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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Winnicott em Nova Iorque: um exemplo da incomunicabilidade entre paradigmas

 

Winnicott in New York: an example of incommunicability

 

 

Elsa Oliveira Dias*

Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é um comentário crítico sobre o encontro científico promovido, em 12 de novembro de 1968, pela Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque, no qual Winnicott pronunciou uma palestra intitulada "O uso de um objeto", seguida de um debate com quatro analistas dessa Sociedade. O relato desse encontro consta da Ata do encontro, que foi redigida por David Milrod. Após apresentar algumas considerações gerais sobre o debate e as circunstâncias que o cercaram, assinalam-se aspectos centrais da contribuição de Winnicott e o teor das críticas que lhe foram dirigidas pelos debatedores.

Palavras-chave: Winnicott, Relação com o objeto, Objeto subjetivo, Uso do objeto, Destrutividade.


ABSTRACT

This article is a critical commentary of the scientific meeting organized on the November 12th, 1968, by the New York Psychoanalytic Society, during which Winnicott presented a paper entitled "The Use of an Object", which was followed by a discussion with four members of the Society. The report on this meeting is contained in the Acts written by David Milrod. After making brief considerations on the circumstances in which the debate was held, we present the central elements of Winnicott´s contribution as well as an analyses of objections raised against it.

Keywords: Winnicott, Object-relating, Subjective object, Use of an object, Destructivity.


 

 

Aspectos gerais do debate

Em 12 de novembro de 1968, a Sociedade Psicanalítica de Nova Iorque (NYPS) promoveu um encontro científico no qual Winnicott pronunciou uma palestra intitulada "O uso de um objeto" ("The Use of an Object"), seguida de um debate com quatro analistas. Sua contribuição não foi bem-recebida e quase não houve tempo para ele responder às argüições. Há alguns anos, eu soube que uma Ata desse encontro achava-se nos arquivos da NYPS. Por algum tempo, tentei, sem sucesso, conseguir uma cópia. A Ata está agora disponível e publicada, no original, no presente número de Natureza Humana, devido ao empenho do Dr. Miguel Antonio de Mello Silva, a quem também devemos a tradução e a obtenção da autorização para a sua publicação.1

A concepção contida no artigo "O uso de um objeto", lido no encontro de Nova Iorque, é um ponto culminante do pensamento teórico de Winnicott, em especial no que diz respeito ao relacionamento objetal e às raízes da agressividade. Publicado em 1969, no International Journal of Psychoanalysis, sob o título "The Use of an Object and Relating Through Identifications" ("O uso de um objeto e relacionamento por identificações"), voltou a ser editado, em versão ligeiramente modificada, como o capítulo 6 de Playing and Reality, em 1971. Posteriormente, foi reeditado no livro Psychoanalytical Explorations, de 1989, no capítulo intitulado "On `The Use of an Object'" ("Sobre `O uso de um objeto'"), que contém, além do artigo central (parte I), outras seis partes cujo conteúdo está de algum modo relacionado à mesma temática. A parte II apresenta um trecho de uma carta de Winnicott a um colega, na qual relata ter tido um sonho cuja temática estava relacionada ao uso do objeto. As partes III e IV contêm apontamentos esparsos de Winnicott sobre o mesmo assunto, sendo que, na parte IV, Winnicott propõe uma reflexão, escrita em fevereiro de 1968, sobre o uso da palavra "uso". Na parte V, encontra-se a ilustração clínica oferecida aos debatedores por ocasião do evento de Nova Iorque. Na parte VI, estão os comentários escritos por Winnicott, em dezembro de 1968, à luz das críticas que lhe foram feitas no debate que se seguiu à apresentação e, em especial, conforme assinalaram os organizadores do livro Psychoanalytical Explorations, como resposta à objeção feita por um dos debatedores, segundo o qual Winnicott teria negligenciado "a importância do componente libidinal das pulsões instintuais no tocante à sobrevivência do objeto". Numa última parte, a VII, datada de janeiro de 1969, Winnicott coteja a sua teoria do uso de um objeto com a concepção freudiana das origens da agressividade em Moisés e o monoteísmo.

Por ocasião do evento em Nova Iorque - parece que logo após a palestra -, Winnicott adoeceu gravemente e teve que ser hospitalizado. Especulou-se que ele teria adoecido em virtude da prolongada tensão a que esteve exposto durante a difícil e até mesmo hostil recepção à sua palestra. Contudo, em sua biografia de Winnicott, Robert Rodman relata que os já conhecidos problemas coronários do psicanalista inglês haviam voltado a afligi-lo desde agosto desse mesmo ano e, que, além de seu já delicado estado de saúde, ele pegou nessa ocasião a gripe asiática, o que complicou todo o quadro, o qual pode ainda ter sido agravado pelo esforço exigido para a apresentação e debate do texto. Em virtude da precária condição geral da saúde de Winnicott, os médicos aconselharam que a viagem de retorno fosse retardada, tendo ele permanecido algum tempo em Nova Iorque.

Nessa época, a Sociedade de Psicanálise de Nova Iorque era um centro de psicanálise internacionalmente reconhecido como a sede, nos EUA, da Psicologia do Ego, desenvolvida por Hartmann, Kris e Loewenstein no interior do paradigma freudiano. A NYPS era também vista como rígida, doutrinária e pouco aberta a contribuições não ortodoxas. O convite a Winnicott havia sido feito como parte do movimento da sociedade de abrir-se para o novo. Ao convidá-lo, pensavam estar se abrindo para um analista kleiniano,2 o que mostra o quanto os psicanalistas nova-iorquinos estavam fora de contato com o que se passava em Londres.

A ata da reunião da NYPS dá-nos uma idéia clara dos termos em que a palestra de Winnicott foi recebida e debatida. Bastante fidedigna, como se pode comprovar pela comparação com o texto do artigo de Winnicott posteriormente publicado, ela é um documento precioso para quem estuda a história da psicanálise e a contribuição winnicottiana, não apenas por explicitar os tipos de questão e de argumento levantados pelos debatedores - argumentos não muito diferentes dos que ainda hoje encontramos -, como também por fornecer uma ilustração da tese de Thomas S. Kuhn sobre a dificuldade de interlocução entre os adeptos de paradigmas diferentes de uma mesma disciplina e sobre o modo como estes tornam-se refratários ao questionamento de seus compromissos teóricos de base.

