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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.1 São Paulo jun. 2005

 

RESENHA

 

 

Maria Leopoldina de Siqueira Leal

Endereço para correspondência

 

Maurice Corcos, 2000: Le corps absent, approche psychosomatique des troubles des conduites alimentaires. Collection Psychismes (fondée par Didier Anzieu). Paris, Dunod. ISBN 2 10 005210 1

 

Apresentação da obra e do autor

O aumento do número de queixas envolvendo distúrbios alimentares que chegam aos consultórios nos últimos anos tem preocupado médicos, psiquiatras e psicólogos. Para alguns desses profissionais, a influência dos meios de comunicação, particularmente sobre os jovens, tem papel decisivo no crescimento desses casos nas últimas décadas. Para outros, porém, anorexia, bulimia e problemas correlatos são doenças muito antigas e que somente agora são reconhecidas e tratadas como distúrbios severos, que afetam tanto o físico do paciente quanto seu desenvolvimento psíquico. Essas afecções têm chamado a atenção da sociedade como um todo, especialmente depois que alguns casos fatais de anorexia, a partir dos anos sessenta, protagonizados por celebridades do meio artístico, vieram a público. A gravidade desses casos ficou assim exposta, assustando pais e educadores.

Para o médico pediatra e psiquiatra infantil Maurice Corcos, assistente no Instituto Mutualista Monsouris, na França, os distúrbios alimentares em suas várias modalidades têm crescido, de fato, não se podendo atribuir esse incremento apenas à influência da mídia, embora esta imponha realmente padrões estéticos, particularmente para os adolescentes. Atendendo adolescentes em regime ambulatorial ou internados em hospital, Corcos salienta em suas pesquisas o caráter plural da complexa dinâmica envolvida nessas patologias, situadas na confluência da psicologia individual, da dinâmica familiar, dos problemas socioculturais e da medicina.

Segundo o autor, embora de fato a anorexia seja conhecida desde a Antigüidade, nos dias atuais as queixas relativas a problemas alimentares povoam as clínicas psicoterápicas, envolvendo na maior parte dos casos pacientes adolescentes do sexo feminino. Os sintomas manifestados por essas pacientes têm um caráter desafiador e paradoxal. Os aspectos biológicos sem dúvida têm seu papel nesses quadros, mas a influência ambiental, da família e da sociedade dita de consumo, também comparece deflagrando e mantendo os sintomas. Para compreender a dinâmica dos casos, o autor usou a abordagem psicanalítica e os jargões freudiano e kleiniano, embora eventualmente lance mão de conceitos e expressões usadas por outras correntes da psicologia e da psicanálise, como o psicodrama.

Aprofundando seus estudos, Corcos, em sua tese de doutorado, orientada por Pierre Fédida, defendida em 1999 e laureada com o prêmio Jean Trémollières de psicologia aplicada à nutrição, estende suas hipóteses e indagações também às condutas aditivas em geral e às doenças psicossomáticas. O autor aponta em todos esses casos um mesmo conjunto de problemas físicos e emocionais, quase uma espécie de padrão, que teria sua origem na primeiríssima infância, nos primeiros contatos com a figura materna. A falha materna repetida engendraria um complexo quadro de parada no desenvolvimento emocional desses pacientes, que permaneceriam fixados para sempre a seus primeiros objetos.

Essas patologias assumiriam várias formas de expressão, através de uma multiplicidade de sintomas, como a anorexia nervosa, em seus vários graus de intensidade, a bulimia, espécie de face reversa da anorexia, a obesidade, hoje crescente em todo o mundo, o alcoolismo e o abuso de drogas e psicotrópicos. As tentativas seguidas de suicídio, entre os adolescentes, também fariam parte desse quadro.

