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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Nem filósofo, nem antifilósofo: notas sobre o papel das referências filosóficas na construção da psicanálise lacaniana

 

Neither philosopher nor anti-philosopher: remarks on the role of philosophical references in the construction of lacan’s psychoanalysis

 

 

Richard Theisen Simanke

Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Lacan é um psicanalista cujo intenso diálogo com a filosofia tornou-se um dos traços distintivos de seu pensamento, ao mesmo tempo, contudo, em que concorda com a recusa freudiana da filosofia e muitas vezes assume posições marcadamente antifilosóficas. Este artigo propõe-se a discutir essa aparente contradição e sugerir que o uso que Lacan faz de suas referências filosóficas talvez possa ser melhor compreendido no contexto de uma concepção sobre a natureza metafórica da teoria psicanalítica que subjaz à sua reconstrução da psicanálise freudiana.

Palavras-chave: Teoria psicanalítica, Lacan, Antifilosofia, Filosofia, Metáfora.


ABSTRACT

Lacan is a psychoanalyst whose intensive dialogue with philosophy has become a distinctive feature of his thought. At the same time, however, he agrees with Freud's rejection of philosophy and takes often an accentuated antiphilosophical position. This paper sets out to discuss this seeming contradiction and suggests that Lacan's use of philosophical references may perhaps be best understood in the context of a metaphorical conception of psychoanalytic theory which underlies his reconstruction of Freudian psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalytic theory, Lacan, Antiphilosophy, Philosophy, Metaphor.


 

 

Introdução

Lacan fala muito de filosofia. Entre a pluralidade de referências extrapsicanalíticas que assimila em seu trabalho de reinterpretação de Freud, a filosofia certamente ocupa um lugar de destaque. Essa relação com a filosofia aparece afetada do mesmo ecletismo que caracteriza sua aproximação com os demais campos do conhecimento, com os quais faz dialogar a psicanálise: Lacan cita ou nomeia filósofos que vão de Sócrates e Platão a Heidegger, passando por Aristóteles, Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Kierkegaard, para ficarmos apenas com os mais famosos (uma inspeção superficial dos Écrits revelará pelo menos outros quarenta e tantos). Essa interlocução filosófica constantemente reiterada é mesmo considerada um traço que singulariza o pensamento de Lacan dentro do campo psicanalítico, distinguindo-o, antes de tudo, do próprio Freud, sempre circunspecto ao admitir influências filosóficas na elaboração das idéias psicanalíticas.

Além disso, Lacan reitera, em termos bastante semelhantes, a condenação freudiana da filosofia, notadamente daquela envolvida na construção dos grandes sistemas metafísicos especulativos. Em Freud, como sabemos, essa condenação se enuncia a partir do privilégio concedido às ciências naturais, no que se prolonga, em seu pensamento, uma certa versão do programa positivista. Que ela se exprima numa assimilação da especulação filosófica aos delírios sistematizados das psicoses de tipo paranóico (Freud 1913, p. 363; Freud 1914, p. 63; Freud 1919, p. 261; Freud 1915a, p. 162; Freud 1933, p. 165-6 e 175) pode, em Freud, ser considerado uma peça de retórica destinada a enfatizar sua posição - ou uma "ironia selvagem", no dizer de Lacan (1975a).1 As motivações lacanianas para essa mesma assimilação são bem menos claras e, com certeza, nada têm a ver com a formulação de um programa de investigação psicológica segundo os parâmetros do naturalismo científico - as inclinações de Lacan foram antinaturalistas desde sempre e, a partir de um certo momento, rumaram também para uma recusa da psicologia e, mais tarde ainda, da própria idéia tradicional de ciência. Se ele desfralda a certa altura a bandeira da antifilosofia e retoma, em seus próprios termos, a concepção patológica da reflexão filosófica que deriva de Freud, tal recusa teria que ser pensada a partir das próprias premissas da teoria lacaniana, tarefa que aparece complicada pela intensidade da presença da filosofia em seu pensamento. Antes de seguir adiante, observemos apenas que o termo "antifilosofia" tem um sentido específico nos meios lacanianos e designa a maneira como a recusa da filosofia se expressa no último Lacan (a partir de 1975, mais ou menos). Milner (1995) considera que o termo assinala uma ruptura com a atitude anterior de Lacan, de intenso diálogo com o corpus philosophorum, uma conseqüência da nova fase da teoria lacaniana, centrada no conceito de matema, e não mais no de significante ou letra (o que este autor chama de "segundo classicismo lacaniano"), ainda que reencontre a continuidade da atitude antifilosófica na relativa irresponsabilidade com que Lacan se vale das noções oriundas da filosofia no período anterior.2 No que se segue, falaremos de antifilosofia para designar a atitude geral de rejeição da filosofia por parte de Lacan - que, aliás, se alterna com a de elogio e de aproximação com a psicanálise ao longo de todo o percurso da obra -, sem referência ao sentido estritamente lacaniano que o termo possa ter adquirido.

Esse posicionamento ambíguo de Lacan diante da filosofia acaba resultando em duas atitudes opostas entre os comentadores de sua obra: uns tendem, confessadamente ou não, a tratá-la como um sistema filosófico, discutindo em qual tradição ela se insere, qual o seu lugar do contexto da filosofia contemporânea, e assim por diante; outros optam pela via da recusa, colocam em primeiro plano os argumentos antifilosóficos e interpretam as teses lacanianas em termos de uma exterioridade radical a toda e qualquer posição filosófica. As notas que se seguem propõem-se a discutir alguns pontos comuns dessas duas posições antagônicas e apontar, muito preliminarmente, em que sentido parecem poder ser melhor compreendidas as relações de Lacan com a filosofia. Para tanto, serão mencionadas algumas leituras que vão numa e noutra das direções divergentes apontadas acima, procurando mapear os pontos de vista a esse respeito encontráveis na literatura lacaniana. Serão discutidas, então, as tomadas de posição explícitas de Lacan com relação à filosofia em geral; a seguir, procede-se a um breve comentário de algumas passagens célebres em que ele aproxima e funde conceitos filosóficos e psicanalíticos, procurando mostrar de que maneira se constrói um certo tipo de metáforas em que a matéria-prima filosófica é amoldada segundo as necessidades de expressão de teses capitais da psicanálise. Por último - e a título de conclusão -, procurar-se-á apontar algumas filosofias que comparecem como influências menos visíveis nos trabalhos de Lacan, mas que, pelo tipo de emprego que delas faz, talvez se constituam em referências filosóficas mais efetivas do que aquelas usualmente celebradas como tais.

 

As relações entre Lacan e a filosofia segundo os filósofos

Partamos de apenas alguns exemplos pinçados na vasta literatura de comentário sobre a psicanálise lacaniana para ilustrar uma e outra atitude diante da posição de Lacan com relação à filosofia. Talvez quem exprima mais enfaticamente a interpretação antifilosófica seja Alan Badiou:

Lacan não é filósofo e não há, não poderia haver, uma filosofia de Lacan. Lacan insiste claramente que o essencial de seu pensamento provém de sua experiência clínica. Essa experiência é radicalmente exterior e estrangeira à filosofia. (2003, p. 13).

Evidentemente, o autor não desconhece o amplo diálogo mantido por Lacan com os principais nomes da filosofia ocidental. Ele mesmo está empenhado em discutir esse diálogo, na medida em que o texto em questão versa sobre a relação entre Lacan e Platão. Contudo, isso não o impede de reiterar a relação de exterioridade recém-afirmada entre o pensamento lacaniano e a filosofia, enfatizando ainda mais o seu viés antifilosófico:

Lacan certamente atravessou, leu, deslocou e comentou grandes filósofos. Na verdade, principalmente sete: Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, Kierkegaard e Heidegger. Mas Lacan finalmente posicionou sua experiência sob a bandeira da antifilosofia. Esse ponto é essencial: Lacan é um antifilósofo. (Ibid., 2003, pp. 13-14, grifos do autor)

Não é difícil, no entanto, encontrar a posição oposta. Lecercle (1985, p. 91), por exemplo, não hesita em listar Lacan entre os filósofos franceses contemporâneos importantes, ao lado de Althusser (ver também Macey 1988, p. 75), e Jacques-Alain Miller o equipara a Aristóteles (Miller 1985, p. 12). Mas, talvez, a tentativa mais extrema e sistemática de fazer de Lacan um filósofo seja ainda a de Alain Juranville. Em seu Lacan e a filosofia (Juranville 1984), esse autor mobiliza um vasto aparato conceitual para demonstrar, para além das suspeitas explícitas manifestadas tanto por Freud quanto por Lacan, que a psicanálise, na versão formulada por este último, não só é compatível com a filosofia, mas é ela mesma uma das espécies do discurso filosófico e, no limite, a filosofia por excelência da contemporaneidade pós-moderna, hipótese sustentada a partir de uma referência essencial ao pensamento de Heidegger, que paira sobre todo o empreendimento.3 Assim, ao responder à pergunta "o que é ser lacaniano?", ele, entre outras coisas, afirma:

(...) é ainda, diríamos, saber que a filosofia é requerida pela psicanálise, pois somente a filosofia pode teorizar esse mais além da neurose, que é sublimação e experiência do real, que dá sentido à prática psicanalítica e sem o qual ela é rotina e impostura (...). (Ibid., p. 10, grifos nossos)

Embora não deixe de levar em conta os problemas envolvidos nessa assimilação abrupta entre psicanálise e filosofia - problemas que não decorrem apenas das tomadas de posição lacaniana e freudiana, mas da própria heterogeneidade entre os dois discursos -, Juranville não perde oportunidade para reiterá-la. Para deixar claro que é de uma integração que se trata, e não de uma subordinação da psicanálise à filosofia, ele não deixa de enfatizar a dupla via em que se opera essa assimilação:

Filosofia e psicanálise se afrontam e se entrelaçam uma na outra. Uma como sintoma da outra. Mas sem a psicanálise, hoje, a filosofia seria o que é sem aquilo que a problematiza (...), e a psicanálise, sem a filosofia, resvalaria para a impostura da "ação". (Ibid., p. 11)

Ao contrário de certos autores (Milner 1995, por exemplo), que vêem no esforço de formalização da teoria empreendido por Lacan através de seus famosos matemas um trabalho de superação da perspectiva filosófica e dos impasses envolvidos em qualquer formulação discursiva do real,4 Juranville assimila os próprios matemas a concepções filosóficas, reforçando dessa maneira a aproximação que promove entre o conhecimento psicanalítico e aquele articulado pela filosofia:

E essas "estruturas firmadas na psicanálise", de que espécie são elas, senão filosóficas? Elas ordenam elementos segundo uma consistência imaginária e um sentido. Matemas, sem dúvida, mas conceituais, e não científicos. (Juranville 1984, p. 416)

No limite, apesar de todas as ressalvas e cuidados para contornar uma identificação pura e simples entre a psicanálise lacaniana e a filosofia - ressalvas que, como se viu, apelam até para a noção bastante ampliada de sintoma com que trabalha Lacan, principalmente na fase final de sua obra -, é para essa identificação que converge a análise de Juranville, o que acaba por se expressar inequivocamente na conclusão de seu trabalho:

Psicanálise e filosofia são, uma para a outra, o mais real. Disse Lacan que o sintoma é a nota própria da dimensão humana. A psicanálise é o sintoma para a filosofia, e a filosofia é o sintoma para a psicanálise. (...) Assim, a filosofia permite à psicanálise ser um bom sintoma e nomear o real. (...) Mas a filosofia é, para a psicanálise, o real do nó mental. (...) Filosofia e psicanálise não passam de dois nomes para uma só e mesma coisa, para um único e mesmo ser. (Ibid., p. 417, grifos nossos)

Nem todos que admitem alguma afinidade entre a filosofia e a psicanálise lacaniana são assim tão taxativos. Talvez a mais ponderada das discussões do tema seja a de David Macey que, no capítulo de seu Lacan in contexts (Macey 1988) intitulado "Philosophy and post-philosophy", analisa de forma abrangente não apenas as mais significativas das inúmeras influências filosóficas de Lacan, mas também a significação geral e a natureza dos vínculos que sua teoria entretém com a filosofia como um todo. Macey começa por apontar que Lacan renova a rejeição freudiana das pretensões totalizadoras da filosofia - principalmente, a partir de certo momento, valendo-se da figura do "discurso do Senhor" (ibid., 1988, p. 81), à qual teremos ainda que retornar. Além disso, Lacan teria da filosofia, por um lado, uma visão convencional e não problematizada5 e, por outro, segundo seu próprio testemunho, a utilizaria meramente como uma espécie de reserva de imagens e ilustrações a serem usadas somente como dispositivos pedagógicos para exprimir suas concepções, na falta de coisa melhor.6 Essa seria, assim, uma primeira justificativa para a ambigüidade que se verifica num autor que rejeita a filosofia de seu pensamento ao mesmo tempo em que multiplica as referências aos filósofos e às concepções filosóficas:

As hesitações exibidas aqui por Lacan indicam algo da ambigüidade de seu relacionamento com a filosofia. A filosofia, definida em termos muito convencionais, o provê com um arsenal de referências e alusões que podem ser usadas em assinalamentos ilustrativos ou pedagógicos. É um campo no qual alianças táticas podem ser formadas e exploradas para promover a causa freudiana. (...) Em ambos os sentidos, o campo filosófico deve permanecer intacto para que possa desempenhar sua função de apoio. (Ibid., p. 86)

Mas não pode ser só isso. A ampla interdisciplinaridade que Lacan advoga para a psicanálise - seguindo certas indicações de Freud (1926, p. 246) sobre a formação do analista - reserva um lugar privilegiado para a informação filosófica que não parece explicável apenas pelas idiossincrasias do caráter nacional francês e de seu sistema educacional. Além disso, referências filosóficas como Kojève, Sartre e Politzer parecem desempenhar um papel muito mais constitutivo no ideário lacaniano do que o de meras ilustrações para concepções já prontas e formuladas independentemente. A ampla participação de Heidegger na elaboração do pensamento de Lacan, principalmente ao longo dos anos 50, reflete-se em pelo menos dois temas cruciais da teoria: sua concepção da linguagem e a da temporalidade do sujeito. Essas e outras evidências impõem, segundo Macey, que se repense a função desempenhada pela filosofia na elaboração do corpus lacaniano: "O campo filosófico é, portanto, uma fonte de inputs conceituais, e não meramente um campo referencial ou ilustrativo" (Macey 1988, p. 104). Para além da inegável capacidade de Lacan para a mímica e a prestidigitação verbal, haveria algo mais envolvido na exploração dos recursos oferecidos pela filosofia: haveria "uma tendência definida a importar alguns de seus produtos para o interior do discurso alegadamente antitético da psicanálise" (ibid., p. 106). A revolução protagonizada por Freud apareceria, assim, aos olhos de Lacan, em última instância, como uma revolução filosófica, por mais que a heterogeneidade entre filosofia e psicanálise defendida por um e outro exija que se considere essa revolução como travada contra a filosofia, pelo que a psicanálise se converteria num discurso pós-filosófico (ibid., p. 112) - mas não mais rigorosamente antifilosófico, note-se bem -, na medida em que se destinaria a ocupar o lugar deixado vago pela forma de conhecimento a qual supera. A leitura de Macey, afinal de contas, já não parece mais assim tão distante da de Juranville. O próprio argumento central para a recusa da filosofia - seu esforço vão para uma totalização do saber - perderia sua força a partir da constatação de que a teoria dos quatro discursos, na qual a figura do "discurso do Senhor" exprime a ilusão filosófica denunciada pelo discurso psicanalítico, consistiria, ela própria, num esforço totalizador desse mesmo tipo, a saber, numa teoria que tende para um sistema universal de classificação discursiva, onde todo discurso concreto deve forçosamente vir a encontrar o seu lugar. Daí que, ao fim e ao cabo, todas as medidas de cautela contra uma identificação total entre as duas disciplinas acabem por revelar-se ineficazes. Macey percebe a metáfora perfeita para esse estado de coisas na identificação que Lacan efetua entre sua "excomunhão" da IPA e a exclusão de Espinosa da comunidade judaica de Amsterdã (Lacan 1964, p. 12):

Fazendo assim, ele com efeito admite seus pontos de vista ambivalentes sobre a filosofia: esta é tanto outra que a psicanálise quanto um objeto a ser absorvido pela psicanálise, um objeto de identificação. No momento da sua identificação com Espinosa, a visão da pós-filosofia se desvanece em uma visão da psicanálise como filosofia. (Macey 1988, p. 120, grifos nossos)

Com Borch-Jacobsen (1991), pareceríamos talvez encontrar uma posição intermediária.7 Ele reconhece que Lacan não se subscreve pura e simplesmente à recusa freudiana da filosofia em função da crônica incapacidade desta última para reconhecer a existência e a eficácia do inconsciente (Freud 1923, p. 283; Freud 1925, pp. 216-217, entre outras) - recusa sobre cuja ingenuidade filosófica quase não é necessário insistir. Assim:

(...) se nós nos voltamos agora para esse herdeiro de Freud que Lacan pretende ser, é forçoso constatar que nos encontramos diante de uma posição de discurso totalmente diferente. Lacan, evidentemente, não nutria as mesmas reservas que seu predecessor a respeito da filosofia, mesmo que lhe ocorresse regularmente insistir sobre a diferença de estatuto entre os discursos psicanalítico e filosófico. (Borch-Jacobsen 1991, p. 297)

Cabe, portanto, recolocar a pergunta sobre a função que desempenham as referências filosóficas que proliferam em seus trabalhos. De certa maneira, o argumento de Borch-Jacobsen é que a redefinição empreendida por Lacan da noção freudiana de inconsciente pode tornar menos ingênua a recusa da filosofia por parte da psicanálise. É claro que os filósofos nem sempre ignoraram o inconsciente - e Lacan mesmo é o primeiro a reconhecê-lo,8 ainda que outras vezes afirme o contrário9 -, mas teriam deixado de assumir todas as conseqüências dessa descoberta para a própria tarefa filosófica, omissão que a reformulação filosoficamente informada da teoria freudiana do inconsciente empreendida por Lacan teria denunciado em todo seu alcance:

Quanto a isso, poder-se-ia dizer do inconsciente lacaniano que ele é o Inconsciente da filosofia: esse inconsciente que a filosofia da consciência pressupõe ao ignorá-lo, certamente; mas também o inconsciente desta mesma filosofia, seu inconsciente. Pois, mais uma vez, esse "inconsciente" tira proveito da afirmação pela psicanálise de uma outra cena que aquela da consciência cogitante, representativa, intencional. Incapacidade de sempre do filósofo, diria Freud aqui, em admitir que o psíquico não se reduz à consciência. (Ibid., p. 298, grifos do autor)

O mérito de Lacan, portanto, estaria em conferir consistência filosófica à recusa freudiana da filosofia em nome da necessidade de se pensar o inconsciente, em impor essa recusa ao discurso filosófico nos seus próprios termos. Pierre Macherey, ao comentar o trabalho de Borch-Jacobsen, não deixa de apontar para a "transformação que sofre a noção de inconsciente quando ela é remodelada por um psicanalista-filósofo como Lacan" (Macherey 1991, p. 315, grifos nossos). Por aí se resolveria a ambigüidade: Lacan se teria feito filósofo para, de alguma maneira, demonstrar a própria impossibilidade da filosofia, pelo menos na forma que ela assumiu no pensamento moderno clássico. Esse autor não deixa de enfatizar o uso errático e nada sistemático que Lacan faz das noções filosóficas, o que, à primeira vista, resultaria na impossibilidade de pensá-lo como um filósofo stricto sensu e, na medida da sua insistência em ligar filosofia e psicanálise, numa evidente descaracterização desta última:

Ora, como essa ligação se efetuou? Não sob a forma de uma produção filosófica original - pois, se há filosofia em Lacan, não há por isso uma filosofia de Lacan -, mas sob a forma de empréstimos aos filósofos. Assim, essa filosofia que encontraríamos em Lacan, essa presença da filosofia sendo um dos traços distintivos de seu encaminhamento, seria, sob todos os aspectos, uma filosofia "emprestada". Lacan teria, portanto, introduzido no campo da psicanálise elementos de interpretação filosófica pré-fabricados, e teria efetuado a partir desses empréstimos, desses plágios, uma espécie de bricolagem filosófica da psicanálise. E é aqui que a avaliação de fato parece conduzir também a um julgamento de direito: a psicanálise, na versão que Lacan dela forneceu, se tornaria uma filosofia aplicada, ao preço de uma desfiguração de suas orientações fundamentais. (Ibid., p. 318)

Por mais ponderada e sensata que pareça essa avaliação, Macherey não se permite concluir sem revertê-la em favor da psicanálise e, conseqüentemente, em detrimento da filosofia. A bricolagem lacaniana, em última instância, demonstraria, na prática - nos rearranjos discursivos e nos parentescos insólitos aos quais Lacan submete as noções filosóficas que emprega - "o mito de um pensamento filosófico unitário e coerente, fundado em seus princípios e reunido em torno de seu objeto" (ibid., p. 321). Razão pela qual "o ensinamento propriamente filosófico da obra de Lacan seria, portanto, o seguinte: a filosofia como tal não existe" (ibid., p. 321), numa reversão do defeito em qualidade não muito diferente da que encontramos em Milner (1995), como foi visto acima. Dessa perspectiva, o trabalho de Lacan pode aparecer como uma longa interpretação psicanalítica da filosofia, uma interpretação no sentido lacaniano, que enfatiza o aspecto desconstrutivo da intervenção do analista, por meio da qual a ilegitimidade e a inautenticidade das pretensões filosóficas seriam demonstradas de modo similar à inautenticidade do sintoma.

Desse modo, para além de toda a avaliação crítica, esse modo de encarar os trâmites de Lacan com a filosofia parece renovar e elevar ao seu mais alto grau a reivindicação freudiana de que a psicanálise não tem contas nenhumas a prestar à filosofia, enquanto que a filosofia, por sua vez, teria que prestar contas à psicanálise, já que esta, assimilando os sistemas filosóficos aos delírios sistematizados da psicose paranóica, pode "interpretá-la" assim como interpreta estes últimos.10

Sobre a interpretação da obra de Lacan como uma filosofia, no sentido estrito da palavra - como é caso de Juranville -, pode-se dizer que aparece muitas vezes como um exagero naquilo que reivindica de sofisticação conceitual e no esforço de conceder um lugar privilegiado na história do pensamento ocidental para uma doutrina que, via de regra, faz um uso ilustrativo e freqüentemente escolar das idéias filosóficas. Contudo, a atitude oposta, de lhe recusar essa mesma condição, surge como animada de uma espécie de vertigem de grandeza ainda maior: a psicanálise não seria uma filosofia, não apenas por consistir em uma forma distinta de conhecimento - aquele produzido pelas ciências da natureza, por exemplo, na opinião bem mais equilibrada de Freud -, mas por ter, de certa forma, atravessado e superado a própria filosofia, convertendo-se, nas mãos de Lacan, num discurso de segunda ordem, definitivo, que encerra e contém a verdade de todos os demais, incluindo-se aí o filosófico. Donde a ambigüidade de Lacan, que oscila entre recusar e apropriar-se da filosofia; donde também a síntese final, na qual se consumaria a elevação da psicanálise à condição de uma "antifilosofia", "pós-filosofia" ou qualquer coisa equivalente, à cobertura de uma série de figuras escatológicas oriundas do próprio campo filosófico que Lacan não se cansou de importar para o da psicanálise ao longo do tempo, como a "morte do sujeito" ou o "fim da história". Na medida em que é também - se não principalmente - nas mãos dos filósofos que tomam forma esses argumentos e essas conclusões, seria ainda mais válido com relação a Lacan o diagnóstico de Pierre Raicovic com relação à atitude da filosofia - da filosofia francesa, sobretudo - para com o pensamento de Freud, atitude na qual a polêmica antifilosófica desencadeada pelo inventor da psicanálise parece ter o efeito paradoxal de inibir a atitude normalmente crítica da filosofia com relação às demais formas de discurso:

Exemplo desta atitude da filosofia é o caminho seguido por certos comentaristas contemporâneos que levam a sério, mas de forma não suficientemente crítica, o texto psicanalítico. Apesar do anátema proferido contra a filosofia desenvolver-se de acordo com raciocínios que não participam de um modo filosófico de pensar, estes filósofos, leitores de Freud, desejam que a filosofia retire de si, tais quais lições, aquele ensinamento que é, nas suas palavras, necessário para que cesse a adequação que um deles [J. Granier] vê entre a modernidade e a "anulação que atinge o pensamento filosófico". Para chegar-se a tal situação, seria necessário que a filosofia se entregasse a uma leitura resignada dos textos de Freud, que não se aplicasse a fazer-lhes a crítica interna, numa palavra, que não se visse forçada a explicá-los. (Raicovic 1994, p. 8)

Nem mesmo o grande Paul Ricoeur - autor daquele que talvez ainda seja o mais sofisticado ensaio filosófico sobre a obra de Freud (Ricoeur 1965) - teria escapado dessa atitude. Muito ao contrário, seria um representante bastante exemplar da mesma:

Seu autor [Ricoeur] admite logo de saída que a filosofia deve reconhecer-se mutilada, que o Cogito acha-se ferido depois do encontro com o freudismo. O comentário faz com que apareçam pontos obscuros e incoerências no seio do texto freudiano; P. Ricoeur, a todo instante, parece querer encontrar a razão disso, não numa carência de Freud, mas na ilusão em que nos teria feito cair um modo pré-psicanalítico de pensar que jamais deixou de orientar nosso entendimento no sentido de uma pura aparência. Assim, a decepção experimentada diante de um freudismo que se revela inapto para dar sentido ao Eu, antes de ser decepção para a filosofia, deveria, segundo nosso autor, "ser primeiramente atribuída ao `ferimento' e à `humilhação' que a psicanálise inflige a nosso amor-próprio". O filósofo que existe em P. Ricoeur parece ter certo escrúpulo de ler os textos de Freud apoderando-se de razões de ordem filosófica para circunscrever a significação da mensagem freudiana; dessa maneira, ele dá provas de evidente constrangimento para apreciar a validez do texto em questão à luz do "eu penso, eu existo". (Raicovic 1994, pp. 8-9).