De fato, o conceito de uso de um objeto proposto por Winnicott na palestra em Nova Iorque pertence a um campo semântico radicalmente novo, difícil de ser apreendido dentro do horizonte teórico em que o pensamento psicanalítico tradicional se desenvolveu. Em primeiro lugar, por tratar-se de uma questão inédita, a saber, a maneira como se inicia a relação com a realidade externa, cujo encaminhamento teórico é apresentado por Winnicott numa perspectiva igualmente original. Diferentemente do pensamento psicanalítico tradicional, Winnicott sustenta que a capacidade de relacionamento com a realidade externa é uma conquista que não pode ser suposta como dada. Além disso, essa conquista é pensada sobre o fundo da concepção winnicottiana de tendência ao amadurecimento, processo durante o qual acontece a constituição paulatina de diferentes sentidos de realidade - a realidade do mundo subjetivo, a do espaço intermediário que se inicia com os fenômenos transicionais e a do mundo externo -, concepção que é uma das inovações teóricas mais ousadas de Winnicott, pela qual ele se distancia do monismo ontológico da teoria tradicional - que trabalha com um único sentido de realidade -, exigindo, a fim de ser devidamente apreciada, um horizonte filosófico igualmente não-ortodoxo.3 Em segundo lugar, a teoria winnicottiana do uso de um objeto contém uma exigência inovadora: a de se levar em conta, na teoria e na clínica psicanalíticas, os fenômenos humanos que escapam da órbita do instintual (pulsional, dir-se-ia na teoria tradicional), em especial, os que dizem respeito às raízes da destrutividade. Em terceiro lugar, o conceito de uso do objeto requereria, para ser efetivamente compreendido, que alguns outros conceitos especificamente winnicottianos, como o de objeto subjetivo, tivessem sido entendidos; esse não foi o caso dos interlocutores de Winnicott, que confundiram, por exemplo, "objeto subjetivo" com "objeto interno" - conceitos diferentes, referidos a conquistas que pertencem a diferentes etapas do amadurecimento. Acrescente-se que o diálogo deve ter sido dificultado pelo fato de os analistas nova-iorquinos estarem esperando um kleiniano, sendo que a teorização winnicottiana sobre a fase de uso do objeto, incluindo a concepção de uma destrutividade de raiz não-instintual e desvinculada do ódio, talvez seja o que há de mais distante possível, na psicanálise, do paradigma ao qual o pensamento de Klein estava filiado.

Por tudo isso, a falta de compreensão das teses expostas por Winnicott não surpreende. Pela ata, percebe-se que, mais do que um debate, o que houve foi uma espécie de julgamento público de Winnicott, com base nos compromissos teóricos característicos da matriz disciplinar da psicanálise freudiana. Ao invés de produzir uma discussão de idéias, a palestra de Winnicott serviu apenas de ocasião para a reafirmação de teses tradicionais. O debate teve um teor defensivo, tendo sido deixado um tempo exíguo para que o palestrante respondesse às críticas. Na verdade, não houve debate: mais do que não entender, é provável que os analistas americanos estivessem pouco dispostos a ouvir - no sentido geral e até mesmo especificamente psicanalítico desse termo - o que Winnicott lhes trazia de novo.

 

O teor central do artigo

No que se segue, farei uma exposição dos pontos centrais do artigo "O uso de um objeto e relacionamento através de identificações", baseado, conforme vimos, no texto da palestra de Winnicott em Nova Iorque.4 Destacarei ainda algumas dificuldades conceituais e terminológicas do texto, que podem ter contribuído adicionalmente para a incompreensão dos interlocutores nova-iorquinos. O colapso quase total de comunicação que ocorreu no debate não se deveu apenas a essas dificuldades. Alguns esclarecimentos podem, contudo, ajudar a evitar que elas continuem a obstruir a recepção dessa original e profunda contribuição de Winnicott para a teoria e para a clínica psicanalíticas.

Logo no início do artigo, Winnicott assinala que o conceito central ali formulado, o de uso de um objeto, é um dos mais difíceis de sua já complexa teoria do amadurecimento pessoal e que se refere à conquista que é, talvez, "a coisa mais difícil do desenvolvimento humano ou um dos mais exasperadores de todos os primitivos fracassos que nos chegam para posterior reparo" (1969i, p. 125)

O artigo descreve o modo como se dá a passagem, na linha do amadurecimento, do sentido mais básico de realidade, o do mundo subjetivo, no qual o bebê habita até então, para um outro sentido de realidade, o de realidade externa, compartilhada. Mais precisamente, Winnicott focaliza a diferença entre o modo inicial de relacionamento com objetos ainda subjetivos - pertencentes ao mundo subjetivo - e os modos posteriores e mais avançados de relacionamento, com objetos já externos (percepção, fantasia, amor, ódio, identificações cruzadas etc.). O primeiro e mais primitivo modo de ter algo como objeto foi denominado, por Winnicott, "relacionamento com um objeto" (object-relating).5 Para designar o segundo e posterior modo de relacionamento, que é fundamento de todos os modos futuros, Winnicott utilizou a expressão "uso de um objeto".

A alteração de um para outro modo de relacionamento objetal acontece mediante a criação, pelo indivíduo, ajudado por um ambiente facilitador, de um novo mundo, ou seja, de um novo sentido de realidade, o da realidade externa, compartilhada. O início da conquista ocorre num momento em que, após ter feito já algumas experiências com os fenômenos transicionais, o bebê, impulsionado pela própria tendência ao amadurecimento, arrisca introduzir uma alteração na qualidade da relação com o objeto; se este reagir bem à alteração, a nova qualidade de relacionamento objetal poderá se efetivar como uma conquista. Também no que se refere à capacidade de estabelecer relações com objetos externos, enquanto externos, o favorecimento do ambiente é essencial para que a conquista se efetive. Por depender de elementos imponderáveis - os cuidados ambientais - a conquista pode fracassar, não podendo, portanto, de modo algum, ser suposta como dada.

Marco importante do processo de amadurecimento, essa dupla conquista - a de um novo sentido de realidade, a realidade externa, e a de um novo modo de relacionamento com objetos, que Winnicott denomina uso de um objeto - é decisiva para a constituição do indivíduo como entidade unitária, sendo a base para todos os relacionamentos futuros com os objetos não-eu, separados e externos ao si-mesmo. Constitui, além disso, o fundamento da saúde psíquica, uma vez que, para o autor, só há saúde se o indivíduo alcança a realidade externa (os objetos externos) sem perder contato com a sua realidade subjetiva (os objetos subjetivos).

Durante toda a fase que é anterior à conquista que ora examinamos, o bebê viveu num mundo subjetivo e relacionou-se com objetos subjetivos, incluída aí a fase em que surgem os fenômenos transicionais. O que acontece na passagem que leva de um para outro tipo de relacionamento? O arriscado movimento de expulsar o objeto (subjetivo) para fora do âmbito de onipotência, conferindo a ele, criativamente, caso o objeto sobreviva, o caráter de externo. O objeto que está, nesse momento, em vias de ser expulso, é o objeto subjetivo.6 Em outras palavras: até ser expulsa do mundo subjetivo do bebê, o que ocorre nessa etapa do amadurecimento, a mãe - que é e sempre foi externa do ponto de vista do observador - era objeto subjetivo do bebê. Ela se manteve como objeto subjetivo, por todo esse tempo, por ser suficientemente boa, o que significa que ela evitou impor a sua externalidade ao bebê, levando em conta a imaturidade deste para se relacionar com objetos com esse sentido de realidade. Agora, é o bebê que, expulsando a mãe para fora do âmbito de onipotência, confere a ela o caráter de externa; se ela sobreviver (não mudar de atitude, não retaliar), ele poderá começar a usá-la, como se usa um objeto que é externo ao si-mesmo. A conquista da capacidade de uso do objeto implica, portanto, uma transfiguração do objeto, até então subjetivo para o bebê, em algo que aparece agora em sua externalidade. O objeto pode então passar a ser usado. O que acontece no uso é que esse uso não depende mais, apenas, da onipotência do indivíduo e, por isso, este precisa levar em conta as propriedades efetivas do objeto ele mesmo, ou seja, respeitar o princípio de realidade, expressão que, nesse contexto, recebe um sentido especificamente winnicottiano.