Percorrendo todas essas manifestações, aparentemente diversas, o autor revela um fio condutor, comum a todas elas, a alexitimia, uma espécie de paralisia emocional, denunciadora do vazio interior, caracterizada por um empobrecimento da vida afetiva, um distanciamento das emoções, uma dificuldade na identificação e elaboração dos afetos, um retraimento da vida de relação, seja familiar, seja comunitária. Os indivíduos afetados por essa patologia apresentam dificuldades em desenvolver e coordenar os pensamentos e fogem das experiências, sentidas por eles como ameaçadoras. A ameaça principal parece ser a da despersonalização, da perda de si mesmo, do controle das situações. Os pacientes revelam uma falta total de sentido em suas existências e escapam para um agir falso, atuado, interpretando papéis de acordo com a demanda do ambiente.

Esta situação pode ser super-compensada pelo adolescente através de crises repetitivas de distúrbios alimentares ou aditivos, que vão ficando cada vez mais desligadas de sua origem e intenção iniciais, o que muitas vezes desnorteia pais, professores e médicos, pois não há lógica aparente na eclosão dessas crises. Examinando porém o histórico desses pacientes e sua dinâmica familiar, Corcos identifica algumas dinâmicas típicas, que permitem a formulação de hipóteses. Observou a eclosão desses distúrbios em famílias grandes, de classe média, com a participação ativa de muitos membros, inclusive a interferência massiva de avós e tios e outros agregados, o que pode gerar um ambiente confuso. A superlotação do espaço doméstico, a ausência de privacidade e de respeito à criança e ao adolescente, tudo isso se alia num quadro doentio onde as reais necessidades da criança não são reconhecidas, nem sequer percebidas. São famílias onde tudo é sempre discutido, é alvo de disputas, menos o que realmente importa, como a identicação e a elaboração das emoções, os ódios, os amores, as frustrações, as expectativas de cada um.

O autor aponta ainda que existiria uma dimensão transgeracional, uma espécie de transmissão de sintomas que atravessa gerações e que podem adquirir variadas feições. Para ele, a mãe que não desenvolveu bem a relação com sua própria feminilidade, não pode aceitar a condição de ser mãe e desempenhar bem os cuidados maternos e assim não favorecerá o desenvolvimento emocional do filho. Até mesmo a evolução do pensamento da criança resultará prejudicada. Nesses casos citados por Corcos muitas vezes é registrada a presença de uma forte relação da tríade avó, mãe e neta, marcada pela dependência.

É justamente na formulação dessas hipóteses que se situa o interesse da obra de Corcos, especialmente para nós, leitores e estudiosos da obra de D.W. Winnicott, também pediatra, psiquiatra infantil e psicanalista inglês, que enfatizou, durante os cinquenta anos de sua prática clínica e na formulação de suas teorias, a importância fundamental dos cuidados maternos na constituição da personalidade. Embora expressando-se a maior parte do tempo em linguagem psicanalítica tradicional, Corcos passeia por vários conceitos winnicottianos, como a mãe suficientemente boa, a formação do falso self, a origem das psicoses nas falhas do ambiente, a passagem para o mundo transicional e seu papel na aquisição do simbolismo e da linguagem e outros. Também parece compartilhar com Winnicott a estranheza em relação às idéias de Melanie Klein, particularmente quanto à destrutividade inata e a pulsão de morte. Infelizmente, apesar dessa aproximação de idéias e práticas, é apenas nas últimas páginas do livro que o autor menciona sua adesão às teorias winnicottianas e a utilização dessa base teórica em sua clínica. Ao longo da obra, Winnicott aparece somente em raras notas de rodapé, mesmo assim citado indiretamente, como um comentário de outro autor. Isto gera em certas passagens uma certa confusão no texto, fazendo parecer que os conceitos apontados são de autoria exclusiva de Corcos.

Este psicanalista, em sua clínica, tratando meninas anoréxicas e suas famílias, utiliza-se do conceito winnicottiano de holding e da ênfase no contato e na confiabilidade, como veículos do tratamento. Trabalhando com o pé em duas canoas, ou seja, o desgaste físico e a parada do crescimento emocional, ele se apóia na visão winnicottiana das doenças psicossomáticas, encaradas como falhas na formação da noção de um corpo vivo, íntegro e autônomo, uma unidade psique-soma formada gradualmente com o auxílio da adequada assistência materna. Infelizmente, a filiação winnicottiana destas idéias que embasam sua prática não fica explicitada no livro.