Mais ainda do que a de Freud, a obra de Lacan teria seduzido os filósofos com o canto de sereia que promete as delícias de uma revolução filosófica há muito esperada, ao mesmo tempo em que afoga seu senso crítico e os impede de ver as evidentes - e inevitáveis - falhas na arquitetura de sua doutrina ou, pior ainda, faz dos defeitos virtudes, de modo que a bricolagem filosófica lacaniana, as descontinuidades do raciocínio conceitual, as obscuridades e as contradições aparecem como provas da incapacidade estrutural da filosofia em apreender as nuanças da reflexão que lhe assinala o declínio. Essa atitude resulta em parte de uma aceitação não crítica das "exorbitantes reivindicações filosóficas" (Macey 1988, p. 84) feitas por - ou em favor de - Lacan, mas, num outro sentido, talvez derive de uma avaliação que deixe escapar algo do estilo da teorização lacaniana, sobre o qual um exame mais aproximado de algumas de suas formulações talvez contribua para lançar alguma luz.

 

As relações entre Lacan e a filosofia segundo Lacan

A atitude de Lacan com relação à filosofia como um todo é ela mesma suficientemente ambígua para dar margem a todas essas interpretações contraditórias do Lacan-filósofo e do Lacan-antifilósofo que acabamos de ver. Não é apenas que ele condene a filosofia por um lado e, por outro, sirva-se largamente dela para exprimir suas idéias quando isso lhe é conveniente; além disso, há fórmulas conciliatórias explícitas em seus enunciados. Levando em conta apenas as manifestações textuais de Lacan a respeito da filosofia, podemos encontrar em seus trabalhos três atitudes básicas mais ou menos claramente delimitadas: 1. num extremo, afirmações que exprimem uma condenação em bloco da filosofia (as generalizações antifilosóficas de Lacan); 2. no outro extremo, as fórmulas conciliatórias a que nos referimos acima, que no limite suprimiriam as diferenças essenciais entre psicanálise e filosofia (a identificação entre psicanálise e filosofia); 3. por fim, numa posição intermediária, encontramos afirmações que apenas enunciam a diferença e a especificidade de cada disciplina (a demarcação entre psicanálise e filosofia). Tais atitudes não configuram nenhuma espécie de evolução perceptível do pensamento lacaniano: todas podem ser identificadas nos diversos momentos do percurso da obra.

As generalizações antifilosóficas têm como traço comum a afirmação taxativa da impossibilidade da filosofia como um todo de dar conta de algum aspecto da teoria psicanalítica que Lacan julga crucial; consistem, assim, em variantes da generalização freudiana que afirma a impossibilidade de a filosofia conceber o inconsciente. De fato, é daí que Lacan parte: na abertura mesma de seu trabalho de 1949 sobre o estágio do espelho, ele enuncia com todas as letras a inspiração anticartesiana da concepção do eu que emerge de sua teoria, ou seja, entende que ela se situa em oposição a tudo aquilo a que Freud, mais ou menos genericamente, se referia como as "filosofias da consciência". Assim, a teoria do estágio do espelho seria valiosa sobretudo:

(...) quanto aos esclarecimentos que ela fornece sobre a função do eu (je) na experiência que dele nos dá a psicanálise. Experiência da qual é preciso dizer que nos opõe a toda filosofia oriunda diretamente do Cogito. (Lacan 1966a, p. 93, grifos nossos)11

Mais ainda do que o Eu, a referência, crucial para Lacan, ao sujeito é ocasião para reiteradas desqualificações da tradição filosófica. De fato, podemos encontrar nessa referência ao sujeito, que sempre permaneceu central para Lacan (Ogilvie 1987), uma motivação importante para seu intenso diálogo com a filosofia e, mesmo, para as ambigüidades que aí se manifestam, na medida que essa referência permaneceu igualmente problemática, devido à tensão, que parece constitutiva do pensamento lacaniano, entre a necessidade de sustentá-la, como condição de sentido e, no limite, de subsistência da dimensão clínica essencial da psicanálise, e o imperativo de conceber a determinação desse sujeito, como condição de rigor e de cientificidade, no que a teoria sempre se arriscou a dissolvê-lo ou aniquilá-lo (Simanke 1994, p. 162). São célebres as fórmulas lacanianas destinas a equacionar ou, pelo menos, exprimir esse impasse, como as do sujeito dependente, barrado, dividido, subvertido, ex-cêntrico, ex-sistente, e assim por diante. Não é de se surpreender, portanto, que a recusa da filosofia reapareça com relação ao problema do sujeito em Lacan. Assim, por exemplo, quanto à figura do sujeito barrado, somos informados que:

Isso quer dizer que um sujeito humano completo nunca é um puro e simples sujeito do conhecimento, como o constrói toda a filosofia (...). Sabemos que não existe sujeito humano que seja um puro sujeito do conhecimento, a menos que o reduzamos (...) ao que chamamos, na filosofia, de uma consciência. (Lacan 1957-58, p. 402, grifos nossos)

Um outro traço característico do pensamento lacaniano desde suas origens é a recusa do realismo sob todas as suas formas, sobretudo a do realismo científico, que lhe parece não apenas inadequado ao conhecimento psicológico e psicanalítico, mas também epistemologicamente anacrônico diante do desenvolvimento da física teórica contemporânea; é como uma alternativa a esse realismo que toma forma uma concepção metafórica da teoria (Simanke 2003; ver também Bowie 1987), cuja hipótese, como se verá, subjaz ao presente comentário. Daí que, ao discutir o conceito freudiano de princípio de realidade, no Seminário 7, Lacan se esforce por despojá-lo de quaisquer conotações realistas - o que resultará na conclusão surpreendente de que a oposição entre princípio do prazer e princípio de realidade é, em Freud, uma distinção ética e não psicológica. Novamente, o realismo recusado sobre o campo psicanalítico é atribuído à filosofia como um todo (mesmo aos idealistas), ainda que aí Lacan matize a generalização ao tratá-la como uma questão de grau:

Na perspectiva freudiana, o princípio de realidade se apresenta como se exercendo de uma maneira que é essencialmente precária.
Nenhuma filosofia até aqui avançou tão longe nesse sentido. (...) Comparados com Freud, os idealistas da tradição filosófica são apenas café pequeno, pois, afinal de contas, essa famosa realidade, eles não a contestam seriamente, eles a domesticam. (Lacan 1959-60, p. 40, grifos nossos)

Sabemos que, intimamente vinculado com sua concepção da subjetividade, articula-se em Lacan todo um discurso em torno da temática da falta. Desde os primórdios de sua reflexão, ele procurou alicerçar sua primeira teoria da constituição do sujeito, que concedia uma precedência quase absoluta às identificações imaginárias sobre os processos reais de maturação orgânica, nas concepções do embriologista holandês Louis Bolk,12 o qual via numa carência biológica constitutiva do indivíduo humano - a pré-maturação do recém-nascido e a neotenia do adulto - um elemento fundamental do processo de hominização (Menschenwerdung). A partir do momento em que se intensifica o diálogo de Lacan com o estruturalismo, essa falta biológica assume a forma de um efeito da entrada do sujeito na ordem da linguagem: é o simbólico agora, na sua função significante, que fratura o sujeito e institui a falta como sua condição originária, concepção pela qual Lacan repensa a noção freudiana de complexo de castração. Há, portanto, uma dupla falta relacionada à linguagem: sua incapacidade de dizer plenamente o real (já que sua emergência representa justamente essa fratura em sua plenitude originária) e a falta que institui no sujeito ao constituí-lo por uma operação de ruptura com o real, quando o significante se inscreve, trabalha, sexualiza o corpo natural do infans. Haveria assim, segundo Lacan, uma falta na linguagem e uma falta causada pela linguagem. Ambas teriam sido desconhecidas pela filosofia que, por um lado, obstina-se no esforço totalizante da especulação metafísica e, por outro, permanece cega para a perda que resulta da relação do sujeito com a linguagem, tomada esta em sua função significante. Quanto a este último ponto, diz Lacan:

Eu chamo de filosófico tudo o que tende a mascarar o caráter radical e a função originária dessa perda. Toda dialética - e, especificamente, a hegeliana - que tenta mascarar, que, em todo caso, direciona-se para recuperar os efeitos dessa perda, é uma filosofia. (Lacan 1964-65, sessão 02.12.1964, grifos nossos)

Os longos desenvolvimentos de Lacan em torno de Pascal no Seminário 16 são ocasião para outras tantas recusas da viabilidade e da adequação da filosofia às questões psicanalíticas que, em alguns momentos, atingem o ponto de uma pura e simples desqualificação. O que está em questão é, novamente, a série de conseqüências que decorrem da concepção do sujeito como um efeito de linguagem, afetadas agora pelo empenho de Lacan, característico desse período de sua obra, em retirar sua noção de significante de uma referência exclusiva ao simbólico (como era o caso em seu momento mais tipicamente estruturalista) e pensá-lo como ponto de articulação entre o sujeito e o real, com o que este último registro é alçado para o primeiro plano da peculiar metapsicologia lacaniana. Inclusive, posições antes defendidas tenazmente por Lacan - como as prerrogativas concedidas ao registro do simbólico, de modo que nada que seja da alçada do sujeito escape à ordem da linguagem - são atribuídas agora exclusivamente à crônica ilusão filosófica. Assim, o desconhecimento do "furo" que assinala o limite da inscrição do significante sobre o real é razão para se considerar a filosofia como "uma forma de debilidade mental" (Lacan 1968-69, sessão de 12.02.1969). De forma mais comedida, mas não menos enfática, a heterogeneidade e, principalmente, a inadequação da filosofia são reafirmadas em outras passagens:

Ora, isso de que se trata e o que quer dizer, em particular, meu discurso, quando eu retomo o de Freud, é muito precisamente que, quando eu me fundamento sobre o que esse discurso abriu, ele se distingue essencialmente do discurso filosófico, nisso em que ele não se afasta disso no qual estamos captados e comprometidos (...) ou, inversamente, ele se coloca nesse lugar onde, a princípio, o sujeito pensante se deu conta de que ele só pode reconhecer-se como efeito de linguagem. (...) Isso já está feito, contrariamente ao que se possa imaginar, precisamente em razão da lamentável carência, da futilidade cada vez mais evidente de toda a filosofia (...). (Lacan 1968-69, sessão de 05.02.69, grifos nossos)

Esses exemplos poderiam ser multiplicados sem dificuldades. No seminário sobre A lógica da fantasia (Seminário 14), Lacan acusa o discurso filosófico, na sua totalidade, de haver desconhecido "o estatuto do gozo na ordem dos entes" (Lacan 1966-67, sessão de 07.06.1967), o que, desde seu ponto de vista, é uma falta grave, uma vez que o conceito de gozo, a partir do início dos anos 60, adquire uma posição central em seu sistema, opondo-se à noção de princípio de prazer e sendo empregada para designar todo aquele campo dos fenômenos da subjetividade que Freud havia colocado sob a égide da compulsão à repetição e da pulsão de morte.13 No seminário intitulado Problemas cruciais para a psicanálise (Seminário 12), à ética em geral e ao que Lacan chama ali de "filosofia subjetiva" se recrimina serem incapazes de dominar a miragem que afeta a relação do sujeito com o outro sempre que se procura tomá-lo como objeto, já que o objeto em questão só pode ser aquele objeto necessariamente ausente, perdido, ao qual Lacan chamou, da forma mais geral possível, de objeto a (Lacan 1964-65, sessão de 27.01.1965). E assim por diante, até a derradeira expressão da tendência antifilosófica de Lacan, em seu último seminário, onde ele se apresenta enigmaticamente como o "senhor A." e arremata: "Esse senhor A. é antifilósofo. É o meu caso. Insurjo-me, pode-se dizer, contra a filosofia" (Lacan 1980, sessão de 18.03.1980).