Como ocorre propriamente a expulsão da mãe, pelo bebê, para fora do mundo subjetivo? A partir de outros textos, e à guisa de esclarecer a peculiar destrutividade do uso de um objeto, pode-se dizer o seguinte: o bebê que, a essa altura, tem por volta de 10, 11 ou 12 meses, e está bem mais forte e vigoroso do que alguns meses atrás, manifesta uma certa mudança de atitude: sem estar irritado, raivoso ou zangado, ele começa a desgastar o seio, a dar mordidas, a chutar, ou, então, a apresentar má vontade, relutância, displicência ou indiferença. Em geral, após a agressão, ele observa a reação da mãe. Essa nova atitude do bebê pode afetar a mãe, em especial se ela estiver deprimida ou não estiver preparada; pode fazê-la sentir-se pessoalmente ofendida ou maltratada, ou desconsiderada e pode provocar nela uma reação retaliatória. Segundo Winnicott, é essencial que a mãe sobreviva a esse período, o que significa que, mesmo recusando e impedindo a agressão, ela não altera a sua atitude básica com o bebê, e, em especial, ela não revida, não retalia.

A operação de expulsão do objeto é chamada por Winnicott de destruição do objeto. O termo destruição, esclarece o autor, é necessário por duas razões. Em primeiro lugar, devido ao impulso real do bebê de destruir (sem raiva), que em geral é efetivado por ocasião da relação excitada com o objeto ainda subjetivo, mas, sobretudo, devido à possibilidade de o ambiente (mãe) não sobreviver à destruição. Se o ambiente sobreviver, a destruição transforma-se, para o bebê, na experiência da possibilidade de destruir (agredir), ou seja, na integração da destrutividade como um aspecto da sua potência, o objeto sendo agora visto como seguro para ser usado excitadamente. Esse desenvolvimento abre todo um mundo novo, toda uma nova gama de possibilidades de relação com a realidade externa, compartilhada, e com os objetos que a povoam. Na formulação de Winnicott: se o objeto continuar lá, o mundo (externo) terá início;7 se, pelo contrário, o ambiente não sobreviver, se ocorrer a sua "destruição" (o objeto sucumbe e retalia) o bebê perde o apoio, o seu impulso de uso excitado fica perigoso, e, desse modo, a nova fase de relacionamento objetal não tem início. Ele terá que permanecer num mundo que é um feixe de projeções, num mundo apenas subjetivo.8

Na conquista da capacidade de usar objetos está, portanto, envolvida uma destrutividade "sem raiva", que não tem, ela mesma, base instintual - embora se apóie na destrutividade do impulso amoroso primitivo e se efetive nos momentos de excitação instintual. Essa destrutividade, que é impulsionada pela tendência ao amadurecimento e à integração em uma unidade, está a serviço da separação entre o eu e o não-eu.9 Se, no contexto teórico aberto pelo conceito de uso do objeto, a destrutividade for entendida como sendo de natureza instintual, todo o sentido do artigo se perde. O conceito de "uso de um objeto" representa o ponto culminante de uma linha central da pesquisa revolucionária desse autor - a que tem por objetivo reescrever a teoria psicanalítica da agressividade a partir de raízes não-"instintuais". Diz o autor: "Não se chegará a parte alguma em nosso estudo da agressão se, em nosso modo de entender a natureza humana, tivermos a agressão como irrevogavelmente vinculada ao ciúme, à inveja, à raiva pela frustração, ao funcionamento dos instintos que chamamos de sádicos" (1989n, p. 221). Embora todos esses elementos devam ser levados em conta se tivermos em mente uma teoria geral da agressividade, o fato é que, no que se refere às raízes da agressividade humana, faz-se necessário examinar uma raiz não-constitucional e não-instintual da agressividade, pois, segundo Winnicott, a agressividade está sempre ligada "ao estabelecimento da distinção entre o que é eu e o que é não-eu" (1964d, p. 98, meus itálicos). Para Winnicott, existe uma agressividade de raiz maturacional a serviço do processo de separação entre o eu e o não-eu, o que significa dizer: a serviço da constituição da identidade do indivíduo humano. É essa agressividade que está presente no estágio em que o indivíduo passa do relacionamento com o objeto para o uso do objeto, juntamente com a destrutividade que é interna ao impulso amoroso primitivo.

Está aqui formulada uma grande modificação teórica: enquanto, na teoria tradicional, a raiva e a destruição são atribuídas à frustração diante do princípio de realidade ou então à pulsão de morte, em Winnicott existe uma destruição que não decorre do encontro com a realidade externa nem é de origem interna, mas um modo de relacionamento com o ambiente e os objetos que desempenha um papel essencial na criação da realidade externa.

Convém agora explicar melhor os conceitos envolvidos neste breve resumo. O objetivo é duplo: de um lado, enfatizar algumas sutilezas conceituais da concepção winnicottiana de "o uso de um objeto" e, de outro, tentar esclarecer algumas dificuldades conceituais e terminológicas do artigo de Winnicott, orientada, neste último caso, em especial, pelas objeções dos interlocutores no debate de Nova Iorque.

Em primeiro lugar, no presente artigo, Winnicott usa a expressão relating to an object, relacionamento com um objeto 10 (ou ainda, object-relating, relacionamento com objeto ou relacionamento objetal)11, exclusivamente para se referir ao relacionamento com objetos ainda subjetivos (não separados do indivíduo), que vigora na etapa mais primitiva do amadurecimento. Esse emprego da expressão não é comum na psicanálise tradicional, que utiliza a expressão "relacionamento com um objeto" para falar de relações com objetos em geral, considerados separados do indivíduo, o que criou sérias dificuldades de compreensão por parte dos debatedores de Winnicott. Além disso, o próprio Winnicott costuma, em outros textos, usar o termo object-relating no sentido amplo, abrangendo todos os modos de relacionamento objetal (cf. 1965, p. 180). Acrescente-se ainda que, quando aplicada ao que acontece entre o bebê e o seu objeto subjetivo, a expressão é problemática, pois o contato inicial com o objeto não pode, a rigor, ser chamado de relacionamento, uma vez que ainda não há dois elementos "em relação", mas apenas o dois-em-um da unidade mãe/bebê. Winnicott sabe dessa dificuldade, chegando a afirmar, em outro texto, ser axiomático para ele "que não há relacionamento com um objeto subjetivo" (1989n, p. 287; tr. p.. 221), referindo-se, naturalmente, à relação de dois elementos separados. No artigo aqui comentado, contudo, Winnicott está exatamente interessado em descrever a natureza peculiar do "relacionamento" entre mãe e bebê, antes de estes se separarem como indivíduos, e o modo como ocorre a passagem para o outro tipo mais adiantado de relacionamento, o do uso do objeto.12

