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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Heidegger e a linguagem: do acolhimento do ser ao acolhimento do outro

 

Heidegger and language: from the reception of being to the reception of the other

 

 

André Duarte

Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná - UFPR
CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto investiga as implicações éticas pós-metafísicas da concepção heideggeriana da linguagem, partindo de Ser e Tempo para, então, discutir as obras da maturidade de Heidegger, elaboradas nos anos 50. Organiza-se em torno de duas hipóteses complementares: em primeiro lugar, a de que os traços fundamentais da concepção heideggeriana madura da linguagem já se encontravam delineados em Ser e Tempo, a despeito de ainda não estarem plenamente desenvolvidos àquela época. A segunda hipótese é a de que o acolhimento do ser, que constitui o gesto e o impulso fundamental subjacentes à meditação heideggeriana sobre a linguagem, traz consigo implicações de caráter ético, pois permite pensar a possibilidade de um genuíno acolhimento do outro como outro. No período da ontologia fundamental, o acolhimento do ser próprio possibilita uma apropriação do dizer e da escuta que, por sua vez, torna possível o acolhimento do outro com quem coexisto no mundo. Nas obras posteriores, o acolhimento do ser depende da desconstrução da concepção metafísica do homem como animal racional e da linguagem como sistema proposicional lógico, em vista de uma meditação sobre a relação entre o ser dos mortais e o ser da linguagem. Argumento que essa meditação, por sua vez, permite a possibilidade de um ek-sistir "outro" e de uma "outra" relação com o próximo, inspiradas pela aceitação e afirmação da capacidade humana de experimentar a morte enquanto morte.

Palavras-chave: Heidegger, Linguagem, Ética pós-metafísica.


ABSTRACT

This text investigates the ethical implications of Heidegger's conception of language, starting with Being and Time and then analyzing his mature texts of the fifties. It develops itself around two interrelated hypothesis: the first one is that Heidegger's mature understanding of the essence of language was already defined in its major lines in Being and Time, although at that moment it had not yet received its full development. The second hypothesis is that the welcoming of Being that underlies and constitutes the core of Heidegger's meditation on the essence of language brings with itself intrinsic ethical implications, since it provides the possibility of a post-metaphysical welcoming of the other. In the period of the project of fundamental ontology, the appropriation of one's own being through authentic resolution provided the possibility of appropriating one's own speaking and hearing, which is a fundamental precondition to acknowledging and welcoming the other as other. In his later works, the welcoming of Being depends on a thorough deconstruction of the metaphysical conception of the human being as the rational animal, as well as of the traditional understanding of language as an enclosed system of logic propositions. That process of deconstruction aims towards a meditation concerning the essential relationship between the essence of language and the mortal essence of human beings. I shall argue that it is this essential relationship that provides the path towards the condition for a post-metaphysical ethical encountering and welcoming of the other as other, inspired by the acceptance and affirmation of one's own capacity to experience one's own death as death.

Keywords: Heidegger, Language, Post-metaphysical ethics.


 

 

Nós, violentos, nós duramos mais.
Mas quando, em qual das vidas, seremos
enfim abertos e acolhedores?

(Rilke)

 

A reflexão ontológica de Heidegger sobre a linguagem encontra-se presente em toda sua obra e, se é verdade que essa reflexão adquire cada vez maior importância em seu pensamento tardio, não se pode esquecer que, já desde Ser e Tempo, o tema da linguagem assumira um papel destacado. De Ser e Tempo até suas obras tardias, a consideração heideggeriana da linguagem gira em torno de um mesmo eixo, caracterizado pela crítica da linguagem entendida como um instrumento do qual o animal racional dispõe a fim de comunicar informações a seu respeito e sobre o estado de coisas do mundo. Além disso, a linguagem ontologicamente compreendida é pensada sempre a partir da consideração da abertura, seja a abertura (Erschlossenheit) propiciada pela apropriação silenciosa de si-mesmo, tal como Heidegger a concebeu em Ser e Tempo, seja a abertura (Offenheit)pensada como clareira do ser (Lichtung des Seins),na qual habitam pensadores e poetas - aqueles cujo dizer revela e mostra o que diz na medida de sua correspondência silenciosa com o ser, segundo os termos empregados por Heidegger na Carta sobre o Humanismo.

Tradicionalmente, pensa-se a linguagem como veículo da expressão de algo interno ao homem, isto é, como a ponte que vincula o dentro e o fora do homem, de tal forma que o falar é pensado como uma atividade que acontece por meio do homem. Segundo a concepção ontológica da linguagem, não é a linguagem que pertence ao homem, mas, antes, é o próprio homem, concebido ontologicamente como o ser-para-a-morte resoluto (primeiro Heidegger) ou como o mortal que corresponde à solicitação silenciosa do ser (Heidegger tardio), que pertence à linguagem. Em linhas gerais, trata-se da diferença entre pensar o homem como o ente que "tem" linguagem, no sentido de ser ele possuidor da capacidade de falar, e a concepção ontológica que pensa o homem como "sendo" por meio da linguagem, concepção que permite entender a linguagem não apenas como veículo de transmissão de informações, mas como o modo no qual se manifesta o próprio existir humano.

Este texto investiga as implicações éticas pós-metafísicas da concepção heideggeriana da linguagem, partindo de Ser e Tempo para, então, discutir sua concepção madura a respeito do assunto, publicada nos anos 50. Dado o recorte proposto nessa análise, inúmeros aspectos da concepção heideggeriana da linguagem como logos e da verdade como desvelamento, bem como as críticas contemporâneas orientadas pela filosofia analítica da linguagem, não serão abordados ou serão apenas referidos ao longo do texto.1 Esta discussão organiza-se em torno de duas hipóteses complementares. Em primeiro lugar, a de que os traços fundamentais da concepção heideggeriana da linguagem já se encontravam delineados em Ser e Tempo, a despeito de ainda não estarem plenamente desenvolvidos àquela época. A despeito das transformações pelas quais o pensamento de Heidegger passou ao longo dos anos 30, penso que não há uma ruptura fundamental entre o que o filósofo pôde elaborar em sua primeira obra e as teses que somente seriam formuladas em seus textos tardios sobre o ser da linguagem, nos quais esta assume uma relevância e uma centralidade sem precedentes. Seria equivocado pensar que a questão da linguagem fosse irrelevante ou de menor importância em Ser e Tempo, como se as teses do parágrafo 34 não fossem decisivas para a compreensão de sua concepção madura a respeito do ser da linguagem. Já então a abordagem heideggeriana da linguagem formulava as bases gerais para a crítica posterior da concepção ôntica da linguagem como mero instrumento de comunicação, bem como para a crítica das concepções metafísicas ou humanistas a respeito do ser do humano, tarefas determinantes para a descoberta de um vínculo mais originário entre o ser, o ser do ser-aí e o ser da linguagem. A segunda hipótese que orienta este texto é a de que o acolhimento do ser, que constitui o gesto e o impulso fundamental subjacentes à meditação heideggeriana tardia sobre a linguagem, traz consigo implicações de caráter ético, pois permite pensar a possibilidade de um genuíno acolhimento do outro. No período da ontologia fundamental, o acolhimento do ser próprio possibilita uma apropriação do dizer e da escuta que, por sua vez, torna possível o acolhimento do outro com quem coexisto no mundo.2 Nas obras posteriores, o acolhimento do ser permitiu aprofundar a desconstrução da concepção metafísica do homem como animal racional e da linguagem como sistema proposicional lógico, em vista de uma meditação sobre a relação entre o ser dos mortais e o ser da linguagem.