Contudo, numerosas manifestações de Lacan tratam apenas de estabelecer uma diferença entre a psicanálise e a filosofia - uma diferença essencial, é verdade, por vezes enfaticamente afirmada -, mas sem se proporem à desqualificação desta última. Novamente, os exemplos são inúmeros; basta um punhado deles para ilustrar essa outra perspectiva de nosso autor. Em primeiro lugar, Lacan retoma o argumento freudiano que recusa a idéia de uma Weltanschauung psicanalítica. Para Freud, como se sabe, tratava-se simplesmente de alinhar a psicanálise com a visão de mundo proposta pelas ciências da natureza; era, portanto, mais uma forma de reafirmação do naturalismo freudiano, ao qual Lacan certamente permaneceu estranho. Para Lacan, essa diferença é afirmada em nome de uma recusa da possibilidade de um saber total ou universal, como supostamente seria aquele pretendido pela filosofia:

A psicanálise não é nem uma Weltanschauung, nem uma filosofia que pretenda dar a chave do universo. Ela é comandada por uma visão particular, que é historicamente definida pela elaboração da noção de sujeito. Ela coloca essa noção de modo novo, reconduzindo o sujeito à sua dependência significante. (Lacan 1964, p. 90)14

A moderação dessa posição contrasta claramente com aquelas que acabamos de examinar. Da mesma maneira, ao enunciar a sua concepção da Coisa no seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan, por um lado, apela para Freud e para sua tese da ausência de negação no inconsciente para justificar sua afirmação de que "a Coisa é, ao mesmo tempo, Não-Coisa" (Lacan 1959-60, p. 163); por outro, acrescenta em seguida a justificativa complementar de que "nós não fazemos aqui uma filosofia" (ibid., p. 163), como a dizer que apenas esta última deve preocupar-se com o princípio da não-contradição, do qual o discurso psicanalítico teria sido liberado pela descoberta freudiana15. O tom moderado de simples demarcação permanece quando da discussão da filiação ou não de Lacan à filosofia hegeliana numa das sessões do Seminário 11. Confrontado com a opinião de André Green de que, ao afastar-se do estruturalismo - cujos adversários eram, cabe lembrar, a fenomenologia e a dialética -, Lacan se apresentava como "filho de Hegel", ele contesta: "Eu não estou de acordo. Penso que ao dizer Lacan contra Hegel, você está muito mais próximo da verdade, ainda que, certamente, não se trate, de forma alguma, de um debate filosófico" (Lacan 1964, p. 240, grifos nossos).

O lugar onde Lacan empreende mais sistematicamente a diferenciação entre a psicanálise e a filosofia talvez seja o Seminário 17, na qual é introduzida sua teoria dos quatro discursos, que oporá decisivamente o discurso analítico a duas modalidades do discurso filosófico, ali designadas como discurso do senhor e discurso universitário. Sem entrarmos aqui na complexa maquinaria da álgebra lacaniana empregada para dar forma à sua teoria dos quatro discursos,16 observemos apenas que ela coloca o discurso do senhor - que representa a essência do discurso filosófico em suas pretensões de verdade e de universalidade - e o discurso do analista (a psicanálise) em posições perfeitamente opostas. Daí que o esquema como um todo se preste a exprimir a diferença essencial que Lacan percebe entre essas duas formas de conhecimento:

O discurso do senhor, penso que é inútil falar-lhes de sua importância histórica, já que, apesar de tudo, vocês são, em conjunto, recrutados nesse crivo chamado de universitário e, por isso, não podem deixar de saber que a filosofia só fala disso. Antes mesmo que ela só fale disso, isto é, que ela o chame por seu nome (...) estava já manifesto que era no nível do discurso do senhor que aparecera algo que nos concerne quanto ao discurso, seja qual for sua ambigüidade, e que se chama a filosofia. (Lacan 1969-70, p. 20)

Lacan não tarda em deixar bem claro que é nesse discurso, que ele identifica com a filosofia, que consiste o "avesso da psicanálise" que forma o tema desse seu seminário:

Deve estar começando a parecer-lhes que o avesso da psicanálise é justamente isso que eu avanço este ano sob o título do discurso do senhor.
Eu não o faço de modo arbitrário, esse discurso do senhor tendo já suas cartas de crédito na tradição filosófica. (Ibid., 1969-70, p. 99)

Embora seja o discurso do senhor que exprima a essência da filosofia enquanto tentativa de enunciar uma verdade universal, sistemática e especulativamente produzida, o discurso universitário - que no esquema lacaniano aspira à enunciação dessa verdade sob a forma de um saber articulado que possa ser preservado, acumulado e, sobretudo, transmitido - não deixa de identificar-se com uma das formas possíveis da prática filosófica, isto é, aquela que é tipicamente exercida entre as paredes da academia, razão pela qual deve ser igualmente oposto à psicanálise:

O mito do Eu ideal, do Eu que domina, do Eu em que pelo menos alguma coisa é idêntica a si mesma, a saber, o enunciador, é muito precisamente o que o discurso universitário não pode eliminar do lugar onde se encontra a sua verdade. De todo enunciado universitário de uma filosofia qualquer, mesmo aquela que se poderia etiquetar como lhe sendo a mais oposta - a saber, se fosse filosofia, o discurso de Lacan - surge irredutivelmente a Eu-cracia. (Ibid., 1969-70, pp. 70-71)

Por fim, apenas para concluir com este ponto, a mesma posição é assumida no Seminário 20, considerado dos mais representativos do período final da produção de Lacan, principalmente por causa da ênfase que a partir daí passa a ser colocada sobre novas ferramentas de formalização da teoria psicanalítica, tais como os matemas e a topologia, razão pela qual Milner (1995, p. 99) refere-se a esse período como o "segundo classicismo lacaniano" (o primeiro, entenda-se, seria o período anterior, no qual a teoria se organizaria em torno da noção lacaniana de significante). Essas novas ferramentas - a topologia, por exemplo - servirão inclusive para reafirmar a ruptura com relação à filosofia que tinha sido defendida anteriormente em nome de outras diferenças de perspectiva. Trata-se, agora, mais precisamente, de uma tomada de posição antimetafísica:

Que essa topologia convirja com nossa experiência a ponto de nos permitir articulá-la, não está aí algo que possa justificar o que, nisso que eu avanço, se suporta (...) por jamais recorrer a nenhuma substância, por jamais se referir a nenhum ser e por estar em ruptura com seja o que for que se enuncie como filosofia? (Lacan 1972-73, p. 16)

Mas a diferença entre os dois conjuntos de afirmações ilustrados até agora poderia ser apenas uma questão de nuanças em uma posição firmemente antifilosófica, que apenas se expressaria de forma mais amena de quando em quando, caso não fosse possível encontrar também em Lacan uma série de passagens que claramente aproximam a psicanálise da filosofia. Essa não chega a ser uma constatação surpreendente, ou seria difícil imaginar de onde vem a munição para os comentários que afirmam essa aproximação e, no limite, essa identificação entre ambas. O importante, de qualquer forma, é deixar claro que essa aproximação e essa identificação foram explicitamente enunciadas por Lacan ao longo de diversos momentos de seu percurso, de modo que elas caminham lado a lado com os enunciados demarcatórios e as generalizações antifilosóficas exemplificadas acima. Cabe documentar também essa outra posição lacaniana antes de tentar penetrar no significado dessas oscilações.

Nesse trabalho fortemente programático que é Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise (Lacan 1966e), ao mesmo tempo em que lança as bases para o "retorno a Freud" cuja necessidade imperativa fora recém-formulada, Lacan não pode deixar de discutir a forma pela qual os conceitos forjados por Freud prestam-se a fundamentar seu projeto. Ele conclui, na contramão do que fora sua tendência até bem pouco tempo antes, que seria prematuro descartar a terminologia freudiana, na medida em que esses termos, mal criticados e compreendidos em sua significação própria, não teriam ainda sido explorados em toda sua potencialidade, e acrescenta:

Mas, parece-nos que esses termos só podem esclarecer-se ao estabelecermos sua equivalência com a linguagem atual da antropologia e até mesmo com os últimos problemas da filosofia, onde, freqüentemente, a psicanálise só tem a beneficiar-se. (Lacan 1966e, p. 240, grifos nossos)

Desse modo, o projeto lacaniano de retorno a Freud parece passar por cima da própria heterogeneidade que o fundador da psicanálise via entre seu pensamento e o dos filósofos. A filosofia converte-se, pelo menos, num instrumento para leitura de Freud.17 Um movimento no sentido do apagamento dessa diferença aparece ainda mais claramente na conferência intitulada Freud no século (incluída na edição do seminário sobre As psicoses), onde Lacan, por exemplo, se pergunta:

(...) qual é o centro de gravidade da descoberta freudiana, qual é sua filosofia? Não que Freud tenha feito filosofia, ele sempre recusou que fosse filósofo. Mas colocar-se uma questão é já sê-lo, mesmo que não se saiba que se a coloca. Portanto, Freud, o filósofo, o que ensina ele? (Lacan, 1955-56, p. 275, grifos nossos)18

Assim como, dada sua recusa explícita em ser reconhecido como filósofo, é necessário afirmar que Freud constituiu-se numa espécie de filósofo involuntário, malgré lui, Lacan acaba por reconhecer-se na mesma posição, praticando uma filosofia pouco específica, à revelia de sua intenção inicial: "Eu não sou filósofo, [mas] quanto menos se quer fazer filosofia, mais dela se faz (...)" (Lacan 1964-65, sessão de 17.03.1965). Essa não é uma hesitação momentânea, que teria sido superada pelo amadurecimento da obra. Num de seus últimos seminários, com efeito, podemos encontrar afirmações muito semelhantes: "Não creio fazer filosofia, mas sempre se faz mais do que se crê" (Lacan 1976-77, sessão de 11.01.1977). Mas é com relação a um dos conceitos mais célebres do período final da obra de Lacan - o seu chamado "nó borromeano" - que podemos encontrar aquela que talvez seja a formulação definitiva da relação entre suas teorias e o pensamento filosófico. O nó borromeano, como se sabe, é uma figura, extraída do brasão da família italiana da qual tira seu nome, em que três anéis se entrelaçam de tal forma que, rompendo-se um, os dois outros ficam também separados. Lacan a emprega para representar a relação entre os três registros19 - real, imaginário e simbólico - que constituem, desde o início dos anos 50, as categorias fundamentais do que se pode considerar como a sua versão particular de uma metapsicologia. De certa forma, essa figura sintetiza e ultrapassa as diversas idas e vindas de Lacan com relação a qual dos registros possui precedência sobre os demais - o simbólico durante a fase estruturalista, o real a partir da virada dos anos 60, uma certa reabilitação do imaginário já no período final de sua obra, e assim por diante -, já que cada registro aparece como sustentáculo para os outros dois e, assim, como essencial para a consistência do conjunto. A importância que Lacan atribui a essa figura e a suas implicações conceituais fica evidente justamente quando ele exprime a forma como concebe, a partir dela, suas relações com a filosofia:

Dito de outro modo, o dito que resulta do que se chama a filosofia não deixa de ter uma certa falta. Uma falta que eu tento, tento e tento suprir por este recurso ao que não pode, no "nó bô", senão escrever-se. Isso que não pode senão escrever-se para que se tire partido dele. (...) De maneira que, em suma - perdoem-me a infatuação - o que eu faço, o que tento fazer com meu "nó bô", não é nada menos que a primeira filosofia que me parece sustentar-se. (Lacan 1975-76, sessão de 11.05.1976, grifos nossos)