Note-se que em nenhum dos casos - tanto no "relacionamento com um objeto" quanto no "uso de um objeto" - trata-se de uma mera relação formal ou mental, mas de uma capacidade de relacionar-se cuja natureza precisa ser determinada em cada caso. Além disso, a expressão "um objeto", que ocorre nas duas fórmulas (relacionamento com um objeto e uso de um objeto), fala de um algo que é assim ou assado (subjetivo ou externo), de modo que as expressões em questão podem ser parafraseadas por fórmulas abertas: "relacionar-se com..." e "usar o...", as reticências designando o lugar a ser preenchido pelo nome ou por uma descrição de algo.13 A terminologia de Winnicott, no presente contexto, é construída segundo a mesma gramática que é observada em seus textos sobre a crença que é construída a partir da confiabilidade ambiental, expressa pela fórmula "crença em...", as reticências indicando o lugar da descrição de uma pluralidade de coisas nas quais se crê (mãe, pai, Deus, família, professores, amigos etc.).14

Resta ainda destacar dois pontos conceituais que foram quase unanimemente considerados incompreensíveis e mesmo inaceitáveis pelos analistas debatedores. Ambos dizem respeito ao modo como Winnicott caracterizou o relacionamento com um objeto, ou seja, o relacionamento inicial do bebê com a mãe, antes de estes se separarem como indivíduos. Vejamos o primeiro. Sabemos, já por outros textos do autor, que o bebê cria a mãe e, também, se identifica com ela. No artigo, após salientar que há um momento dos estágios iniciais em que ocorrem certas alterações no eu (si-mesmo), que permitem que o objeto se torne significativo (Winnicott está se referindo à relação do bebê com seu primeiro objeto de eleição, o objeto transicional), ele afirma que "mecanismos de projeção e identificações estiveram operando e o sujeito está esvaziado a ponto de algo do sujeito ser encontrado no objeto, embora enriquecido pelo sentimento". A objeção levantada por alguns dos debatedores consiste em dizer que, se já há mecanismos de projeção, então já existe a relação com a realidade externa, o que torna desnecessária a teorização sobre o uso do objeto como passagem de um mundo subjetivo "solitário" (ainda que se trate da unidade primitiva indiferenciada mãe-bebê) para o mundo compartilhado. Tudo leva a crer, portanto, que o termo "projeção" tenha sido entendido, pelos debatedores, no sentido habitual com que é usado na literatura psicanalítica. No artigo, contudo, assim como em algumas outras passagens de sua obra em que está se referindo aos estágios iniciais, Winnicott usa o termo "projeção", não no sentido técnico, psicanalítico, do mecanismo mental, cujo oposto é a introjeção, mas num sentido próprio e peculiar, o de criação - do objeto ou do ambiente, a partir da necessidade e do impulso. É nesse mesmo sentido que, num texto escrito na década de 1960, Winnicott afirma que o bebê, na etapa inicial da vida, só pode receber o que vem do mundo externo, se essas coisas puderem ser recebidas na área de "onipotência do lactente e sentidas como projeções" (1960c, p. 46), isto é, como criações dele.15 Por que razão Winnicott usa o termo projeção, nesse sentido não usual? Para distinguir a criação primária, que estabelece o primeiro contato entre o bebê e a mãe, e que não é projetiva, das criações que vêm a seguir, já enriquecidas pela experiência e, portanto, já projetivas. Explicando melhor: a criatividade originária, presente desde o início como uma capacidade própria do indivíduo humano, começa a valer-se das experiências e torna-se projeção, isto é, criação de objetos a partir da necessidade e do impulso, acrescidas de qualidades do próprio objeto que, contudo, foram experienciadas pelo indivíduo como sendo dele mesmo. É nesse contexto que Winnicott afirma que o indivíduo, ao se relacionar com o objeto, vive num mundo que é um "feixe de projeções", ou seja, num mundo que, com seus objetos, é o resultado da criação que o bebê faz a partir da necessidade e do impulso, tese igualmente inaceitável para os seus interlocutores.16

Voltando à frase polêmica, Winnicott diz que, durante o relacionamento com um objeto, estiveram operando, além dos mecanismos de projeção, também as identificações. Além da criação primária, o que caracteriza a relação de dois-em-um do bebê com sua mãe é a experiência de identificação primária com o objeto (mãe), pela qual, durante a experiência excitada da amamentação, o bebê torna-se o objeto, fazendo, desse modo, as primeiras experiências de uma identidade primária própria. Ser o objeto, pela identificação primária, é a forma mais simples e primitiva de relacionamento com um objeto e constitui a base para todas as experiências futuras de identificação, que irão possibilitar os relacionamentos e a comunicação através de identificações cruzadas, que pressupõem a capacidade de usar objetos e já incluem, nessa altura, os mecanismos de projeção e introjeção da psicanálise tradicional.17

Se a conquista do uso do objeto fracassa, o indivíduo fica aprisionado na identificação primária e na comunicação com objetos subjetivos, que é, segundo Winnicott, "um beco sem saída". Ele não chega ao mundo compartilhado. Foi para salientar esse aspecto do amadurecimento que Winnicott, ao publicar o artigo baseado na palestra, alterou o título para "O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações". A diferença entre relacionamento com um objeto e uso de um objeto, sendo essa passagem a base para as futuras formas mais avançadas de relacionamento, torna-se mais clara se for comparada com a distinção entre ser e fazer, introduzida por Winnicott num artigo de 1966, intitulado "Os elementos feminino puro e masculino puro cindidos". Enquanto o "elemento feminino puro" relaciona-se a essa experiência de ser, o "elemento masculino puro" relaciona-se com o fazer. Percebendo estar teorizando sobre conflitos essenciais, não observados na clínica até então, escreve Winnicott:

No extremo, descobri que estava examinando um conflito essencial dos seres humanos, que deve acontecer numa época muito primitiva: o que existe entre ser o objeto, que também tem a propriedade de ser, e, em contraste com isso, uma confrontação com o objeto que implica atividade e relação de objeto baseada em instinto ou moção. Isto resultou ser uma nova formulação do que antes tentei descrever como objeto subjetivo e objeto objetivamente percebido. (1972c, p. 149)

Correlacionando os dois textos, pode-se dizer que a distinção entre "ser" e "fazer", do texto de 1966, é aproximadamente a mesma que a distinção entre "relação com o objeto" e "uso do objeto", do texto de 1968, com uma diferença significativa: a capacidade de usar objetos (correlata ao fazer) é, na linha maturacional, pré-requisito para esse fazer. Com respeito ao relacionamento primitivo, ou seja, à experiência de ser, Winnicott diz: "Não consigo ver impulso instintual nisso" (1971va, p.140) Trata-se, aqui, portanto, da linha identitária do amadurecimento, distinta da linha instintual (Loparic 2006).