Segundo o autor, o quadro apresentado pelas anoréxicas, bulímicas e obesas poderia ser descrito como um quebra-cabeças onde faltam peças. O vazio das peças faltantes constituiria, a partir do não-acontecido, o vácuo interior, o empobrecimento dos afetos e da experiência, o corpo ausente. O frenesi típico dos atos aditivos teria por sua vez a função de supercompensar o vazio. Ele menciona a ausência materna, inclusive a ausência da mãe que está presente e o silêncio aterrador como propiciadores destes desvios de conduta. Fala também da mãe absolutamente presente, colada ao filho, que desta forma torna-se ausente, porque deixa de ser percebida. Por outro lado, a mãe que de fato abandona o bebê torna-se onipresente, na fantasia da criança e o luto dessa perda jamais se elabora, contaminando todas as relações futuras. Daí o horror aos relacionamentos, manifestado em alguns destes pacientes.

Entre estas patologias Corcos menciona também as tentativas de suicídio reincidentes. O portador dessas afecções parece optar entre o matar-se lentamente, através das várias doenças deflagradas pela inanição ou pelo abuso da alimentação ou de modo abrupto, pelo uso exagerado de álcool e drogas, que conduz à morte por overdose.

Em todas essas patologias, sejam elas alimentares, aditivas ou psicossomáticas, o autor salienta a presença da depressão, como pano de fundo. O luto perpétuo, o ressentimento da perda não permite o caminho da elaboração dos afetos e da saída para a realidade, na direção de novos objetos.

Para todos nós, que lidamos com a pluralidade de sintomas e a agravante do permanente risco de vida para o paciente, a obra de Corcos é bem-vinda, como mais um elemento de reflexão num campo de pesquisa que se torna cada vez mais amplo e mais atual. Sua dupla formação, como médico e como psicanalista, habilita-o a transitar tanto pelas manifestações físicas como psicológicas, entrelaçando-as, como faz, por exemplo, ao explicar a amenorréia das anoréxicas, em parte motivada pela perda maciça de peso e de gordura corporal, com consequente diminuição da produção hormonal. Por outro lado, como psicanalista, ele tece toda uma especulação em torno dos fantasmas e idéias delirantes que circundam esse fenômeno, que expressariam ao mesmo tempo o temor do amadurecimento e de vir a engravidar e a simulação de uma gravidez perpétua, num corpo que não menstrua. Na bulimia, a indução mecânica do vômito também dramatizaria de certa forma a gravidez e os enjôos próprios desse estado.

Não obstante os aspectos positivos desta pesquisa, a com-preensão do texto, especialmente para o leitor leigo, esbarra na exigência de um domínio básico do jargão psicanalítico, que Corcos utiliza abundantemente. Embora transitando por outras correntes da psicologia e da psicoterapia e fazendo uso de referências da literatura e das artes, ele se mantém fiel à teoria básica da relação sujeito-objeto e da prevalência do desenvolvimento da sexualidade como pilar da formação do indivíduo. Assim, por exemplo, quando men-ciona a falha materna, ele a descreve como uma má libidinização da primitiva relação com a mãe, dita por ele primeiro objeto.

Como escritor, Corcos usa de parágrafos longos, com encadeamento de vários conteúdos no mesmo trecho, procurando dar conta da comple-xidade dos quadros que ele procura descrever. Dada a pluralidade de aspectos envolvidos, o orgânico, o social e a dinâmica psicológica, é até certo ponto compreensível o recurso a explicações dentro de explicações, metáforas, analogias, duplos sentidos. Ele parece ter também um gosto pelas palavras compostas, alguns neo-logismos, epígrafes, fazendo um certo apelo à poesia e às artes para auxiliá-lo a dizer o que pretende elucidar. Embora reconhecendo que esta linguagem, que oscila entre uma certa

Examinando o trabalho em suas partes, vemos que o livro se abre com uma citação de Antonin Artaud, personagem ligado à literatura e ao teatro e admirado por alguns psicodramatistas, dado o caráter dionisíaco de suas obras. Depois dessa abertura, o livro se inicia com uma Advertência, seguida de um Prólogo e mais nove capítulos. A obra se fecha com uma breve Conclusão, que retoma parágrafos dos capítulos passados.