Gostaria de sugerir e investigar neste texto a hipótese de que a consideração de tal relação pode permitir a possibilidade de um ek-sistir "outro" e de uma "outra" relação com o próximo, inspiradas pela aceitação e afirmação do dom ou da capacidade de experimentar a morte enquanto morte. Para explicar como e em que medida o acolhimento do ser - que se encontra no cerne da concepção ontológica da linguagem, tanto em Ser e Tempo como nas obras tardias - possui conseqüências éticas relativas à possibilidade do acolhimento pós-metafísico do outro, será necessário elucidar como pode dar-se um tal acolhimento nas duas fases do seu pensamento, a partir da exploração de implicações não desenvolvidas ou tematizadas por Heidegger. Tomando como ponto de partida as reflexões de Heidegger sobre a linguagem em Ser e Tempo, esta hipótese interpretativa afirma a continuidade e a radicalização do caráter ético da concepção heideggeriana da linguagem em suas reflexões tardias. Essa hipótese, que permitiria relacionar o acolhimento do ser ao acolhimento do outro, está diretamente relacionada à desconstrução da figura canônica da subjetividade, por um lado, bem como à reversão da concepção tradicional da relação entre o homem e a linguagem, por outro. A despeito de não ter sido tematizada expressamente pelo filósofo, que não se preocupou em desenvolver esse aspecto de seu questionamento ontológico, a dimensão ética da abordagem heideggeriana da linguagem permanece implicada e emaranhada naquilo mesmo que Heidegger disse expressamente a respeito do ser da linguagem e da possibilidade humana de falar e escutar. Não se trata de impor arbitrariamente ao pensamento de Heidegger conclusões que ele próprio não formulou, mas de propor um questionamento da abordagem heideggeriana da linguagem circunstanciado pela questão ética pós-metafísica. Se o pensamento do ser pôde ser considerado por Heidegger como uma ética original, como ele o afirma na Carta sobre o Humanismo,penso que não seria inadequado revelar as implicações éticas da sua reavaliação da relação ontológica entre a linguagem e o ser mortal dos humanos. Se Heidegger não é um pensador da ética como filosofia primeira, tampouco é um pensador intrinsecamente avesso a ela, como tantas vezes já se afirmou (Bernstein 1986, p. 219). Por outro lado, creio que Jean-Luc Nancy está correto quando afirma que "apenas aqueles que leram Heidegger às cegas, ou que não o leram, podem pensá-lo como estranho às preocupações éticas" (Nancy 2002, p. 65).

***

Heidegger dedica o parágrafo 34 de Ser e Tempo à tematização da concepção ontológica da linguagem no âmbito de seu projeto de uma ontologia fundamental. Uma das principais dificuldades para o entendimento desse parágrafo diz respeito à inusitada distinção proposta pelo filósofo entre discurso (Rede) e linguagem (Sprache). É com base nela que se desenvolve tanto a sua crítica das concepções tradicionais do homem como animal que fala ou como animal racional, bem como a sua crítica das concepções ônticas da linguagem propostas pela lingüística e pelas filosofias da linguagem, que a concebem como conjunto sistemático de signos determinados logicamente por meio dos quais se dá a comunicação de mensagens. Tais definições a respeito do humano e da linguagem não são falsas, elas apenas encobrem o caráter mais originário do discurso enquanto existencial constitutivo da abertura do ser-aí, obscurecendo, deste modo, o vínculo ontológico entre o ser do ente que somos e o ser da própria linguagem. Em Ser e Tempo, Heidegger já argumenta que a base fundamental da linguagem não se encontra na lógica nem na gramática, e muito menos nas potencialidades do aparelho fonador do animal racional, mas radica na constituição existencial do ser-aí, isto é, na abertura do ser-no-mundo.3 Heidegger define a abertura que somos como constituída de maneira co-originária pela compreensão, disposição e discurso, cabendo a este último existencial o caráter de fundamento ontológico da linguagem. Se o discurso é abordado em Ser e Tempo somente após a discussão das demais determinações existenciais da abertura, isto se dá na medida em que ele constitui o momento final e crucial daquelas análises. Sem sobrepor-se hierarquicamente aos existenciais da compreensão e disposição, o discurso é a instância ontológica de amarração da análise existen-cial da abertura, de sorte que sua importância na economia geral da obra excede em muito os limites do parágrafo 34. Vejamos por que.

Em seu curso de 1925, Prolegômenos à história do conceito de tempo, Heidegger já afirmara que "há linguagem porque há discurso" (Heidegger 1988b, GA 20, p. 365); em Ser e Tempo, dirá que "a linguagem é o pronunciamento do discurso" (Heidegger 1988a, p. 219; 1986, p. 161). Qual o significado dessas duas afirmações? Com a primeira afirmação, que nada tem de tautológica, Heidegger quer dizer que o ser-aí somente se expressa lingüisticamente porque a abertura que ele é garante tal possibilidade. Evidentemente, não se trata de um pressuposto ontológico que tivesse de ser aceito à maneira de um axioma do qual se desprenderiam determinadas conseqüências teóricas, procedimento que é terminantemente recusado pela estrutura hermenêutica do questionamento heideggeriano. Em outras palavras, isto não quer dizer que o discurso seja compreendido como uma faculdade ou propriedade (Eigenschaft)humana que permitiria a enunciação lingüística, pois Heidegger não localiza a origem da linguagem no interior do ente que somos nem a restringe apenas às suas funções apofânticas. Além disso, o discurso é a instância ontológica que possibilita a expressão ôntica em diversas línguas históricas, pois articula um todo de significações compartilhadas nas ocupações e preocupações mundanas do ser-aí. Por isto, comunicar algo lingüisticamente não é transmitir vivências privadas ou informações do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito, mas partilhar sentidos com outros, o que se deixa entrever no próprio termo alemão Mit-teilung. Comunicar é um ato complexo que não se reduz apenas ao pronunciamento de enunciados apofânticos entre sujeitos isolados entre si, tanto mais que mesmo tal possibilidade tem de ser entendida como derivada do fenômeno originário da coexistência ocupada e preocupada no mundo comum: "A comunicação tem de ser compreendida a partir da estrutura do ser-aí como ser com o outro" (Heidegger 1988b, pp. 362-363), de tal modo que a análise ontológica da linguagem tem de ser, simultaneamente, uma análise da coexistência.

Ao distinguir entre linguagem e discurso, e localizar no discurso a condição ontológica de toda linguagem ôntica, Heidegger confere a esse existencial um papel decisivo no âmbito da analítica existencial: o de ser a "articulação `significativa' da compreensibilidade do ser-no-mundo a que pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num determinado modo da convivência ocupacional" (Heidegger 1988a, p. 220; 1986, p. 161). Esse é o aspecto fundamental da questão, do qual derivam todas as demais conseqüências teóricas da concepção heideggeriana da linguagem em Ser e Tempo. Afinal, apenas porque o discurso é a articulação da significância (Bedeutsamkeit)pode a coexistência ocupacional ser mediada pela comunicação. Além disso, ao afirmar que a base existencial da linguagem é o discurso, definindo-o como "articulação em significações da compreensibilidade inserida na disposição do ser-no-mundo" (Heidegger 1988a, p. 221; 1986, p. 162), Heidegger também anuncia que a linguagem não pode ser corretamente compreendida em seu ser por meio de análises puramente formais ou lógicas - como sistema de signos concebidos exclusivamente como objetos subsistentes ou simplesmente dados, isto é, como significantes puros aos quais se acrescentariam, posteriormente, significações. Na medida em que a linguagem está fundamentalmente relacionada ao fenômeno ontológico primário do ser-no-mundoocupado e preocupado com os outros, o que se dá é sempre o contrário, pois é apenas porque o todo das relações de significância já se encontra aberto à compreensão disposta do ser-aí coexistente que algo como o emprego de palavras na comunicação lingüística se faz possível. Por isto, Heidegger pode afirmar que "a totalidade significativa da compreensibilidade vem à palavra. Das significações brotam palavras. Estas, porém, não são coisas-palavras dotadas de significados" (Heidegger 1988a, p. 219; 1986, p. 161). Quer dizer, a origem existencial da linguagem é a significância, a trama total das remissões significativas sempre já compreendida em uma certa disposição e interpretação.