 

Implicações para a clínica

Ao assinalar a diferença maturacional entre o relacionamento com um objeto e o uso de um objeto, Winnicott chama a atenção para implicações importantes - eu diria, cruciais - para a clínica psicanalítica. Se a conquista da capacidade de usar objetos e, a partir daí, de relacionar-se com a realidade externa pode fracassar devido a falhas ambientais, então o analista deve levar em conta o fato de existirem pessoas que não fizeram essa conquista, o que significa que elas não estão capacitadas a estabelecer uma relação com o analista como objeto externo em termos de uma neurose de transferência. Um dos objetivos de Winnicott, nesse artigo, é precisamente mostrar as graves implicações, para a clínica psicanalítica, de o analista não considerar essa possibilidade e continuar a agir, e a interpretar, como se o paciente, ao invés de imaturo, nesse sentido específico, estivesse resistindo, por infantilismo e apego ao princípio de prazer, a aceitar o princípio de realidade. Uma vez atento para o possível fracasso na conquista da capacidade de usar objetos, o analista terá, como objetivo inicial, de conduzir o paciente pelas etapas primitivas que se fizerem necessárias, até que este se torne capaz de usá-lo, a ele, analista, nesse sentido da externalidade. É apenas após essa conquista que o analista poderá ser percebido, pelo paciente, como tendo uma existência independente, como alguém que ali está devido às suas propriedades, e não às projeções do paciente, podendo então estabelecer-se, na situação de análise, o que pode ser chamado, de pleno direito, de relação de transferência. É somente depois de essa conquista ter se estabelecido que o analista poderá ser, real e verdadeiramente, amado e/ou odiado.

Pode-se dizer que uma grande parte da teoria de Winnicott dedica-se a explicitar as razões pelas quais o trabalho analítico com psicóticos - indivíduos que, em sua concepção, são aqueles que não se tornaram capacitados a usar um objeto - requer modificações na técnica clássica e uma delas consiste no fato de que, para certos pacientes, o manejo é mais importante do que a interpretação. Existem casos em que a interpretação é desaconselhável, podendo ser altamente prejudicial, por não reconhecer a situação de imaturidade do paciente, constituindo-se em apelo para uma compreensão intelectual que apenas aprofunda dissociações e não promove a integração. Para que a prática interpretativa, no sentido tradicional, seja aconselhável e analiticamente benéfica, ela precisa estar "relacionada à capacidade que o paciente tem de situar o analista fora da área dos fenômenos subjetivos" (1969i, p. 172). Se o paciente acha-se ainda "isolado", ou seja, se ele não fez a passagem do relacionamento com objetos para o uso do objeto, a análise estará fadada a ser, em verdade, uma espécie de auto-análise, com o paciente falando com um objeto que é parte do si-mesmo, um "feixe de projeções". Nesses casos, antes de empreender o trabalho interpretativo, o analista deverá fornecer ao paciente um setting regular e confiável, algo que não se constrói com interpretações, e no interior do qual a existência contínua de um meio ambiente facilitador e confiável faça a parte silenciosa do trabalho analítico, permitindo, tacitamente, caso se faça necessário, que aconteça um período de regressão à dependência, com a adaptação quase absoluta que esta implica.

Não foi por acaso que Winnicott, logo no começo do artigo, menciona os riscos contidos na análise de fronteiriços. Nesses casos, o paciente, que cresceu intelectualmente, mas cujo processo de amadurecimento pessoal foi interrompido numa etapa primitiva, exibe uma falsa personalidade, cuja problemática, aparentemente neurótica, esconde um cerne psicótico. O paciente encontra-se, na verdade, aprisionado num limbo entre o mundo subjetivo, que não pode mais ser o seu único lugar de habitação - sendo a comunicação exclusiva com objetos subjetivos um monólogo -, e o mundo externo compartilhado, que não foi verdadeiramente alcançado, mas cujas regras e exigências de performance são rigorosamente aprendidas e até mimetizadas. Winnicott alerta que, em tais casos,

(...) o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai bem [pois o paciente, que padece pela ausência de agressividade é, em geral, extremamente colaborativo no que se refere à tarefa interpretativa do analista] e todos manifestam satisfação. O único inconveniente está em que a análise jamais termina. Pode ser concluída e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (si-mesmo) psiconeurótico, para finalizar o tratamento e expressar gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve alteração no estado (psicótico) subjacente e que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se para provocar um fracasso. Mesmo esse fracasso pode ser valioso se analista e paciente o reconhecerem. (1969i, p. 172)

O paciente que não destruiu objetos do mundo subjetivo e não criou o mundo da realidade compartilhada, por ter falhado na conquista da capacidade de usar objetos, não é uma pessoa inteira, não atingiu o grau de maturidade que permite que os fatos de sua vida se tornem acontecimentos, experiências pessoais, incluídas aí as fantasias e os conflitos inerentes à vida instintual, em meio às relações interpessoais, com pessoas inteiras. Ele pode até ter notícia dessas coisas, pode até saber muito, intelectualmente, sobre elas, por via do auto-exame ou através da literatura psicanalítica, mas, a rigor, ele não tem experiência efetiva e pessoal delas. O que é feito ou vivido, não é feito ou vivido em primeira, mas em terceira pessoa; é vivido pela prótese. Por isso, mais do que interpretações, o que esse tipo de paciente necessita são cuidados específicos para que a conquista não realizada no momento original, devido à não sobrevivência do objeto (a mãe podia estar deprimida, talvez tenha se sentido pessoalmente ofendida com a agressão do bebê ou com a sua indiferença, que é o outro modo que ele tem de agredir), possa agora, sob condições satisfatórias, vir a realizar-se. Para tanto, é preciso que o analista compreenda teoricamente, em termos da teoria do amadurecimento, o que está se passando e permita, como já assinalado, a ocorrência de uma regressão à dependência, com a necessidade primitiva do paciente sendo atendida e respeitada, e não interpretada como infantilismo.

Haverá, então, toda uma etapa em que o analista só existirá, para o paciente, como objeto subjetivo. Se for dada a este a oportunidade de fazer, pela primeira vez na vida, certas experiências primitivas que só podem acontecer num ambiente confiável, o paciente retomará o amadurecimento. Caso tenha êxito nessa tarefa, o analista deverá ficar preparado para o momento em que, na análise, comecem a acontecer, por parte do paciente, tentativas de destruição, não como parte de alguma forma de resistência, nem motivadas por raiva ou ódio - o que representaria um alto grau de amadurecimento -, mas como sinal de retomada do amadurecimento. O que ele necessita, sem ter nenhuma consciência disso, é chegar à raiz da agressividade pessoal, "integrar o seu potencial de destruição", o que não pôde acontecer, no momento original, devido ao temor de o objeto não sobreviver ou por este, de fato, não ter sobrevivido. Por isso, o paciente precisa dessa experiência de destruição do analista como objeto subjetivo; nas palavras de Winnicott, ele precisa fazer a experiência de "destrutividade máxima". Mas essa experiência só poderá ocorrer se o analista estiver não protegido, ou seja, não defendido atrás de sua posição, de interpretações ou de desculpas. Se o analista, no momento da agressão, sem raiva, do paciente, interpretar a agressividade na linha das projeções, esquivando-se da realidade do momento no interno do relacionamento, ele estará voltando para o cômodo lugar "feixe de projeções" do paciente. Diante do ataque do paciente que, repentinamente, torna-se insatisfeito, descuidado, indiferente, abusado, intolerante, "o analista", adverte Winnicott, "preferiria interpretar, mas isso pode prejudicar o processo e, para o paciente, poderia assemelhar-se a uma espécie de autodefesa, com o analista desviando o ataque do paciente. Nesse caso, é melhor esperar que a fase passe e, então, examinar com o paciente o que aconteceu." (1969i, p. 175).