 

Descrição do conteúdo dos capítulos

No primeiro capítulo intitulado "Espelho social e identidade virtual", onde estão esboçadas todas as hipóteses principais do autor sobre o tema, o autor descreve o quadro social onde estas problemáticas se instalam, ressaltando as importantes mudanças por que passou a sociedade francesa nas últimas décadas, principalmente a partir dos movimentos contestatórios de 68 e suas conseqüências. A autoridade paterna posta em discussão, em todas as suas formas, convulsionou as relações familiares, bem como as relações patrão-empregado, professor-aluno, homem-mulher. A crescente participação da mulher na sociedade, como força de trabalho, o divórcio, as uniões consensuais, as mães solteiras, trouxeram em seu rastro certamente benefícios, mas também deram ensejo, erudição e o tom coloquial, familiar, que ele talvez empregue em sua clínica, no fundo possa ser uma forma de espelho dessas problemáticas marcadas pela incongruência e pela ilogicidade, o uso deste estilo, no entanto, marcado por muitas orações intercaladas, começando por "como se" e " quer dizer que" ou "veja-se tal", pode cansar o leitor, dificultando o entendimento.

 

Descrição da obra e suas principais divisões

A obra de Maurice Corcos, publicada em 2000, é na verdade uma retomada de sua tese de 1999, Depressão e alexitimia, acrescida de outros textos do autor, publicados em locais diferentes. Como costuma acontecer com muitas teses transformadas em livro, esta transformação da tese de Corcos deixa visível alguma configuração acadêmica formal, capítulos grandes e em grande número, com uma tendência à repetição, na ânsia talvez de abordar muitos temas que se entrelaçam nesta obra. O livro mereceria uma versão mais concisa, enxuta, que permitisse a consulta direta de seus temas, facilitando a leitura e o debate. Assim como está, a tese transcrita guarda até certo ponto um pouco do caráter de colcha de retalhos, embora os acréscimos e adendos façam sentido com o todo da obra.

segundo o autor, ao aumento das doenças aditivas e psicossomáticas. A crescente violência, marca registrada das grandes cidades e a mistura de costumes, raças e línguas, também tem seu papel neste quadro. Neste contexto, o autor salienta um certo enfraquecimento da posição dos pais, enquanto formadores da personalidade, orientadores ou possíveis modelos referenciais para os adolescentes de hoje. Seria como se os pais tivessem se recolhido e "se demitido"de suas funções.

Observando as condutas aditivas, o autor ressalta a influência recíproca do corpo sobre o pensamento e as conseqüências da melhor ou pior adequação do ser (que para ele é o sujeito) ao sentido fornecido por seu ambiente. Segundo ele, nesta obra, é feita uma tentativa de assentar esta reflexão sobre o papel potencial de certas componentes socioculturais na constituição e na perenização dessas condutas. Nesta linha, é proposta a avaliação da influência sobre o sujeito do quadro social, do ambiente ideológico, do envelope cultural nos quais ele vive e, em retorno, os efeitos sobre o corpo social do seu próprio agir. O autor propõe um enfoque dinâmico habitat-habitante; continente- conteúdo; fora-dentro.

Além dessas considerações, já de si bastante complexas, Corcos aborda ainda neste capítulo a questão da estigmatização da jovem anoréxica, dentro de uma mistificação que constitui "a ficção da mulher", mediatizada pelo corpo social. Na sua opinião, estas pacientes contra-investem maciçamente num mundo interno, vivido como inseguro, o que as confronta também maciçamente com os apelos e as exigências do mundo externo.