A mesma posição é reafirmada pouco tempo depois, o que não deixa dúvidas de que Lacan lhe confere a mesma intenção conclusiva no que diz respeito às suas relações com a filosofia, desta vez estendendo-a mesmo a Freud, como, aliás, já fizera antes:

O que faço ali, como observa alguém com bom discernimento que é Althusser, é filosofia. Mas a filosofia é tudo que sabemos fazer. Meus nós borromeanos, isso é filosofia também. É uma filosofia que eu manejei como pude, seguindo a corrente, se posso dizer, a corrente que resulta da filosofia de Freud. (Lacan 1977-78, sessão de 20.12.1977)

Essas passagens, mais do que apenas afirmar um inesperado parentesco entre filosofia e psicanálise, dado tudo o que se viu anteriormente, podem ser consideradas uma espécie de síntese das posições contraditórias até aqui identificadas; ao mesmo tempo, representariam a culminação daquela atitude de arrogância e desdém, que coloca a psicanálise acima e além da possibilidade de uma crítica filosófica e que repercute até em muitos filósofos que dela se ocupam. Em suma, a filosofia poderia ser recusada em bloco - nos termos das generalizações antifilosóficas acima exemplificadas - porque a psicanálise, na formulação que recebe no último Lacan e que tem por eixo o conceito de nó borremeano, seria a primeira filosofia sustentável em toda a história do pensamento. Essa fórmula lançaria luz retrospectivamente, no estilo do après-coup lacaniano, sobre as tomadas de posição anteriores e as integraria dentro do grande projeto de uma psicanálise enfim filosófica. Mas assim se, à primeira vista, o problema maior estaria em conciliar as generalizações antifilosóficas e as afirmações da psicanálise como filosofia, desde esta perspectiva, ele se desloca para os enunciados, bastante mais plausíveis, de uma diferença crucial entre as duas disciplinas. Em outras palavras, ainda que se aceite que a psicanálise supere e ultrapasse a filosofia como um todo, erigindo-se na primeira teoria digna desse nome, seria preciso, não obstante, dar conta de como ela pode ser uma filosofia de qualquer espécie, uma vez que tantas diferenças de princípio foram sistematicamente apontadas. Assim, o coup de grâce que Lacan pretende ter desfechado sobre a filosofia não nos livra das contradições discutidas até agora, mas talvez, se lançarmos um olhar mais aproximado a exemplos típicos do uso concreto que Lacan faz de concepções filosóficas, isso possa fornecer uma outra perspectiva para considerar o tipo de relação estabelecida entre suas teses e o discurso filosófico.

 

Hegel e o Édipo, Platão e a transferência: as metáforas filosóficas da clínica psicanalítica

Como vimos, o argumento antifilosófico atribuído a Lacan é, muitas vezes, justificado pela fundamentação clínica de seu pensamento. De fato, seguindo mais ou menos livremente o programa politzeriano que o influencia muito precocemente, Lacan inclina-se para a recusa da metapsicologia especificamente freudiana - ainda que, mais tarde, enuncie essa recusa sob a forma de seu heterodoxo "retorno a Freud" - e empreende a refundamentação da psicanálise de modo a tomar como modelo a dimensão clínica da mesma: a prática interpretativa, o método e o campo de fenômenos que este delimita e permite abarcar (o sonho, os atos falhos, os sintomas, aos quais Lacan se refere genericamente como as "formações do inconsciente"), justamente aquele aspecto da psicanálise que era valorizado por Politzer. Daí decorrem tanto a afirmação da identidade entre a técnica e a teoria (Lacan 1953b; Lacan 1953-54, p. 227) quanto a tomada de noções oriundas da clínica para exprimir conceitos metapsicológicos ("o eu é um sintoma", a histérica e o obsessivo como modelos da posição feminina e masculina, e assim por diante). Procuramos argumentar em outro lugar (Simanke 2003; ver também Simanke 2002, p. 13-14), que essa valorização da clínica converge com uma orientação epistemológica essencialmente anti-realista, que remonta ainda à reflexão psiquiátrica inicial de Lacan, a qual, após os seus trâmites com o estruturalismo lingüístico em geral - e com o pensamento de Jakobson em particular - desde o final dos anos 40, resulta, por um lado, na concepção da metáfora como teoria (que prolonga a orientação anti-realista) e, por outro, na concepção da teoria como metáfora da clínica (onde se manifesta o privilégio desta última no campo psicanalítico, tal como este é concebido por Lacan). O objetivo dos trabalhos mencionados acima era ponderar o sentido do retorno a Freud proposto por ele e tentar equacionar a contradição que se percebe entre esse programa pretensamente ortodoxo e a manifesta heterogeneidade entre as formulações lacanianas e as de Freud. Talvez, então, se possa esperar que essa perspectiva contribua em algo para equacionar também as contradições acima apontadas na atitude de Lacan para com a filosofia.

Tomemos, portanto, dois exemplos do emprego de referências filosóficas bastante típicas de Lacan - Hegel e Heidegger, por um lado, e Platão, por outro - para exprimir questões ligadas à clínica nas duas acepções em que se pode entendê-la: a do campo de fenômenos de que se ocupa a psicanálise e a do método que utiliza para abordá-lo. O primeiro é a interpretação da neurose obsessiva - e, mais genericamente, da dinâmica do Édipo - a partir da dialética hegeliana do senhor e do escravo (assimilada de Kojève e, portanto, bastante temperada com a filosofia de Heidegger);20 o segundo é a análise da dinâmica da transferência a partir do Banquete de Platão, que ocupa boa parte das páginas do Seminário 8, sem deixar de exprimir-se também em outros lugares.

Sabemos que Lacan freqüentou o seminário de Kojève a partir de 1933 (Arantes 1992, p. 64), cuja leitura antropologizante da Fenomenologia do Espírito o impressionou a ponto de que as principais figuras enfatizadas e comentadas por Kojève (a "bela alma", a "lei do coração", entre outras) passam a ter presença constante em seus trabalhos quase que imediatamente. Dentre estas, destaca-se claramente a dialética do senhor e do escravo, transformada pelo autor russo no pivô do processo de humanização que se pode depreender de sua leitura de Hegel e, nas mãos de Lacan, em peça-chave de sua concepção do processo de constituição do sujeito que ocupa o centro de suas preocupações teóricas desde a conclusão da tese de doutorado em 1932. Da fusão dessa figura filosófica com o ideário freudiano resulta a utilização da relação senhor-escravo para exprimir a problemática edípica, com o senhor evidentemente ocupando o lugar do pai, e o escravo, o do filho. Lacan avança por aí na desnaturalização do conceito freudiano de desejo, onde o Édipo não mais exprime o apetite sexual mais ou menos instintivo pelos progenitores, mas uma dinâmica intersubjetiva constitutiva do sujeito, uma "história de desejos desejados", conforme a fórmula kojèviana, onde, por exemplo, o que o filho deseja não é o objeto sexual representado pela mãe (como "ingenuamente" supusera Freud), mas aquilo que é desejado pelo pai e, assim, em última instância, o desejo do pai enquanto tal. Até mesmo a concepção freudiana da forma completa (direta e invertida) do complexo de Édipo presta-se a ser expressa na ambigüidade da fórmula que reza que o desejo humano é o "desejo do outro": desejar o desejo do outro (o pai) é, para o filho, tanto desejar o que o outro deseja (a mãe, forma direta do complexo de Édipo) quanto desejar ser desejado pelo outro (pelo pai, na forma invertida). Nesse contexto, o parricídio imaginário, elemento crucial das fantasias edípicas tal como descritas por Freud, é repensado em torno da figura kojèviana da morte como "senhor absoluto". O filho deseja a morte do pai, que removeria o obstáculo à realização do seu desejo, assim como o escravo deseja e aguarda a morte do senhor, cuja tirania o impede de usufruir dos frutos de seu trabalho e, na medida em que é por este trabalho que o escravo agora espera fazer-se reconhecer, bloqueia assim a sua plena realização enquanto sujeito. Para o sujeito infantil do Édipo, a morte imaginária ou simbólica do pai é igualmente a via pela qual ele pode ascender à realização de sua subjetividade, com o ônus de ter que se defrontar então com sua própria mortalidade, confrontação da qual o domínio paterno o isenta enquanto perdurar.

Nesse contexto, a abordagem lacaniana da neurose obsessiva aparece como exemplar de suas primeiras teorizações sobre o Édipo, e não é de se surpreender que o tema do senhor e do escravo compareça assiduamente na reflexão sobre ambos. A metáfora filosófica para um conceito psicanalítico (o complexo de Édipo) converte-se, com isso, numa metáfora clínica, sendo difícil - e, talvez, irrelevante - estabelecer qual dos dois usos precedeu o outro. Para Lacan, um traço distintivo da cultura ocidental contemporânea é o que ele chama de declínio da função paterna, que se manifesta exemplarmente, no plano social, na dissolução da estrutura patriarcal da família nuclear. A neurose obsessiva é apresentada como um sintoma desse declínio. Nela, a angústia que conduz e alimenta o impasse existencial em que se encontra o obsessivo resultaria de que a figura paterna diminuída e desprestigiada não é mais capaz de sustentar a diferença entre a morte simbólica e a morte real; assim, o desejo de morte torna-se intolerável, sua realização imaginária ou simbólica suspensa, de modo que o sujeito padece da impossibilidade de superação do Édipo, situação da qual provêm seus sintomas. No caso paradigmático do Homem dos Ratos (Freud 1909), objeto, junto com o Homem do Lobos, dos primeiros seminários lacanianos, o impasse continua inclusive após a morte real do pai do sujeito, fantasiado no além ainda como vítima potencial das conseqüências dos atos que ele escrupulosamente se empenha em evitar ou expiar. Daí que todos esses elementos - a relação senhor/escravo, o Édipo, o pai, a função mediadora da morte imaginária ou simbólica, o papel humanizante da intersubjetividade - convirjam na conclusão da célebre análise desse caso empreendida por Lacan em O mito individual do neurótico:

A morte é perfeitamente concebível como um elemento mediador. Antes da teoria freudiana tivesse enfatizado, com a existência do pai, uma função que é, ao mesmo tempo função da fala e função do amor, a metafísica hegeliana não hesitou em construir toda a fenomenologia das relações humanas em torno da mediação normal, terceiro essencial à progressão pela qual o homem se humaniza na relação com o seu semelhante. E pode-se dizer que a teoria do narcisismo (...) dá conta de certos fatos que permanecem enigmáticos em Hegel. É que, afinal, para que a dialética da luta de morte, da luta de puro prestígio, possa simplesmente iniciar-se, é necessário que a morte não seja realizada, é necessário que ela seja uma morte imaginada, porque o movimento dialético cessaria por falta de combatentes. É com efeito da morte imaginada, imaginária que se trata na relação narcísica. É igualmente a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, é dela que se trata na formação do neurótico (...). (Lacan 1953a, p. 306-307).

