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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Winnicott: uma psicanálise da experiência humana em seu devir próprio

 

Winnicott: a psychoanalysis of the human experience of becoming

 

 

Alfredo Naffah Neto

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo desenvolve o argumento de que a noção de experiência constitui uma espécie de eixo, em torno do qual gravita a psicanálise winnicottiana, tanto no nível teórico quanto clínico. Para tanto, descreve algumas diferenças fundamentais dessa psicanálise - tanto na teoria quanto na clínica - diante da psicanálise freudiana (e correntes neofreudianas). Ao mesmo tempo, situa a importância de Winnicott na atividade psicanalítica do autor.

Palavras-chaves: Experiência; Criatividade primária; Sexualidade; Pulsão de morte; Falso self; Regressão; Simbolização.


ABSTRACT

This article develops the argument that the concept of experience is a kind of an axis around which Winnicott’s psychoanalysis rotates, in theoretical as well as in clinical level. For that purpose, it describes some fundamental differences between that psychoanalysis - in theory and in clinical practice -and Freud’s and neo-freudian psychoanalysis. At the same time, it points the importance of Winnicott in the author´s psychoanalytical practice.

Keywords: Experience; Primary creativity; Sexuality; Death instinct; False self; Regression; Symbolization.


 

 

Meu encontro com Winnicott

Winnicott entrou na minha vida profissional de forma imprevista, inesperada. Após muitos anos em análise com um membro didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, de orientação claramente calcada na tradição Klein-Bion, as chances de me tornar mais um elo dessa corrente eram muito grandes, inclusive porque essa análise me era muito proveitosa e eu me sentia extremamente grato a tudo que ela vinha me proporcionando. Além disso, ter abandonado o psicodrama pela psicanálise, após 20 anos de prática clínica, já fora suficientemente complicado e transtornara a minha vida profissional muito mais do que desejaria. Nessa época conturbada, buscava um pouco de paz para poder fazer o meu trabalho clínico, de preferência sem novas guinadas de direção, em termos de orientação teórico-técnica. Se Klein e Bion serviam-me tão bem na análise pessoal, por que não serviriam de forma análoga aos meus analisandos? Um pouco mais adiante, vim a perceber que as coisas não são assim tão simples, como a gente, às vezes, gostaria que fossem...

Nesse período, reuni tudo o que estudara de Freud, Klein e Bion ao longo da vida a essa longa experiência de análise pessoal para instrumentar o meu trabalho clínico. E, quando me perguntavam qual era minha orientação teórica, dizia-me um psicanalista de linha inglesa, com um pé calcado em Freud -que, afinal, é o pai de todos - e outro na filosofia - já que há cerca de 15 anos estudava Nietzsche e o utilizava como interlocutor crítico. De Winnicott, algum conhecimento vago, quase nada...

Mas o mundo dá voltas inesperadas e, algum tempo depois, tornei-me - por questões circunstanciais - orientador da tese de doutorado de Elsa Oliveira Dias, cujo tema era a teoria das psicoses de Winnicott. Então, por razões alheias à minha vontade, fui levado a um contato longo, extenso e minucioso com a obra winnicottiana. Era a primeira vez que ela adentrava o meu mundo profissional, trazida por um sopro de acaso. Mas confesso que me interessou bastante tudo o que pude aprender e problematizar na orientação dessa tese.

Algum tempo depois - não sei dizer quanto -, recebi no consultório o que considero, hoje, o meu primeiro caso difícil na condição de psicanalista. Tratava-se de uma paciente de 40 anos, terceira geração de uma família libanesa imigrante, de religião católica ortodoxa grega, casada e mãe de dois filhos pequenos, de dez e oito anos de idade. A sua queixa básica:nada fazia sentido na sua vida. Casara-se com um homem da colônia, bastante apreciado por seus pais, mas muito pouco valorizado por ela própria, e sua vida era basicamente atender às expectativas do mundo ao seu redor, do marido, dos filhos e dos pais, que moravam no mesmo préio e controlavam a sua vida nos mínimos detalhes:a que horas chegara em casa no dia anterior; que comida fizera no almoço; se estava ou não sendo uma boa mãe, etc. Sentia-se, literalmente, como um peixe fora d’água ou como uma atriz que tivesse entrado na peça errada, como se aquela não fosse a sua vida. E eu me lembro de ficar muito impressionado com a total falta de afetividade e de apego que ela demonstrava por todos, inclusive pelos filhos.

Seu único interesse afetivo - num nível bastante idealizado -era um antigo namorado de adolescência, que reencontrara recentemente e de quem se tornara uma amante circunstancial, já que ele era casado como ela e, além disso, morava em Lima, no Peru, só vindo a São Paulo muito ocasionalmente. Mas funcionava para ela como uma espécie de príncipe encantado, propiciando-lhe alguma esperança de realização pessoal diante da vida familiar sem sentido, à qual se sentia escravizada. Era uma gata borralheira sonhadora:a tônica de suas sessões alternava-se entre uma lamúria ressentida, ininterrupta, implacável - que jorrava de sua boca quase que como por costume, de forma monótona e enfadonha - e momentos de extrema idealização, quando falava do amado distante e inacessível. E eu me sentia, também, como um peixe fora d’água, já que qualquer tentativa de interpretação era imediatamente rejeitada, como se eu estivesse falando com uma muralha de pedra, incapaz de entender o meu idioma.

