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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Arte em Merleau-Ponty

 

The art in Merleau-Ponty

 

 

Reinaldo Furlan; Annie Simões Rozestraten

USP – Ribeirão Preto Departamento de Psicologia e Educação

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tema da visão percorreu a obra de Merleau-Ponty. Desde o princípio, tratou-se de investigar o fenômeno da percepção, e nele descobrir o germe ou a presença de um sentido que a tradição intelectualista sempre tributou a uma operação do pensamento, considerando a sensibilidade apenas ocasião para seu exercício ou índice de realidade. Inscrito inicialmente nos quadros da filosofia da existência (Fenomenologia da percepção), o tema encaminha-se, posteriormente, para uma ontologia do Ser bruto. O objetivo deste trabalho é apresentar as reflexões estéticas de Merleau-Ponty que marcam essa passagem, e que representam o encontro da sua filosofia com a pintura na tarefa da expressão de uma ontologia.

Palavras-chave: Merleau-Ponty, Arte, Pintura, Ontologia, Ser bruto.


ABSTRACT

The theme of vision is pervasive in Merleau-Ponty’s work. Since the beginning, he investigated the phenomenon of perception and uncovered the germ or the presence of a “spirit” which the intellectualism always conceived as an operation which owes nothing to the order of the sensitive except as a simple occasion for exercising thought or a simple reality index. Initially enrolled in the ranks of the philosophy of existence (Phenomenology of perception), the theme is later led to ontology of the Brute Being. The objective of the present work is to present Merleau-Ponty’s esthetical reflexions which mark this change and represent the encounter of his philosophy with painting in the endeavor of expressing an Ontology.

Keywords: Merleau-Ponty, Art, Painting, Ontology, Brute being.


 

 

Introdução

O pensamento de Merleau-Ponty procura recuperar o estatuto originário da percepção ou sensibilidade, substituídos na filosofia de Descartes pela ordem do pensamento ou representação.

Fenomenologia da percepção (1994 [1945]), ainda seu trabalho de maior impacto sobre as ciências do homem, desenvolve-se em torno da noção de existência. Tratava-se, então, de desvelar o fenômeno do Ser através das análises do modo como o assumimos e mostrar o corpo como ator central dessa operação; de mostrar que a unidade da experiência de mundo não se deve à recognição do conceito operada pelo eu penso transcendental kantiano ou não é do tipo da unidade operada pelo conceito, mas é uma unidade pré-conceitual de uma ordem perceptiva que sabe mais do que as razões que o pensamento pode dar para justificar a fé perceptiva no mundo; de mostrar, portanto, um logos do mundo estético que se forma com a experiência e a atividade do corpo próprio, que se constitui centro anônimo de convergência da percepção do mundo.

Ora, esse movimento de investigação do Ser através da análise da experiência do corpo próprio, que, de certo modo, privilegiava a Antropologia e a tarefa de fundação das ciências humanas, prossegue com uma revisão mais radical das categorias da metafísica clássica a que dera início, mantendo as temáticas do corpo e da sensibilidade no centro da investigação.

Pretendemos destacar um aspecto que nos parece ainda pouco explorado no pensamento de Merleau-Ponty em direção a essa nova ontologia, por ele chamada de filosofia do Ser bruto, e expressa, sobretudo, no manuscrito inacabado O visível e o invisível (2000a [1964]). Tratase do tema da pintura, e, em particular, da noção de profundidade, cuja reflexão deve arrastar consigo, conforme já fazia Fenomenologia da percepção (1994 [1945]), a revisão das noções de percepção, de mundo, de corpo próprio, de sujeito e de relação com o outro.

Privilegiamos para essa apresentação o ensaio O olho e o espírito (1984a [1960]), e Notes des cours au Collège de France 1959-1961 (1996), que passamos a citar como Notes...). Não parece exagero dizer que, com O olho e o espírito, “ele nomeia, então, sua obra inteira” (1974, p. 696),1 pois desde o princípio tratou-se de interrogar o fenômeno da percepção e nele descobrir o germe ou a presença de um sentido que a tradição intelectualista sempre tributou a uma operação do pensamento (no sentido de “pensamento de ver”), considerando a sensibilidade apenas ocasião para seu exercício ou índice de realidade.

Como diz Merleau-Ponty nesse ensaio, é através do olhar que primeiro interrogamos as coisas, e devemos compreender o corpo, de forma geral, como um sistema voltado para a inspeção do mundo.

A pintura, por sua vez, é objeto privilegiado para essa reflexão. Espécie de elemento estranho diante das formas canônicas da razão – que são essas da linguagem, enquanto a pintura é expressão muda de sentido –, ela se faz enquanto operação reflexiva do próprio corpo, comunicação com o mundo através do olhar e da sensibilidade.

Iniciamos com sua crítica à filosofia do pensamento operacional da ciência, conseqüência fiel ou expressão acabada da metafísica cartesiana. De modo semelhante ao procedimento de Heidegger em L’époque des “conceptions du monde” (2001 [1960]), mas mais generoso ou otimista com a atividade científica, Merleau-Ponty procura mostrar como essa filosofia da ciência, assaz difundida, corresponde aos pressupostos da metafísica cartesiana, e com ela participa do esquecimento da dimensão ontológica do olhar.

Em Notes... (1996) Merleau-Ponty diz que sua perspectiva no estudo de Descartes não é a de quem faz história da filosofia (estudo do passado por ele mesmo), “mas, passado evocado para compreender o que pensamos” (p. 163), e completa: “Por que esse desvio? Porque não sabemos o que pensamos. Mais fácil dizer em que não somos cartesianos” (ibid.).

 

Ciência e ontologia2

A ciência moderna constrói sua concepção de mundo através de procedimentos cada vez mais tecnicamente sofisticados, fabrica para si modelos e toma o mundo por eles, como se todas as coisas estivessem destinadas a entrar no laboratório para adquirir o verdadeiro estatuto de Ser. Ela é, nesse sentido, hostil a todo pensamento de contato. A própria percepção deve ser explicada ou fazer parte desse mundo construído cientificamente, com o que a ciência também pretende dominar o olhar ou compreendê-lo de ponta a ponta, através da explicação de uma função (a visão) entre um objeto (o olho) e outro (o mundo percebido), inserindo, por fim – o que o cartesianismo não pôde evitar –, o próprio sujeito ou as funções superiores da alma no sistema objetivo do mundo, fechando o conhecimento sobre si mesmo. Ou seja, sob o nome de psicologia, o pensamento operacional reivindica “o domínio do contato consigo mesmo e com o mundo existente, que Descartes reservava a uma experiência cega, mas irredutível” (1984a [1960], p.100), substituindo, assim, a filosofia. (Na verdade, esquecendo sua reflexão, pois a transformação da Metafísica em Antropologia, na modernidade, apenas é seu acabamento, a tomada de uma posição que não precisa mais ser explicitada, e que, portanto só na aparência nega ou supera a primeira – Heidegger 2001[1960].)

Nada contra, diz Merleau-Ponty, esse pensamento “ativo e desenvolto”, destinado, sem dúvida, a abrir dimensões inusitadas para o “olhar”. Também não se trata de negar da técnica o caráter exploratório e desvelador de novos sentidos, pois, como veremos, “toda técnica é ‘técnica do corpo’. Ela figura e amplia a estrutura metafísica da nossa carne” (1984a [1960], p. 92). Com o que também se evita a simples troca do cientificismo pelo primitivismo, ou a concepção de uma verdade fabricada por uma verdade originária e fundamental, como se a pintura e a filosofia pudessem expressar um contato primitivo com as coisas aquém da história. Trata-se, simplesmente, de não substituir o enigma do Ser por questões internas às operações da ciência, de abrir novamente a relação entre ciência e filosofia ou de inserir a ciência na dimensão do mundo da vida. Nas palavras de Merleau-Ponty:

Mister se faz que o pensamento de ciência – pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral – torne a colocar-se num “hᔠprévio, no lugar, no solo do mundo sensível e do mundo lavrado tais como são em nossa vida, para nosso corpo, não esse corpo possível do qual é lícito sustentar que é uma máquina de informação, mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. É preciso que, com meu corpo, despertem os corpos associados, os “outros”, que não são meus congêneres como diz a zoologia, mas que me assediam, que eu assedio, com quem eu assedio um só Ser atual, presente, como jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a insistir nas próprias coisas e em si mesmo, tornará a ser filosofia... (Ibid., p. 86)

Ora, a questão da visão é crucial na operação dessa passagem, porque é privilegiada para determinar nossa relação com o Ser, e não foi por acaso que Descartes começou colocando em dúvida o caráter da abertura de sentidos na percepção das coisas.3 Vamos retomar em parte essa operação, porque com ela Descartes substituiu a experiência do olhar pelo pensamento de ver.

 

A visão segundo Descartes

Para Descartes, quem vê é a alma, e não o corpo. Mas vê a partir do corpo, isto é, a partir de sua encarnação ou união substancial: não há visão sem corpo, portanto, tampouco sem alma. Porque resultado da união, a visão faz parte das representações confusas do pensamento, e jamais participará do grau de clareza exigido como critério de conhecimento verdadeiro, de que participam apenas os pensamentos puros da alma. Contrariando a tendência natural, o cogito descobre, assim, que a origem do conhecimento verdadeiro do mundo não deve nada à percepção sensível das coisas, a não ser o índice de sua existência. Como no exemplo cartesiano da análise do pedaço de cera (Descartes, 1983 [1641]), em que guiado apenas pela luz natural do próprio entendimento, retém-se da “visão” da cera apenas a idéia de sua extensão. Esta é a única representação que permanece indubitável após as sucessivas mudanças da forma e estado da cera, e é reconhecida apenas pelo entendimento. É este que possibilita, em todas as variações sensíveis pelas quais passa o pedaço de cera, a “visão” ou o pensamento de que é a mesma cera que ali se encontra.