O problema é que sem essa experiência

(...) o sujeito jamais coloca o analista para fora e, portanto, não pode mais do que experimentar uma espécie de auto-análise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (si-mesmo). Em termos de alimentação, então, o paciente pode alimentar-se unicamente do eu (si-mesmo), e não pode usar o seio para nutrir-se. O paciente pode inclusive ter prazer na experiência analítica, mas, fundamentalmente, não sofrerá qualquer mudança. (1969i, p. 175)

O analista que puder ver, nesse tipo de material clínico, a manifestação da necessidade maturacional do paciente, estará mais capacitado a expor-se à destruição (isto é, ser o analista não defendido) e a suportar a tensão que é própria do momento sem muito perigo de sucumbir, isto é, de não sobreviver. As mudanças positivas que ocorrem nessa fase da análise são profundas e essenciais, mas, diz Winnicott, "elas não dependem do trabalho interpretativo, e sim da sobrevivência do analista aos ataques do paciente" (1969i, p. 175). Sobrevivência, aqui, vale repetir, "envolve e inclui a idéia da ausência de uma mudança de qualidade para a retaliação" (id).

Não é tarefa fácil para nenhum analista, sobretudo não para os que partilham dos fundamentos tradicionais, compreender integralmente, e em todas as suas implicações, o conceito de Winnicott sobre o uso do objeto. Um analista formado no paradigma tradicional é ensinado a considerar o material clínico como sendo relativo à vida interna (mental), deixando de lado, como um sinal de resistência, toda a referência à realidade externa (incluída aí a própria atitude e os procedimentos efetivos do analista). O verdadeiro objeto de interpretação é a vida psíquica interna e os mecanismos de projeção e introjeção, postos de manifesto na relação transferencial. A posição de Winnicott é radicalmente distinta: para que a interpretação tenha o efeito que é preconizado na teoria, para que a análise não esteja condenada a perpetuar-se como uma auto-análise, é preciso que o paciente seja capaz de usar o analista (isto é, de tratar o analista como externo), e que o analista tolere ser usado e interpelado como tal.

Winnicott elucidou essas distinções comparando a relação entre os analisandos e os seus analistas com a relação entre os bebês a as suas mães. Podemos estar vendo dois bebês mamando em suas mães e podemos ver que há diferenças:

Um deles está se alimentando do si-mesmo, uma vez que o seio e o bebê ainda não se tornaram (para o bebê) fenômenos separados. O outro está se alimentando de uma fonte diferente-de-mim, ou um objeto a que se pode dar um tratamento descuidado, e sem efeitos para o bebê, a menos que o objeto retalie. As mães, tal como os psicanalistas, podem ser boas ou não suficientemente boas; algumas podem, e outras não podem, fazer o bebê passar do relacionar-se para o uso. (1969i, p. 173)

 

O debate

Mais do que discordância ou mesmo recusa das idéias propostas por Winnicott na sua palestra, o debate revelou que os seus interlocutores entenderam muito pouco do que lhes foi dito; suas principais dificuldades diziam respeito ao desconhecimento dos pressupostos teóricos que fornecem base para os novos conceitos apresentados e, também, à linguagem usada pelo psicanalista inglês. Comprometidos com a matriz disciplinar da psicanálise tradicional, eles não podiam concordar com a mudança de linguagem operada por Winnicott em virtude de sua experiência clínica e da nova matriz disciplinar que ele foi criando à medida em que essa experiência foi sendo teorizada.

Edith Jacobson deixou claro, logo de início, que não podia aceitar a discussão nos termos propostos por Winnicott. Ela diz não entender a utilização que ele fez da expressão "relacionamento com um objeto" como a denominação genérica de um tipo de relacionamento primitivo e imaturo, em que o objeto ainda não foi separado como externo ao si-mesmo. Além de discordar enfaticamente dessa caracterização do relacionamento com um objeto, ela sustentou que isso, caso se apresentasse num paciente, corresponderia a uma modalidade patológica de relacionamento. Uma tal pessoa, diz Jacobson, "seria incapaz de relacionar-se com um objeto em nível objetal libidinal avançado ou até mesmo de se identificar normalmente". Se tivesse tido a oportunidade de falar, Winnicott poderia ter respondido à Dr. Jacobson que ela tem toda a razão, caso, justamente, o indivíduo não amadureça na direção do uso, pois, diria ele ainda, na fase do amadurecimento pessoal caracterizada pela expressão "relacionamento com um objeto", as relações objetais não são libidinais (instintuais), a identificação é ainda primária e não cruzada ("normal") e o teste de realidade dos objetos de percepção só pode começar depois da constituição, pelo indivíduo, do mundo externo da realidade compartilhada. Poderia ainda acrescentar que essas teses, estranhas à teoria psicanalítica tradicional do desenvolvimento sexual e individual, só fazem sentido se consideradas à luz da teoria do amadurecimento.

Edith Jacobson diz ainda não ter conseguido "entender" o sentido dado por Winnicott a "ataque destrutivo" e "sobrevivência", além de considerar "extremista" a afirmação de que "o objeto está sendo sempre destruído". Mais uma vez, a dificuldade resulta do conflito entre paradigmas, ou seja, entre concepções e modos de falar sobre os fenômenos clínicos. Por último, por negligenciar, ou, mais provavelmente, por desconhecer a distinção que Winnicott faz dos vários tipos de destrutividade, a Dr. Jacobson conclui dizendo que, com essa conceituação [do uso do objeto], Winnicott passou por alto "as pessoas psicóticas que são extremamente destrutivas e cujos terapeutas, capazes de paciência, sobrevivem aos seus impulsos destrutivos, sem os resultados positivos que ele descreve". Limitar-me-ei a problematizar essa afirmação. A que estará se referindo a Dr. Jacobson quando fala da destrutividade e dos impulsos destrutivos de psicóticos, em situação de análise? E se essa destrutividade que ela menciona estiver referida, não à fase do uso do objeto, mas, por exemplo, à sensibilidade e à raiva que está relacionada a um padrão de invasões ambientais que sistematicamente interrompeu a continuidade de ser logo no início da vida? Mais: se ela diz não ter entendido o sentido winnicottiano de "sobrevivência", qual foi o sentido dado por ela a esse termo, no exemplo? O que se deve entender por "ser capaz de paciência"? E se a paciência vier, por exemplo, acompanhada de tédio, indiferença ou de desdém?