Nessa época, meu referencial teórico levava-me a entender essa reação da paciente como um ataque ao vínculo analítico e era assim que eu interpretava isso. Mas sempre que lhe falava do seu "ódio à realidade", do seu ataque às minhas interpretaçães , reduzindo-as a pó de traque, ela me olhava como se eu fosse um sádico, literalmente incapaz de entendê-la (já que, nessa época, as sessões eram face a face, dada a sua impossibilidade de usar o divã). Mais do que isso:não conseguia reconhecer nenhum ódio em si própria e a interpretação, mais uma vez, caía no vazio.

Hoje, olhando retrospectivamente, posso reconhecer que, mesmo dentro de um referencial bioniano, talvez eu fizesse interpretações excessivamente saturadas, incapazes de contemplar as condições emocionais da paciente; mas isso só vim a entender muito mais tarde, quando li os excelentes seminários clínicos de Antonino Ferro na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (França e Petricciani (orgs.) 1998 e 2003) e pude perceber que não era só eu quem cometia esse erro, mas também a grande maioria dos psicanalistas supervisionados por Ferro. Não era essa, entretanto, a postura daquele que me acompanhou durante os meus dez anos de análise, tendo-se mostrado sempre muito acolhedor e paciente, considerando o tempo todo as minhas características singulares de analisando. Nesse caso, sem dúvida nenhuma, a minha inexperiência - de analista iniciante - era a responsável por todo esse desencontro com a paciente.

De qualquer forma, a sensação de impotência acabou me levando a mudar de direção na condução dessa análise. Um tanto macaco velho na clínica (ainda que minha experiência fosse, predominantemente, como psicodramatista), após tantos anos de trabalho, incluindo uma mudança radical de rumo, eu já me guiava, nesse momento, por um certo pragmatismo, avesso a qualquer idéia de universalidade. Nietzsche ensinara-me a crítica radical da noção de verdade e a idéia de que todo conhecimento é perspectivo e eu aplicava esse perspectivismo à psicanálise:via as diferentes correntes psicanalíticas como originárias de diferentes perspectivas ou ângulos de visão e de interpretação da realidade, incluindo aí, obviamente, os referenciais epistemológicos adotados.

Então, comecei a perceber que sempre que eu conseguia emoldurar as reações emocionais da paciente por acontecimentos da sua história de vida, que emergiam por associação livre - e que, quase sempre, resvalavam pela falta de continência dos pais, a característica intrusiva da mãe e coisas afins -, a sua angústia se reduzia consideravelmente e ela se sentia mais compreendida e aceita por mim. Mas, para seguir esse rumo com alguma consistência teórica, eu teria de me aprofundar em Winnicott, já que os temas de suas associações livres eram maciçamente winnicottianos.1 Assim, afinal, por força das circunstâncias, o psicanalista inglês fazia a sua segunda entrada significativa na minha vida profissional e, de novo, por razões alheias à minha escolha. Só que, agora, a questão era mais séria, pois se tratava da clínica.

A mudança do ângulo de visão trouxe elucidações significativas ao caso. Um belo dia em que ela trouxe o dinheiro do pagamento das sessões num envelope que lhe fora dado pelo pai - que era quem pagava, muito a contragosto, a sua análise, dada a falta de condições financeiras do marido -, pude ver no envelope um nome que me chamou a atenção:Paul. Perguntei-lhe quem era Paul e ela me respondeu ser o apelido pelo qual o pai a chamava:um nome masculino. Depois disso, veio à tona -um tanto por rememoração, outro tanto por construção conjunta - o desejo dos pais de que fosse um bebê homem e a única alternativa existencial que tivera:tornar-se esse filho homem via falso self, como forma de ser aceita e amada. Então fez sentido, para mim, o fato de ela se vestir sempre com roupas masculinas e sonhar com um príncipe encantado que viesse despertar a sua feminilidade. E ela conseguiu entender por que seus pais tratavam o seu marido como filho, freqüentemente discutindo com ele assuntos que seriam de responsabilidade pessoal dela; ele representava para eles o filho que ela não pudera ser. Mais do que isso, ela se casara para dar aos pais o filho que não tinham tido pela via biológica. Mas, com isso, terminara por perder parte do espaço - já restrito - que ocupava na família e que nunca fora seu de fato, já que o personagem que representava nada tinha a ver com o seu verdadeiro self. Também ganhou sentido o fato de sua mãe se negar sistematicamente a partilhar com ela coisas do universo feminino, como modista, cabeleireira, etc., como se ela "não precisasse dessas coisas". Para os pais -e também para si própria -, ela não podia existir como a mulher que, efetivamente, era. Então, nada na sua vida fazia sentido e tudo resvalava num grande vazio, expresso na constante e implacável lamúria que a consumia, sem levá-la a lugar nenhum.

Após essa paciente, vieram outros casos clínicos igualmente significativos, e a importância de Winnicott no meu trabalho só fez aumentar cada vez mais. Afinal, talvez, as mudanças de direção mais significativas na nossa vida obedeçam a imperativos de outra ordem, que nada têm a ver com a razão consciente, mas com uma articulação entre as oportunidades oferecidas pelo acaso e nossos conflitos mais escondidos, quiçá inconscientes.