Para o autor, entretanto, sua posição não defenderia uma hipotética sociogênese, confundindo meio social e meio narcísico ou de uma psicanálise aplicada à sociedade, mas de uma reflexão sobre a parte do narcisismo social que se articula com o eu narcísico do sujeito. Na sua visão, parece difícil compreender dimensões comportamentais e psicopatológicas tais como a alexitimia, a depressão essencial e o chamado pensamento operatório, sintomas próprios desses distúrbios alimentares e aditivos que o livro aborda, sem se referir às condições socioculturais da época, às patologias que emergem num dado contexto ou que são particularmente interrogadas por essas dimensões sociais e sobre o papel da evolução dessas condições nessas condutas, que, para ele, chegam a constituir atualmente um verdadeiro "fenômeno de saúde pública". No entanto, assim como algumas famílias permanecem surdas à dimensão familiar do sintoma apresentado pelo adolescente, assim também podemos ficar surdos à dimensão social desses desregramentos familiares. Neste âmbito, é na família que podem dar-se os encontros identificatórios encarnados, que filtram e selecionam os modelos, as regras, os limites e as aspirações.

O autor explica que quando o espelho do olhar da mãe ou da família é opaco, prisioneiro de um mistério ou, ainda, vazio, o adolescente não consegue deixar de agarrar-se a um reflexo do espelho social. Neste falso espelho, morto, jamais encarnado, não reflexivo, o adolescente veria, na atual situação social, a valorização justamente do narcisismo, em detrimento da relação com o outro. Veria uma supervalorização da aparência com padrões impostos e uma superexposição às relações sexuais, não afetivas propriamente, mas estereotipadas.

É portanto sobre a questão da própria identidade do adolescente que o problema se instala, dando ensejo à formação de identidades falsas, ditas "tomadas por empréstimo". Neste sentido, acompanhando as revoluções de costumes nas últimas décadas, os jovens podem nos parecer superficialmente anticonformistas e rebeldes, quando na verdade uma forma mórbida de conformismo se instala e se expressa através das condutas aditivas e dos

distúrbios alimentares. Essa rebeldia é de certo modo alimentada pelo falso espelho social atual, mas serve na realidade para camuflar a passividade.

O processo da adolescência, incluindo todo o impacto das transformações pubertárias, vai obrigar o sujeito a reexplorar seu habitat corporal, familiar e social. Entretanto, ele só poderia compreender essa sua morada na vigência de um distanciamento fornecido por um terceiro diferenciador, que nos dias atuais faz uma terrível e cruel falta. Esse papel, que tradicionalmente era desempenhado pela escola, pelas autoridades da lei, pelos médicos e outras figuras hierárquicas, encontra-se no momento muito enfraquecido. Os problemas alimentares e aditivos de certo modo desafiam e confrontam o papel regulador das escolas, das autoridades oficiais e da medicina. Na sociedade contemporânea, sofisticada e complexa, dada a mistura de raças, línguas, credos religiosos diversos, mesclados às demandas plurais da propaganda, os antigos esquemas de autoridade tornam-se sem efeito. Sem apoio, o adolescente é lançado na vida, ao sabor do acaso e da desordem.

Entre conformismo e não-conformismo, o agir dos adolescentes parece essencialmente ser uma defesa do sujeito contra o intolerável sentimento de passividade que o paralisa e arrisca-se a evoluir para uma espécie de renúncia em se destacar do ambiente. Estamos desse modo diante de um sujeito "perseguidor-perseguido" no qual a estima pessoal profundamente alterada o impede de reagir sem ódio e obriga a dominar a situação imprimindo-lhe um clima de terror afetivo: uma "escolha" de uma fatalidade trágica para combinar com o vivido de uma passividade que o amarra aos caminhos da fatalidade parental. Dentro desse quadro marcado pela ambiguidade, as atitudes ambivalentes do adolescente ante os enigmas da família ou diante de sua própria origem (adoções ocultas, filhos ilegítimos, segredos não revelados) fazem-no oscilar entre ações de ruptura e a manutenção do status quo.