Para o nosso propósito, o que nos ensina a análise do pedaço de cera é que ver ou perceber é pensamento de ver ou de perceber; é a presença muda do pensamento no ato de perceber, sem o que não haveria visão ou percepção, pois, de forma confusa, como acontece na vida, ou evidente, como deve ser na atividade do conhecimento verdadeiro, o pensamento é a fonte de produção de todo sentido. Daí a importante conclusão de Descartes:

Ora, qual é esta cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente (...) (Ibid., p. 97)

E por isso a necessidade e a dificuldade de correção da linguagem comum, que traiu o próprio Descartes no parágrafo precedente:

Entretanto, eu não poderia espantar-me demasiado ao considerar o quanto meu espírito tem de fraqueza e de pendor que o leva insensivelmente ao erro. Pois, ainda que sem falar eu considere tudo isso em mim mesmo, as palavras detêmme, todavia, e sou quase enganado pelos termos da linguagem comum; pois nós dizemos que vemos a mesma cera, se no-la apresentam, e não que julgamos que é a mesma, pelo fato de ter a mesma cor e a mesma figura: donde desejaria quase concluir que se conhece a cera pela visão dos olhos e não pela tão-só inspeção do espírito, se por acaso não olhasse pela janela homens que passam pela rua, à vista dos quais não deixo de dizer que vejo homens da mesma maneira que digo que vejo a cera; e, entretanto, que vejo desta janela, senão chapéus e casacos que podem cobrir espectros ou homens fictícios que se movem apenas por molas? Mas julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos. (Ibid.)4

Mas é no contexto da união substancial que Descartes diz que é a alma quem vê, e não os olhos, porque quando olho um quadro ou um pedaço de cera, vejo-os imediatamente, e não estímulos que interpreto a seguir. Ou seja, a interpretação dos estímulos corporais pela alma é imediata, “cega”, e daí todo o esforço de Descartes para recuperar o pensamento oculto na percepção. Em outros termos, eu só posso recusar a maneira comum de falar, que diz que “vejo o pedaço de cera”, após a análise do pensamento daquilo que eu vejo, para então reconhecer que “não vejo”, mas “penso que vejo”. O que fica mais claro na seqüência das Meditações, após a recuperação da verdade da existência do mundo exterior, quando o cogito compreende o caráter não arbitrário das representações percebidas, que não dependem da vontade ou imaginação, mas decorrem de um acordo já programado entre os estímulos do mundo extenso e a interpretação pela alma. É este acordo que a visão representa, e este é um mistério insondável para o nosso entendimento.

Em outros termos, Descartes não pode explicar a visão, na medida em que não pode explicar a união substancial entre corpo e alma: quem vê é a alma, mas a partir da tradução simultânea da ação dos estímulos físicos sobre ela. Assim como as paixões da alma são traduções imediatas da ação do corpo sobre ela, conforme acordo estabelecido pelo Engenheiro supremo na criação do homem. Válidas para o uso na vida, essas representações não são fontes de conhecimento verdadeiro.

Descartes chega, assim, aos limites de seu pensamento, que não alteram, entretanto, sua filosofia; não deixa de reconhecer o problema abissal que o tema da visão lhe coloca, mas desqualifica a visão como fonte de acesso ao Ser verdadeiro, cuja representação deve ser construída apenas pelo pensamento.

Merleau-Ponty não deixou de apontar para o desequilíbrio entre a certeza das distinções metafísicas obtidas na “Segunda meditação” e o reconhecimento, na última, da união substancial. Afinal, é preciso reconhecer que o Descartes das primeiras distinções metafísicas é o mesmo homem que se descobre na “Sexta Meditação”, e não se vê bem por que, a despeito da ordem das razões, o reconhecimento de fato da união substancial não comprometeria, retrospectivamente, as primeiras verdades. Ou seja, como o homem Descartes seria capaz de ultrapassar pelo pensamento de fato, isto é, pensamento de um homem e não de um espírito puro, a mistura substancial?

Esse é o problema que a filosofia de Merleau-Ponty retoma. Ela parte daquilo que Descartes deixou como questão insolúvel, ou prossegue na sua contramão, da “Sexta Meditação” para a revisão das primeiras. Por isso Merleau-Ponty diz que Descartes tocou no problema da percepção, mas não o assumiu para a construção de sua filosofia.

 

A pintura segundo Descartes

Em O olho e o espírito (1984a [1960]) Merleau-Ponty analisa como Descartes, na Dióptrica, concebe o problema da visão e a capacidade da pintura de representação do mundo.

É importante destacar que na Dióptrica Descartes não parte da experiência do olhar, isto é, não a toma como experiência que ensina, que abre para o mundo e a si mesma. Esse lugar já fora usurpado e ocupado pelo cogito, que se descobrira como realidade espiritual no pensamento do “mundo”, distinta da realidade física ou extensa, sendo a visão considerada, então, pensamento confuso, derivado do contato do pensamento puro com a extensão, mais precisamente, como a ação da luz sobre os olhos, que a alma recebe e decodifica.

O objetivo da Dióptrica, frisa Merleau-Ponty, é “fabricar ‘órgãos artificiais’ – técnico, portanto manipular a luz” (1996, p. 176). Ou seja, “não se habita a luz. Não se ocupa do fenômeno: como a luz ilumina. Parte-se da luz que entra no olho, aquela sobre a qual podemos agir, da luz que age” (ibid.).

Descartes opera segundo a suposição de um modelo criado, com o objetivo de tirar conseqüências úteis para a explicação do fenômeno. Como diz, opera ao modo dos astrônomos, que a partir da criação de modelos tiram conseqüências interessantes que completam, afinal, a explicação daquilo que investigam, o que mostra o acordo da filosofia cartesiana com o operacionalismo da ciência nascente (“contudo, limitado pelas condições de intuitus mentis” (ibid.), ou regras para o pensamento claro e distinto das coisas).

É preciso destacar, enfim, que, ao contrário, Merleau-Ponty não está interessado em saber como a arte pode representar o visível, isto é, através de quais artifícios pode se parecer com o mundo percebido. Seu objetivo não é criticar a Dióptrica enquanto tratado de ciência, mas a filosofia ou a metafísica que ela representa.

A Dióptrica apresenta as seguintes considerações sobre a visibilidade do mundo e da arte: assim como os cegos tocam as coisas e esse toque transmite ao cérebro uma informação, nossos olhos passeiam pelas coisas sem nada saber, até que essas informações sejam decodificadas pela alma. Assim, o modelo de explicação assumido por Descartes, através do qual pretende atingir a intuitus mentis sobre a visão, é o tato.5

Por isso, e da mesma forma, se o reflexo de algo no espelho se parece com a própria coisa é porque ambos agem de forma semelhante no olho, como “ricochete de uma bala” (1996, p. 177), transmitindo a mesma informação da imagem visual para a alma. Como se trata apenas de projeção luminosa que o pensamento decifra, sua semelhança com a imagem da coisa percebida não passa de denominação extrínseca do pensamento, que as une a partir do reconhecimento de seus sinais discriminativos. Vale lembrar, nesse sentido, que um cartesiano não se vê no espelho, mas um manequim que ele interpreta como a sua imagem refletida.

Da mesma forma, a pintura e a gravura nada mais são que tinta sobre uma superfície plana que, como a imagem especular, cria a ilusão de coisas e de um espaço onde não há. Como o que vemos é operado pelo pensamento, é o pensamento que decifra os códigos do desenho e da perspectiva, tal como, diz Descartes, os sinais e as palavras “que de modo nenhum se parecem com as coisas que significam” (apud Merleau-Ponty, 1984a [1960], p. 95).6 Por exemplo, o círculo é representado pela oval, uma mesa quadrada por um losango, o espaço reconstituído pela justaposição das coisas, etc. E assim como a incidência da luz sobre as coisas e os olhos é interpretada pela alma, produzindo a visão imediata das coisas, o desenho e a pintura também provocam, a partir da interpretação de seus códigos pela alma, a ilusão imediata das imagens reproduzidas.

Na verdade, no pouco que falou da pintura, já que “a pintura não é para ele uma operação central que contribua para definir o nosso acesso ao ser” (ibid.), Descartes privilegiou a gravura, pois está mais próxima do desenho, que opera com linhas que representam as coisas em sua extensão, o que define propriamente a sua existência. Ou seja, uma vez que a representação verdadeira das coisas restringe-se à forma de sua extensão, Descartes destaca as linhas que definem o contorno das coisas, e o método da perspectiva, que é a possibilidade de sua representação no espaço. Descartes ignora, portanto, o valor da cor na pintura e o considera decorativo.