De duas coisas tenho certeza:quando abandonei o psicodrama para me tornar psicanalista, não tive escolha; da mesma forma, quando passei a dar a Winnicott uma posição central no meu trabalho - deslocando Bion para uma posição lateral-, também não tive escolha. Foram caminhos impostos a mim como condição de poder continuar exercendo a minha função clínica com rigor e eficiência. Entretanto, quando perguntei ao meu analista - meio provocativamente - como uma análise bioniana podia gerar um analista winnicottiano, ele me respondeu que a função de qualquer análise não é produzir cópias do analista, mas indivíduos autônomos, capazes de escolher o seu próprio rumo. Claro que já sabia disso, mas foi muito importante poder ouvir essa frase dele. Fez-me lembrar um ditado hassídico, relatado por Martin Buber, que diz mais ou menos assim:&Sou fiel ao meu mestre; assim como ele abandonou o seu mestre, também o abandonei". Como diria Winnicott - independentemente da linha teórica considerada -, um analista acolhedor e não intrusivo é fundamental e determinante para o bom resultado de qualquer análise.

 

Uma psicanálise da singularidade

Discorrer sobre as diferenças e semelhanças entre Winnicott e a tradição psicanalítica que o precedeu e sucedeu -de forma mais substancial e abrangente- constitui uma tarefa trabalhosa que certamente escapa aos propóitos deste texto. Entretanto, gostaria de ressaltar aquele que, na minha leitura, constitui o eixo maior em torno do qual gira a sua psicanálise, tanto de um ponto de vista teórico quanto técnico. Trata-se de uma sensibilidade especial para olhar e valorizar aquilo que, desde o nascimento, cada ser humano tem de prório, singular, inalienavelmente seu. Nesse sentido, diria que a proposta de Winnicott é a de uma psicanálise da singularidade.

Para ele, muito antes de o bebê constituir um si próprio, um self unificado e coeso, ele já se define por um estilo próprio de estar no mundo. Ou seja, o "próprio" precede o "si", designado pela maneira peculiar e única que cada bebê possui de aglutinar uma herança biológica e articulá-la de forma viva perante aquele ambiente singular que lhe dá sustentação. Esse "próprio", inicialmente incipiente, fragmentário, que Winnicott denomina gesto espontâneo ou criatividade (no seu sentido mais primário), indica o eixo principal que definirá a singularidade daquele ser humano durante toda a sua vida e, no melhor dos casos, o núcleo de onde ele se desenvolverá rumo à maturidade. A interação entre essa criatividade primária do bebê e o seu ambiente acolhedor produz experiência, a noção mais fundamental a todo o pensamento de Winnicott, já que é a partir dela que toda a sua psicanálise será descrita. Assim ele a descreve na carta a Money-Kyrle:"A experiência é um trafegar constante na ilusão, uma repetida procura da interação entre a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer" (Winnicott 1987b, p. 38; os itálicos são meus).

Uma psicanálise da experiência humana em seu devir próprio:esta, talvez, seja a definição mais sucinta que se poderia dar da obra winnicottiana, já que todo o sentimento de real que o bebê poderá vir a ter do mundo e de si próprio tem necessariamente de passar por essa zona da experiência. É por essa razão, penso eu - nenhuma outra -, que a experiência constitui o ponto de vista central em torno do qual toda a teoria e a prática winnicottiana gravitam.

Antes dele, nenhum outro psicanalista havia assumido esse ângulo de visão de forma tão radical e isso produz, obviamente, conseqüências também radicais. Por exemplo, a famosa querela entre winnicottianos e freudianos sobre a existência ou não da sexualidade desde o início da vida. Para alguém que assume a experiência como ponto de passagem necessário à constituição de qualquer realidade psíquica, não tem sentido falar em sexualidade como uma entidade própria, pois ela só será, de fato, sexualidade, no sentido real do termo, quando se constituir enquanto tal na zona de experiência. A "sexualidade"inferida pelo observador externo, ao ver o bebê sugar o dedo na ausência da mãe, não tem valor para Winnicott, é pura especulação teórica se o bebê nã a experienciar enquanto tal. Falando das "forças do id" Winnicott comenta:

Inicialmente, elas são externas ao infante. Na saúde, o idé agregado a serviço do ego e o ego torna-se senhor dele, de tal forma que as satisfações do id vêm fortalecer o ego. Isso, entretanto, é uma conquista do desenvolvimento saudável e, na inf´ncia, há muitas variantes que dependem do relativo fracasso nessa conquista. Na doença/saúde da infância, conquistas dessa espécie são minimamente atingidas, ou podem ser obtidas e perdidas. Na psicose infantil (ou esquizofrenia), o id permanece relativa ou totalmente "externo" ao ego, e as satisfações do id permanecem físicas, tendo como efeito ameaçar a estrutura egóica, até que defesas de qualidade psicótica sejam organizadas. (Winnicott 1960, p. 40; os itálicos são meus)

De forma análoga, num indivíduo de falso self, o id também não é apropriado pelo ego, na medida em que as pulsões eróticas não chegam a ser registradas, enquanto tais, pelo self verdadeiro; portanto, não podem constituir experiência. Permanecem, no nível do falso self, como sensações ou atos, ora reduzidos a uma dimensã puramente física, destituída de qualquer sentido emocional, ora capturados por mecanismos mais primários e básicos na história do desenvolvimento infantil. Portanto, o que se poderia chamar, aí, de "sexualidade", de fato não o é, no sentido real do termo. Considere, por exemplo, uma paciente que atendo, cujo eixo de existência é o falso self. Em momentos de extrema angústia, busca relações "sexuais" com parceiros diversos:"É uma forma d’eu me sentir viva, existindo, de não me dissolver no nada", ela me diz. Ou seja, quando se sente ameaçada de cair num grande vazio, usa dessa forma de contato corporal para recompor a sua presença no mundo, buscando o contato "sexual" como uma forma de holding/handling. Qualquer insistência psicanalítica em interpretar esses atos como busca de prazer pode significar esticar o sentido desse conceito até um ponto em que ele já não significa mais nada.