Para o autor, diante dessa intrincada rede, a postura clássica da psiquiatria e uma certa tendência a permanecer fiel aos clichês, aos rótulos fixos e rígidos, não pode dar conta da riqueza da complexidade interior e da própria história do caso. A frequência da ruptura nos tratamentos de condutas aditivas é eloquente. Diante da fragilidade da possibilidade de identificação com os médicos, com os pais e com os professores, somente resta aos jovens aderir aos modelos deles mesmos que o corpo social lhes oferece, preferindo modelos não abertamente sexuais, mas narcísicos:

surge assim uma identidade virtual. Não se trata aqui porém de novos rituais de passagem, portadores de um sentido saudável de amadurecimento e de ingresso na vida adulta, mas daquilo que o autor chama de envelope vazio, espécie de artifício, sendo que a revolta e o simbolismo envolvidos são muito pobres e o adolescente é deixado sozinho ante seu caos interior. Constitui-se então uma identidade doentia: engendra-se uma invalidez psíquica que se alia a uma invalidez física, que tende a se cronificar.

Pertencer a esse grupo doente fornece uma identidade de compensação ou de empréstimo, para quem na verdade nunca pôde ser protagonista da história de sua vida. A menina anoréxica, que se espelha nas imagens das modelos magérrimas, novos ícones da sociedade ocidental, sente-se única, como uma rainha, sendo ela mesma o único objeto do seu amor. A rainha entretanto está nua, só, sendo na verdade um corpo sem memória, vazio ou, pelo contrário, cheio demais de traços do outro. Trata-se pois de uma performance e o autor lembra que para esta sociedade a performance vale mais que a qualidade em si.

É nesta passagem que Corcos recorre a Winnicott, citando-o: "O elemento feminino puro é religado ao seio e à mãe" (1973).

Nos demais capítulos, o autor retoma cada um dos temas evocados no primeiro capítulo, estendendo-os e anexando vinhetas clínicas e falas de pacientes, na intenção de ilustrar e respaldar suas conclusões.

O segundo capítulo, "Estruturações psíquicas e facetas clínicas", é uma tentativa de descrever a problemática interna que se instala na paciente e as várias formas psicopatológicas que podem se manifestar, com maior ênfase porém sobre uma problemática do vínculo, do que sobre os conflitos pulsionais subentendidos nos sintomas. Ele alerta para o perigo de cair no simplismo de um perfil psicológico a partir da descrição desses sintomas. Também pretende permanecer distante de um perfil metapsicológico, levando em conta os aspectos tópico, dinâmico e econômico, o ponto de vista objetal.

Ao longo deste capítulo o autor tenta, utilizando-se da linguagem psicanalítica, explicitar uma multiplicidade de sintomas encontráveis nesses casos, tecendo um panorama de possíveis afecções como origem dos distúrbios alimentares, entre os quais a histeria, a depressão melancólica, a organização psicótica, a doença psicossomática, a perversão e as neuroses de caráter. Nenhuma dessas bases teóricas sozinha sustenta entretanto a complexidade dos casos estudados, levando a supor uma estruturação peculiar da dinâmica psíquica nos casos de distúrbios alimentares, "uma organização psíquica instável, susceptível de movimentos progressivos e regressivos a partir de uma organização neurótica precária, o que dá bem conta da experiência clínica". É mencionada também, junto às tendências regressivas, a presença de mecanismos sadomasoquistas, de castigo, controle e premiação, que tendem a manter os sintomas.

No capítulo três, "A solução depressiva", o autor discorre sobre o lugar e função da depressão, buscando uma definição do conceito de depressividade. Na sua concepção, ele crê que a conduta aditiva "se integra numa organização ao mesmo tempo depressiva e anti-depressiva que tenta laboriosamente evitar uma descompensação narcísica sob a forma de uma depressão melancoliforme ou de uma depressão essencial e seu cortejo psicossomático". Diversas manifestações depressivas e melancólicas são analisadas, a partir de vinhetas clínicas, buscando a compreensão desse fundo compartilhado por todos esses distúrbios.

