo como possibilitador desta, mas como sua marca.

Para chegar à definição do objeto a como causa do desejo, Klautau precisou verificar o desenvolvimento posterior desse conceito, realizado nos seminários após 1960 (1961-62, 1962-63 e 1964), nos quais, além dessa definição, Lacan descreveu também qual deverá ser a função do analista: colocar-se como objeto causa de desejo, posicionando-se, portanto, como objeto a. Nesse modo de se colocar, o analista deverá falhar na manutenção da posição ideal, qual seja, a que permite uma identificação do analisando com ele. Com essa falha, o analista possibilitará a expressão da própria subjetividade do analisando.

O quarto capítulo vai consistir, enfim, na comparação do conceito de objeto segundo os autores estudados. Enfatizando a forma como cada um concebe a presença do outro na constituição do psiquismo, a autora estabelece dois pontos comuns entre eles. O primeiro é o reconhecimento dessa presença como imprescindível para que a constituição aconteça. Para Winnicott, inicialmente, o outro aparece fundido ao bebê, sendo concebido como objeto subjetivo; para Lacan, o outro está desde o começo separado do sujeito por uma falta primordial, o objeto a.

O segundo ponto comum é que os dois objetos identificados por Klautau na constituição da subjetividade e do outro, o objeto transicional e o objeto a, constituem-se diante de uma perda. No entanto, o que há em comum entre eles cessa por aqui, uma vez que o objeto a, além de estar presente desde o começo da constituição do sujeito, nomeia uma ausência, um vazio e é uma falta em si, só podendo ser concebido em termos topológicos; já o objeto transicional, que se apresenta num segundo tempo do encontro da mãe com o seu bebê, é uma presença real - uma parte de realidade subjetiva do bebê e outra parte de realidade compartilhada objetivamente. E ele só é símbolo de uma falta, como verificado por Klautau, do ponto de vista do observador, pois o bebê, nesse momento, está apenas iniciando a sua capacidade de simbolizar. Em 1962, em carta a Benjamin Spock, Winnicott declara que os objetos e fenômenos transicionais podem ser pensados "como repre-sentando os primórdios da arte do uso de símbolos pelo bebê". (Winnicott, 1990, Gesto espontâneo. São Paulo, Martins Fontes, p. 118).

O símbolo representa ou substitui algo abstrato ou que se encontra ausente; a ligação direta com a falta, ou a percepção do objeto como símbolo, ainda é incipiente no bebê. Este, na ausência da mãe (ou dos cuidados do ambiente) produz o objeto transicional justamente porque não consegue conviver com essa ausência sem uma conotação trágica; sendo assim, o objeto vem fazer as vezes de uma mãe que existe. Dias comenta que, "apesar da importância do caráter simbólico do objeto transicional, Winnicott faz notar que, no início, o importante não é tanto o seu valor simbólico, mas a sua realidade" (Dias, 2003, A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro, Imago, p. 241). Com o amadurecimento, quando a ausência já pode ser experienciada de uma forma tranqüila, o objeto transicional é "relegado ao limbo"; ele perde a sua função. A ausência está ali e não é mais necessária uma presença que a encubra. Agora ele já pode perceber um objeto como símbolo de uma falta, pois ele já pode reconhecer essa falta.

Percebe-se, assim, que muito mais do que uma diferença no tempo, ou do momento de constituição desses objetos, ou, ainda, da natureza destes, há uma diferença de modo, de ponto de vista, de como esses autores compreendem e interpretam o que se passa no encontro da mãe com o seu bebê.

Segundo Klautau, esse desen-contro entre o objeto transicional e o objeto a é reeditado na clínica: Lacan vai enfatizar uma prática interpretativa das formações do inconsciente e da dimensão pulsional que se estabelecem desde o início da relação com o outro; Winnicott, com a importância dada ao holding e com a valorização do campo experiencial pré-subjetivo, vai estabelecer um continente que abarque o conteúdo pulsional, permitindo que as expressões do desejo e da falta sejam interpretadas, destacando o uso que o analisando faz do analista e o trabalho do analista para tornar-se usável.