Do mesmo modo, a noção de pulsão de morte, diante do critério experiência, só pode ser algo destituído de sentido. A idéia de um que tenda à redução do nível de excitação do organismo a zero, em direção ao inorgânico (essa é a definição freudiana do conceito), não é algo passível de experiência; é um puro constructo teórico. Todos já experimentaram, na vida, impulsos agressivos e destrutivos, depressões de alguma índole ou mesmo experiências compulsivas e repetitivas, mas elas não definem, por princípio, nenhuma pulsão de morte, concebida em termos assim expressos.

O que Freud chamou de compulsão à repetição - e de onde deduziu a pulsão de morte - aparece freqüentemente na clínica winnicottiana sob a forma de regressões a um estado de dependência, que se produzem de maneira espontânea, num movimento de resgate de acontecimentos arcaicos da história de vida, a fim de fazê-los passar pela área de experiência. Ou seja, para Winnicott, não se trata, aí, de repetições compulsivas que visariam à descarga da angústia gerada por um trauma irrepresentável, nem tampouco da tentativa de produzir ligações psíquicas, transformando a energia livre (que transita sob a forma de angústia) em energia ligada - como queria o Freud de Além do princípio do prazer. Repete-se o acontecimento simplesmente para criar uma segunda, terceira, quarta... enésima chance de - sob condições ambientais mais propícias - esse acontecimento vir a se tornar experiência.2

Essas são algumas das conseqüências radicais, no plano teórico, da centralidade que ocupa a noção de experiência na psicanálise de Winnicott. Mas já ouvi psicanalistas freudianos negarem-lhe a condiçã de psicanalista, em função dessas querelas. É preciso entender, entretanto, que cada produção teórica - filosófica ou científica - se assenta na perspectiva da qual parte e nos pressupostos que essa perspectiva implica. Seria frutífero, então, mais do que uma guerra para saber quem detém "A Verdade", procurar explorar as conseqüncias desses diferentes pontos de partida em cada produção teórica, avaliando as vantagens e desvantagens dos mesmos. Mas essa é uma questão longa e complexa que, infelizmente, não pretendo desenvolver aqui, porque fugiria aos propósitos deste texto.

Segundo Winnicott, a zona de experiência, centrada na criatividade primária do bebê, necessita de sustentação e continência por parte do ambiente, que constitui a contraparte fundamental para que ela possa operar enquanto tal. Também aía sua postulação é radical:é preciso que a criatividade do bebê possa ser exercida e tome forma dentro do espaço total que engloba e garante a sua existência, ou seja, na relação indiferenciada mãe-bebê, acontecendo numa continuidade de ser que abrange o bebê e seu ego auxiliar. Garantir essa continuidade de ser e velar pelo seu não rompimento é tarefa da mãe suficientemente boa, ao oferecer ao bebê os objetos na hora e da forma que ele os necessita e fazê-lo acreditar que é ele quem os cria, numa ilusão de onipotência. Essa, aliás, é apenas uma maneira bastante aproximada de descrever o acontecimento, já que, nesse estágio, nem sequer existe esse "ele" capaz de criar os objetos; melhor seria dizer que eles aparecem quase magicamente, como se o bebê fosse capaz de se metamorfosear no próprio objeto no momento em que necessita dele. Se pensarmos no intervalo que separa o corpo agitado do bebê faminto até encontrar o seio e começr a sugá-lo, torna-se fácil entender que ele existe primeiramente como essa "busca voraz de seio" e, já no momento seguinte, como esse puro "sugar", identificado a esse leite que entra pela sua boca e elimina aquela urgência inominável que o consumia até então. O intervalo de tempo entre um estado e outro necessita ter uma duração suficientemente responsiva aos movimentos de busca do bebê para garantir a sua continuidade de ser. Isso para que, com o passar do tempo, essa continuidade possa ser temperada pelas descontinuidades e a mãe venha, paulatinamente, a frustrar o bebê, ajudando-o no amadurecimento necessário à vida.

Já ouvi muitos perguntarem o porquê de ser tãonecessária a preservação dessa continuidade de ser, formada pelo bebê e pelos cuidados da mãe provedora. Sempre respondo que a continuidade define a forma de o infante recém-nascido estar no mundo. Quando Winnicott diz que um bebê não existe sozinho, mas somente acolhido e sustentado pela mãe - ou algué que exerça as suas funções -, é precisamente isso que quer dizer:que o bebê experimenta a mãe e seus cuidados como parte do seu existir. Romper a continuidade de ser do bebê significa, pois, privá-lo de uma parte do seu espaço vital. Seria como romper a casca do ovo de um pintinho num período em que ele ainda se encontra em plena formação.