No capítulo quatro, "Inter-relações precoces e solução aditiva", Corcos principia afirmando que a dimensão narcísica das condutas aditivas e dos distúrbios alimentares nos convida a pensar em termos de uma disfunção primária na relação de objeto, na origem das experiências infantis singulares com os primeiros objetos de apego. Estes poderiam estar marcados por uma subestimulação crônica, gerando falhas na organização estrutural do si, depois do eu e das "organizações depressivas-narcísicas". É neste capítulo ele discorre sobre holding, intrusão, carência e risco psicossomático, função do olhar da mãe e capacidade de criação, sem fazer menção a D.W.Winnicott.

No capítulo quinto, "Patologia do vínculo e os terceiros", o autor discorre sobre o lugar do pai e sobre a presença de uma terceira mulher, quase sempre a avó, numa intrincada relação de competição entre as mulheres de uma família. A menina doente tende a se identificar com a avó. Instala-se uma rede de intrigas, comparações e rivalidades que buscam denegrir e enfraquecer a imagem da mãe. Relatando fragmentos clínicos, Corcos revela familiaridade com essa dinâmica conflituosa, marcadamente feminina, muito presente nos consultórios.

Neste capítulo, o autor, ao mencionar o conceito de espaço potencial, cita Winnicott de passagem, na verdade para criticá-lo, quando pergunta: "Não haveria libido no espaço potencial? Lá também os autores anglo-saxões eludem a parte sexual". Antes disso, ele havia comentado numa nota que "esses anglo-saxões, como Winnicott, Khan, tendem a valorizar a constituição do si-mesmo". Além de ser curiosa a inclusão do paquistanês Masud Khan entre os "anglo-saxões", também poderia ser discutida aqui a oportunidade ou o bom gosto de generalizações preconceituosas, dentro de uma obra que se apresenta como científica. Depois disso, a autor parte, no final do capítulo, para uma interpretação pessoal do conceito de objeto transicional, de Winnicott, mesclando-o à idéia de uma mãe intrusiva e ameaçadora.

O capítulo seis, "A questão da escolha do sintoma", inicia-se com uma dissertação sobre o corpo como lugar primeiro da memória e sua importância sobre a origem e manutenção de patologias que remetem a profundas questões sobre o desenvolvimento feminino. O crescimento epidemiológico desses distúrbios entre as mulheres é ressaltado e é feita uma tentativa de análise dessas patologias, levando em conta particularidades do desenvol-vimento da personalidade da mulher. As ligações corporais hierarquisadas entre avós, mães e filhas, numa mesma família, as dimensões transgeracionais do problema estão aqui relacionadas. É o corpo que permanece como campo de batalha, corpo que se fecha ao diálogo com sua própria memória corporal. Esse corpo não libidina-lizado, não investido, anestesiado, permanece como uma parte do corpo da mãe, que o vê como um pedaço externo de seu próprio corpo.

O sétimo capítulo, "Verdadeiro e falso tóxico sexual e prazer endógeno", envereda pelos aspectos sexuais inconscientes presentes nessas patologias, abordando temas como fantasmas perversos, homossexualidade primária, o conceito de prazer endógeno, cuidados maternos e gozo corporal, os castigos físicos infligidos à criança e conseqüentes comportamentos sadomasoquistas.

A leitura do capítulo oito permite sozinha uma boa visão do todo das idéias do autor, aqui repassadas e organizadas. Os conceitos de identidade de compensação e identidade de empréstimo são aqui retomados e reexplicitados. Assim também o é o quadro de alexitimia, já esboçado nos capítulos anteriores. As discussões epidemiológicas e clínicas também reaparecem, bem como as especulações psicodinâmicas. Para o estudante que desejar uma visão panorâmica da obra, este é o capítulo mais rico em informações.