Ora, frisa Merleau-Ponty,

Se houvesse examinado esta outra e mais profunda abertura às coisas que as qualidades segundas nos proporcionam, notadamente a cor, como não há relação regulada ou projetiva entre elas e as propriedades verdadeiras das coisas, e como, no entanto, a mensagem delas é compreendida por nós, Descartes ter-se-ia achado diante do problema de uma universalidade e de uma abertura às coisas sem conceito, ter-se-ia visto obrigado a indagar como o murmúrio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas, florestas, tempestades, enfim o mundo, e talvez a integrar a perspectiva, como caso particular, num poder ontológico mais amplo. (Ibid., p. 96)

Uma tarefa, como veremos, assumida pela pintura de Cézanne, onde cor e forma não se dissociam, e a investigação da profundidade não se reduz ao método da perspectiva.

A profundidade não é, pois, afastada por Descartes, como a cor (simplesmente substituída pela linha), uma vez que o desenho regulado pelo método da perspectiva geométrica permite sua representação.

Mas detenhamo-nos nela, diz Merleau-Ponty, porque parece encerrar “algo de paradoxal” (ibid.). A saber, que a profundidade nos dá acesso às coisas, na medida em que a nossa visão das coisas não se restringe apenas às suas faces visíveis atuais, mas também implica o sentido das faces que não vejo – e posso ver contornando ou manipulando as coisas –, e o sentido de uma invisibilidade ou presença de uma determinada ausência – sempre junto a qualquer ponto de vista –, que são responsáveis pelo volume e transcendência das coisas, sentidos, pois, que fazem parte do sentido geral de “coisa” para nós. Em síntese, também vemos o que, no sentido estrito do termo, não vemos, isto é, o sentido implícito e o invisível que fazem parte do sentido do visível atual.

Ora, a filosofia cartesiana procura mostrar que a profundidade “é um falso mistério”, pois

(...) eu não a vejo deveras, ou, se a vejo, é uma outra largura. Na linha que une meus olhos ao horizonte, o primeiro plano esconde para sempre os outros, e, se lateralmente eu creio ver os objetos escalonados, é que eles não se mascaram completamente: vejo-os, pois, um fora do outro, segundo uma largura diversamente computada. Sempre se está aquém da profundidade, ou além. Nunca as coisas estão uma por trás da outra. A superposição e a latência das coisas não entram na sua definição, apenas exprimem a minha incompreensível solidariedade com uma delas, meu corpo, e, em tudo o que elas têm de positivo, são pensamentos que eu formo, e não atributos das coisas: sei que, nesse mesmo momento, outro homem colocado de outro modo – ainda melhor Deus, que está em toda parte – poderia penetrar o esconderijo delas, e vê-las desdobradas. Isso a que eu chamo profundidade não é nada, ou é a minha participação num Ser sem restrição, e, primeiramente, no ser do espaço, para além de todo ponto de vista. (1984a [1960], pp. 96-97)

Ou seja, vejo apenas uma sucessão de planos que se encobrem parcialmente. É através dessa sobreposição que o pensamento decifra a profundidade, que nada mais é que outra largura vista de outro lugar. Vejo as coisas, portanto, uma ao lado da outra, nunca uma por detrás da outra. As partes ocultas eu infiro através do pensamento. Por isso Merleau-Ponty diz que, ao conceber as coisas desse modo, ora estamos aquém da profundidade, quando consideramos apenas as faces visíveis das coisas, que se encobrem parcialmente, ora além, quando supomos a visão de um outro lugar que revelaria o lado oculto das coisas. Assim sendo, a idéia do espaço em si passa a ser uma sucessão de pontos, vistos de todos lados.

Toda profundidade, não importa como concebida, implica alguma restrição do olhar, a presença ou suposição de algo que efetivamente não é visto. O olhar de Deus, porque absoluto, vê de todos os lados simultaneamente, tem a visão plena e imediata das coisas, e portanto é sem profundidade. O homem, finito, vê a partir de um ponto, mergulhado entre as coisas no espaço em si, mas pode contornar essa limitação através do pensamento, e assim participar da idéia do Ser verdadeiro. No caso, através da representação geométrica, que passa a ser a visão clara do espaço ou a depuração do espaço vivido confusamente pelo corpo.

Em outros termos, a dimensão de profundidade vivida pelo corpo faz parte das representações confusas do pensamento, decorrentes da união substancial, assim como as qualidades segundas da percepção, entre elas a representação da cor. Essa profundidade, que apresenta as coisas e o espaço em latência, deve-se à presença do corpo na percepção, isto é, à implicação lateral da profundidade do próprio corpo na visão das coisas, que nos coloca no meio delas com sua espessura e zonas de opacidade, cujo sentir, para Descartes, não pode ser manifestação de verdade, mas apenas sinais de existência que devem ser interpretados pelo pensamento.

Curiosamente, Merleau-Ponty mostra como, ao contrário dessa operação de redução do olhar ao pensamento de ver, as regras cartesianas para a direção do espírito também podem ser compreendidas como fundadas em um modelo de visão ou como a noção de intuitus mentis é construída sobre um modelo de visão dos olhos. Diz Descartes: para uma visão clara e distinta do espírito “é preciso, como os artesãos, dirigir o olhar sobre singula puncta”7 (apud Merleau-Ponty, 1996, p. 228). “É esta redução do ser visível”, nota Merleau-Ponty, “que comanda a definição da visão do espírito” (1996, p. 229).

Descartes toma por modelo de visão a figura, e não o campo ou fundo que dela participa, e toma por modelo de clareza a distinção da figura com a exclusão das outras que o olhar comporta relativamente, de tal forma que, uma vez diante dela, não podemos deixar de percebê-la em si mesma: sua visão também é sua existência (ibid., pp. 230-231).

Isto é,

Esta presença da figura é tudo o que é retido da visão. O resto do campo é composto de tais figuras não presentes. O mundo visível é para mim um mundo em si sobre o qual se projeta a luz do olhar que recorta coisas presentes. Isto elimina a relação ao fundo que é de outro tipo (relação de envolvimento pelo fundo visual, que comporta um grau zero de visão que não é nada: o negro, que, portanto me circunda, e circunda meu corpo-figura). (Ibid., p. 229).

O que anuncia a mudança de perspectiva que Merleau-Ponty pretende. Com a questão do fundo, o que Descartes afasta é a abertura de um “campo de visibilidade que não é soma de singula puncta, de visíveis, que é a colocação de uma Sichtigkeit,8 abertura ao visível vor aller Thesis” (ibid.). Ou, como veremos adiante, a presença do mundo implicada na visão de qualquer coisa, e minha implicação nessa presença.

A questão do fundo aparece na filosofia de Descartes, mas de um outro modo. Primeiro, na forma do gênio maligno, que desfaz a certeza da figura abrindo e vinculando sua evidência a um fundamento desconhecido, por definição enganador. Segundo, na forma de Deus, que de modo inverso sustenta a veracidade da evidência, mas também como fundamento insondável que não se encontra na presença da figura. Por falta ou excesso, o fundo não entra na definição da visibilidade cartesiana,9 e o negativismo da dúvida apenas preparava um novo positivismo.10

O que se critica nesse procedimento, mais uma vez, não é seu modelo de conhecimento, mas a redução da ontologia a uma epistemologia. Não se trata, pois, nesse momento, de criticar Descartes por sua concepção de mundo e de espaço ou, como dissemos no início, a construção dos objetos pelas ciências, mas a substituição da experiência do Ser por estas, que ao contrário, devem ser assumidas como parte da exploração desse solo de experiência mais amplo e originário.

Merleau-Ponty não deixa, aliás, de elogiar as investigações da filosofia e da pintura clássicas enquanto abertura e exploração de novas dimensões de sentido. O erro estava em reduzir a experiência do Ser a uma característica dos entes (Heidegger) ou a visibilidade ao conhecimento do visível apoiados no princípio de que “do conhecimento ao ser a conseqüência é boa” (1996, p. 229).

Podemos concluir com o próprio Merleau-Ponty:

Como todas as ontologias clássicas, esta erige em estrutura do Ser certas propriedades dos seres, e nisto ela é verdadeira e falsa, poder-se-ia dizer invertendo a palavra de Leibniz: verdadeira no que nega, e falsa no que afirma. O espaço de Descartes é verdadeiro, contra um pensamento submisso ao empírico, e que não ousa construir. Havia, primeiro, que idealizar o espaço, conceber esse ser perfeito no seu gênero, claro, manejável e homogêneo, que o pensamento sobrevoa sem ponto de vista e transporta por inteiro sobre três eixos retangulares, para que se pudessem um dia achar os limites da construção (...) que as dimensões são tomadas de antemão, pelas diversas métricas, sobre uma dimensionalidade, sobre um Ser polimorfo, que as justifica todas sem ser completamente expresso por nenhuma. Razão tinha Descartes de liberar o espaço. O seu erro estava em erigi-lo num ser inteiramente positivo, para além de todo ponto de vista, de toda latência, de toda profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira.
Razão também tinha ele de se inspirar nas técnicas de perspectivas do Renascimento: elas incentivaram a pintura a produzir livremente experiências de profundidade, e, em geral, apresentações do Ser. Elas só eram falsas se pretendessem encerrar a investigação e a história da pintura, fundar uma pintura exata e infalível (1984a {1960}, p.97).

 

Cézanne e a pintura moderna

Os pintores clássicos não estavam, pois, além de todo ponto de vista, nem dispunham de um ponto de vista infalível na representação do visível, apesar de amparados por essa técnica de projeção do espaço que lhes permitiam construir imagens como se tivessem o mundo diante deles, ao invés de mergulhados nele. É o reconhecimento desses limites ou a insatisfação com esse modelo de exploração do contato com o visível que vai levar a pintura moderna a novas formas de expressão.