Também causa muitos mal-entendidos a noção de mãe suficientemente boa, em grande parte porque, por algum motivo, normalmente se retém da expressão as palavras "mãe" e "boa" e se elide aquela que as une:"suficientemente". Trata-se de um conceito puramente operacional, em que essa noção de suficiência define justamente um limite, inteiramente singular e variável, não só para cada relação mãe-bebê, mas ainda para uma mesma relação ao longo do tempo. Evidentemente, uma mãe suficientemente boa, como a própria expressão diz, não é uma mãe absolutamente boa, sem falhas. Pode parecer que estou falando o óbvio, chovendo no molhado, mas é assim que, grande parte das vezes, a noção é compreendida, especialmente por leigos. Para além do limite definido pelo termo suficientemente, encontra-se a preservação da continuidade do ser e a saúde psíquica. Winnicott enfatiza que, nesse nível de suficiência, as impingidelas (impingements) sofridas pelo bebê por parte de seu meio ambiente não chegam a ter um efeito patogênico, podendo ser concentradas e incorporadas pela sua zona de onipotência e sentidas como projeçõs suas, no sentido descritivo e dinâmico (e não metapsicológico) do termo. Portanto, não chegam a interromper a continuidade de ser do bebê (Winnicott 1960c, p. 46). Aquém desse limite, entretanto, estão as agonias impensáveis e as defesas que se criam para evitá-las.3

Um outro aspecto que gostaria de salientar é a idéia winnicottiana de que a criatividade do bebê tem de poder ser exercida desde o absoluto início para se desenvolver e continuar ao longo do tempo, conquistando, mais adiante, a zona do espaço potencial. Ou seja, se a vida do bebê não encontra espaço para se expandir criativamente -e, no início, esse espaço inclui necessariamente a mãe -, essa qualidade do próprio, singular, único que define o ser do bebê, e que mais adiante iria formar um self unificado e criador, definha e se esconde; para protegê-la, produz-se um falso self. Isso significa que a vida desabrochante não tolera malabarismos e subterfúgios:quando não pode exercer a sua pujança criadora num nível mínimo de suficiência, recolhe-se à espera de algum momento posterior em que isso seja possível; ela não se realiza com meias medidas, jãque viver não equivale, em momento nenhum, a sobreviver.

Penso que toda a psican álise de Winnicott define-se, do início ao fim, tanto em termos teóricos quanto técnicos, pela busca desse caráter singular, único, que define cada ser humano em cada estágio de vida e que se realiza através da experiência humana em seu devir próprio.

 

Uma clínica da experiência

De forma análoga à teoria, a análise winnicottiana define-se eminentemente como uma clínica da experiência. Mas o que significa isso na prática? Significa precisamente que o valor terapêutico do processo analítico reside na possibilidade de oferecer ao analisando a chance de uma segunda vez, retomando processos traumatogênicos congelados no tempo e, então, paulatinamente, ir tornando as defesas desnecessárias e abrindo espaço à emergência da criatividade que elas encobrem. Em outros termos, poder, através da transferência, refazer analiticamente caminhos passados, possibilitando a passagem pela área da experiência de acontecimentos essenciais ao amadurecimento, que dela ficaram clivados na história original. Com isso -specialmente nos casos-limites- possibilitar ao self verdadeiro vir a ter uma existência real. Para tanto, é conhecida de todos a importância que Winnicott atribuía à regressão a um estado de dependência, ao longo do processo analítico, como forma de realizar essas retomadas.

Tudo isso pode parecer, à primeira vista, muito claro e cristalino. Mas tenho percebido - em discussão com vários colegas - que as compreensões sobre esses processos estão muito longe de um consenso. Por isso, gostaria de caminhar um pouco mais nessa busca de discriminação, usando, para tanto, de um recurso de contraste com uma outra proposta psicanalítica, não-winnicottiana. Para isso, terei de realizar um desvio de rota, para, em seguida, retornar ao meu tema original.

 

Desvio de rota:uma clínica de casos-limites neofreudiana

Tomemos, por exemplo, a psicanálise dos casos-limites, um tema extremamente atual, ao qual muitos psicanalistas, de diferentes correntes, têm se dedicado.

Algumas vertentes pós-freudianas de origem francesa, embora reconhecendo o caráter eminentemente traumatogênico dos casos difíceis, propõem, no nível da técnica, uma ação eminentemente interpretativa/construtiva por parte do psicanalista, entendendo a patologia desses casos como falhas de simbolização a serem supridas via análise. No nível etiológico falam, também, de marcas de um outro (geralmente a mãe) introduzidas à força no bebê; marcas - geralmente - não apropriadas nem simbolizadas por esse outro que as impinge, o que significa que esse processo se dá num nível basicamente irrepresentável e transgeracional, ou seja, que essa mãe - quando bebê - teria sofrido alguma violência do mesmo gênero. Trata-se, pois, sempre, de intrusões sofridas pelo bebê, coagido a abrigar elementos estranhos:marcas de um outro, sem inscrição no registro simbólico. Embora a descrição tenha características peculiares -calcadas numa metapsicologia freudo-lacaniana -, poderia até nos evocar, num primeiro momento, a mãe intrusiva descrita por Winnicott, que produz como reação do bebê a formação de um falso self.4