Daí até o uso do tema da morte - e da espera da morte - referida à condição específica do obsessivo não há mais que um passo. É nas páginas finais do Seminário 1 que isso se exprime mais claramente, e onde também o caráter metafórico, quase literário, dessa aproximação se torna mais nítido. Já antes, nesse mesmo seminário, Lacan se exercitara desembaraçadamente na fusão ou na superposição de suas próprias categorias metapsicológicas (o simbólico, o imaginário, etc.) com os termos hegelianos (senhor, escravo, experiência), justamente no contexto de uma tentativa de caracterizar o que lhe parece essencial na abordagem psicanalítica:

É por isso que, volta e meia, tomo a referência da dialética do senhor e do escravo e a reexplico. (...) A relação do senhor e do escravo é um exemplo-limite, pois, bem entendido, o registro imaginário em que se desdobra só aparece no limite da nossa experiência. A experiência analítica não é total. Ela é definida num outro plano que não o plano imaginário - o plano simbólico. (Lacan 1953-54, p. 247-248)

Quase a título de conclusão desse seu primeiro seminário, a questão do conceito da análise retorna, agora referido especificamente ao tratamento dos obsessivos. Diante de uma pergunta de Octave Mannoni sobre o tema da espera na análise - o fato de que é necessário um certo tempo para que o paciente realize o conceito de seus sintomas e possa aceder à sua significação enquanto forma de presentificação de sua estrutura subjetiva - e sobre como o obsessivo reproduz na análise a espera em que transforma a sua vida, Lacan responde:

O ano passado desenvolvi para vocês a dialética do Homem dos Ratos em torno da relação do senhor e do escravo. O que é que o obsessivo espera? A morte do senhor. Para que lhe serve essa espera? Ela se interpõe entre ele e a morte. Quando o senhor estiver morto, tudo começará. Vocês reencontram essa estrutura sob todas as suas formas. (Lacan 1953-54, p. 315)

A fusão entre Heidegger e Hegel, propiciada pela referência kojèviana, assim como a maneira como, não só a dinâmica da neurose obsessiva, mas a própria concepção do movimento da análise e da função do analista prestam-se a ser exprimidas segundo esse modelo, aparecem enunciadas de modo exemplar na continuidade:

O senhor em estado puro está aí numa posição desesperada, porque não tem nada a esperar senão a sua morte, já que ele não tem nada a esperar da morte de seu escravo, a não ser alguns inconvenientes. Ao contrário, o escravo tem muito que esperar da morte do senhor. Para além da morte do senhor, será preciso que se defronte com a morte, como todo ser plenamente realizado, e que assuma, no sentido heideggeriano, o seu ser-para-a-morte. Precisamente, o obsessivo não assume o seu ser-para-a-morte, está em sursis. É o que se trata de lhe mostrar. Eis qual é a função da imagem do senhor enquanto tal (...) que está encarnado no analista. (Ibid., 1953-54, p. 326)21

Em outros contextos, Lacan já havia lançado mão da referência hegeliana para descrever o modo como concebe o processo de constituição do sujeito. Antes do registro do simbólico tornar-se a peça-chave de seu esquema metapsicológico, todo o problema da gênese da subjetividade tinha sido pensado nos termos do registro do imaginário, com o qual Lacan pretendia formular uma versão corrigida da concepção freudiana do narcisismo, isto é, uma versão depurada de tudo o que dissesse respeito à dimensão biológica e instintiva da sexualidade e que privilegiasse o narcisismo enquanto uma modalidade de relação intersubjetiva pautada pela identidade entre o eu e o objeto, onde a teoria lacaniana do estágio do espelho revelava toda a sua utilidade enquanto paradigma de todo esse processo. Aí a referência à dialética do senhor e do escravo já comparecia incisivamente, ainda que adaptada a um pensamento que ainda não assimilara o antipsicologismo estruturalista e que, portanto, não hesitava em, para além da tradução antropológica que Kojève proporcionava aos termos hegelianos, revesti-los ainda de uma significação psicológica, na busca, por exemplo, de uma explicação para a agressividade que pudesse dispensar o conceito freudiano de um "instinto de morte" ao qual se opusesse um "instinto de vida" ou "de conservação":

Não obstante, temos ainda aí algumas verdades psicológicas a introduzir [sobre a agressividade], a saber: o quanto o pretenso "instinto de conservação" do eu cede facilmente na vertigem da dominação do espaço e, sobretudo, o quanto o medo da morte, do "Senhor absoluto", suposto na consciência por toda uma tradição filosófica desde Hegel, está psicologicamente subordinado ao medo narcísico da lesão do corpo próprio. (Lacan 1966b, p. 123)

O papel geral que Lacan atribui a essa figura na expressão do processo da constituição do eu no contexto de uma desnaturalização do desejo mostra até que ponto nosso autor pode forçar o emprego dessa que é uma de suas metáforas filosóficas prediletas em domínios cada vez mais distantes de sua formulação original, a ponto de promover uma identificação quase que total entre esta e os conceitos psicanalíticos que com ela pretende expressar:

O campo concreto da conservação individual, ao contrário, por suas ligações com a divisão, não do trabalho, mas do desejo e do trabalho, já manifesto desde a primeira transformação que introduziu no alimento sua significação humana, até as formas mais elaboradas da produção de bens de consumo, mostra com clareza que ele se estrutura na dialética do senhor e do escravo em que podemos reconhecer a emergência simbólica da luta de morte imaginária em que há pouco definimos a estrutura essencial do eu: não há por que nos surpreender, por conseguinte, com o fato de que esse campo se refletir exclusivamente nessa estrutura. (Lacan 1966f, p. 432)

Finalmente, na virada dos anos 60, naquele que é mais ou menos unanimemente reconhecido como um dos trabalhos mais importantes de Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano - no qual, pode-se dizer, está contido o posicionamento definitivo de Lacan com relação à filosofia hegeliana -, todas essas fórmulas retornam praticamente inalteradas, assim como o uso das mesmas para descrever um fenômeno clínico tão familiar aos psicanalistas desde as origens da psicanálise - o próprio termo foi criado por Freud - como a neurose obsessiva:

A astúcia da razão seduz pelo que nela ressoa de um mito individual bem conhecido pelo obsessivo, de quem sabemos que a estrutura não é rara na intelligentsia. Mas, por menos que este escape à má-fé do professor, ele só se engana muito dificilmente quanto a que é o seu trabalho que deve dar-lhe acesso ao gozo. Prestando uma homenagem propriamente inconsciente à história escrita por Hegel, ele encontra freqüentemente seu álibi na morte do Senhor. Mas que acontece com essa morte? Ele simplesmente a espera. (Lacan 1966g, p. 811)

Se a dialética hegeliana fornece a Lacan uma metáfora privilegiada para a dinâmica e a estrutura da neurose obsessiva, em tudo que esta tem de representativo e, até mesmo, exemplar para a posição masculina no âmbito do complexo de Édipo, uma outra referência filosófica - o pensamento platônico e o Banquete em particular - vai servir-lhe, no Seminário 8, para expor o modo como concebe o movimento da análise, a função e o significado que aí adquire a transferência, num momento em que seus pontos de vista sobre essas questões estão em pleno processo de reformulação. Com efeito, Lacan empreende, a partir do seminário sobre A ética da psicanálise, uma espécie de grande autocrítica (nem sempre assumida enquanto tal) com relação à sua concepção anterior que considera a situação analítica como uma relação intersubjetiva.22

O conceito de intersubjetividade tinha servido inicialmente para pôr em questão as concepções excessivamente realistas e adaptacionistas da análise que Lacan via predominar entre seus contemporâneos, influenciados pela escola inglesa e pela psicologia do ego norte-americana. Tratava-se de, com ela, fazer a crítica da teoria das relações objetais, que considerava a transferência como uma repetição na análise dos vínculos primitivos do sujeito com seus objetos, o que permitiria à interpretação atuar sobre os mesmos, promover o seu desenvolvimento, torná-los menos narcísicos e mais adequados à realidade. A essa concepção, Lacan opunha a idéia de que a análise se constituía como uma dialética intersubjetiva, na qual analista e analisando ocupavam sucessivas posições um com relação ao outro, processo no qual tornavam a encenarem-se as identificações constitutivas do sujeito, trazendo ao alcance da interpretação os impasses, as estases, as cristalizações, em suma, as fixações que a neurose exprime com seus sintomas. Tratava-se, numa palavra, de colocar o analista na posição de parceiro esclarecido do analisando nessa dança dialética das subjetividades, de retirá-lo da condição de mero substituto de um objeto da história pretérita do analisando e de retirar, com isso, o próprio conceito de transferência de uma referência exclusiva à teoria das relações objetais, o que, aos olhos de Lacan, em muito restringia seu alcance e sua aplicabilidade, principalmente no que diz respeito à possibilidade de conceber a transferência psicótica.

As razões que levaram Lacan a revisar essa posição são muitas, e não caberia discuti-las todas aqui. Mencionemos apenas que tal revisão é correlativa a seu afastamento do modelo estruturalista e do conseqüente questionamento do privilégio atribuído ao registro do simbólico na conceptualização do sujeito. Além disso, a intensa reflexão sobre o sentido do conceito psicanalítico de desejo, empreendida no Seminário 6, teria servido para revelar os limites de uma abordagem do mesmo circunscrita exclusivamente ao domínio do simbolismo. A dimensão pulsional do psiquismo, num sentido mais próximo daquele pretendido por Freud, reaparece com a introdução do conceito de coisa, no contexto mesmo da crítica da intersubjetividade iniciada no Seminário 7 e, com isso, a percepção da necessidade de reencontrar, de alguma maneira, um lugar para o objeto - e para o real - na conceptualização do desejo. A "das Ding" do seminário sobre a ética converte-se, assim, na primeira figura disso que Lacan, a partir do Seminário 10, sobre a angústia, denomina objeto a - o objeto da pulsão e, assim, o objeto cuja perda "causa" o desejo23 -, cuja formalização se conclui e se consolida no ano seguinte, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. É como uma etapa desse processo que se insere o Seminário 8, no qual o termo grego agalma, pinçado do Banquete de Platão e de um ou outro texto de Eurípides, servirá para exprimir o lugar e a função do objeto na relação amorosa e na transferência, tal como Lacan passa a compreendê-la a partir desse momento.

Lacan já se utilizara antes da figura de Sócrates para representar a posição do analista, principalmente pela analogia que procura estabelecer entre a maiêutica socrática e o método da psicanálise (Lacan 1966e, p. 293). Agora trata-se de reafirmar essa analogia, tornando a entronizar Sócrates na posição do analista, não tanto como aquele que faz vir à luz o conhecimento que o sujeito traz oculto e ignorado dentro de si, mas como quem possui um conhecimento essencial sobre a natureza do amor, a saber, que aquilo que motiva o sentimento amoroso é a presença, fantasiada inconscientemente pelo amante na imagem que ele constrói do amado, de um objeto que lhe confere um valor especial a seus olhos, mas que aquele evidentemente não possui. Lacan se vale aqui da observação freudiana de que o amor de transferência não difere essencialmente do amor em geral (Freud 1915b, p. 168) para revertê-la na suposição de que o conhecimento da natureza do amor identifica-se com o conhecimento da realidade última do fenômeno transferencial, sendo que o conteúdo desse conhecimento consiste em saber que o que se ama no analista ou no outro em geral é um objeto nele suposto de cuja perda resultara o desejo do sujeito e, assim, o próprio sujeito enquanto tal. Lacan reencontra esse objeto no conceito kleiniano de objeto parcial e, por essa via, naquilo que Freud designava como o objeto da pulsão, e a designação quase algébrica de "objeto a" - que começa já a insinuar-se nas páginas do Seminário 8 dedicadas ao comentário do Banquete (Lacan 1960-61, p. 162; ibid., p. 177; ibid., p. 190) - servirá, na sua indeterminação, para exprimir o conjunto dessas noções e sua função na teoria: não objeto do desejo, mas objeto causa do desejo, como Lacan insistirá à exaustão.

Enfim, temos aí o contexto no qual ganham sentido os elementos dessa longa metáfora pela qual Lacan apresenta suas teses a esse respeito: 1. Sócrates como o analista, aquele que conhece a natureza do amor e, portanto, da transferência, sendo capaz assim de interpretá-la; 2. o objeto a representado pelo agalma, o ornamento supostamente escondido na pessoa de Sócrates, que motiva o amor e o acting-out de Alcibíades que encerra o relato platônico; 3. por fim, o Banquete como um todo como uma sessão psicanalítica, na qual os demais personagens revezam-se na posição do analisando, desfilando seus discursos sobre o amor diante do Sócrates analista.