Insistindo em sua busca de semelhanças entre as duas teorias, Klautau aponta, então, o que considera realmente o único encontro entre as duas teorias: o conceito de objeto a, em Lacan, e o conceito de espaço potencial, em Winnicott. Para ela, essas duas áreas intermediárias descrevem o mesmo espaço entre o eu e o objeto, sendo apenas nomeadas de forma diferente: "o espaço potencial possibilita a constituição do sim-bolismo, funcionando como causa da atividade fantasmática, ou, em outros termos, da busca permanente de objetos, a qual, nos termos lacanianos pode ser aproximada da noção de desejo" (p. 127).

A forma como Klautau expõe suas conclusões, resumidas aqui nos dois parágrafos anteriores, atesta não só a dificuldade da tarefa a que se propôs em sua pesquisa, mas a dificuldade encontrada por um pesquisador de entrar nos meandros e sutilezas de uma teoria quando está identificado com outra. Por outro lado, sabe-se que sair de uma identificação e penetrar na forma do outro, radicalmente, é impossível. Sabe-se, também, que não existe uma linguagem neutra e, apesar de tentar uma neutralidade em seu estudo, inclusive citando a tese de Loparic de um novo paradigma, percebe-se a identificação da autora com a teoria lacaniana e com um pensar que mantém o instituído por esta.

O leitor familiarizado com a teoria winnicottiana, mesmo que não comungue com a idéia de uma mudança paradigmática, percebe em alguns pontos a falta dessa mesma familiaridade na autora, quando utiliza termos (continente, conteúdo pulsional, desejo, atividade fantasmática, por exemplo) que não foram, ou deixaram de ser, utilizados por Winnicott em sua teorização e quando deixa de se colocar do ponto de vista do bebê, perdendo a compreensão de algumas noções como as que serão expostas a seguir.

Na página 36, ela tece comen-tários acerca da adequação da mãe no tempo e escreve: "cabe a ela estar disposta a atender às necessidades da criança e, posteriormente, ir frustrando-a gradativamente de acordo com o seu ritmo de tolerância" (os itálicos são meus). Sabe-se que o termo frustração e a noção de tolerância à frustração, à medida que a teoria de Winnicott tomava consistência, foram deixando de ser utilizados por este na explicação sobre as falhas do ambiente necessárias para o amadurecimento de recursos próprios da criança para lidar com situações da realidade, falhas que deverão ser sempre diretamente proporcionais à maturidade do bebê, para que não causem danos irreparáveis.

Nessa mesma página, em seu comentário: "Winnicott postula um estado inicial de indiferenciação entre eu-não-eu cuja unidade não é o bebê, mas sim o conjunto ambiente-indivíduo, visto que nessa época é indiferente saber se existe ou não alteridade" (os últimos itálicos são meus). A incapacidade do bebê de perceber algo não-eu, algo externo a ele e ele próprio não é o mesmo que dizer que, nesse momento, é-lhe indiferente saber se existe ou não alteridade. Aquilo que é antecipado ao bebê, ou seja, que lhe é apresentado antes que ele esteja suficientemente amadurecido para se dar conta, pode provocar-lhe defesas que, no mínimo, estruturarão um falso si-mesmo. Em recente publicação sobre a teoria do amadurecimento de Winnicott, Elsa Dias (2003) comenta essa questão: "As experiências não podem acontecer porque a mente se antecipa, em estado de alerta, ocupada em prevenir qualquer ameaça de invasão ambiental. Há como que o surgimento de uma consciência precoce (puramente mental), uma espécie de eu prematuro, isto é, um si-mesmo que não amadureceu o suficiente para estados próprios de consciência" (op. cit., p. 20).

O mesmo pode ser dito em relação ao seguinte trecho: "(...) período em que o lactente apenas existe devido aos cuidados fornecidos pela mãe-ambiente, mas que ainda não são percebidos como tais, e sequer se são bem ou mal desempenhados" (p. 37, os itálicos são meus). É claro que, se tudo corre bem, o bebê não percebe os cuidados maternos. Entretanto, se estes são mal desempenhados, eles serão, sim, sentidos; não serão percebidos como falhas do ambiente, mas sentidos como algo estranho que, com certeza, provocará uma interferência ou até mesmo uma interrupção em sua experiência de ser. Winnicott afirma: "(...) quando as coisas vão bem o lactente não tem como saber o que está sendo provido adequadamente e o que está prevenido. Por outro lado, é quando as coisas não vão bem que o lactente se torna perceptivo, não de uma falha do cuidado materno, mas dos resultados, quaisquer que sejam, dessa falha; quer dizer, o lactente se torna consciente de reagir a alguma irritação" (Winnicott, 1990, O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, p. 51). Aliás, na nota número 10, a autora "repara", de certa forma, sua afirmação, quando diz que o bebê não é capaz de atribuir à mãe a autoria de suas funções, se é bem ou mal cuidado, se as experiências possuam qualidade boa ou má, mas se importa, sim, se suas necessidades são ou não atendidas (p. 56). Para Winnicott, o lactente não pode "assumir controle sobre o que é bem ou mal feito, mas apenas está em posição de se beneficiar ou de sofrer distúrbios" (ibid., p. 46). Sabe-se que, para o bebê, um cuidado mal desempenhado é uma necessidade não atendida.