Na percepção espontânea as coisas aparecem no percurso temporal do olhar; a cada instante olho uma coisa que tira de foco, mas não do campo perceptivo as outras coisas, de tal forma que a simultaneidade ou coexistência das coisas se dá de forma implícita, ambígua e lacunar.

A perspectiva geométrica, por sua vez, trabalha com uma sucessão de vistas que vão se somando umas às outras no quadro, é um olhar que constrói por pequenas partes o todo, e busca em cada coisa que olha seu correspondente mais preciso na tela. As coisas que disputam o meu olhar na percepção natural passam para o papel uma de cada vez, e quando todas essas visões locais se reúnem na tela, através do método de projeção que as organiza, o resultado é uma imagem limpa sem os acontecimentos da visão: “O que transporto para o papel não é a coexistência das coisas percebidas, a rivalidade delas diante de meu olhar. Encontro o meio de arbitrar o seu conflito, que faz a profundidade” (Merleau-Ponty, 1991 [1960], p. 50). O que significa que essa profundidade construída de acordo com o método da perspectiva não corresponde à percepção espontânea das coisas, é uma conquista histórica da arte, e daí a possibilidade de voltar a reflexão e a pintura para dimensões de sentido da percepção a que se fecharam a metafísica cartesiana e a pintura clássica que não tratou a percepção e a profundidade como problemas.

Os pintores modernos, por se terem afastado da base sobre a qual a pintura renascentista se assentava, freqüentemente são vistos como se pintassem de forma muito idiossincrática, distante da maneira “natural” de perceber as coisas. Na verdade, compreendemos, então, que “a pintura moderna coloca um problema muito diferente daquele do da volta ao indivíduo: o problema de saber de que modo é possível comunicarse sem o anteparo de uma Natureza preestabelecida e à qual se abririam os sentidos de todos nós, de que modo estamos entranhados no universal pelo que temos de mais pessoal” (ibid., p. 53).

Não se trata, portanto, na história da pintura, da passagem do objetivo ao subjetivo, mas da passagem de uma concepção de percepção natural, para a concepção de uma visibilidade ou experiência sensível geral, cujo sentido, porém, é aberto e indeterminado, não por falta, mas por excesso, originariamente polimorfo, como diz Merleau-Ponty.

É nesse sentido que Merleau-Ponty frisa o longo e custoso processo de formação de estilo no pintor, através do qual exprime sua forma de trabalhar o visível e ser por ele orientado. Por isso, o estilo não é legível nem em suas primeiras obras, nem em uma “vida interior”, como se o estilo não fosse uma forma de encaminhar e realizar a própria vida. Ao contrário, ele “é essa própria vida, na medida em que ela sai de sua inerência, deixa de usufruir a si mesma, e torna-se meio universal de compreender e fazer compreender, de ver e dar a ver – portanto não encerrado nas profundezas do indivíduo mudo, mas difuso em tudo quanto ele vê” (ibid., p. 54) – como nossos gestos, que tanto nos caracterizam na relação com o mundo e os outros, e que se dão à revelia de nossa consciência.

Os pintores impressionistas uniram-se, primeiramente, por discordarem dos padrões vigentes nos salões de arte de Paris no século XIX; perceberam que precisavam expressar um olhar para as coisas diferente daquele estabelecido pelos moldes acadêmicos da arte. Explicitaram, assim, a questão do olhar, que abriu a possibilidade para a existência de pintores tão diferentes como Van Gogh, Cézanne e Monet. Todos se iniciaram influenciados pelo Impressionismo e seguiram caminhos quase opostos, fundamentais para os rumos da arte moderna. Curiosamente, foi com a proposta de trabalhar a partir do contato com a natureza que surgiram, de forma mais clara, as diferenças entre os pintores.

Retrospectivamente, os impressionistas são mais impressionistas do que em sua época. A história permite-nos agrupá-los em uma forma comum de tratar a pintura, mas o que esse movimento deixa mais evidente são as diferentes maneiras de explorar a relação com o visível. O impressionismo, de modo geral, instituiu a diversidade entre os pintores como em nenhum outro momento da história da arte.

Cézanne é um dos que, partindo desse movimento, vai em busca de uma nova forma de pintar. Se, no impressionismo, o que conta é a verdade geral da impressão, que submerge o objeto e faz desaparecer sua densidade característica, Cézanne, ao contrário, quis reencontrar o objeto na atmosfera, quis pintar as coisas em sua solidez – “nascendo por organização expontânea” (Merleau-Ponty, 1984c [1948], p. 116) –, e não uma imagem como a que se forma no instante em que abrimos os olhos. Nesse sentido, Cézanne dizia que Monet, seu contemporâneo, era só olho, embora acrescentasse, “mas que olho!”. E enquanto a pintura de Monet vai cada vez mais tomando a dimensão da tela, ou seja, vai se fazendo plana e afirmando o valor bidimensional da superfície, Cézanne, como afirma Giacometti, passou a vida procurando a profundidade.

Cézanne não se interessou pela luz que tudo banha e envolve com um movimento colorido, onde tudo tende a adquirir um só valor: árvores que se confundem com o ar, que se junta com a terra e a água em paisagens pouco nítidas. Cézanne quis a luz que faz do objeto um sólido, e não a que o funde com a atmosfera, como os reflexos da água que tanto atraíam os impressionistas. Não por acaso preferiu as naturezas mortas, as paisagens onde aparecem construções, e a montanha Sainte-Vitoire, motivos que privilegiam as formas e o espaço.

Mas a forma, como concebia Cézanne, não podia ser circunscrita com uma linha, como o desenho fazia na análise cartesiana. Cézanne vai usar muitas linhas para desenhar os objetos, pois acreditava que uma só não traduz sua materialidade, assim como um círculo não é uma maçã. Como diz Merleau-Ponty, “marcar apenas uma seria sacrificar a profundidade, isto é, a dimensão que nos dá a coisa, não estirada diante de nós, mas repleta de reservas, realidade inesgotável” (ibid., p. 117).

A linha, então, deixa de ser o contorno dos objetos e tenta, mais do que sua forma externa, revelar seu movimento interno; não é mais o limite de uma coisa e outra, mas o que anima a presença de cada coisa, seu “eixo gerador”, como se desvelasse o avesso de um contorno (1984a [1960], p. 106). Estritamente falando, a linha não é visível nas coisas, nem mesmo enquanto seu contorno, como sabia Cézanne; mas pode trazer no desenho ou na pintura a presença do sentido latente e invisível que forra o sentido do visível atual. Ou seja, adquire a função de expressar uma dimensão de ser.

Na pintura, a ausência de circunscrição dos objetos por seu contorno preciso, ao contrário de ceder lugar à impressão das sensações, é assumida noutra perspectiva, em que a cor assume o lugar da linha da pintura clássica na definição do objeto, conforme nos diz o próprio Cézanne: “O desenho e a cor não são mais distintos, pintando, desenhase; mais a cor se harmoniza, mais o desenho se precisa... Realizada a cor em sua riqueza, atinge a forma sua plenitude” (Merleau-Ponty, 1984c [1948], p. 118).11 Em síntese, “cada toque deve satisfazer a uma infinidade de condições” (ibid.):

Vemos a profundidade, o aveludado, a maciez, a dureza dos objetos – Cézanne dizia mesmo: o seu odor. Se o pintor quer exprimir o mundo, é preciso que a composição das cores traga em si este Todo indivisível; de outra maneira, sua pintura será uma alusão às coisas e não as mostrará numa unidade imperiosa, na presença, na plenitude insuperável que é para nós a definição do real. (Ibid.)

Por isso os problemas da pintura são concêntricos,12 e “a expressão do que existe é uma tarefa infinita” (ibid.): o espaço e as coisas se constróem juntos, e como disse o pintor Georges Braque, que soube como poucos olhar para o trabalho de Cézanne, “as pessoas parecem ignorar totalmente que o que está entre a maçã e o prato se pinta também” (Charbonnier, 2002, p. 27).

A profundidade que Cézanne investiga seria, então, a própria presença do Ser, ou sua abertura através da irradiação do sentido das coisas, o que, curiosamente, confere à pintura certa superioridade sobre a fotografia, que Merleau-Ponty explicita através da análise da representação do movimento. É com Rodin, diz ele, que aprendemos que para captar o movimento de um corpo é preciso representar suas partes em momentos distintos, como, portanto, jamais existiram. É isso que exprime o sentido de movimento de um corpo, enquanto o instantâneo da fotografia paralisa o ser. Nisso, “é o artista que é verídico, e a foto é que é mentirosa, porquanto, na realidade, o tempo não pára” (ibid, p. 107). Em outros termos, “a pintura não busca o exterior do movimento, mas suas cifras secretas” (ibid.), o que Merleau-Ponty generaliza para todo o sensível, cujo sentido a pintura deve, então, tornar visível.13

Naturalmente, essa profundidade a que Merleau-Ponty alude através da pintura de Cézanne é anterior à profundidade que concebemos através do espaço geométrico, que é construído a partir dela. Ou seja,

Da profundidade assim compreendida, já não se pode dizer que é a “terceira dimensão”. Primeiramente, se ela fosse uma dimensão seria antes a primeira: não há formas, planos definidos a não ser que se estipule a que distância de mim se acham as suas diferentes partes. Mas uma dimensão primeira, e que contém as outras, não é uma dimensão, pelo menos no sentido ordinário de uma certa relação segundo a qual se mede. Assim compreendida, a profundidade é mais propriamente a experiência da reversibilidade das dimensões, de uma localidade global onde tudo está a um só tempo, cuja altura, largura e distância são abstratas, de uma voluminosidade que se exprime com uma palavra dizendo que uma coisa lá está. Quando Cézanne procura a profundidade, é essa deflagração do Ser que ele procura e ela está em todos os modos do espaço, e na forma igualmente. (1984a [1960], p. 103)

 

A visão e a pintura segundo Merleau-Ponty

Merleau-Ponty retoma, pois, a questão da pintura como reflexão sobre o sentido da visibilidade primordial: ao invés de perguntar como a luz age sobre os olhos, trata-se, antes, de saber como ela se mostra e abre para um mundo.