Assim como Jacobson, Samuel Ritvo começa o debate objetando contra o uso que Winnicott faz da expressão "relacionamento objetal", que implica a hipótese de um sujeito isolado, sem interação com o ambiente externo, para, em seguida, corrigir a teoria winnicottiana da fase de uso de objeto com a tese de que a aceitação do objeto fora do si-mesmo repousa sobre a capacidade funcional do ego de tolerar o atraso ou a ausência de gratificação e a reação de ansiedade correspondente. Uma eventual resposta de Winnicott poderia ser formulada da seguinte maneira. Em primeiro lugar, a razão pela qual o sujeito do "relacionamento com um objeto" precisa ser descrito como isolado consiste em que, no estágio primitivo ao qual essa expressão se refere, o indivíduo humano, na condição de bebê, desconhece inteiramente a existência de um ambiente que está sustentando a continuidade de ser e fornecendo os cuidados necessários. Em segundo lugar: ser isolado não implica processos de projeção e introjeção tomados no sentido tradicional como intrapsíquicos ou mesmo mentais, pois, segundo a teoria winnicottiana do amadurecimento, a imaturidade do momento ainda não permite que se fale de um "interior" ou de uma realidade psíquica interna, nem tampouco de mecanismos mentais em funcionamento. Nas fases iniciais, o bebê humano vive num mundo subjetivo, que é inteiramente pessoal sem, por isso, ser interno; para poder executar atos mentais de modo não perturbado, o indivíduo humano precisa previamente estabelecer os fundamentos da sua existência psicossomática, conquista que não pode prescindir do relacionamento com um objeto facilitador subjetivo, isto é, não-externo do ponto de vista do bebê. A segunda objeção de Ritvo também repete a intervenção de Jacobson: ele diz não "entender a afirmação de que a aceitação do objeto fora do controle onipotente do sujeito signifique a destruição do objeto", sugerindo que a compreensão dessa tese de Winnicott poderia ser facilitada pela tese tradicional de que a formação de relações objetais permanentes está baseada na capacidade de tolerar frustração.

Bernard Fine alongou-se na sua intervenção e parece ter sido, como observa Rodman, o principal responsável por não ter sobrado tempo para que Winnicott pudesse responder às críticas que lhe foram feitas. Após lembrar a afinidade de Winnicott com paradoxos, em especial o seu trabalho sobre objetos transicionais, Fine repetiu Jacobson e Ritvo, afirmando ser "pouco clara e de modo algum provada" a idéia do palestrante de que, na passagem entre o relacionamento e o uso, o sujeito tivesse que destruir o objeto. Assinalou também a ausência de "qualquer referência à importância dos componentes libidinais no tocante à sobrevivência do objeto". Fine concordou que o analista precisa ser visto como externo ao si-mesmo pelo paciente, mas, diz ele, "a sobrevivência do analista18 depende de mais fatores do que aqueles citados pelo Dr. Winnicott". Ao descrever a passagem entre a "apreensão subjetiva" e a "concepção externa e realista do objeto", Winnicott teria desprezado os fatores libidinais e egóicos, devidamente explicitados pelos representantes da psicologia do ego, que "enfatizaram, de formas diferentes, o papel do amadurecimento do ego no desenvolvimento da predominância do prazer em distintos funcionamentos". Fine admite que a idéia winnicottiana de destruição do objeto, por ocasião da separação deste, é uma grande modificação da teoria tradicional, que, contudo, não estaria bem fundamentada.

Fine acrescenta duas outras observações críticas. Na primeira, ele diz ser inadequado empregar o termo "uso" para "designar um específico processo psicanalítico científico". De fato, o procedimento metodológico de Winnicott de transformar expressões descritivas da linguagem comum em termos técnicos só poderia causar estranheza à comunidade analítica tradicional, dominada pelo modo de teorização especulativo, herdado da metapsicologia. A segunda observação de Fine consiste na reafirmação da tese tradicional de que a distinção nítida entre o relacionamento e uso não se justifica e que toda a problemática da fase do uso de um objeto, trazida por Winnicott, poderia ser tratada como uma subfase do desenvolvimento contínuo dos relacionamentos objetais entendidos à maneira tradicional. De fato, na metapsicologia, a idéia de uma relação com o objeto já inclui a de separação.

Otto Sperling, o último dos quatro interlocutores, mudou o registro do debate e tentou mostrar a fraqueza clínica da posição de Winnicott. Para tanto, ele apresentou uma vinheta que, segundo ele, poderia ser entendida como ilustração da teoria winnicottiana do uso de um objeto. O caso trazido é o de um homem casado, que, há muitos anos, manifestava pouco interesse sexual pela esposa. Certa vez, tendo esta retornado da cidade com atraso inusitado, ele a "destruiu" pela raiva e por acusações. Dormiram separados essa noite, mas, na manhã seguinte, ele fez "uso dela em um coito". Sperling sugeriu que esse caso seguia a seqüência dos desenvolvimentos maturacionais descrita por Winnicott e parecia, portanto, admitir uma "explicação" em termos winnicottianos. Terminou afirmando ser mais elucidativa a interpretação sexual do tipo tradicional, a de que o homem agia sob influência de fantasias sexuais inconscientes. Não sei o que Winnicott diria dessa aplicação "selvagem" da sua teoria. Mas ele certamente poderia indicar que uma das maiores novidades de sua teoria do uso do objeto é a concepção de uma destruição sem raiva, a serviço da separação, maturacionalmente necessária, entre o eu e o não-eu, embora apoiada no impulso instintual. Segundo o relato, não é esse o tipo de destruição que ocorre no exemplo do Dr. Sperling. A raiva e as acusações do tipo que parece ser exemplificado pelo caso não constituem, mas, ao contrário, pressupõem - tal como a ocorrência de afetos negativos no setting analítico - que o indivíduo tenha feito originalmente a experiência da destruição do objeto.

Como já foi mencionado, os debatedores deixaram, casual ou talvez intencionalmente, um tempo exíguo para Winnicott responder às argüições. Nesse pouco tempo, escreve o redator da ata, ele respondeu aos debatedores de maneira "encantadora e espirituosa". Talvez fosse mais preciso dizer que Winnicott usou, na breve finalização do debate que lhe coube, o seu conhecido humor e uma certa ironia, motivados, certamente, pelo reconhecimento do colapso total de comunicação que havia acontecido. O debate nova-iorquino sobre o artigo "O uso de um objeto", contido na Ata redigida por David Milrod ilustrou aspectos sociais e comunicacionais do conflito entre o paradigma sexual da psicanálise tradicional, organizado em torno de conceitos da teoria freudiana da sexualidade e da metapsicologia, e o paradigma maturacional de Winnicott, centrado na sua teoria do amadurecimento e numa ontologia de tipo fenomenológico, avessa à especulação metapsicológica. Mas o principal ensinamento que dele se tira é que uma compreensão adequada das idéias inovadoras de um grande autor exige o conhecimento, senão da totalidade, ao menos das linhas gerais da sua obra. Winnicott cometeu um grave engano ao tentar expor uma das suas idéias centrais, a do uso de um objeto, a um público disposto apenas a reduzir o novo ao já sabido.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: elsadias@uol.com.br

Recebido em 1º de março de 2005
Aprovado em 29 de junho de 2005

 

 