Klautau menciona constante-mente o modo como o bebê vive o seu momento inicial como um modo de "percepção subjetiva", ao invés de "concepção subjetiva". Na teorização de Winnicott, se tudo vai bem, não se pode falar, no início da vida do bebê, em percepção subjetiva, porque a forma própria deste de sentir, de compreender e de formar uma idéia de qualquer coisa não pode prescindir da criatividade primária, que é possibilitada, por sua vez, pelo bom cuidado materno. Sendo assim, o termo percepção não cabe, pois este carece da idéia de criatividade, não contém qualquer referência a esta e, mesmo que nesse momento tudo seja incipiente, ao dizer "percepção subjetiva" do bebê, a autora transmite a idéia de que se trata apenas de uma distinção feita por este a partir de um ponto de vista próprio e não de uma contribuição pessoal dele para o entendimento de determinada situação.

Somente a "concepção subjetiva" cabe nesse momento, pois, como a autora mesmo comenta, quando descreve o paradoxo do objeto subjetivo ser e não ser um objeto e de ele ser e não ser subjetivo - e com isso ela se contradiz -, "Winnicott nos alerta que este tipo de paradoxo é um fenômeno que não deve ser questionado na primeira infância, pois primeiro é necessário permitir ao bebê atingir esse tipo de loucura, definido como momento de ilusão, para depois, gradualmente, pedir-lhe que distinga o que é subjetivo e o que é objetivo. Winnicott propõe, assim, uma área intermediária situada exatamente entre o que é subjetivamente concebido e o que é objetivamente percebido; área esta ocupada pelos objetos transicionais" (p. 41).

Em relação ao encontro entre o conceito de objeto para Winnicott e Lacan, Klautau conclui que, se há um encontro, este se dá apenas no reconhecimento da existência de uma área intermediária entre mãe e bebê, pois o encontro logo se esvai à medida em que se entra em contato com o modo como os autores compreendem essa área.

A área intermediária lacaniana, oriunda de uma perda primordial, permanece sempre como espaço, uma falta entre o eu e o objeto que existe efetivamente desde sempre e que, no real, nunca será preenchida ou extinta. Há de se notar que, na sua condição de vazio, qualquer presença, no início, denota a sua não constituição, como é o caso nas psicoses e, se houver se constituído, a neurose para Lacan será o preenchimento desse vazio, por meio de conteúdos simbólicos e imaginários.

Já a área intermediária winnicottiana vai se constituir de forma efetiva a partir do estágio da transicionalidade, embora tenha estado potencialmente lá desde o início. É um espaço no qual, nesse estágio, os objetos e os fenômenos transicionais serão produzidos, facilitando o encontro com o objeto objetivo, uma vez que, no processo de amadurecimento, haverá a transição do subjetivo para o objetivo.

Para Winnicott, a constituição do si-mesmo não se inicia a partir da falta, mas, antes, a partir da identificação primária da mãe com o seu bebê, sem a qual a falta, capaz de ser experienciada e que consolida a constituição do si-mesmo e do outro, não acontecerá. Winnicott não enfatiza a falta, porque, para ele, no princípio, esse espaço de falta é apenas potencial. Nesse momento, ele só se torna um espaço enquanto tal se houver falha do ambiente em promover uma continuidade de cuidados que permitiria ao bebê o momento de ilusão.