Finalmente, enquanto articulação da compreensibilidade do todo da significância já aberto ao ser-aí em tonalidades afetivas, antecipações compreensivas de sentido e interpretações particularizadas, o discurso propicia tanto a possibilidade da enunciação lingüística quanto a possibilidade correspondente da compreensão disposta operada na escuta e no silêncio. A conexão entre o discurso, a compreensão e a compreensibilidade do ser-aí se dá a partir das possibilidades existenciais da escuta e do silêncio, as quais se enraízam no existencial do discurso. O ouvir, isto é, a percepção acústica, está fundado no escutar silencioso e em sua compreensão, e cabe recordar que somente quem se cala pode escutar tanto a si quanto ao outro, bem como ao chamado silencioso do ser em seus envios epocais. Do mesmo modo que falar não é emitir sons vocais aos quais se agregam posteriormente significados, escutar também não é simplesmente ouvir meros ruídos sonoros aos quais se atribuem sentidos ulteriores, do mesmo modo que silenciar, por sua vez, também não se confunde com o mero emudecer, em termos da ausência de pronunciamentos sonoros, pois tanto o falar quanto o silenciar estão previamente enraizados na pré-compreensão de ser do ser-no-mundo coexistente. Todas estas possibilidades existenciais constitutivas da abertura - compreensão, disposição, enunciação, escuta e silêncio - são moduláveis de acordo com os modo fundamentais de ser do ser-aí, designados como propriedade (Eigentlichkeit)ou impropriedade (Uneigentlichkeit)da existência. Como se sabe, em Ser e Tempo Heidegger dedica boa parte das suas considerações sobre a linguagem à análise do modo impróprio em que o ser-aí se detém na maioria das vezes, tendo em vista elucidar como se articulam a fala e a escuta no âmbito da cotidianidade decadente, totalmente absorta no trato das ocupações e preocupações continuamente permeadas pela interpretação pública do todo dos entes.

No parágrafo 35, Heidegger caracteriza o falatório (Gerede)como uma possibilidade do discurso que determina a interpretação e a comunicação cotidiana do ser-aí, as quais, por sua vez, constituem o modo de ser em que ele se detém a maior parte das vezes e em primeira aproximação. O falatório regula o que e como se fala cotidianamente, porque define e circunscreve não apenas a compreensão de ser vaga e mediana em que o ser-aí já sempre se move, mas também suas disposições possíveis. O falatório regula e perfaz nossa escuta, fala e compreensão cotidianas do mundo, de nós mesmos e dos outros com quem convivemos, limitando e obstruindo de maneira autoritária, porém insidiosa, a possibilidade de uma interpretação apropriadora de nossas possibilidades mundanas. A escuta, a comunicação e a compreensão cotidianas fecham, deste modo, o ser do que se escuta, se compreende e se comunica. Em outras palavras, sendo um falar por mero falar, o falatório esconde e oculta aquilo de que se fala, ao qual também corresponde um escutar que não atenta verdadeiramente ao que se escutou. O falatório é, portanto, o contrário de uma apropriação originária do que se fala; é o "repetir e passar adiante a fala" sem um esforço genuíno por realmente dizer aquilo sobre o que se fala: trata-se de um falar contínuo sem nada dizer propriamente, um falar sem conteúdo original, isto é, um falar cujo conteúdo é o já dito e repetido de inúmeras formas, a ponto de se tornar indiferente a quem escuta. Daí a "falta de solidez" do que assim é dito, escrito, escutado ou lido. Nesse sentido, o falatório não é diferente da escrita que nada diz que realmente valha a pena dizer, isto é, que só diz aquilo que bem poderia não dizer. O falatório e a escrivinhação exprimem, assim, a compreensão mediana que tudo compreende sem nada compreender propriamente, trancando as possibilidades de um dizer, de um escrever, de um ler e de um escutar apropriados, atentos e originais. Torna-se, então, quase impossível discernir entre o que foi conquistado à custa de esforço original e o que se apreendeu de maneira curiosa e ambígua, a partir do que já se falava e escrevia a respeito. Por isto, Heidegger caracteriza o falatório como a modulação da abertura em que o discurso não mais abre, mas fecha e encobre aquilo de que se fala, definindo-o rigorosamente pela "abstenção de retornar ao solo do que se diz" (Heidegger 1988a, p. 229; 1986, p. 169). O falatório e a escrivinhação não são o mesmo que o erro ou o engano e também não podem ser pensados como mera ocultação consciente do que se diz; como se trata de um dizer que nada revela, ambos os fenômenos têm de ser pensados em termos de um modo privativo da abertura que, ao mostrar e explicitar, encobre a coisa sobre a qual se fala, a qual jamais é apropriada pelo dizer e escrever que apenas repetem o já dito e já escrito. O falatório e a escrivinhação não são o contrário da abertura, mas a abertura no modo do fechamento, da ocultação e do nivelamento, constituindo também o desarraigamento da compreensão do ser-aí. Desarraigamento quer dizer a perda de uma relação primeira e originária com o mundo, com os outros e consigo mesmo, implicando-se aí a superficialidade e banalidade do que se diz e escreve, bem como a inconstância osciladora de quem diz, sempre às voltas com o turbilhão das agitações contemporâneas: "como ser-no-mundo, o ser-aí que se mantém no falatório rasgou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e genuínas com o mundo, com a coexistência e com o próprio ser-em" (Heidegger 1988a, p. 230; 1986, p. 170, tradução modificada). Por fim, Heidegger nos lembra que, em se tratando de um fenômeno existencialmente constitutivo do ser do ser-aí, o falatório não pode ser absolutamente suprimido, o que, por sua vez, não implica a impossibilidade de uma apropriação do dizer, do escutar, do silenciar e do compreender; por sua vez, esta possibilidade se opera sempre a partir e contra o primado da interpretação pública e cotidiana do todo dos entes em que o ser-aí já sempre se encontra: "O ser-aí nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ele cresce na maioria das vezes. Toda compreensão, interpretação, ou comunicação, toda redescoberta e nova apropriação genuínas se cumprem nela, a partir dela e contra ela" (Heidegger 1988a, p. 229; 1986, p. 169, tradução modificada).