No entanto, pela descriçã de algumas das propostas psicanalíicas que se seguem, podemos facilmente perceber as diferenças radicais que articulam ambas as concepções. Pois, nesse tipo de concepção neofreudiana, a análise geralmente visa a propiciar ao sujeito a ligação, apropriação e simbolização dessas marcas, desses fragmentos do outro que atravessam a sua subjetividade como corpos estranhos. Isso por uma razão muito simples:porque se avalia que, nesses casos, só existem duas possibilidades para o analisando. Uma delas é repetir compulsivamente o acontecimento traumático da imposição das marcas, atravé da pulsço de morte, numa tentativa desesperada de - através da repetição compulsiva - descarregar parte da angústia produzida e conseguir dar às marcas uma representação possível, capaz de ligá-las ao interior das redes associativas mnemônicas que compõem o psiquismo. Outra possibilidade - menos traumática - de realizar essa tarefa de ligação das marcas seria pelo processo psicanalítico, ao favorecer a sua simbolização e apropriação. Em ambos os casos, essa ligação garantiria à marcas e às experiências a elas associadas um lugar psíquico possível, na forma de memória:parte inalienável da própria história e do próprio psiquismo. Essa interpretação segue à risca a idéia - bastante difundida pelas psicanálises pó-freudianas de linha francesa - de que a própria sexualidade do bebê-lhe é transmitida pela mãe quando, de alguma forma, marca o seu corpo com seu manuseio, eivado de eroticidade. Aí, pois, a mãe nã é concebida como um ego auxiliar do filho, capaz de identificarse com ele e adaptar-se às suas necessidades num nível suficientemente bom, funcionando fundamentalmente como um eixo de sustentação, capaz de abrir espaço à criatividade originária do bebê. Ela é pensada como alteridade radical, cujo contato com o filho é sempre traumatizante, introduzindo nele necessariamente algo de não-próprio. Mais do isso:esse seu ato de marcar o corpo do bebê é visto como fundamental e importante, jáque é introdutor da sexualidade. Pressupõe-se que, se as marcas maternas forem elementos simbolizados - ou seja, passíveis de representação, ainda que a imposição delas se dênum nível inconsciente -, provocarão um efeito menos patogênico já que, enquanto inscrições inconscientes, podem potencialmente gerar representação consciente. Nesses casos - em vez de marcas, fala-se de traços ou sinais, aludindo à inscrição destas no registro simbólico.5

Nessa vertente teórica, quando o bebê é marcado por elementos não apropriados e simbolizados pela mãe, caberá a ele, ao longo da vida, dar continuidade à tarefa materna não realizada:a apropriação e simbolização dos elementos sem representação que articulam o seu psiquismo como corpos estranhos. Temos, então, aí, grosso modo - nesse tipo de concepção -, a caracterização de um paciente-limite. Dentre as ferramentas clínicas - criadas com a finalidade de ajudar o analisando a simbolizar essas marcas patogênicas e apropriar-se delas - encontramos, em geral, propostas de novas formas de interpretação ou de construção psicanalíticas. A tarefa aí é vista como bem mais complexa do que a que implica pacientes neuróticos, já que as marcas - estando fora do registro simbólico - não se encontram recalcadas, nem retornam por formações de compromisso, como no caso dos histéricos e obsessivos. Marta Rezende Cardoso discute, por exemplo, a criação, na sessão analíica, de novos traços - "invenção de fantasias" - capazes de operar como representações-palavras e promover a simbolização das marcas, que operariam, então, na qualidade de representações-coisas (o analista funcionando, aí como metteur em scène e incitando o analisando a essa "invenção de fantasias"). Outro recurso proposto por ela é tentar captar - na "ateralidade" do discurso do paciente - índices, pequenos detalhes fora de circuito, que possam ressurgir na memória do sujeito e funcionar como elementos capazes de compor uma cena, apta também a promover a ligação dos elementos não simbolizados.6 Esses são apenas dois dos recursos propostos, tomados aqui à guisa de exemplo, mas eles sinalizam a direção dos esforços aí empreendidos:trata-se de criar narrativas inclusivas, capazes de, em algum momento, envolver as marcas e dar-lhes representação possível, criando-lhes um lugar psíquico.

Não pretendo me alongar, aqui, mais do que isso, no detalhamento dessa concepção, embora reconheça que a descrição aqui realizada é bastante sintética e está longe a fazer jus à sua complexidade, enquanto tal. Entretanto, detalhá-la mais fugiria totalmente aos propósitos deste texto, já que minha intenção é simplesmente usá-la como contraste, a fim de poder discriminar melhor a clínica winnicottiana.

 

De volta à clínica winnicottiana

Em primeiro lugar, para Winnicott, a questão clínica jamais seria a apropriação e simbolização de marcas alheias, inclusive porque o que delas possa existir na composição de um falso self não constitui nem deverá vir a constituir o cerne do si-próprio que busca expressão e forma numa análise. Em termos winnicottianos, a patologia dos casos-limites constitui-se, justamente, pelo fato de características alheias terem sido "apropriadas" mais do que o devido, quer dizer, assumidas no lugar do próprio - ainda que como camuflagem defensiva. Isso näo teria acontecido se o ambiente tivesse sido continente e responsivo à criatividade original do bebê, num nível suficientemente bom, ou, noutros termos, se a mãe tivesse tido uma saúde mental suficiente boa para os cuidados do pequeno infante. Para Winnicott, o que define essas marcas do outro, desde sempre, é o caráter alheio, não-próprio, que, ao incidir de forma intrusiva na constituição psíuica do bebê além de um certo limite, rompe a continuidade de ser desse bebê e produz - como reação - a ocultação do que é genuinamente próprio pela produção de um falso self.