E mesmo que se conclua que, para Winnicott, não se pode falar inicialmente no encontro de duas partes, já que nesse início mãe e bebê são um, esse dois-em-um não é algo dado, é algo que deverá se constituir, que é básico para a constituição do si-mesmo do bebê e só será possível a partir do encontro inicial de uma mãe e um bebê potenciais. Sem a identificação primária, haverá uma falta de uma outra natureza, uma falta não constitutiva de humanidade, um não-acontecer.

O espaço potencial não é um espaço que se abre destituído de tudo e por isso causa de; é um espaço que se abre tendo em si condições para.

Na busca de encontros e desencontros entre as teorias de Winnicott e Lacan, fica difícil dizer que os resultados encontrados por Klautau possam realmente dizer de semelhanças e diferenças a respeito de algo visto de pontos de vista tão distantes. O que é visto pelos dois, embora possa ser identificado como um mesmo objeto de pesquisa e/ou análise, nunca é visto do mesmo modo. Daquilo que Klautau considera ser um encontro, talvez possa se dizer um "encontrão", uma vez que as teorizações, constituindo-se por meio de modos de análise tão diferentes, mas coesas e consistentes, ao se encontrarem, forçosamente, já se separam.

De um trabalho difícil e, mesmo com todas as ressalvas, bem realizado e de valor para o campo de estudo psicanalítico, possa se comentar ainda um ponto crítico em sua realização: o recurso às traduções. Não há referência de consulta aos originais. Um estudo científico, que pretenda rigorosamente abarcar o significado de um conceito de um autor estrangeiro, não pode se ater ao estudo de obras traduzidas, uma vez que estas, há bastante tempo, são criticadas por deixar muito a desejar.

Em relação às obras winni-cottianas, atestam isso, por exemplo, Bogomoletz (Natureza humana, v. 3, n. 1, 2001), em sua resenha do livro de Jan Abram, que foi citado por Klautau, e Loparic (Natureza humana, v. 2, n. 2, 2000), em nota de seu artigo "O `animal humano'", na qual expôs a sua necessidade de comparar as traduções com o original e em muitos casos refazê-las, em razão dos vários erros.

Quanto às traduções das obras lacanianas, o mesmo acontece, principalmente quando se insiste em traduzir alguns termos que prescindiriam disso, ou seja, poderiam ser mantidos no idioma original, como já foi feito com tantos outros, pelo fato de a tradução tornar-se problemática para a compreensão do seu sentido. Um exemplo vem da própria Klautau, na nota 21 da página 86: "É importante ressaltar que m representa a palavra moi cujo significado em português é muito próximo ao pronome pessoal mim. Para efeitos de tradução, e como em português não é possível iniciar uma frase com este pronome, adotou-se a palavra eu. Desta forma, em por-tuguês, tanto je como moi significam eu".

Contudo, o je do desejo não é o moi. Segundo Lacan, "O eu [moi, aqui traduzido, mascolocado em itálico], no entanto, verdade primeira da psicanálise nunca é senão metade do sujeito, e essa metade ainda por cima, não é a boa nem a que detém o fio de sua conduta, de modo que o referido fio deve ser torcido, e não apenas um pouco. Mas que importância tem isso? Todo mundo não sabe há algum tempo que o sujeito, em sua resistência, usa de tamanho artifício que chega até a se refugiar na moita [maquis] da perversão declarada, na strada da incontinência passional, para não se entregar à evidência - ou seja, a de que, em última análise, ele é pré-genital, isto é, interesseiro?" (Lacan, 2003, "Discurso de Roma". In: Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 151). O je é o eu que fala, é o sujeito do desejo, sendo construído no campo da linguagem, e o moi é o objeto do desejo do Outro, sendo construído na vertente do imaginário.

É importante ressaltar que tal questão não é exclusiva das traduções brasileiras. Um exemplo recente é o trabalho que Adam Phillips desen-volve, no momento, elaborando uma nova tradução da obra de Freud para o inglês, devido às muitas incorreções.

Ainda que essas questões pesem, o trabalho de Klautau constitui-se em uma importante contribuição para o campo psicanalítico e o leitor que dele se ocupar, no intuito de aprimorar o seu conhecimento de um conceito fundamental no estudo do psiquismo humano a partir de Winnicott e Lacan, terá, certamente, o retorno esperado.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: serralhac@hotmail.com

Recebido em 15 de dezembro de 2003
Aprovado em 24 de março de 2004