É justamente com respeito à possibilidade existenciária da apropriação da fala e da compreensão que surge um aspecto central e permanente do pensamento heideggeriano, a atenção filosófica concedida ao silêncio e à escuta, a qual encontra em Rilke um paralelo poético.4 É em torno dessa atenção privilegiada aos fenômenos da escuta e do silêncio que se entreabre a dimensão ética do questionamento ontológico heideggeriano, tanto no período da ontologia fundamental quanto posteriormente. A possibilidade de uma interpretação ética de Ser e Tempo se deixa entrever a partir de afirmações como: "ser-com se forma (ausbildet)no escutar recíproco de um e outro" e "como ser-no-mundo articulado em compreensões com os outros, o ser-aí `obedece' na escuta à coexistência e a si mesmo e pertence a essa obediência" (Heidegger 1988a, p. 222; 1986, p. 163, tradução modificada). É na escuta em sentido próprio, que pressupõe o silêncio atencioso, que o ser-aí se manifesta como genuinamente aberto a seu ser mais próprio, bem como se abre de maneira mais própria ao outro, compreendendo-o não como um ente meramente presente, mas enquanto o outro ser-aí que ele é. Revertendo o primado epistemológico tradicionalmente concedido ao enunciado na análise da linguagem, Heidegger chega mesmo a afirmar que é no silêncio que se articula melhor e mais originariamente a compreensibilidade do ser-aí, de sorte que é dele que "provém o autêntico poder ouvir e a convivência transparente" (Heidegger 1988a, p. 224; 1986, p. 165, tradução modificada), não plenamente mediada e filtrada pelos cânones da interpretação pública do todo do ente, que predefine como devo responder à solicitação e à presença do outro. É na escuta atenta e silenciosa ao outro do si-impessoal que todos trazemos junto a nós mesmos, bem como é na escuta apropriada ao outro da coexistência cotidiana que o ser-aí dá a compreender o que realmente importa na relação consigo e com o outro. Na conferência intitulada "O caminho para a linguagem", dos anos 50, Heidegger afirmará que falar não é o mesmo que dizer, pois se pode falar muito sem nada dizer; por outro lado, ao calar-se e silenciar, alguém pode dizer muito. Dizer significa mostrar, deixar aparecer, deixar ver e deixar ouvir. Falar com os outros significa, portanto, dizer algo de algo conjuntamente, mostrar algo reciprocamente, trazer algo ao resplendor da aparência. É a compreensão originada da apropriação de si mesmo na escuta ao chamado silencioso da consciência que abafa o ruído incessante do falatório dispersivo e infundado em que estamos imersos cotidianamente, garantindo, assim, que o ser-aí possa escutar e dizer algo a si e ao outro a partir "de uma abertura própria e rica de si mesmo".

Ao definir o discurso como a estrutura ontológica constitutiva da abertura do ser-no-mundo com os outros, possibilitando tanto a comunicação lingüística quanto a compreensão pré-lingüística articulada na escuta silenciosa, Heidegger não apenas desmonta a ficção moderna do sujeito solipsista que capta em sua consciência significações dispersas do mundo exterior e as retransmite a outros sujeitos isolados e fechados em si mesmos, mas recusa também a concepção da linguagem como mero veículo da transmissão de informações por meio de representações. Questiona-se, assim, a prioridade tradicionalmente concedida às análises epistemológico-formais da linguagem, bem como a separação entre homem, mundo e linguagem. Enquanto articulação da compreensibilidade do ser-aí, o discurso já está na base de toda interpretação e de toda proposição, razão pela qual, como afirma Michael Gelven, "as sentenças são apenas a expressão formal do modo existencial por meio do qual o Dasein se relaciona com o mundo e, enquanto tal, são derivadas e não carregam consigo a fundação da comunicação humana" (Gelven 1989, p. 104). Também por isto, pensa Heidegger, a verdade não reside na proposição, mas sim na base existencial sobre a qual se constroem as proposições, isto é, na verdade existencial como alétheia. É evidente que não se trata de recusar a possibilidade das análises formais da linguagem, mas de estabelecer uma ordem de prioridade entre as abordagens teórico-epistemológicas, que descontextualizam o fenômeno lingüístico tal como ele se manifesta na existência cotidiana do ser-aí, e, por outro lado, a análise existencial-ontológica da linguagem, em vista da qual a análise proposicional é concebida como derivada em relação ao fenômeno fundamental do ser-no-mundo que compartilha uma totalidade significativa com outros. O pressuposto fundamental destas considerações é o de que qualquer análise filosófica da linguagem pressupõe uma análise existencial do ser-aí, pois "se a linguagem é uma possibilidade ontológica do ser-aí, então suas estruturas fundamentais devem poder se tornar evidentes a partir da constituição do ser-aí, e, deste modo, o a priori das estruturas do ser-aí tem de estar subjacente à ciência da linguagem" (Heidegger 1988b, p. 361). Isto é o mesmo que afirmar que a "própria linguagem tem o modo de ser do ser-aí" (Heidegger 1988b, p. 373), pressuposto básico da abordagem heideggeriana da linguagem no período do projeto da ontologia fundamental.

É exatamente esse pressuposto fundamental que se transformará nas reflexões tardias de Heidegger sobre o ser da linguagem, em função da redefinição do modo como ele pensou a relação entre o ser do ser-aí e o ser enquanto tal (Sein überhaupt).Se no período da ontologia fundamental a análise da linguagem se inseria no âmbito da analítica existencial, que desvelava o caráter de abertura do ser-aí em seu comportar-se para com o próprio ser, após a viragem (Kehre) o ser-aí será pensado como o ente extático ao qual corresponde a guarda protetora do aberto da clareira do ser, na qual ele já se encontra lançado; tal proteção se dá agora por meio do cultivo do pensamento essenciale da linguagem poético-meditativa, não objetificada ou objetificante, não calculadora e não representacional. Segundo a formulação de Françoise Dastur, o questionamento do ser em sua temporalidade deixa de ser perseguido na perspectiva "transcendental-horizontal de um sentido do ser que se temporalizaria numa temporalidade ekstática do Dasein" para ser desenvolvido, a partir de agora, na perspectiva "aletheiológica-eksistencial de uma verdade do ser na qual o Dasein se encontra e à qual tem de corresponder" (Dastur 1997, p. 126). Ou seja, após a viragem, Heidegger deslocou a ênfase de sua anterior concepção da existência (Eksistenz)enquanto abertura manifesta no comportar-se do ser-aí com o próprio ser para concebê-la, agora, enquanto ek-sistência (Ek-sistenz), como correspondência para com o aberto do ser enquanto tal. Como anteriormente, a linguagem não será pensada como uma faculdade ou capacidade humana entre outras; porém, em vez de afirmar que a linguagem deve ter o mesmo modo de ser do ser-aí, agora Heidegger diz que pensar a essência da linguagem é pensar a essência do humano, conduzindo o homem ao lugar da sua essência, isto é, ao "recolhimento no acontecimento-apropriador" (Versamlung in das Ereignis; Heidegger 1959, p. 12). Surge, então, a questão da determinação da relação entre ser, pensamento meditativo e linguagem, problema que não se encontrava presente em Ser e Tempo e que permitirá a Heidegger aprofundar sua concepção ontológica da linguagem sem, no entanto, desviá-la fundamentalmente das bases ontológicas já anteriormente conquistadas. Assim, persistirão nas suas análises tardias sobre o ser da linguagem o primado ontológico já concedido anteriormente à escuta e ao silêncio, a recusa da concepção da linguagem como mero veículo da transmissão de informações e a crítica da definição do humano como animal racional dotado da faculdade da fala, elementos fundamentais para uma consideração pós-metafísica da ética.