É ainda através da análise de Merleau-Ponty sobre Cézanne que podemos precisar o sentido dessa investigação:

A paisagem, dizia Cézanne, se pensa em mim e sou sua consciência (...) Nada está mais distante do naturalismo que esta ciência intuitiva. A arte não é uma imitação, nem, por outro lado, uma fabricação segundo os votos do instinto e do bom gosto. É uma operação de expressão (...) Assim como a palavra não se assemelha ao que designa, a pintura não é uma cópia (...) Esquecemos as aparências viscosas, equívocas e, através delas, vamos direto às coisas que apresentam. O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permaneceria encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. (1984c [1948], pp. 119-120)

Trata-se, pois, de entender a visão originária, esquecida nas atividades cotidianas, já que é comum à percepção e à fala se esquecerem em benefício do sentido da coisa ou do significado conquistados. Ficamos, pois, com o resultado de nossas atividades, com o mundo que tornamos familiar, enquanto a pintura de Cézanne opera a desconstrução dessa familiaridade,14 e suas pinturas parecem, por isso, quase inumanas.15 Em outros termos, “O visível no sentido profano esquece as suas premissas, repousa numa visibilidade inteira que é preciso recriar, e que liberte os fantasmas cativos nele” e “em todo caso, a interrogação da pintura visa a essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo” (1984a [1960], p. 92).

Por essa razão, aquele que vê também pode se sentir “visto pelas coisas”, como testemunham vários pintores, e, por isso, também, Merleau- Ponty diz que a pintura são “as vozes do silêncio” (1991 [1960]), não imita o visível, mas torna visível – conforme as palavras de Klee a respeito da linha (1984a [1960], p. 105) –, e que devemos considerar ao pé da letra isso a que chamamos inspiração:

(...) há deveras inspiração e expiração do Ser, respiração no Ser, ação e paixão tão pouco discerníveis, que já não se sabe mais quem vê e quem é visto, quem pinta e quem é pintado. Diz-se que um homem nasceu no momento em que aquilo que, no fundo do corpo materno, não passava de um visível virtual torna-se ao mesmo tempo visível para nós e para si. A visão do pintor é um nascimento continuado. (1984a [1960], p. 92)

Ou ainda:

A visão do pintor não é mais um olhar sobre um exterior (...) O mundo não está mais diante dele por representação: antes, o pintor é que nasce nas coisas como por concentração e vinda a si do visível (...) A arte não é construção, artifício, relação industriosa a um espaço e a um mundo de fora. É verdadeiramente o “grito inarticulado” de que fala Hermes Trimegisto, “que parecia a voz da luz”. E, uma vez aí, ele desperta na visão ordinária das potências adormecidas um segredo de preexistência. (Ibid., p. 104)

Dessa forma, Merleau-Ponty desdobra o segredo da visão na reversibilidade entre vidente e visível na experiência do olhar: o homem que vê é um visível junto ao mundo que ele vê, ou, ver implica a possibilidade de ser visto:

O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível. Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está vendo então o “outro lado” do seu poder vidente. Ele se vê vidente, toca-se tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o, constituindo-o, transformando- o em pensamento – mas um si por confusão, por narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca naquilo que ele toca, do senciente no sentido –, um si, portanto, que é tomado entre as coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro... (Ibid., pp. 88-89)

Deiscência do visível através do sensível privilegiado que o corpo é, o vidente encontra-se soldado ao visível desde o princípio, de onde surge por escavação do oco que constitui a visibilidade (“oco”, e não “nada”, para expressar a aderência entre vidente e visível).

Em última instância, trata-se de entender como o corpo, visível ou sensível exemplar tirado do tecido das coisas, “comunica às coisas sobre as quais ele se fecha esta identidade sem superposição, esta diferença sem contradição, essa distância do interior e do exterior que constituem seu segredo natal” (2000a [1964], p. 132); identidade e diferença que “faz brotar um raio de luz natural que aclara toda carne, não apenas a minha” (ibid., p. 138).

A comparação com a experiência da palpação tátil pode iluminar a questão, pois é notório, aí, o ajuste do corpo ao relevo do mundo, graças à sua reflexividade:

Donde vem que eu dê às minhas mãos, particularmente, este grau, esta velocidade e direção de movimento, que são capazes de me fazer sentir as texturas do liso e do rugoso? É preciso que, entre a exploração e o que ela me ensinará, entre meus movimentos e o que toco, exista alguma relação de princípio, algum parentesco (...) Isso só poderá acontecer se, ao mesmo tempo que sentido do interior, minha mão também for acessível por fora, ela própria tangível (...) Por meio desse cruzamento reiterado de quem toca e do tangível, seus próprios movimentos se incorporam ao universo que interrogam (...). (Ibid., p. 130)

Ou seja, o corpo se ajusta ao sentido tátil das coisas (ao liso e ao rugoso, ao quente e ao frio...), dá à mão velocidade e pressão adequadas ao contato de exploração das coisas, na medida em que também pode ser afetado por elas; na medida, pois, em que é um tangível ao lado delas. Portanto, porque o corpo que toca também é tocado: é no mundo que encontro minha mão e percebo o próprio corpo: “há ramificação de meu corpo e ramificação do mundo e correspondência do seu dentro e do meu fora, do meu dentro e do seu fora” (ibid., p. 132). Da mesma forma, a visibilidade só é possível porque, na exploração do olhar, o visível faz eco em meu corpo que, assim, é “um si por confusão”. O olhar esposa as coisas visíveis na medida em que o corpo também é um visível entre elas, e a visão se faz através do ajuste entre o que o olhar ensina e o movimento adequado dos olhos ou entre a prospecção do olhar e seu contato com as coisas ou tangibilidade à distância. Como já dizia Merleau-Ponty em A estrutura do comportamento (1972 [1942]), para ver é preciso olhar, e antes de tudo é preciso sair da diplopia, sentida como um desequilíbrio a ser superado, para a visão única das coisas, porque o corpo é um projeto motor de tomada de mundo. De forma que é preciso entender a abertura da dimensão ontológica no homem como inserida no movimento da própria vida ou se dando junto ao seu movimento. Em outros termos, movimento, tato e visão constituem uma operação conjunta de sentidos que se deve explicitar: a visão não é de um vidente puro, pensamento ou consciência, que teria o mundo diante de si como se fosse um quadro, nem é simples reflexo. É visão de um corpo que se movimenta entre as coisas:

A visão pende do movimento. Só se vê aquilo que se olha. Que seria a visão sem nenhum movimento dos olhos, e como o movimento destes não haveria de baralhar as coisas se, por sua vez, fosse reflexo ou cego, se não tivesse suas antenas, sua clarividência, se a visão não se precedesse nele? (1984a [1960], p. 88)

Clarividência do movimento que, portanto, “não é uma decisão do espírito, um fazer absoluto, que, do fundo do retiro subjetivo, decretasse alguma mudança de lugar miraculosamente executado na extensão. Ele é a seqüência natural e o amadurecimento de uma visão” (ibid.).

Ora, essa aderência entre vidente e visível, essa indivisão do sensciente e do sentido embaralha as noções de atividade e passividade, e permite dizer que minha atividade é também passividade ou que minha atividade só é possível tendo a passividade enquanto forro.

Mas se a aproximação com a experiência tátil tem a vantagem de mostrar a identidade ou proximidade da visão com as coisas, a visibilidade é privilegiada para marcar o caráter de diferença ou distância que temos das coisas,16 motivo suficiente na história da filosofia para ter sido confundida como atividade pura do pensamento ou espécie de olho mental. Desfigurada para mais ou para menos, isto é, concebida como espírito diáfano ou como conjunto de nervos e músculos para passagem de estímulos a serem decodificados pelo pensamento, a tarefa, segundo Merleau- Ponty, é recuperar a expressividade própria da visão e da pintura, sem desligá-las da experiência sensível.

Em poucas palavras, ver é “assistir de dentro a fissão do Ser” (1984a [1960], p. 108). Por isso, Merleau-Ponty diz que o jovem Berenson enganava-se quando dizia que a pintura italiana evocava os valores táteis: “Ela faz coisa totalmente diferente, quase o inverso: dá existência visível àquilo que a visão profana acreditava invisível, faz que não tenhamos necessidade de ‘sentido muscular’ para termos a voluminosidade do mundo” (ibid., p. 91). A visão não se descola do “tátil” por isso, não é um nada ou reflexo puro do Ser, é uma variante notável da reflexividade da experiência tátil, como esta é uma variação daquela.