* Psicanalista, Diretora de ensino e formação do Centro Winnicott de São Paulo
1 Miguel A. de Mello Silva contou, nessa diligência, com a ajuda de um amigo americano, William B. Culpeper, que se dispôs a obter a autorização junto à NYPS. Fica aqui registrado o nosso agradecimento ao Sr. Culpeper. A insistência deste foi recebida com surpresa pela responsável pelo acervo da NYPS, pois, segundo ela, tratava-se de uma cautela inútil, uma vez que, por se tratar de um documento já muito velho e por ninguém tê-lo requisitado nesses anos todos, ela havia decidido jogá-lo fora assim que fizesse uma limpeza dos arquivos. Nós tínhamos chegado um pouco antes da destruição.
2 Veja Rodman 2003, p. 323.
3 Loparic (1996) mostrou que a doutrina heideggeriana dos múltiplos sentidos do ser apresentada em Ser e tempo (1927) pode ser usada para elucidar esse elemento central do paradigma winnicottiano.
4 Uma outra apresentação do mesmo tema, a partir da teoria do amadurecimento, encontra-se em Dias 2003, capítulo 4, item 3.
5 Essa denominação acarreta dificuldades terminológicas e de tradução que serão examinadas a seguir.
6 Apesar de no momento em que tem início a conquista do uso de um objeto o bebê estar já vivendo a fase da transicionalidade e se relacionando com objetos transicionais, objeto (mãe) continua a ser subjetivo.
7 Num artigo escrito em 1970, intitulado "O lugar da monarquia", Winnicott utiliza o conceito de uso de um objeto para refletir sobre o lugar que a instituição da monarquia ocupa na Grã-Bretanha. A idéia central proposta no artigo - referida, segundo o autor, ao "aspecto mais fundamental da relação objetal" - é mostrar que a importância da monarquia, para a Inglaterra e para os ingleses, deve-se à sua sobrevivência. Diz Winnicott: "A sobrevivência da coisa (aqui, da monarquia) torna-a valiosa e capacita pessoas de todos os tipos e idades a perceberem que a vontade de destruir não tem nada a ver com raiva - tem a ver com amor primitivo, e com a destruição que ocorre na fantasia inconsciente, ou no sonho pessoal que pertence ao dormir. É na realidade psíquica pessoal que a coisa é destruída. Na vida desperta, a sobrevivência do objeto traz um senso de alívio e um novo senso de confiança. Agora fica claro que é devido às suas próprias propriedades que as coisas podem sobreviver, apesar de nossos sonhos, apesar do pano de fundo de destruição em nossa fantasia inconsciente. O mundo começa a existir, agora, por si próprio; torna-se um lugar onde viver; não um lugar para temer ou ao qual devamos nos submeter, ou no qual ficamos perdidos; também não um lugar onde lidar apenas com os sonhos ou com a indulgência à fantasia" (1986j, p. 208)
8 A expressão "feixe de projeções" foi usada por Winnicott, no artigo, para descrever o modo de relacionamento primitivo com o ambiente ("relacionamento com um objeto"), e tem um sentido bem próprio, o de criação. Não se trata, portanto, aqui, do mecanismo mental que, juntamente com a introjeção, opera o intercâmbio entre a realidade interna e a externa, segundo a teoria tradicional.
9 Ver-se-á, pelo debate, que a destrutividade que é característica do uso do objeto não pode ser entendida, pelos interlocutores, no sentido explicitado por Winnicott.
10 A expressão relating to an object, equivalente inglês da freudiana Objektbeziehung, tem sido habitualmente traduzida por "relação de objeto". Já usei essa tradução, de forma inercial, em outras ocasiões. Ocorreu-me, contudo, que ela fere o regime do substantivo "relação". Os argumentos que justificariam esse mesmo tipo de distorção da linguagem, em francês, apresentados por Laplanche e Pontalis em seu Vocabulário de psicanálise, não convencem. Além disso, o termo "relação" não preserva a conotação da capacidade de relacionar-se que está contida no termo relating e na nossa tradução do mesmo por "relacionamento". O mesmo se aplica à expressão object-relating.
11 Sobre a tradução, ver a nota anterior.
12 Mais adiante serão indicadas as características peculiares desse "relacionamento" inicial.
13 Isso dito, por motivo de comodidade, usarei ocasionalmente as expressões "relacionamento com o objeto" e "uso do objeto".
14 Cf. Winnicott 1965b, cap. 8. Esta sucinta análise da linguagem de Winnicott mostra que, para ele, o relacionamento objetal é, desde o início, um relacionamento não apenas com esse ou aquele algo, mas sempre, também, com um domínio de entes e que esse domínio é caracterizado pelo fato de ser um mundo, isto é, um ambiente para o indivíduo. Esse mesmo fato é expresso de maneira paradigmática pelo duplo sentido inicial da palavra "mãe", quando aplicada à experiência nas fases primitivas do amadurecimento humano. Essa palavra designa tanto a mãe-ambiente como a mãe-objeto, os bebês humanos não podendo separar esses dois significados. Uma interpretação ontológica possível da estrutura dessa bifurcação consiste em dizer, com Heidegger, que o bebê humano é um ser-no-mundo, com-outros e junto-das-coisas-intramundanas. Agradeço a Zeljko Loparic os preciosos apontamentos desta nota e do parágrafo ao qual ela pertence.
15 Em seguida a esta última frase, o autor assinala estar "usando aqui o termo `projeções' em um sentido descritivo e dinâmico e não no seu sentido metapsicológico completo" (1960c, p. 46, nota 12).
16 Note-se que a concepção segundo a qual a relação de um indivíduo com o meio é feita por meio de introjeções e projeções implica a negação da criatividade originária, uma vez que, baseada no modelo de incorporação e excreção, só é projetado o que foi anteriormente introjetado. Isso seria inaceitável para Winnicott, sobretudo tratando-se das etapas iniciais. Na resenha do livro Psychoanalytic Studies of the Personality (1952), de R. Fairbairn, Winnicott afirma que este, em sua teoria, não concede lugar para a criatividade primária. Fairbairn, diz Winnicott, até poderia contrapor-se a essa crítica, dizendo que, nesse livro, encontra-se a afirmação de que "(uma casa) é um objeto que é buscado, mesmo que, para ser encontrada, tenha que primeiramente ser feita" (Fairbairn, 1952, p. 141). Contudo, assinala Winnicott, "em parte alguma, ele [Fairbairn] enuncia a maneira pela qual o bebê faz o primeiro objeto (teórico)". E continua: "Em sua teoria, a criatividade psíquica primária não constitui uma propriedade humana; uma série infinita de introjeções e projeções formam a experiência psíquica do bebê. A teoria de Fairbairn se alinha, aqui, com a que nos foi dada por Melanie Klein, que também não permite que seja prestado tributo à idéia de criatividade psíquica primária" (Winnicott 1953i, P. 320).
17 No artigo "Vivendo de modo criativo" (1986h), Winnicott diz que, por mecanismos de projeção e introjeção, ele entende a capacidade de alguém "identificar-se com os outros e de identificar os outros consigo próprio" (1986h, p. 37).
18 O texto diz "analisando", o que me parece ser um erro de digitação, embora possa também ter sido um ato falho.