Na Carta sobre o Humanismo, texto no qual Heidegger dá testemunho público da viragem por que passara seu pensamento ao longo dos anos 30 e início dos anos 40, ele afirma que o pensamento perfaz a relação do ser para com a essência do homem; isto é o mesmo que afirmar que é no pensamento meditativo, não calculador, que o ser vem à linguagem, a qual é, a partir de agora, concebida como a casa do ser em que habitam os mortais. Compreender a linguagem como a casa do ser, isto é, pensar a linguagem em sua essência, que em si mesma nada tem de lingüístico, é pensar a linguagem como aquilo que acontece essencialmente (west) na proximidade velada entre homem-ser. Se a terminologia empregada em Ser e Tempo já apresentava muitas dificuldades e estranhezas, aquela empregada nos textos posteriores é ainda mais estranha e dá margem a muitos mal-entendidos, tal como o de que o filósofo teria substituído os conceitos filosóficos pelo emprego idiossincrático de metáforas de duvidoso valor estético. De fato, observa-se um afastamento com relação aos conceitos e problemas legados pela tradição filosófica, mas tal afastamento é ele mesmo filosoficamente medido, isto é, dá-se por motivos filosóficos e não tem nada a ver com o emprego de metáforas, pois não se trata aí de um pensamento que se valha de representações. Assim, afirmar que a linguagem é a casa do ser não pode implicar nenhuma representação de objeto, não pode nos levar a pensar em qualquer casa concreta, em qualquer habitação já dada na qual se poderia alojar o ser, que tampouco é um conceito genérico ou universal. A afirmação heideggeriana de que a linguagem é a casa do ser concerne à essência da linguagem e não intenta produzir um conceito acerca da essência da linguagem. A respeito da essência da linguagem, só se podem encontrar indícios ou acenos (Winke) que a manifestam de maneira enigmática e não signos ou conceitos que possam remetê-la a um significado já previamente estabelecido e fixado pela tradição.

Deste modo, para poder começar a pensar a linguagem de maneira meditativa, será preciso desacostumar-se de apenas ouvir e prestar ouvidos àquilo que já se sabia de antemão; será preciso expor-se a um domínio estranho e não pode haver experiência em sentido verdadeiro senão nessa exposição ao estranho. Fazer ou sofrer uma experiência com a linguagem não é o mesmo que obter conhecimento científico sobre ela, tomando-a como mais um objeto delimitado do qual se possa dispor ou manipular à vontade. O conhecimento assim obtido sobre a linguagem não é incorreto nem impossível, ele apenas não se abre à experiência do pensamento que interroga o ser da linguagem, transformando-a em mais um item do fundo de reserva (Bestand)à disposição dos mais variados agenciamentos tecnológicos. Para Heidegger, só é possível estar em casa no mundo moderno técnico-científico por meio de um pensamento e de uma linguagem do estranhamento, os quais reconheçam que nosso pensamento calculador e nossa linguagem mais familiar, cotidiana e imediatamente compreensível, a linguagem da prestação de contas, já não fazem senão consolidar o "esquecimento do esquecimento do ser". Apenas um outro pensamento e uma outra linguagem poderiam nos situar e esclarecer a respeito de nossa contemporânea ausência de pátria (Heimatlosigkeit), isto é, de pensamento e de linguagem. Finalmente, a linguagem essencial e o pensamento poético-meditativo são intrinsecamente estranhos (Unheimlich),pois não se reduzem à prestação de informações sobre os entes, não procuram resolver nada nem dizer nada de importante para os negócios humanos, não pretendem causar nenhum efeito e, assim, também escapam a toda justificação teórica; tal pensamento e tal linguagem estranhos apenas tentam experimentar e acolher o simples do acontecimento-apropriativo (Ereignis) do ser. Para aceder à experiência de um pensamento e linguagem convenientes à escuta do apelo do ser (Zuspruch), é preciso, portanto, superar a compreensão e o emprego técnicos do pensar, a fim de trazer à aparência o que nunca aparece, o que não é da ordem do ente, isto é, a clareira aberta e sem nome em que tudo se dá, assim como o próprio dar-se do que é. Tal pensamento em que o ser vem à linguagem não está nunca a serviço do agir prático ou do fazer, não é nunca uma forma de práxis ou de poiésis, nem pertence ao campo da teoria e do conhecimento, pois não produz efeitos nem causa nada, mas consiste em corresponder ao apelo do próprio ser. Trata-se, portanto, de um pensamento e de uma linguagem que operam o descentramento radical da subjetividade e a superação de seus poderes de objetivação representacional, preparando, assim, o caminho para a experiência da verdade epocal do ser doador que tudo possibilita. Em síntese, a ação do pensamento consiste em trazer o ser à linguagem, mas tal ação apenas se dá na medida em que o próprio pensamento se expõe ao apelo do ser, correspondendo ao ser quando diz e pensa sua verdade epocal. Pensar o ser é escutar não apenas o dizer por meio do qual os homens do presente intercambiam suas informações e dados mais importantes, mas também, e sobretudo, escutar o apelo silencioso de uma linguagem que nada comunica e que não se encontra expressa em nenhum lugar deste mundo, que se torna cada vez mais i-mundo. A meditação heideggeriana sobre a essência da linguagem é uma crítica do presente enquanto época metafísica da técnica que fecha seus ouvidos para o ser da linguagem; simultaneamente, é um pôr-se à disposição da possibilidade epocal de uma outra relação lingüística com o ser, esquecido em sua retração constitutiva.

Pensada em sua essência, a linguagem não é uma mera capacidade que especifica o animal humano e o capacita a comunicar mensagens, mas é o próprio abrigo (Behausung) da essência humana, é a morada ou o lar em que habita o ek-sistente, o ente aberto à verdade epocal do ser. Do mesmo modo como o homem não é pensado como um ente privilegiado por ser capaz de calcular, manipular e dominar o todo dos entes, mas pelo fato de ser o único exposto ao mistério da entrada em presença e desaparição dos entes, também a linguagem só pode ser um veículo de comunicação porque, pensada essencialmente, ela é um dizer que mostra. Heidegger designa agora o ser da linguagem como a saga(die Sage), termo que não deve ser pensado como a enunciação de qualquer mensagem particular, mas sim no sentido especial da capacidade indicativa ou mostradora da própria linguagem, isto é, enquanto a mostração (die Zeige) que garante todo mostrar: "O essenciante da linguagem é a saga enquanto a mostração" ("Das Wesende der Sprache ist die Sage als die Zeige"; Heidegger 1959, p. 254). O mostrar da mostração, que constitui o ser da linguagem enquanto saga, não é uma atividade humana, não está à disposição dos humanos. Antes, os humanos podem elaborar enunciados que mostram apenas por que a própria linguagem é mostradora. O mostrar é sempre um deixar mostrar-se (Sichzeigenlassen) do que aparece ou desaparece, do que vem ou não vem à presença e à aparência no dizer que mostra e indica. Como mostração, a linguagem fala na medida em que abarca toda a "dimensão do que se apresenta" (Gegenden des Anwesens) e, a partir daí, deixa que algo se apresente ao aparecer ou desaparecer na clareira epocal do ser. Do mesmo modo, escutamos a linguagem quando deixamos que diga o seu ser mostrador-revelador; escutar a linguagem em seu caráter mostrador mais próprio é sempre um deixar-se dizer (Sichsagenlassen), um deixar-se perpassar pelo poder revelador silencioso da linguagem, pois só então será possível um dizer significativo, um falar que mostre e que não apenas reproduza e passe adiante o que já sempre se disse. O autêntico falar que diz algo significativo só pode fazê-lo se já se encontrar previamente aberto e perpassado pela escuta do caráter mostrador da linguagem, isto é, na medida em que deixa dizer o som do silêncio (das Geläute der Stille) ou o rio do silêncio (Strom der Stille) que nada exprimem, mas que possibilitam toda expressão, tanto a que revela quanto a que oculta. A saga, na medida em que a escutamos, é o que nos encaminha, o que nos põe a caminho do falar da linguagem em sentido mais próprio e revelador. O poeta e o pensador do presente não escutam apenas o que se diz no mundo da técnica, escutam, sobretudo, o que possibilita todo dizer e escutar, inclusive o tecnológico. A saga, ao liberar a presença para que o ente se apresente e ao conduzir o ausente para sua ausência, é o que "perpassa e estrutura" (durchwaltet und fügt) o "espaço aberto da clareira" (Freie der Lichtung) em que todo vir à presença e aparecer, assim como todo ir à ausência e desaparecer, têm de entrar para que sejam o que são e como o são; é este entrar no aberto da clareira que permite que se fale do que assim vem à aparência ou desaparece. Heidegger pensa o apropriar (Ereignen) como o que é próprio a tudo aquilo que se apresenta ou se ausenta na mostração da saga. Esse apropriar que se encontra ativo no mostrar da saga é o evento-apropriador (Ereignis) enquanto tal, o qual não pode ser representado como um acontecimento ôntico, nem esclarecido por referência a qualquer outra coisa que lhe fosse anterior; o evento-apropriador só pode ser experimentado como o que consente (das Gewährende), como a doação que garante que algo seja (Es gibt). Portanto, é o evento-apropriador que concede aos mortais que somos a morada em sua essência, capacitando-nos a ser os falantes que somos. Do mesmo modo, também o poder-ouvir a saga silenciosa da linguagem, o pertencer de maneira obediente a ela, próprio de nossa essência, repousa no evento-apropriador que unifica a essência do homem, pois garante que o humano seja aquele que fala a partir da escuta da saga mostradora da linguagem. O dizer dos mortais, seu pronunciar palavra, é sempre já um corresponder (Entsprechen) próprio ou impróprio à saga silenciosa da linguagem. Não existe algo como uma fala natural de uma suposta natureza humana já dada, pois toda fala humana natural é uma resposta epocal a um destinamento da apropriação que reúne a saga silenciosa pela qual a linguagem fala e mostra o ente na totalidade em cada época. Veremos adiante que a consideração heideggeriana dos homens como os que devem se transformar nos mortais que eles propriamente são está na base da qualificação da escuta e do dizer propriamente éticos.