Comecemos por este último. Já na abertura de seu comentário, Lacan procura deixar claro o viés a ser adotado, o raciocínio pelo qual um texto da história da filosofia pode ser encarado como uma espécie de tratado de técnica psicanalítica: o Banquete trata do amor; o amor é idêntico à transferência; logo, o Banquete versa sobre a transferência. Daí que:

Vejamos agora o que vem a ser isso [a questão do amor], já que aí está o ponto em torno do qual gira tudo aquilo de que se trata no Banquete. É aí que se vai esclarecer, mais profundamente, não tanto a questão da natureza do amor, quanto a questão que nos interessa aqui, a saber, a de sua relação com a transferência. (Lacan 1960-61, p. 37)24

Estabelecida a pertinência do comentário do Banquete para a discussão do conceito psicanalítico de transferência, torna-se possível, para Lacan, assimilar toda a narrativa que ali se desenrola ao relato de uma análise, e o episódio como um todo, a uma sessão psicanalítica:

Para me fazer entender, direi inicialmente que, o Banquete, nós vamos tomá-lo como, digamos, uma espécie de relato de sessões psicanalíticas. Com efeito, é de algo dessa ordem que se trata. À medida que progride o diálogo, e que se sucedem as contribuições dos diferentes participantes desse simpósio, acontece alguma coisa que é o esclarecimento sucessivo de cada um desses flashes por aquele que o segue e, depois, no fim, o que nos é relatado como um fato bruto, até mesmo embaraçoso - a irrupção da vida ali dentro, a presença de Alcibíades. E cabe a nós compreender o sentido que há em seu discurso. (Ibid., 1960-61, p. 38, grifos nossos)

É possível perceber como Lacan, nessa passagem, desliza rapidamente do "como se" para a literalidade na comparação que aí se ensaia: de "uma espécie de" sessão psicanalítica, passa-se à consideração de que, quanto ao Banquete, realmente "é de algo dessa ordem que se trata". Daí que Sócrates possa ser apresentado em numerosas passagens como o analista que interpreta o discurso e os atos de seus interlocutores, na medida em que apenas ele detém o conhecimento sobre a natureza do amor e, portanto, sobre o sentido da transferência. Esse conhecimento é justamente o de que a causa do amor não é a figura da pessoa amada enquanto totalidade, as virtudes e as qualidades apreciáveis que a ela são atribuídas: tudo isso, como Lacan já estabelecera de longa data, pertence ao registro do imaginário. O que Sócrates sabe é que o amor é motivado por um objeto mínimo, cuja natureza é pouco específica, mas cuja posse é atribuída ao amado, como algo recôndito e oculto em seu interior, imagem na qual Lacan reconhece o objeto parcial da teoria psicanalítica, cujo emblema é o agalma25referido no texto platônico:

Se não sabemos apontar, numa topologia estrita, a função do que significa este objeto, ao mesmo tempo tão limitado e tão fugaz em sua figura, que se chama o objeto parcial, se não vêem o interesse do que introduzo hoje sob o nome de agalma, e que é o ponto maior da experiência analítica - pois bem, é uma pena. (...) Mas é preciso ainda assim saber onde, nessa articulação, se situa e funciona o objeto parcial. Observem simplesmente que, no desenvolvimento presente do discurso analítico, este objeto, agalma, pequeno a, objeto do desejo, quando nós o buscamos segundo o método kleiniano, ele está ali, de saída, antes de todo o desenvolvimento da dialética, ele já está ali como objeto do desejo. (...) Numa outra perspectiva, e a experiência o demonstra, tudo gira em torno desse privilégio, desse ponto único que é constituído em alguma lugar por isso que só encontramos num ser quando amamos verdadeiramente. Mas o que é isso? Justamente, agalma, este objeto que aprendemos a demarcar na experiência analítica. (Ibid., pp. 176-177)

Lacan não hesita, a partir dessas considerações, não apenas em integrar o que, no Banquete, se designa como agalma como um elemento essencial da experiência analítica, mas em transformar isso que ele mesmo reconhece como uma metáfora platônica (Lacan 1960-61, p. 51) em um conceito psicanalítico em sentido literal:

É nesse ponto que se concentrará o que tenho hoje a lhes dizer a propósito do agalma.
É tanto mais extraordinário, e quase escandaloso, que não tenha sido até hoje melhor valorizado que é de uma noção propriamente analítica que se trata. (Ibid., p. 165, grifos nossos)

Com tudo isso, a figura de Sócrates e, mais especificamente, sua atuação no debate narrado no Banquete, pode ser apresentada como emblemática da postura do analista. Como se observou acima, a maiêutica socrática e o "conhece-te a ti mesmo" délfico endossado pelo filósofo já há muito eram empregado por Lacan como metáforas da atitude psicanalítica. No Seminário 8, essa aproximação toma uma forma muito mais detalhada e específica, com Sócrates aparecendo como porta-voz da interpretação, no sentido psicanalítico do termo. A interpretação socrática da transferência no Banquete refere-se principalmente ao episódio final promovido por Alcibíades, para o qual converge todo o comentário lacaniano:

E por que essa confissão pública? E por que essa interpretação de Sócrates que lhe mostra [a Alcibíades] que essa confissão tem um objetivo imediato? (...) Todos aqueles que se referiram a esse texto, desde que lhes falo dele, não deixaram de se surpreender com o que essa estranha cena tem de consoante com todas os tipos de situações ou de posições instantâneas, suscetíveis de serem vividas na transferência. (Ibid., p. 83, grifos nossos)

Na sessão 11 desse Seminário, Lacan vai desenvolver com toda a minúcia essa função interpretativa que atribui ao analista Sócrates no desfecho da narrativa platônica. De fato, o discurso tecido por Alcibíades em louvor a Sócrates justifica a adoração que lhe devota pelos agalmata que ele lhe supõe possuir. A interpretação de Sócrates consistiria, justamente, em destituir-se desse lugar de suporte do objeto do desejo do outro, definir-se, afirmar-se como um ser vazio, desprovido do conteúdo que lhe é atribuído - e, portanto, apto para ser preenchido pela fantasia do outro pelo que quer que seja que mobilize o seu desejo - e, mais do que isso, apontar o verdadeiro destinatário (Agatão), entre os personagens presentes, do encômio que Alcibíades lhe endereça. Sócrates seria, assim, aquele que possui um saber sobre a natureza do amor, sobre esse equívoco fundamental pelo qual se constitui o desejo, que busca no amado aquele objeto que ele só pode não possuir, na medida em que é o objeto por cuja perda o próprio sujeito desejante se constituiu; pelo fato de possuir esse saber é que Sócrates é capaz de não amar, ou seja, nos termos da metáfora lacaniana, de cumprir a regra da abstinência que se impõe ao analista como condição para o desenvolvimento da relação transferencial e para o próprio andamento da análise. O pleno desenvolvimento da metáfora do Sócrates analista só pode resultar, então, na reafirmação cabal e conclusiva do caráter interpretativo stricto sensu das lacônicas intervenções de Sócrates ao final do Banquete:

Há, pois, agalmata em Sócrates, e foi isso o que provocou o amor de Alcibíades. Vamos agora retornar à cena que apresenta Alcibíades em seu discurso endereçado a Sócrates e ao qual Sócrates responde, dando-lhe, para falar propriamente, uma interpretação. Veremos em que essa apreciação pode ser retocada, mas pode-se dizer que, estruturalmente, à primeira vista, a intervenção de Sócrates tem todas as características de uma interpretação. (Ibid., p. 179, grifos nossos)

Estas observações devem ter bastado para estabelecer o ponto de vista aqui em foco. Pelo menos com relação aos dois exemplos discuti dos, Lacan parece claramente empregar referências filosóficas como
metáforas de questões clínicas bastante precisas - mais que isso, questões cruciais para o momento da evolução da obra em que se formulam. É claro que sempre se poderiam encontrar outros usos para a filosofia em outros lugares da extensa obra lacaniana. Mas, de qualquer maneira, a análise desenvolvida aqui serve para mostrar como pelo menos duas dessas referências, dentre as mais célebres e comentadas no contexto do diálogo de Lacan com a filosofia (Hegel e Platão), são utilizadas dessa maneira, um uso que passa bem ao largo das discussões sobre o sentido do intercâmbio entre a psicanálise e o discurso filosófico promovido por Lacan que se procurou exemplificar na primeira parte deste trabalho. Resta-nos, a título de conclusão, abordar rapidamente duas questões. Primeira: resume-se o papel da filosofia na construção do pensamento de Lacan ao fornecimento de algumas metáforas ilustrativas de conceitos clínicos fundamentais da psicanálise, tais como o de Édipo e transferência, aqui abordados? Em segundo lugar, quais as conseqüências dessa atitude para o estabelecimento do sentido geral da estratégia lacaniana para a produção da teoria psicanalítica?

 

À guisa de conclusão: a filosofia além da metáfora

Talvez, então, tanto a imagem do Lacan filósofo quanto a do Lacan antifilósofo, quer na visão que este tem de si mesmo e sua obra, quer na que conseguiu passar para pelo menos uma parte da crítica filosófica que dele se ocupa, consistam numa espécie de exagero do compromisso da teoria lacaniana com a filosofia ou, em outras palavras, numa maneira de levar esse compromisso demasiadamente a sério. Em vez de uma sofisticada e - por que não dizer? - maquiavélica desconstrução da filosofia a partir de dentro, trabalhando a favor da sua superação por uma psicanálise antifilosófica, pós-filosófica ou simplesmente filosófica, teríamos um uso quase literário das referências e de certos clichês extraídos das obras dos grandes filósofos, os quais seriam metaforicamente empregados para exprimir conceitos-chave da clínica psicanalítica, procedimento de resto legítimo, dadas as concepções de Lacan sobre o que significa teorizar em psicanálise, mas que nem por isso deveria levar-nos e erigi-lo em psicanalista-filósofo.26

Caso se sustente essa leitura que mostra a extensão do emprego da metáfora no esforço lacaniano de teorização - emprego que abrange referências tão essenciais quanto seu diálogo intenso e muitas vezes celebrado com a filosofia e com o próprio texto freudiano a cujo retorno se dedica (Simanke 2003) -, resta saber qual natureza se pode atribuir a este trabalho, qual o tipo de discurso que dele resulta. Lacan, como se sabe, parte de uma recusa bastante explícita do naturalismo psicológico e do realismo científico; ao contrário de Freud, aposta na elaboração de uma teoria do sujeito, num delicado ponto de equilíbrio entre a filosofia e psicologia de início, entre a filosofia e a antropologia depois. É com as ciências humanas, portanto, que ele procura alinhar a psicanálise, assumindo com isso todo o ônus do projeto - no limite, paradoxal - de constituir uma ciência da subjetividade que seja capaz, ao mesmo tempo, de preservar a especificidade de seu objeto de estudo, sem descaracterizá-lo ou, mesmo, aniquilá-lo enquanto tal, e de satisfazer algum critério de cientificidade, por mais heterodoxo que seja, que lhe permita contornar as armadilhas da objetivação. Assim, o aspecto muitas vezes paradoxal de seu discurso resultaria dos próprios paradoxos de seu projeto teórico, nesse sentido perfeitamente exemplar dos impasses conceituais e epistemológicos que historicamente se colocaram a qualquer programa de abordagem científica do sujeito humano e, em particular, às teorias psicológicas. A irredutibilidade da perspectiva clínica pareceu a Lacan a via pela qual a referência ao sujeito e a proposta anti-reducionista podiam ser sustentadas, mas a alternativa para falar desse sujeito sem retornar ao objetivismo da linguagem científica foi a formulação de um discurso metafórico que permitisse à subjetividade insinuar-se na fala na condição de um efeito de sentido.

Mas ainda que pareça haver uma espécie de metateoria - uma teoria da teoria psicanalítica - razoavelmente articulada nas entrelinhas do discurso lacaniano, sua estratégia não deixa de oferecer o risco inerente a uma aposta retórica ou literária desse tipo, a saber, o de perder-se num raciocínio circular, onde os expedientes discursivos empregados para permitir que o sujeito que se revela na clínica possa exprimir-se na teoria, ao mesmo tempo em que se sistematiza o conhecimento que sobre o mesmo possa produzir a psicanálise, convertam-se num fim em si, percam a referência clínica que lhes é essencial e dêem origem a uma fala vazia que apenas reencontra invariavelmente suas próprias premissas. A teoria lacaniana redundaria, assim, em um discurso retórico (ou pseudoliterário) no pior sentido da palavra, um discurso já sem qualquer compromisso, na contramão de sua disposição manifesta, com qualquer concepção de verdade.