A sua proposta analítica é, pois, condizente com essa forma de compreensão:através de uma relação terapêutica de suporte - capaz de abrir espaço a regressões sucessivas do paciente -, tornar, paulatinamente, desnecessária a função defensiva do falso self, para que o self verdadeiro - a singularidade do analisando - possa emergir e ir tomando forma, relativizando o falso self e relegando-o à posição funcional de mediação com o mundo social. Esse é um processo eminentemente experiencial, no qual a questão primeira não é ligar nada, nem simbolizar nada, pelo menos por princípio. Trata-se - volto a repetir - de fazer passar pela área de experiência - portanto, da criatividade originária - acontecimentos fundamentais ao processo de amadurecimento, que dela ficaram cindidos porfalhas ambientais. Então, através disso, possibilitar que o self verdadeiro possa - no seu tempo e na sua forma próprios - vir a registrar esses acontecimentos e deles se apropriar paulatinamente. Sem dúvida, novos processos de simbolização tenderão a ocorrer como conseqüência da experiência, que se processa em grande parte no espaço potencial e, ao retomar situações traumáticas congeladas, tende a promover a rememoração das mesmas e a emergência dos afetos aí gerados, fazendo grande parte disso tudo passar pela linguagem. Ou seja, a simbolização aí é conseqüência, não finalidade. Isso é importante sublinhar, porque, para Winnicott, processos de simbolização que não passem pela área de experiência, numa análise, são vistos não só como antiterapêuticos, mas também como patogênicos.

Por razões análogas, não se trata, no nível da função analítica, de fazer proliferar novos recursos interpretativos ou de construção, capazes de promover narrativas inclusivas - conjuntos de representações-palavras - para dar forma a marcas indizíveis. A psicanálise winnicottiana é avessa à noção de representação, pelo menos no que se refere aos estágios primordiais do amadurecimento, com os quais efetivamente tratamos na psicanálise dos casos-limites. A função básica do analista será, aí, a de sustentação do processo, muitas vezes organizando e fornecendo algum contorno provisório para o universo cindido - e, às vezes, caótico - do analisando, mas com muito cuidado com a função interpretativa e/ou construtiva para não repetir a intrusividade do ambiente originário.

Não se trata, evidentemente, de negar o valor terapêutico da interpretação ou da construção psicanalíticas, quando usadas de forma cuidadosa, criteriosa e sintônica com o paciente, mas de estar atento ao caráter de intrusividade que possam ter, em momentos cruciais da análise, quando tratamos um paciente-limite. Winnicott, mesmo quando cuidava de pacientes normais/neuróticos, dava uma importância muito grande à sustentação do processo analítico, dando tempo para que o paciente pudesse, no seu tempo próprio, ir elaborando os impasses e abrindo caminho ao devir e evitando qualquer processo interpretante de decodificação simbólica, realizado sem a sustentação necessária. Tome-se como exemplo o tratamento da pequena Piggle (Winnicott 1977), em que o holding estava sempre em primeiro lugar, ao longo do brincar, só dando lugar a alguma interpretação em momentos em que funcionasse como explicitação de algo que a menina já estivesse ela mesma formulando, no seu tempo próprio. Aí Winnicott assumia, o tempo todo, uma função de suporte, o que implicava, muitas vezes, encarnar ele próprio, no jogo, partes projetadas e não assumidas pela menina e permanecer nelas, sem forçar qualquer interpretação introjetiva, dando tempo para que Piggle pudesse amadurecer e estar pronta para, espontaneamente, incluí-las no seu self. Ou seja, era o processo de experiêcia da menina, com a sua temporalidade própria, que comandava o processo analítico, o tempo todo.

Quando tratamos de pacientes-limites, o cuidado com as interpretações e construções têm que ser ainda maiores. Nesse contexto, um analista bioniano um pouco mais afoito, certo de estar cumprindo a função fundamental de rêverie e devolvendo identificações projetivas devidamente elaboradas para o seu paciente, corre um grande risco de caminhar na frente do processo e ser altamente nocivo ao desenrolar deste como um todo.

 

À guisa de conclusão

Não quero concluir este texto dando a falsa impressão de que sou um psicanalista winnicottiano ortodoxo, mesmo porque nada estaria mais longe da verdade. Infelizmente - ou felizmente, sei lá -, tenho uma índole eminentemente nômade, o que me leva a usar as teorias e técnicas como abrigos sempre provisórios, até que surja uma nova necessidade de caminhar e de me deslocar. Ou, se usarmos aí a metáfora de um rio, diria que faz parte da navegação sair de dentro das águas, com uma certa freqüência, para mudar de perspectiva e tomar distância crítica. Como afirma J. B. Pontalis:"Não recuso as teorias. Prefiro navegar nas suas margens" (2002, p. 86).

No entanto, acho importante estabelecer distinções rigorosas, como a que tentei realizar anteriormente, pois penso que elas são fundamentais sempre que se necessita escolher direções a seguir no âmbito da clínica. É preciso saber para onde se caminha e as possíveis conseqüências desse caminhar, pelo menos para dar alguma segurança aos nossos pacientes, ainda que essa segurança seja sempre precária numa profissão em que se está sempre a andar sobre ovos.

De qualquer forma, tenho de reconhecer que, principalmente quando tenho pela frente pacientes difíceis, a perspectiva winnicottiana tem se revelado a mais frutífera e a mais promissora. Uma paciente de quem já falei aqui (que constituiu o seu eixo de existência no falso self) e que venho acompanhando há cerca de seis anos, numa freqüência de três ou quatro sessões semanais (em diferentes períodos), disse-me outro dia:"Quando encontro amigas da infância e conversamos, rememorando situações de jogo, situações em que estávamos juntas e, segundo elas, expressando emoções intensas, elas acabam sempre ficando muito surpresas - e eu muito envergonhada -, porque nunca me lembro de nada. É como se as lembranças não grudassem em mim, como se não houvesse cola capaz de fazê-las grudar em mim". Numa outra sessão, do mesmo período, concluiu:"Até agora eu só tinha pré-história; sinto que, agora, estou começando a criar uma história". Nesse tipo de processo, sei que estou trabalhando, na maior parte do tempo, no âmbito da pré-história:esse período com muito poucos registros ou marcas pessoais, em que a vida resvala num vazio, incapaz de encontrar sentido e realidade.