Nesse sentido, Merleau-Ponty fala do delírio da visão (ibid., p. 91), “visão devoradora” que faz entrar, nela, todos os sentidos do Ser, fazendo, na pintura, o mundo parecer completo quando ele é apenas parcial. Em outros termos, “ver é ter à distância” (ibid.), pressupõe um tátil ao menos virtual (nesse sentido o corpo “migra até às estrelas”), assim como o tátil pressupõe uma visão ao menos virtual e pode ser expresso pela pintura.

Mas retomemos a referência que Merleau-Ponty faz à Schilder, na nota anterior, desta vez no ensaio O olho e o espírito (ibid.), porque abre para as questões do tempo, do imaginário e do outro, implicadas na experiência do olhar:

Schilder observa: fumando cachimbo diante do espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira não somente lá onde estão meus dedos, mas também nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho.
O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e, do mesmo passo, todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraídos dos outros como minha substância se transfere para eles: o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim (Ibid., p. 93)

Merleau-Ponty retoma o termo “carne” da filosofia de Husserl,17 mas para lhe dar um alcance e uma generalidade que ultrapassam os limites de sua filosofia. Antes de tudo, a “carne” é corpórea, mas não é matéria; é o corpo como expressão de sentido através de seus “órgãos”. Daí a implicação da experiência tátil ou do sentir, em geral, na experiência do olhar, conforme já mostrava Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção (1994 [1945]), através, por exemplo, da recuperação das noções de sensação e de esquema corporal para o sentido da percepção, que de simples conteúdo passam à forma da percepção. Mas é em O visível e o invisível (2000a [1964]) que o termo aparece propriamente e adquire sua importância ontológica. Então, dizer que as coisas também têm carneonde e do quando (espaço e tempo) ou de dimensões de ser que não deixarão mais de se reportar umas às outras. Por isso, “em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é ao contrário, o único meio que possuo para fazer chegar ao âmago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne” (ibid., p. 132).

Assim, com o exemplo de Schilder, Merleau-Ponty procura justamente mostrar a implicação do olhar com a noção de carne ou como esta expressa a reversibilidade entre o vidente e o visível, cuja experiência funda a comunicação com o outro e amplia a estrutura metafísica da carne.

Ora, isso só se compreende com a recuperação do valor ontológico do imaginário, que, até aqui, consideramos a partir da imagem especular e da pintura, que não são, então, simples cópia ou reflexo, mas o exterior do interior e o interior do exterior (a carne visível no espelho), comunicação ontológica do dentro e do fora, do vidente e do visível, eu e o outro, eu e o mundo (do sensciente e do sensível em geral, formando dois lados da mesma experiência), “figurando e ampliando a estrutura metafísica de nossa carne”.

Com isso, o imaginário passa a ser a presença surda, em latência, de todos os acontecimentos que forram o sentido da visibilidade atual. O visível não é um ser positivo, fechado em si mesmo, mas poroso, com um horizonte de sentido muito mais próximo e ao mesmo tempo mais distante do sentido atual: mais próximo, “visto ser o diagrama da sua vida em meu corpo, a sua polpa ou o seu avesso carnal” (1984a [1960], p. 90), e mais distante, visto ser apenas um análogo segundo o corpo, e “não oferecer ao espírito ocasião de repensar as relações constitutivas das coisas, mas ao olhar, para que este os espose, os vestígios da visão do interior, e à visão aquilo que a atapeta interiormente, a textura imaginária do real” (ibid.).18

Não é possível separar definitivamente percepção, lembrança e fantasia, ou real e imaginário, cujas distinções aprendemos a fazer, sem que possamos desfazer o vínculo que os une ou precisar seus limites, a partir dessa experiência originária em que os sentidos se encontram mais intimamente imbricados e passam mais livremente um no outro, como mostra, aliás, a expressão do desenho infantil, que revela uma percepção que não separou ainda o real e o imaginário, o sonho e a vigília, o sério e o lúdico, o “objetivo” e o “subjetivo”; que mostra, antes, sua imbricação na constituição do sentido percebido pela criança.19 O imaginário faz parte da dimensão de Ser da própria visibilidade ou do ôntico atual, do invisível que não é o contrário do visível, nem decalque da percepção ou suas imagens guardadas na memória, mas sombra do passado que forra o sentido presente e abre para o porvir.20

Mas é importante frisar que, decorrente da centralidade da experiência da visibilidade ou sensibilidade em geral, e conforme já ocorria em Fenomenologia da percepção (1994 [1945]), Merleau-Ponty privilegia a ek-stase do presente na abertura do sentido do Ser. E por isso “esse retorno ao tempo não é polêmico contra o espaço: é precisamente a espacialidade disso que eu vi, sua rivalidade com isso que eu vejo em um mesmo Espaço, onde seu fantasma habita (que tem seu passado), que faz que o passado exista, não seja ‘virtual’” (1996, p. 199).

E com isso voltamos à idéia de Espaço fundamental a que chegamos com a análise da pintura de Cézanne: este espaço enquanto deflagração do Ser é coesão do tempo também.

Trata-se, pois, de entender o “tempo” a partir do “espaço”: “O tempo não deve ser pensado à parte do espaço, sem o qual não haveria presente. Ele é uma propriedade desse espaço, e não apenas da ‘consciência’” (1996, pp. 207-208); mais precisamente, da visibilidade do mundo:

O “quale visual” dá-me, e só ele me dá, a presença daquilo que não sou, daquilo que é simples e plenamente. Fá-lo porque, como textura, ele é a concreção de uma visibilidade universal, de um único Espaço que separa e que reúne, que sustenta toda coesão (e até mesmo a do passado com o futuro, visto que ela não existiria se eles não fossem partes no mesmo Espaço). Cada coisa visual, por muito que se trate de um indivíduo, funciona também como dimensão, porque se dá como resultado de uma deiscência do Ser. Quer isto finalmente dizer que é próprio do visível ter um forro de invisível no sentido próprio, que ele torna presente como uma certa ausência. (1984a [1960], p. 109)

E com isso voltamos à idéia de Espaço fundamental a que chegamos com a análise da pintura de Cézanne: este espaço enquanto deflagração do Ser é coesão do tempo também.

Trata-se, pois, de entender o “tempo” a partir do “espaço”: “O tempo não deve ser pensado à parte do espaço, sem o qual não haveria presente. Ele é uma propriedade desse espaço, e não apenas da ‘consciência’” (1996, pp. 207-208); mais precisamente, da visibilidade do mundo:

O “quale visual” dá-me, e só ele me dá, a presença daquilo que não sou, daquilo que é simples e plenamente. Fá-lo porque, como textura, ele é a concreção de uma visibilidade universal, de um único Espaço que separa e que reúne, que sustenta toda coesão (e até mesmo a do passado com o futuro, visto que ela não existiria se eles não fossem partes no mesmo Espaço). Cada coisa visual, por muito que se trate de um indivíduo, funciona também como dimensão, porque se dá como resultado de uma deiscência do Ser. Quer isto finalmente dizer que é próprio do visível ter um forro de invisível no sentido próprio, que ele torna presente como uma certa ausência. (1984a [1960], p. 109)

Nada mais contrário à idéia de evidência do singula puncta cartesiano, do espaço geométrico partes extra-partes, do tempo como um sucessão de Erlebnisse (vivências). A percepção de qualquer coisa é percepção do mundo também – mistério da simultaneidade “que os psicólogos manejam como uma criança maneja explosivos” (ibid., p. 108).

Melhor ainda,

A profundidade é o meio que têm as coisas de permanecerem nítidas, ficarem coisas, embora não sendo aquilo que olho atualmente. É a dimensão por excelência do simultâneo. Sem ela não existiria um mundo, ou Ser, mas só uma zona móvel de nitidez que não poderia apresentar-se sem abandonar todo o resto, – e uma “síntese” destes “pontos de vista”. Ao passo que, através da profundidade, as coisas coexistem cada vez mais intimamente, deslizam umas nas outras e se integram. É então ela quem faz com que as coisas tenham carne: isto é, que oponham obstáculo à minha inspeção, uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua “abertura”, o seu totum simul. (2000a [1964], nota de trabalho, p. 203)

Minha presença num determinado lugar é ainda “presença em outros lugares” que participam do sentido atual (um certo “nó na trama do simultâneo e do sucessivo” – ibid., p. 129),21 e sem os quais este seria impensável, isto é, sem concreção ou apenas um instantâneo sem fundo ou profundidade, isto é, sem mundo. Nossas experiências se invadem e se abrem umas às outras: “A mistura é o caos, mas é também a proliferação do sentido. Mistura do passado, do presente e do futuro, do imaginário e do real, um comunicando com o outro” (1996, p. 213).