A avaliação de até que ponto a estratégia lacaniana é bem-sucedida exigiria, evidentemente, um exame exaustivo da obra, mas talvez uma boa diretriz possa ser a de não tomar apressadamente as referências extrapsicanalíticas que tanto celebrizaram Lacan pelo seu valor de face e perguntar-se antes pela função que elas efetivamente cumprem na construção da teoria. Foi essa diretriz que se procurou seguir neste exame da relação entre a filosofia e a psicanálise lacaniana e do emprego que esta última faz de noções filosóficas específicas em domínios bastante afastados de seu contexto original. Pode-se, é claro, perguntar ainda se este é todo o papel que a filosofia desempenha na edificação do corpus lacaniano. Nada impede que, como qualquer forma de reflexão teórica, a de Lacan tenha sofrido influências filosóficas não necessariamente explicitadas na letra do texto, como já se mostrou muitas vezes ser o caso, inclusive de Freud. As evidências reunidas neste trabalho permitem, pelo menos, suspeitar que as referências mais freqüentes e incisivas, aquelas que se tornaram a marca registrada de Lacan (Hegel, Heidegger, Platão, etc.), talvez não sejam as mais decisivas, integrando apenas o vasto arsenal de expedientes retóricos que nosso autor elegeu para se exprimir. Poderíamos mencio-nar, apenas a título de hipóteses muito incipientes, uma outra séria de referências que talvez cumpram um outro papel na teoria, orientando seus rumos, sem necessariamente emergir em sua letra. Há a influência de Politzer, escamoteada da tese de doutorado de Lacan, mas determinando todo um programa de investigação que resultou na formulação da primeira teoria lacaniana do imaginário; há a presença importante de Sartre na elaboração dessa mesma teoria. Poderíamos ainda da falar de uma inspiração positivista na concepção inicial de Lacan sobre as relações entre indivíduo e sociedade, que, para além desse momento inaugural, se prolongaria na sua adoção do paradigma estruturalista nos anos 50, na qual também culminaria toda uma influência difusa que o neokantismo francês pode ter exercido sobre o itinerário intelectual do primeiro Lacan. Mencionaríamos, por último, como o diálogo de Lacan com a fenomenologia de Merleau-Ponty parece ter influenciado o rumo de seu pensamento ao longo dos anos 50, conduzindo-o ao progressivo distanciamento do modelo estruturalista e à flexibilização do papel atribuído à linguagem na gênese e na determinação do sujeito, onde Lacan mostra seguir passo a passo a evolução das posições de Merleau-Ponty a respeito da psicanálise, rumo a uma avaliação mais positiva de sua significação filosófica. Essas são hipóteses meramente indicativas e qualquer afirmação mais concludente exigiria todo um outro trabalho além do que aqui se pretendeu realizar, mas um trabalho que talvez possa abrir uma outra perspectiva - mais frutífera, quem sabe? - para a elucidação do sentido do pensamento lacaniano e de suas relações com a filosofia.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: drts@power.ufscar.br

Recebido em 21 de março de 2005
Aprovado em 22 de junho de 2005

 

 

1 Ele não hesita, no entanto, em retomar a aproximação freudiana quando lhe parece conveniente: "o discurso da ciência, na medida que ele se originou, para nossa tradição, no discurso da sabedoria, no discurso da filosofia, adquire aí seu pleno valor o termo empregado por Freud a propósito da paranóia e de sua relação à realidade psíquica - Unglauben" (Lacan 1959-60, p. 155, grifos nossos).
2 "Tal é, na verdade, a mola propulsora das superabundantes referências ao corpus philosophorum. É preciso ser profundamente indiferente em filosofia para usar com tanta liberdade de tantos conceitos técnicos, de alusões explícitas ou não ou, o que dá no mesmo, é preciso sustentar que a filosofia forma uma constelação de textos brilhantes, mas não um pensamento. Reencontramos a antifilosofia sob a forma da mais ampliada cultura filosófica" (Milner 1995, p. 123). Esta atitude de transformar o que poderia ser um defeito de estilo ou uma inconsistência conceitual - no caso, o uso irresponsavelmente heterodoxo de noções filosóficas - numa virtude não chega a ser rara no campo lacaniano. Sobre a antifilosofia de Lacan, ver também Regnault (1997).
3 "O logos não é mais concebido como significado que se exprime nos signos, e sim como ato significante, tempo real que produz o significado e o mundo. Assim é para Heidegger e para pensadores atuais como Emmanuel Lévinas. É aí que Lacan situa seu "real". (...) Sustentar a tese do real, conferir uma verdade ao real como tal só ganha sentido no espaço aberto ao pensar contemporâneo pelo pensamento de Heidegger" (Juranville 1984, pp. 9-10).
4 "Sem dúvida, ele [Lacan] espera, em um esforço de teorização conduzido com um talento e uma perseverança excepcionais durante quase meio século, transformar os filosofemas que abundam em seus escritos em matemas" (Viderman 1991, p. 322).
5 "Não há, além disso, nenhuma tentativa real da parte de Lacan de teorizar ou problematizar a produção da filosofia" (Macey 1988, p. 83).
6 "Eu lamento ter que remexer para vocês o céu da filosofia, mas devo dizer que não o faço senão constrangido e forçado e, afinal, apenas porque não encontro nada melhor para operar" (Lacan 1958-59, sessão de 03.06.1959).
7 Ainda como exemplo de uma posição moderada que procura circunscrever a área de interesse da filosofia para Lacan, David-Ménard (2003, p. 149) vê nesse diálogo um sinal da centralidade que o problema do conhecimento ocupa no pensamento de Lacan (ver também Simanke 2002, cap. III, p. 151-244).
8 "Mas o que é esse inconsciente? É conhecido desde sempre, certamente que há um monte de coisas que são inconscientes e, mesmo, que todo mundo fala disso, há muito tempo, na filosofia" (Lacan 1967).
9 "É por isso que a questão de um erro inicial na filosofia se impõe, desde que Freud produziu o inconsciente sobre a cena que lhe atribui (a `outra cena', ele a chama) e que ele lhe concedeu o direito à palavra" (Lacan 1975a).
10 Macherey, de fato, conclui seu comentário afirmando: "Antes que uma filosofia da psicanálise, uma psicanálise da filosofia: quem pode garantir que ela não precise disso?" (Macherey 1991, p. 321). Ver também Macey (1988, p. 82 e 112).
11 Essa recusa do cartesianismo não impediu Lacan, alguns anos antes, de propor um "retorno a Descartes", ao mesmo tempo, é verdade, que recusava, nos termos mais peremptórios, a noção de inconsciente (Lacan 1966c, p. 163). A referência a Descartes retornará com força em diversos momentos (Lacan 1964, p. 44-45, por exemplo), não sendo este o menor dos aspectos contraditórios de seu diálogo com a tradição filosófica.
12 A influência de Bolk só foi, no entanto, reconhecida por Lacan muito mais tarde (Lacan 1975b).
13 O conceito de gozo, ambíguo como quase qualquer outra noção lacaniana importante, significa mais ou menos o seguinte: o princípio do prazer descrito por Freud, ao contrário do que qualquer interpretação hedonista poderia sugerir, teria, para Lacan, uma função normativa na economia do sujeito, que lhe prescreveria "gozar o mínimo possível". A castração seria aquela operação pela qual o sujeito consente em renunciar ao gozo como preço a pagar para a entrada na ordem simbólica e na comunidade humana; na medida em que o sujeito como tal só se constitui mediante esse ingresso, essa renúncia lhe é igualmente constitutiva. O Édipo simplesmente criaria a ilusão de que essa impossibilidade do gozo é fruto de uma proibição contingente de acesso a um objeto específico. Ele originaria e sustentaria, assim, a ilusão neurótica de que o gozo seria possível se as interdições edípicas fossem canceladas (ver Evans 1997, p. 91-92).
14 Esse argumento é reiterado em outros lugares: "A concepção do mundo não é aqui algo de decisivo. Não se trata, nessa ocasião, seja do que for que se pareça a uma Weltanschauung qualquer - e tampouco a minha" (Lacan 1959-60, p. 156; ver ainda Lacan 1972-73, p. 32-33). Contudo, poucas linhas antes da passagem do Seminário 11 que acabamos de citar, é possível ler-se a mesma condenação generalizada da filosofia exemplificada mais acima: "(...) ele [o olhar] deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência - essa ignorância tão característica de todo o progresso do pensamento nesta via constituída pela investigação filosófica" (Lacan 1964, p. 89, grifos nossos).
15 O conceito de Coisa introduzido no Seminário 7 é a primeira figura daquilo que Lacan depois definirá como o "objeto a", ou seja, aquele objeto cuja presença apenas pode ser atribuída a uma espécie de tempo mítico, anterior à fratura pela qual se constitui o sujeito, e cuja perda ou ausência opera desde então como "causa do desejo". Daí que Lacan se julgue autorizado a identificar Coisa e Não-Coisa como faz nessa passagem.
16 Para uma síntese bastante legível, ver Evans (1997, p. 44-46).
17 Essa é a posição de Samuels (1993, p. 1) sobre a relação entre Lacan e a filosofia: "A fim de revitalizar algumas das idéias principais de Freud, Lacan se volta para o campo da filosofia. (...) Pode-se argumentar que a psicanálise pode ser vista, sob muitos aspectos, como uma resposta a algumas das questões e paradoxos gerados pela filosofia moderna".
18 E ainda, em outro lugar: "Diz-se que Freud não é um filósofo. Vá lá, mas não conheço texto sobre a elaboração científica que seja mais profundamente filosófico" (Lacan 1954-55, p. 118).
19 Há uma versão mais tardia da figura do nó borromeu com quatro anéis, em vez de três, na qual o quarto representaria a noção lacaniana de "sinthoma", isto é, o sintoma na sua dimensão estrutural e não apenas clínica.
20 "O que faz a originalidade, pode-se mesmo dizer a estranheza, da empresa de Kojève é essa síntese improvável que ele tentou efetuar entre Heidegger e um certo Marx, à margem de um comentário de Hegel cujo procedimento era essencialmente lúdico" (Macherey 1991, p. 319). Ver também Arantes (1991).
21 Para sermos ainda mais explícitos: "Esse sentido é sustentado por sua relação subjetiva com o senhor, na medida em que é a morte dele que ele [o obsessivo] espera. O obsessivo manifesta, com efeito uma das atitudes que Hegel não desenvolveu em sua dialética do senhor e do escravo. O escravo esquivou-se ante o risco da morte, onde a oportunidade de dominação lhe foi oferecida numa luta de puro prestígio. Mas, já que sabe que é mortal, ele sabe também que o senhor pode morrer. Por conseguinte, pode concordar em trabalhar para o senhor e em renunciar ao gozo nesse meio tempo: e, na incerteza do momento em que chegará a morte do senhor, ele aguarda. Tal é a razão subjetiva tanto da dúvida quanto da procrastinação, que são traços de caráter do obsessivo" (Lacan 1966e, p. 315)
22 Observe-se que a concepção da análise segundo o paradigma da intersubjetividade também se valeu inicialmente da referência hegeliana, como se pode constatar em Intervenção sobre a transferência (Lacan 1966d), trabalho inaugural a esse respeito.
23 O "a" minúsculo tinha sido empregado inicialmente por Lacan para designar o "pequeno outro", o outro imaginário da relação narcísica, o objeto visado pelo desejo na relação de objeto. No processo de formulação do conceito de objeto a, este tende cada vez mais a ser pensado como o objeto real e parcial - é esse o sentido que se firma a partir do Seminário 10 - , cujo protótipo é aquele segmento do corpo materno ao qual a pulsão se remete (e contorna, conforme a metáfora lacaniana) em busca de satisfação (o seio, por exemplo) e cuja posse é retrospectivamente fantasiada como tendo permitido a satisfação plena do desejo. O que o desejo buscaria, segundo Lacan, seria o paradoxal reencontro do objeto nunca possuído, o objeto que consistiria, assim, na causa real do desejo, e não em seu alvo sempre imaginário.
24 A idéia de que é a transferência, no sentido psicanalítico do termo, o assunto de que trata, em última análise, o Banquete platônico é reiterada diversas vezes por Lacan nesse texto (Lacan 1960-61, p. 65, 97, 105, 128, entre outras).
25 "Farei girar o que vou lhes dizer em torno de um termo que está no texto e cujo uso em grego nos deixa entrever a história e a função, que eu creio ter reencontrado, do objeto de que se trata. Este termo é a palavra agalma, que nos dizem ser o que é oculto por esse sileno hirsuto que é Sócrates" (Lacan 1960-61, p. 162).
26 Macherey (1991, p. 320) menciona um uso metafórico da informação filosófica por Lacan, mas apenas com relação a Espinosa. Uma alternativa seria reconhecer em Lacan, não o filósofo, mas o sofista moderno, o que, pelo menos, explicaria a grande presença das contradições em seus trabalhos, como as que examinamos aqui. Barbara Cassin segue essa via, é verdade que no contexto de uma reabilitação filosófica da sofística: "Ora, em Encore (...), Lacan se explica por meio da filosofia, especialmente Parmênides e Aristóteles, e esboça para a psicanálise, exatamente face à filosofia, um lugar análogo ao que ocupa a sofística, um estatuto de discurso igualmente heterodoxo: ele fala, poder-se-ia dizer, como sofista" (Cassin 1990, p. 294). Por aí se caminharia na direção de atribuir uma natureza retórica ao discurso de Lacan, como se sugere abaixo.