O capítulo nove procura esclarecer quais procedimentos clínicos Corcos usa no atendimento a esses pacientes. Embora suas explicações teóricas se restrinjam ao jargão psicanalítico, ele parece transitar pelas teorias e práticas psicodramáticas, o que traz uma forma diferencida de lidar com o material clínico, nem sempre apresentado como verbalização.

Mais que isso, é certamente a Winnicott que ele recorre ao descrever os estados regredidos de suas pacientes e a necessidade de apoio e confiança para lidar com essas problemáticas, portanto, uma terapia embasada no holding. Essas patologias, principalmente as condutas aditivas com organização parapsicótica, segundo o autor, não se beneficiam de uma análise meramente interpretativa.

O psicanalista e pensador inglês D.W.Winnicott, citado de passagem neste livro, iniciou sua carreira como pediatra e psiquiatra infantil ainda na década de vinte. Já em 1919, interessou-se vivamente pela psicanálise e percebeu a possibilidade de utilizar as idéias de Freud e o método psicanalítico como auxiliar no atendimento médico de crianças e adultos. Bem antes da chegada de Melanie Klein a Londres, em 1927, Winnicott já atendia bebês e mães e fazia observações sobre esta interação. Nessa época ele pôde perceber quão freqüentemente bebês muito novos adoeciam, física e psiquicamente, diante de falhas nos cuidados maternos. Essa situação aparecia inclusive em fases muito iniciais do desenvolvimento da criança, em contraste com o que sugeria Freud, que relacionava a eclosão de distúrbios emocionais a partir de desejos sexuais reprimidos, principalmente na fase edipiana. Winnicott nunca contestou a origem das neuroses, conforme proposta na psicanálise freudiana, mas soube visualizar uma outra categoria de distúrbios, na base da constituição da personalidade, deflagrados a partir de cuidados inadequados por parte do ambiente.

A partir dessa constatação, Winnicott compôs todo um corpo teórico apoiado nos conceitos de mãe suficientemente boa e de preocupação materna primária, vistos como pilares centrais da sua teoria do amadurecimento pessoal. Daí decorre toda uma conceituação sobre o que é o desenvolvimento saudável do indivíduo e a importância de um ambiente facilitador, que permita a realização de todas as tendências integradoras da personalidade nascente.

Embora fosse "um anglo-saxão", como disse Corcos, Winnicott travou constante diálogo com profissionais, professores e psicanalistas do mundo todo, das mais diversas correntes de pensamento, como Bowlby, Spitz, Klein, Jung e até Lacan. Sempre preferiu porém, expressar-se de modo próprio, absolutamente original. Pleiteou a vida toda a necessidade de se utilizar uma linguagem adequada a cada estágio do desenvolvimento, evitando o uso automático de jargões.

Esta originalidade de pensamento colocou-o em oposição à medicina de sua época, excessivamente organicista e à psiquiatria clássica, rotuladora e classificatória. Observou e tratou sintomas alérgicos, gástricos, oftálmicos, levando em conta os aspectos psicológicos, prática inédita nos anos trinta, em seu meio. Além disso, Winnicott enfatizou de modo especial a importância de uma inter-relação psique e corpo bem instaurada, a partir dos cuidados maternos. Colocou a origem de vários distúrbios, entre eles os fenômenos esquizóides, nas falhas dessa interação.

O brilho de sua contribuição para a psiquiatria infantil e para a psicanálise coloca-o como autor-fonte, cujo crédito é incontornável para qualquer estudioso que pretenda contribuir com seriedade para a pesquisa deste campo. Neste sentido, obras como esta de Corcos e outros que enveredem pelo mesmo campo do conhecimento, só têm a ganhar com a contribuição das teorias winnicottianas, do alto das quais tais autores e todos nós poderemos enxergar mais e mais longe.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: psileopoldina@ig.com.br

Recebido em 19 de agosto de 2004
Aprovado em 3 de julho de 2005