 

Conclusão

Pode um cartesiano crer que o mundo existente não é visível, que a única luz é de espírito, que toda visão se faz em Deus. Um pintor não pode consentir em que a nossa abertura ao mundo seja ilusória ou indireta, em que o que vemos não seja o próprio mundo, em que o espírito só tem que se avir com os seus pensamentos ou com outro espírito. Ele aceita, com todas as suas dificuldades, o mito das janelas da alma: cumpre que aquilo que é sem lugar esteja adstrito a um corpo; além disso, que seja por ele iniciado a todos os outros e à natureza. (1984a [1960], p. 108)

A pintura celebra o enigma da visibilidade e nos ensina que a reflexão não é privilégio da linguagem ou consciência.22

Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas, só têm existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos. O olhar do pintor pergunta-lhes como é que eles se arranjam para fazer que haja subitamente alguma coisa (...). (Ibid., p. 91)

Ora, diz Merleau-Ponty:

Como tudo seria mais límpido em nossa filosofia se se pudessem exorcizar esses espectros, fazer deles ilusões ou percepções sem objeto, à margem de um mundo sem equívoco! A Dióptrica de Descartes é essa tentativa. É o breviário de um pensamento que não mais quer assediar o visível e decide reconstruí-lo segundo o modelo que dele se proporciona. (Ibid., p. 94)

Se Descartes não afasta o enigma da visibilidade (que se dá no contexto da união substancial), o mesmo não transtorna, entretanto, sua filosofia: a visão,

Se Descartes não afasta o enigma da visibilidade (que se dá no contexto da união substancial), o mesmo não transtorna, entretanto, sua filosofia: a visão,

O que representa o segredo do equilíbrio da filosofia cartesiana, isto é:

(...) uma metafísica que nos dá razões decisivas para não mais fazermos metafísica, que valida nossas evidências limitando-as, que abre nosso pensamento sem dilacerá-lo.
Segredo perdido, e, ao que parece, para sempre: se reencontrarmos um equilíbrio entre a ciência e a filosofia, entre nossos modelos e a obscuridade do “há”, será mister ser um novo equilíbrio. (Ibid., pp. 99-100)

Segredo perdido porque nossa ciência não só parte do ponto de chegada de Descartes, dispensando-se da passagem pela metafísica que ele fez, pelo menos, uma vez na vida, como recusou as justificativas e os limites de sua filosofia.23

De fato, Merleau-Ponty acusa nosso estado de não filosofia e, ao mesmo tempo, aponta para uma nova maneira de se fazer filosofia; afinal, não podemos deixar de reconhecer que a metafísica continuou a levar uma vida subterrânea na arte e na literatura, nas quais as questões e os paradoxos da existência não deixaram de pulular, com seus sentidos abissais que o cientificismo não é capaz de apagar, fazendo, antes, parte deles. Mais ainda, tudo isso que aponta para a participação da abertura de um espaço sobre o outro (um tempo sobre o outro) e um corpo sobre o outro, parece mais bem expresso através da arte e da literatura, e daí sua proximidade com a filosofia de Merleau-Ponty em sua busca de uma nova ontologia.

Toda questão remete a tudo o que somos e a tudo o que o mundo é, e a tarefa da filosofia continua sendo a de vincular nossas questões ao horizonte de Ser de que participam. Simplesmente, não podemos colocar o simultâneo e a sucessivo, isto é, o fundo, que sustenta a visibilidade e o pensamento atuais, à nossa frente, o que significaria poder deixar o mundo e a vida para pensá-los. Por isso “O olhar não vence a profundidade, contorna-a” (2000a [1964], p. 203).24

Outrossim, somos no embaralhamento do ativo e do passivo25 – senscientes sensíveis, videntes visíveis, falantes ouvintes –, sem nos transformar em um ou outro, mas sendo através da abertura que se faz entre um e outro, e que definimos como carne.

O que significa unir “pensamento” e “sensibilidade”, separados na filosofia de Descartes ou conceber a “idealidade” como forro da visibilidade, de que a pintura é uma investigação privilegiada:

Quando eu vejo, através da espessura da água, o ladrilhado do fundo da piscina, não o vejo apesar da água, dos reflexos; vejo-o justamente através deles, por eles. Se não houvera essas distorções, essas zebruras de sol; se eu visse sem esta carne a geometria do ladrilhado, então é que cessaria de ver como ele é, onde ele está, a saber: mais longe do que qualquer lugar idêntico. A própria água, o poder aquoso, o elemento xaroposo e cintilante, não posso dizer que esteja no espaço: ela não está noutro lugar, mas também não está na piscina. Habita-a, nela se materializa, nela não está contida, e, se ergo os olhos para a tela dos ciprestes onde brinca a rede dos reflexos, não posso contestar que a água a visita também, ou pelo menos a ela envia a sua essência ativa e viva. Esta animação interna, essa irradiação do visível é que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço e de cor. (1984a [1960], pp. 104-105)

 

Referências

Charbonnier, George 2002: Le monologue du peintre. Paris, Éditions de la Villette.        [ Links ]

Chauí, Marilena S. 2002: “Obra de arte e filosofia”. In: Experiência do Pensamento – Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo, Martins Fontes.        [ Links ]

Descartes, René 1983 [1641]: Meditações (Traduzido por J. Guinsburg e Bento Prado Jr.). In: Descartes. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores).        [ Links ]

Didi-Huberman, George 1998: O que vemos, o que nos olha (Traduzido por Paulo Neves). São Paulo, Editora 34.        [ Links ]

Heidegger, Martin 2001 [1960]: “L’époque des ‘conceptions du monde’”. In: Chemins qui ne mènent nulle part (Trad. Wolfgang Brokmeier). Paris, Gallimard (Conferência pronunciada em 1938).        [ Links ]

Husserl, Edmund 1976 [1954]: La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale (Traduzido por Granel, G.). Paris, Gallimard.        [ Links ]

Lefort, Claude 1974: “Maurice Merleau-Ponty”. In: Histoire de la Philosophie – Encyclopédie de la Pléiade. Paris, Gallimard.        [ Links ]

Merleau-Ponty, Maurice 1972 [1942]: La structure du comportement. Paris, Gallimard.        [ Links ]

_____ 1984a [1960]: O olho e o espírito (Traduzido por Marilena de Souza Chauí). In: Merleau-Ponty. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores).        [ Links ]

_____ 1984c [1948]: “A dúvida de Cézanne” (Traduzido por Nelson Alfredo Aguilar). In: Merleau-Ponty. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os Pensadores).        [ Links ]

_____ 1991 [1960]: “A Linguagem indireta e as vozes do silêncio” (Traduzido por Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira). In: Signos. São Paulo, Martins Fontes.        [ Links ]

_____ 1994 [1945]: Fenomenologia da percepção (Traduzido por Carlos Alberto Ribeiro de Moura). São Paulo, Martins Fontes.        [ Links ]

_____ 1996: Notes de cours, 1959-1961 (Texte établi par Stéphanie Ménasé). Paris, Gallimard.        [ Links ]

_____ 2000a [1964]: O visível e o invisível (Traduzido José Artur Giannotti e Armando Mora d’Oliveira). São Paulo, Perspectiva.        [ Links ]

_____ 2000b [1957-1960]: A natureza – Cursos no Collège de France (Texto estabelecido e anotado por Dominique Séglard – Traduzido por Álvaro Cabral). São Paulo, Martins Fontes.        [ Links ]

Orlandi, Luiz B. L. 1980: A voz do intervalo. São Paulo, Ática.        [ Links ]

Zahavi, David 1994: “Husserl’s phenomenology of de body”. Études Phenoménologiques, n. 19, Librairie Philosophique J., Paris, Vrin.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Reinaldo Furlan
E-mail: reinaldof@ffclrp.usp.br

Annie Simões Rozestraten
E-mail: annie@usp.br

Recebido em 19 de abril de 2004
Aprovado em 13 de junho de 2004

 

 