Desta maneira, o homem não apenas "tem" linguagem e mundo, como se afirma nas definições antropológicas tradicionais, mas "é" no mundo e "na" linguagem. Conseqüentemente, apenas se superarmos a representação do homem como animal racional ou como animal dotado da fala poderemos pensar adequadamente a co-pertinência essencial entre homem, ser, linguagem e mundo. Pensar essa co-pertinência não significa desprestigiar o humano, como tantas vezes já se afirmou erroneamente; pensar o contrário do Humanismo metafísico não significa entregar-se ao inumano, mas lançar uma nova luz sobre a questão da essência ou da humanitas do homem. Na designação heideggeriana do humano como ser-o-aí, na Carta sobre o Humanismo,o "aí", a abertura, é agora pensada como a proximidade essencial "do" ser em relação ao homem: "O homem é o vizinho do Ser" ("Der Mensch ist der Nachbar des Seins"; Heidegger 1964, p. 108). Ser-o-aí significa ser a abertura, ser na proximidade velada do ser doador, de sua clareira, na qual o homem é projetado como aberto aos envios epocais do ser. O pensamento da verdade do ser é o pensamento conforme à essência do ek-sistente, pois é o pensamento do aberto como lugar do aparecimento epocal do que "é". Trata-se, portanto, de um pensamento e de uma linguagem que destituem o humano do seu caráter metafísico moderno enquanto senhor da totalidade do ente por meio do pensamento representativo e calculador, privando-o da posição privilegiada que ele aí ocupa, a fim de considerar sua dignidade essencial: o ek-sistir como projeto lançado pelo ser na clareira do ser, da qual o ek-sistente tem de cuidar como um pastor.

Os pensadores e poetas são os protetores por excelência do aberto, pois são aqueles que velam para que se cumpra a manifestabilidade do ser (Offenbarkeit des Seins), conservando-a na linguagem. Velar por tal morada em pensamento e linguagem é restituir ao homem sua essência, cuidar para que a humanidade do homem não se torne in-humana e nisto consiste a tarefa de um humanismo pós-metafísico. Como aqueles aos quais cabe a salvaguarda da abertura e do vir à aparência, o pensador e o poeta se detêm e se movem essencialmente na vizinhança entre ser, linguagem e homem. Se os homens de hoje desconhecem tal vizinhança é porque, na era atômica, a linguagem poética decaiu ao plano da expressão de vivências e o pensamento se converteu em cálculo instrumental por meio de representações, de sorte que, para Heidegger, a própria linguagem de nossos tempos já contém em si mesma "a explosão de uma violência que poderia aniquilar tudo no nada" (Heidegger 1959, p. 190). Como disse Celan, "vivemos sob céus sombrios e ... são poucas as pessoas. É por isso que existem tão poucos poemas" (Celan 1999, p. 166). Para poder experimentar essa vizinhança discreta e indizível entre pensamento e poesia, o homem tecnológico precisa sofrer a experiência de um retorno para o lugar mais próprio e original de sua essência, um retorno que Heidegger considera ainda mais difícil do que a moderna jornada humana para chegar até onde o homem ainda não está e onde somente estará caso se transforme em uma criatura totalmente adaptada a aparatos tecnológicos, abandonando o mundo e a terra para viver no espaço cósmico desprovido de mundo. O passo atrás proposto pela meditação heideggeriana sobre o ser e sobre o ser da linguagem é também, portanto, um retorno à pobreza humilde da essência do homem, pensada em sintonia com o soneto rilkiano que nos atribui o "valor de uma pobreza divina" (Rilke 1989, p. 125). Essa meditação sobre a proximidade sempre velada entre homem e ser, que Heidegger denomina na Carta sobre o Humanismo como uma ética originária,oferece indicações importantes para começar a pensar, numa chave pós-metafísica, a proximidade ética do acolhimento do outro enquanto outro.

A possibilidade de extrair implicações éticas da reflexão heideggeriana sobre o ser da linguagem toma como ponto de partida a correlação estabelecida pelo filósofo entre a linguagem e a morte, assumidos como constitutivos do ser do homem. Os homens são aqueles que falam e que, ao falar, desocultam os entes e os trazem à presença, na medida em que escutam e correspondem à saga silenciosa da linguagem; simultaneamente, "são chamados de mortais porque podem morrer. Morrer significa: ser capaz da morte enquanto morte. Apenas o homem morre. O animal perece (verendet). O animal não tem a morte nem adiante nem atrás de si" (Heidegger 2000, GA 7, p. 180). Em outros termos, e em consonância com o que foi pensado em Ser e Tempo, Heidegger define agora o humano como o ente que é capaz de experimentar seu ser mortal enquanto sua possibilidade contínua e iminente de morrer, muito embora tal análise já não se desenvolva no quadro teórico de uma analítica da existência, mas proceda a partir do pensamento da verdade do ser, em vista do qual "poder" morrer é pensado como uma doação do ser ao ek-sistente que habita na clareira do aberto do ser.5 Heidegger não o afirma expressamente, mas talvez o que caracterize os humanos enquanto os mortais que podem falar seja uma misteriosa conexão entre a linguagem, a morte e o próprio ser, como se o mistério da doação do vir à presença dos entes na retração do ser se manifestasse aos humanos de maneira privilegiada na morte e na linguagem, desde que ontologicamente consideradas. Já sabemos que nem toda fala é uma genuína apropriação do falado, pois nem toda fala corresponde propriamente à escuta do envio da doação do ser na linguagem, e é por isto que o falar pode ser uma desocultação do ente no modo do seu encobrimento. Da mesma maneira, nem todo morrer se distingue fundamentalmente do perecer, tanto mais que os homens só se tornam os mortais que eles já são na medida em que deixam de se conceber fundamentalmente como seres vivos dotados de razão ("Die vernunftigen Lebewesen müssen erst zu Sterblichen werden"; Heidegger 2000, GA 7, p. 180). Heidegger também não o afirma expressamente, mas essa misteriosa conexão entre o ser, a linguagem e a morte dos humanos poderia ser pensada no sentido de que os homens apenas se expõem ao pensamento do ser, ou seja, à correspondência dos envios epocais do ser na linguagem, na medida em que se tornam capazes de experimentar propriamente o dom de sua possibilidade de morrer. Isto é o mesmo que afirmar que, apenas ao se converterem nos mortais que já são, poderão os homens tornar-se aqueles que são capazes de um dizer genuinamente desocultador.