Com pacientes neuróicos - e eles existem, sem dúvida alguma - sinto-me mais à vontade com a minha índole infiel; embora a postura geral analíica ainda seja winnicottiana, posso namorar Freud, Ferenczi, Klein, Bion, Green, Ogden, aproveitando o que cada um deles pode me oferecer de melhor, em momentos diferentes. Não me sinto embaralhado com perspectivas teóicas tã diversas; para mim, éum exercício altamente produtivo exercitar-me nos diferentes olhares, nas diferentes perspectivas de análise:quando estou em sessão, elas se fazem espontaneamente em mim; quando paro para refletir sobre os meus casos, transformo isso num exercíio intelectual enriquecedor.

Também não me sinto um psicanalista ecléico, pois sei que a consistência do meu caminhar não me é dada de fora, mas conquistada de dentro, através de um caminho árduo, construído passo a passo.

 

Referências

De A. F. França, Maria Olímpia e Petricciani, Marta (orgs.) 1998: Antonino Ferro em São Paulo. São Paulo, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.        [ Links ]

_____ 2003: O pensamento clínico de Antonino Ferro. São Paulo, Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Freud, Sigmund 1920: "Más alládel principio del placer". Obras completas. v. XVIII. Buenos Aires, Amorrortu.         [ Links ]

Leclaire, Serge 1968: Psicanalisar. São Paulo, Perspectiva.        [ Links ]

Pontalis, Jean Baptiste 2002: En marge des jours. Paris, Gallimard.         [ Links ]

Resende Cardoso, Marta 2006:"A insistência do traumático no espaço psíquico e psicanalítico". Pulsional - Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XIX, n. 185, pp. 7-19.        [ Links ]

Roussillon, René 1999: Clivage et symbolisation. Paris, P.U.F.         [ Links ]

_____ 2001: Le plaisir et la répétition. Paris, Dunod.         [ Links ]

Winnicott, Donald W. 1960c:"The theory of parent-infant relationship". In:Winnicott, Donald W. 1965b:The maturational processes and the facilitating environment. London, Karnac, 1990.        [ Links ]

_____ 1977:The Piggle: an account of the psycho-analytic treatment of a little girl. London, Hogarth Press/The Institute of Psycho-Analysis.         [ Links ]

_____ 1987b:Selected Letters of D.W. Winnicott. Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press. Tradução brasileira: O gesto espontâneo. São Paulo, Martins Fontes, 1990.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail:anaffah@giro.com.br

Recebido em 30 de agosto de 2005.
Aprovado em 27 de dezembro de 2005.

 

 

1 Aí, embora, por um lado, eu tivesse de recorrer a Winnicott - já que o material psíquico trazido pelas associações livres da paciente me levava a ele, sem nenhuma sombra de dúvida -, por outro, recuperava o procedimento clássico freudiano de me guiar pelas associações livres da paciente, método do qual já fora um tanto quanto afastado pela escola kleiniana (que sempre remete tudo à transferência). Isso provavelmente tornou-me, como psicanalista, mais aberto e sintônico à necessidades da paciente.
2 Antes de Winnicott, Ferenczi já intuíra esse sentido clínico daquilo que Freud denominara compulsão à repetição, chamando a atenção para a importância curativa das regressões em análise, enquanto possibilidade de repetição do trauma, numa relação humana mais continente e capaz de facilitar a significação e elaboração do mesmo. Chegou-se mesmo a encontrar, dentre os fragmentos finais de Ferenczi (não publicados em vida), uma frase negando a existência das pulsões de morte. Entretanto, por várias circunstâncias, ele permaneceu, em grande parte, prisioneiro da metapsicologia freudiana. Caberia a Winnicott dar um passo além.
3 Winnicott define como agonias impensáveis:retornar a um estado de não integração; cair para sempre num vazio sem fundo; o estranhamento em relação ao prório corpo, sentido como não próprio; a perda do sentido de realidade; a perda da capacidade de relacionar-se com objetos; o completo isolamento, sem qualquer forma de comunicação.
4 Exemplos desse tipo de proposta neofreudiana encontram-se, por exemplo, nos livros de René Roussillon (1999 e 2001) ou no artigo de Marta Rezende Cardoso (2006). É nesse último texto, entretanto, que quero concentrar as minhas referências, já que foi a sua leitura - quando ele ainda estava em fase de revisão e foi discutido num grupo do qual ambos participávamos - que, parcialmente, mobilizou a escritura do presente artigo, justamente por perceber o quanto a proposta de Winnicott - que é citado no artigo de Marta, como se pudesse se encaixar nessa sua visão de clínica - diverge fundamentalmente da mesma. A citação de Winnicott ocorre quando Marta fala da destrutividade do analisando tipo estado-limite:"destrutividade, que será atuada pela insistência de certas figuras do "mal", figuras da violência pulsional, da pulsão de morte, tende a sobrepujar os processos de simbolização, fazendo com que o foco da interpretação tenha que se dirigir mais para o problema da utilização do objeto (de acordo com o que Winnicott desenvolveu...)"
5 Serge Leclaire (1968), por exemplo, chama a esses sinais de letras.
6 Essas propostas encontram-se no texto citado, pp. 17-18.