1 “De A dúvida de Cézanne a O olho e o espírito, da Fenomenologia da percepção a O visível e o invisível, Merleau-Ponty não deixou de meditar sobre a visão. No quarto onde ele se abate subitamente numa tarde de maio de 1961, um livro aberto, ao qual ele não termina de se reportar, testemunha seu último trabalho: a Dióptrica. Até o fim, sua vida de filósofo alimenta a questão a que seus escritos trazem sempre novas respostas: o que é ver?”. Cf. Lefort (1974, p. 692).
2 A introdução de O olho e o espírito (1984a [1960]) parece-nos uma das críticas mais eloqüentes ao cientificismo reinante em nossa época. Aqui, apresentamos apenas a idéia que interessa mais de perto ao nosso trabalho.
3 Segundo Claude Lefort, toda a história da metafísica, de Platão a Husserl, é governada pela temática da visão, e a ela se filia Merleau-Ponty, ainda que no sentido de recuperar o olhar do corpo, aquém da intuitus mentis platônica ou da Wesenschau husserliana. Mas, se a questão do olhar permanece a questão central de seu pensamento até o fim, ela acaba se desdobrando para fora dos limites da metafísica do olhar, quando a pergunta de Merleau-Ponty pelo “O que é ver?” assume a sua dependência da linguagem que interroga. Nos termos de Lefort, “O que é ver? – a questão sustenta todas as outras até o fim; mas não porque se vê antes de falar, antes de pensar; antes, porque desse ver tem-se sempre falado no esquecimento de que se falava; que interrogá-lo é revelar a interrogação que já passa por ele, faz vibrar o olho e a voz ao mesmo tempo, acolher o enigma da expressão, aprender, enfim, que só há abertura por uma reabertura, que ver e saber se encontram no movimento sem termo do desejo” (1974, p. 705). Não podemos, aqui, debater essa questão, sem dúvida crucial. Além de apontá-la, nossa intenção é apenas enfatizar a centralidade da questão do olhar em toda a história da filosofia. A intenção do ensaio O olho e o espírito é justamente mostrar a reflexão da pintura através do olhar e corpo do pintor.
4 Para um cartesiano, no sentido estrito do termo, eu não vejo o outro, mas apenas sinais que me permitem inferir, por analogia com os sinais que são expressão de minha alma, que naquele corpo que vejo há também uma alma. O mesmo, portanto, com a linguagem, simples vestimenta sonora para fins de comunicação do pensamento (eu infiro o pensamento do outro através da analogia entre a sua linguagem e a minha, que me remete aos meus pensamentos e, conseqüentemente, aos seus). Com o que o cartesianismo esvaziou também a palavra de sentido, fazendo-o repousar num pensamento puro como fonte de significação, corolário do esvaziamento da expressividade do corpo e do mundo sensível, em geral.
5 Em O visível e o invisível (2000a [1964]), Merleau-Ponty fala da generalidade da experiência tátil, de que o olhar seria uma variação. O olhar apalpa, diz Merleau- Ponty para se contrapor à idéia de uma visão pura (intuitus mentis ou Wesenschau), mas trata-se da concepção do tátil enquanto “carne”, como veremos mais à frente, e não apenas contato físico com as coisas.
6 Merleau-Ponty não critica Descartes por afirmar a diferença entre percepção e expressão (através da linguagem ou da pintura), mas porque a diferença é de outra ordem. Trataremos dessa questão mais à frente.
7 “Cada ponto” (nota do autor).
8 “Visibilidade” (nota do autor).
9 “O Gênio Maligno assemelha-se a Deus, ao menos nisso que ele ultrapassa, como ele, o ser das figuras. Ele é contestação pelo fundo, mas Deus também será fundo, abismo; ele é Sob Ser à reflexão, mas prefigura o Sobre Ser que tomará o lugar – Falta e excesso, nos dois casos o ser simples do visível para o espírito é contestado” (1996, p.241).
10 “Descartes vai transformar a questão em enunciado negativo: reputar falso tudo o que se presta à dúvida – A dúvida é voluntária, livre, ela consiste em pensar como se tudo o que não é absolutamente, não fosse nada (...) Para Descartes, um filósofo é este que coloca a alternativa entre Ser e Nada – A dúvida é fazer como se todas as coisas nihil esse” (ibid., p.234).
11 Cézanne, em determinado período de sua obra, aproxima-se de uma maneira de tratar os sólidos e o espaço que depois foi assumida pelo cubismo. Ao reconhecer que o contorno das coisas pela linha não trazia a sua forma, experimentou fazê-lo através dos sólidos geométricos; mas, se estes eram capazes de trazer a solidez das coisas, estas pareciam rostos entre caniços, o espaço ficava demasiadamente largo para elas, que modulavam instáveis através da cor. Daí, então a tentativa de buscar a forma através da cor, que ao mesmo tempo individualiza e concretiza as coisas e o espaço (1984a {1960}, p.103).
12 Da mesma forma que, como diz Orlandi (1980), todos os problemas da linguagem são concêntricos para Merleau-Ponty, porque remetem à deflagração do Ser.
13 Por isso, “o esforço da pintura moderna tem consistido menos em escolher entre a linha e a cor, ou mesmo entre a figuração das coisas e a criação de sinais, do que em multiplicar os sistemas de equivalências, em quebrar a sua aderência ao envoltório das coisas” (1984a [1960], p.105).
14 “Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicações. Habituamo-nos a pensar que tudo isso existe necessariamente e é inabalável. A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual se instala o homem (...) É um mundo sem familiaridade, onde não se está bem, que impede toda efusão humana. Se formos ver outros pintores partindo dos quadros de Cézanne, uma descontração se produz, como após o luto as conversas reatadas mascaram esta novidade absoluta e aos vivos restitui-lhes a solidez” (Merleau-Ponty, 1984c [1948], pp.118-119).
15 “É este mundo primordial que Cézanne quer pintar e eis por que seus quadros dão a impressão da natureza à sua origem, enquanto que as fotografias das mesmas paisagens sugerem os trabalhos dos homens, suas comodidades, sua presença iminente. Cézanne nunca quis ‘pintar como um animal’, mas recolocar a inteligência, as idéias, as ciências, a perspectiva, a tradição em contato com o mundo natural que estão destinadas a compreender, confrontar com a natureza, como disse, as ciências ‘que dela vieram’” (ibid., pp.116-117).
16 “O tocar se toca imediatamente (‘bipolaridade’ do Tastwelt). A visão quebra esse imediato (o visível está à distância, fora dos limites do meu corpo) e restabelece a unidade por espelho, no mundo. Captação do corpo tátil pela imagem visual: Schilder: sinto no espelho o contato do meu cachimbo com a minha mão. Lugar do imaginário do ver: pelo ver e seus equivalentes táteis, inauguração de um interior e de um exterior e de suas trocas, de uma relação do ser com o que, entretanto, está fora para sempre...” (2000b, p. 439).
17 Cf. parágrafo 28 de Crisis (1976). Cf. também David Zahavi (1994), cujo ensaio pretende justamente recuperar a importância da noção de “corpo” na fenomenologia de Husserl e se contrapor à tradição que a vincula apenas à fenomenologia existencial. Entre outras passagens, citamos uma que parece encerrar em grande parte o projeto da filosofia merleau-pontyana: “Além disso, como Landgrebe observou, considerações de Husserl sobre cinestesia como uma condição de possibilidade para a experiência de objetos, implica uma reconsideração da relação entre afetividade e espontaneidade, e por fim, entre sensação e razão” (p. 68).
18 Na passagem, Merleau-Ponty discute a noção de imagem através da percepção do quadro (pintura), mas isso se aplica a todo percebido.
19 “Em princípio, esse modo de visão deveria conduzir o universo adulto também, o universo da ‘imanência’ não se aloja só na infância. Se ele é ‘infantil’, é apenas porque para restituir o universo adulto tal como ele é, o pintor ‘teria necessidade de um feixe de linhas a tal ponto misturado que não poderia mais se tratar de uma representação verdadeiramente elementar, e disso resultaria um obscurecimento que tornaria as coisas irreconhecíveis’” (Notes..., pp. 59-60).
20 É o que procura mostrar Didi-Huberman (1998) numa perspectiva merleaupontyana de análise da arte contemporânea, com implicações da psicanálise. Ainda que numa perspectiva mais antropológica, ele procura mostrar como a arte é “reflexiva”, isto é, que o mais simples objeto a ver, também comporta uma ausência anunciada ou sentido latente que nos olha ou faz pensar, criticando, assim, certa concepção minimalista da arte que supõe que a visão pode nos apresentar a coisa em sua simplicidade, despida de todo significado humano, presença bruta de sentido que se reduz à sua visão imediata, e que se expressa na tautologia “o que vejo é simplesmente o que vejo, nada mais”, um truísmo que expressa “uma vitória maníaca e miserável da linguagem sobre o olhar” (p. 39). A crença, ao contrário, diz Didi- Huberman, procura fechar a ausência anunciada no olhar através do discurso que fixa. Entre uma e outra, trata-se, na perspectiva de Merleau-Ponty, de habitar o inquietante do olhar, a abertura de sua dimensão de Ser, nas relações entre eu, o outro e o mundo.
21 Conforme análise de Merleau-Ponty sobre a cor: “Se exibíssemos todas as suas participações, perceberíamos que uma cor nua, e em geral, um visível, não é um pedaço de ser absolutamente duro, indivisível, oferecido inteiramente nu a uma visão que só poderia ser total ou nula, mas antes uma espécie de estreito entre horizontes exteriores e horizontes interiores sempre abertos, algo que vem tocar docemente, fazendo ressoar, à distância, diversas regiões do mundo colorido ou visível, certa diferenciação, uma modulação efêmera desse mundo, sendo, portanto, menos cor ou coisa, do que diferença entre as coisas e as cores, cristalização momentânea do ser colorido ou da visibilidade. Entre as cores e os pretensos visíveis, encontra-se o tecido que os duplica, sustenta, alimenta, e que não é coisa mas possibilidade, latência e carne das coisas” (ibid., pp.129-130).
22 Cf. Marilena Chauí (2002).
23 “Nossa ciência rejeitou tanto as justificações como as restrições de campo que Descartes lhe impunha. Os modelos que inventa, ela não pretende mais deduzi-los dos atributos de Deus. A profundidade do mundo existente e a do Deus insondável já não vêm forrar a vulgaridade do pensamento ‘tecnizado’. O desvio pela metafísica, que, apesar de tudo, Descartes fizera uma vez em sua vida, a ciência dispensa-se dele: ela parte daquilo que foi o seu ponto de chegada” (1984a [1960], p.100).
24 De forma análoga, o que mostra a perspectiva de Merleau-Ponty para uma Ética, “a decisão não é ex nihilo, não é de momento, sempre antecipada, porque somos tudo, tudo tem cumplicidade em nós. Não se decide fazer, mas deixar se fazer” (1996, p. 214). O que funda a moral na experiência de vida, em que comportamento e consciência se confundem (eu, o outro e o mundo sempre juntos), sem que se possa reduzir um ao outro. Ou seja, se a razão ou a consciência participa desde o princípio de nossos atos ou escolhas – e nesse sentido não há cegueira total –, ela não pode substituir a experiência, isto é, antecipar todas as conseqüências e sentidos do ato, nem abstrair de sua cumplicidade com o mundo e o outro.
25 “Sentir é sentir-se” (2000b [1957-1960], p. 439).