Seguindo o fio condutor desta hipótese que pensa os homens como aqueles que são "na" linguagem no modo da correspondência com o ser doador, a partir de sua exposição à experiência da morte enquanto morte, então, igualmente se poderia pensar que os mortais são também aqueles que podem estabelecer uma "outra" relação consigo, com os outros e com o todo dos entes. Se em Ser e Tempo Heidegger argumenta que o ser-para-a-morte resoluto modifica o ser-no-mundo em sua totalidade, também agora se poderia pensar que a resposta do homem ao dom de sua capacidade de morrer modifica a relação da ek-sistência com os outros e com a linguagem. Essa modificação pode ser pensada em termos da superação da indiferença cotidiana para com a maravilha da entrada em presença e da entrada na ausência do que se apresenta no aberto da clareira do ser, bem como, também, em termos da superação da indiferença cotidiana em relação ao outro, freqüentemente encontrado no mundo apenas como mais um ente puramente subsistente, mas quase nunca como o outro mortal que ele essencialmente é.

Ao tentar extrair as implicações éticas do questionamento de Heidegger sobre o pensamento do ser, sobre o ser da linguagem e sobre a morte como constitutiva do ser do homem, a presente via hermenêutica se inspira, ao menos em parte, nas reflexões de Werner Marx, que pensou a determinação ontológica da morte como a medidaheideggeriana para a fundação de uma ética não-metafísica do cuidado com o outro. Segundo Marx, a importância atribuída por Heidegger ao fenômeno da morte diz respeito ao fato de que ela "desestabiliza, desaloja os mortais de seus hábitos e relações costumeiras com as coisas. Acima de tudo, entretanto, ela os arranca de seu modo cotidiano de `ser-com-outros'". A morte isola e singulariza, bem como desestabiliza, desequilibra, na medida em que conduz o homem de volta a si mesmo a fim de que ele se assuma como aquele que deve "suportar a morte sem a ajuda dos outros enquanto vive" (Marx 1987, p. 51). A experiência da antecipação da morte, tal como pensada em Ser e Tempo, ou a experiência do humano enquanto capaz de morrer, de "poder" morrer sua morte, leva o ek-sistente a defrontar-se com o outro como aquele que também é capaz de experimentar seu desamparo fundamental, experiência que pode despertar em ambos uma disposição afetiva solidária. Deste modo, afirma Marx, a modificação da indiferença cotidiana reinante nas relações intersubjetivas pode ensejar a constituição de uma comunidade de amigos "que assumem responsabilidade um pelo outro e um relacionamento em que cada pessoa está pelo outro e põe-se no lugar do outro" (Marx 1987, p. 55). Pensar as conseqüências éticas da superação da concepção metafísica do homem enquanto ser vivo dotado de razão e da fala, em vista da concepção do humano como o mortal que habita poeticamente a terra ao viver pela linguagem, implica experimentar um sentido outro da proximidade e da vizinhança entre os mortais que compartilham o mundo, a abertura do ser (Offenheit des Seins; Lichtung des Seins; Heidegger 1964, p. 130; Marx 1987, pp. 58-9).

Evidentemente, só há vizinhança porque há um outro que mora na proximidade; no entanto, pensar a vizinhança e a proximidade numa chave pós-metafísica implica dois requisitos básicos: requer não pensá-las a partir de critérios espaço-temporais, como se o próximo fosse aquele que já se encontra presente aqui e agora, a pouca distância, bem como requer o reconhecimento da alteridade do outro como condição para uma possível proximidade entre um e outro. Cotidianamente, vizinhança e proximidade neste sentido "outro" nos passam desapercebidas e como que invisíveis, pois tratamos o vizinho com indiferença ou como se ele não fosse mais do que um espelho, um duplo de mim mesmo ao qual posso reagir de diversas maneiras previsíveis, sem jamais reconhecê-lo como o outro mortal que ele é. Vivemos em vizinhança, não precisamos jamais buscar por ela, mas não sabemos o que significa a proximidade enquanto reconhecimento da alteridade do outro. Do mesmo modo, também não sabemos preservar a distância na proximidade, isto é, não sabemos como nos ocultar na proximidade para deixar que o outro seja. No âmbito de sua análise da coisa (das Ding)e de seu possível coisar no mundo técnico-científico, Heidegger afirma que "aproximar é a essência do que é próximo" (Heidegger 2000, GA 7, p. 179), mas que tal aproximação aproxima o distante enquanto distante; ao aproximar o distante mantendo a distância, o próximo se aproxima ocultando-se, para assim permanecer como o mais próximo. Deste modo, não é a vizinhança concebida sob parâmetros de mensuração calculadora que estabelece a verdadeira proximidade, mas sim é o próximo, enquanto outro distante que ele é, que instaura o advento da vizinhança: "Nähe ereignet Nachbarchaft" (Heidegger 1959, p. 208). A proximidade não é, portanto, o oposto da distância no tempo e no espaço, ao menos se não a pensarmos segundo os parâmetros metafísicos modernos da maquinação calculadora que representa tempos e espaços a partir de uma seqüência espaço-temporal homogênea e vazia de agoras, os quais permitem mensurar o antes, o agora e o depois, bem como o aqui, o ali e o acolá. Em sua reflexão sobre a essência da linguagem, Heidegger argumenta que a essência da proximidade vicinal não depende de qualquer mensuração, pois é pensada como o em-frente-mútuo (Gegen-einander-über) que provém da distante "amplitude em que se encontram terra e céu, o divino e os mortais" (Heidegger 1959, p. 211). Isto quer dizer que na proximidade da vizinhança essencial, cada elemento da quadrindade (Geviert)se entrega ao outro permanecendo ele mesmo, cada um está aberto ao outro se ocultando, cada um está face ao outro como o vigilante que cuida, protege e vela pelo outro.

Heidegger não chegou a afirmá-lo, mas esta concepção pós-metafísica de um mútuo estar um frente ao outro das quatro dimensões da quadrindade pode inspirar um "outro" questionamento dos problemas ético-políticos da co-ek-sistência, aspecto que só poderá ser sumariamente indicado aqui. Cotidianamente, não temos tempo para o outro e sequer lhe concedemos espaço, não velamos pela proximidade na distância nem deixamos que o outro seja o mortal que ele é, pois não o reconhecemos em sua alteridade como o outro que ele é na proximidade. Antes, tratamos o outro com indiferença ou hostilidade: seja porque ele não é um dos nossos, isto é, porque ele não é um nacional, não nasceu num mesmo solo comum; seja porque encarna em si mesmo uma diferença que a comunidade ou parcelas representativas dela não toleram e buscam excluir por meio do preconceito e da discriminação; seja porque, em função da miséria, ainda quando o outro é formalmente reconhecido como um dos "nossos", ele já se encontra de antemão excluído das instâncias institucionais mundanas e privilegiadas nas quais acontece cotidianamente a co-ek-sistência. Ao pensar originariamente o ethos como morada, como abrigo comum na proximidade velada da clareira do ser - sem designar qualquer espaço, tempo ou atitude definidos e localizáveis; sem mencionar quaisquer hábitos ou costumes históricos socialmente compartilhados, passíveis de repetição e ensino, bem como sem se ater a quaisquer procedimentos de universalização normativa - Heidegger não se afastada possibilidade de repensar a ética. Muito pelo contrário, ele nos ajuda a redefini-la, ao nos desvencilhar das determinações tradicionais, espaço-temporais, a partir das quais não pensamos e não exercitamos nossa co-ek-sistência na abertura do ser. Ao mesmo tempo, ao nos definir como os mortais, como os que são capazes de experimentar o dom da morte enquanto morte, Heidegger também renova as possibilidades da reflexão ética ao recuperar a indeterminação e finitude constitutivas do agir e pensar humanos. Da perspectiva de uma consideração originária ou pós-metafísica da ética, jamais se tratará de propor valores ou regras e procedimentos teóricos e práticos a partir dos quais se poderia garantir a boa vida em comum. Antes, e principalmente, trata-se de pensar e agir no sentido de uma ética do deixar-ser, capaz de deixar o outro ser livre para seu poder-ser mais próprio. No sentido de uma ética pós-metafísica pensar é agir, assim como agir é pensar, e tanto a ação de tal pensamento quanto o pensamento de tal ação escapam ao exercício da conceitualização e justificação teóricos sistemáticos, pois tal agir e tal pensar ontológico-ético não são nem da ordem do teórico nem da ordem do prático, não implicam a pretensão de causar quaisquer efeitos determinados ou resultados mensuráveis no mundo. Segundo Jean-Luc Nancy, o agir no sentido da ética original não se restringe àquilo que, à primeira vista, se poderia considerar no sentido de uma ação abstrata, isto é, a ação do pensamento especulativo enquanto oposta e preferível a todas as demais formas de ação:

Na realidade, "pensamento" é o nome para a ação na medida em que o sentido está em questão na ação. O pensamento (e/ou a "poesia") não é uma forma excepcional de ação, não é uma "conduta intelectual" preferível a outras, mas é aquilo que, em toda ação, traz ao jogo o sentido (do Ser) sem o qual não haveria ação. É de fato por isto que a ação, enquanto pensamento - o trazer ao jogo do sentido - é querida pelo Ser. Este querer é amor enquanto um possibilitar (Mögen), em outras palavras, ter gosto, afeição ou inclinação por e a habilidade de fazer algo. O Ser quer o pensamento (...). Ele o quer na medida em que o pensamento pode perfazer o sentido de que ele é. O que o pensamento nomeia é isto: que o sentido quer-se a si mesmo como sua própria ação. (Nancy 2002, p. 68)

Não se pode calcular e prever a possibilidade, a extensão e a duração de um tal acolhimento do outro, de maneira que esta ação acolhedora, cifrada numa linguagem e num pensamento não calculadores, jamais poderá ser concebida como resultado ou efeito de sua ação. Acolher o outro, deixar que ele seja o outro que é, jamais poderá ser o resultado calculado e previsível de um ato, pensamento ou palavra, mas somente poderá se dar em atos, pensamentos e palavras. Parafraseando Heidegger, poderíamos dizer que tal acolhimento jamais será o resultado das maquinações humanas, mas, por sua vez, jamais poderá se dar "sem a atenção vigilante (Wachsamkeit) dos mortais" (Heidegger 2000, GA 7, p. 183). O acolhimento do outro é uma ação meditada que se expressa numa linguagem ineficaz e discreta, que age de maneira imprevisível e incalculável e que, enquanto tal, transcende qualquer cômputo de resultados efetivos e qualquer justificativa teórica. A medida da ação desse pensamento e dessa linguagem acolhedores reside no incalculável do acolhimento do outro, que se dá ou não se dá. O pensamento e a linguagem que atuam numa ética pós-metafísica não podem ser manipulados, não podem ser instaurados ou causados por quaisquer procedimentos lógicos, mas têm de acontecer como resposta à escuta de um apelo, o apelo do ser doador e o apelo do outro ek-sistente. Esta ausência de regra ou de medida não significa que qualquer atitude, palavra ou pensamento valham enquanto acolhimento original do outro. Ocorre apenas que a medida desse acolhimento tem de ser pensada como intrínseca ao próprio pensar e dizer que agem no acolhimento, de sorte que tal acolhimento jamais poderá ser alcançado sem "rigor reflexionante, cuidado no dizer e economia de palavras" (Heidegger 1964, p. 170). Mais importante do que determinar regras e critérios para circunscrever e qualificar de antemão a relação com o outro é reconhecer-se como originariamente destinado a co-habitar a abertura, a clareira do ser que ilumina o que é, na qual aparece também o outro. Reconhecer-se destinado pelo ser ao aberto implica cuidar e conservar a morada, o mundo no qual o ek-sistente co-habita com o outro, acolhendo-o como hóspede de uma casa que a nenhum dos dois pertence. Evidentemente, não se trata de pretender abolir as determinações éticas, jurídicas e políticas tradicionais e vigentes, mas de instaurar a brecha da possibilidade de pensar e dizer o ethos mais originariamente, experimentando a co-ek-sistência aquém ou além de tais determinações ônticas. Só então dar-se-á um acolhimento original do outro que supere as atuais exigências de normalização, uniformização e coação da convivência em nome de uma "outra" co-ek-sistência, aquela que Heidegger denominou em termos do habitar poético sobre a terra.

 

Referências

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Rilke, Rainer Maria 1989: Sonetos a Orfeu - Elegias de Duíno. Rio de Janeiro, Vozes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: andremduarte@brturbo.com

Recebido em 23 de julho de 2004
Aprovado em 1º de outubro de 2004

 

 

1 Para uma abordagem extensiva da concepção da linguagem no chamado primeiro Heidegger, cf. Aguilar-Álvarez Bay 1998; para uma discussão crítica da concepção heideggeriana da linguagem, cf. Lafont 1997.
2 Desenvolvi essa hipótese de leitura em dois artigos anteriores. Cf. Duarte 2000 e 2002.
3 Nos textos dos anos 50, como veremos, Heidegger afirmará que o ser da linguagem radica no aberto da verdade do ser, mantendo, entretanto, as mesmas críticas endereçadas anteriormente à concepção imprópria da linguagem.
4

Basta recordar do primeiro soneto a Orfeu, de Rilke (1989, p. 21):
Então elevou-se uma árvore. Pura elevação!
Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!
E tudo silenciou. Mas mesmo no silêncio unânime,
Nasceu novo princípio, gesto e transformação.
Animais do silêncio se precipitaram
Da floresta livre e clara de ninhos e moradias:
E apareceu que, se estavam tão quietos,
Não era por medo ou astúcia,
Mas por escutar. Bramir, gritar, gemer
Pareciam pequenos em seus corações. E onde
Mal havia uma choupana para receber,
Um abrigo nascido do mais obscuro desejo,
Com um acesso de pilares trepidantes,
Aí criaste um templo na escuta.
5 Apenas a título de recordação, segundo o conceito existencial da morte, o Dasein"morre continuamente durante o tempo em que ainda não deixou de viver" (Heidegger 1988a, p. 42; 1986, p. 259).