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Natureza humana

versión impresa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dic. 2005

 

TRADUÇÕES

 

Carta de Jacques Lacan a Donald W. Winnicott, 05 de agosto de 1960*

 

Letter of Donald Jacques Lacan to Donald W. Winnicott, 5th August 1960

 

Uma fotocópia desta carta, manuscrita, de Lacan a Winnicott, foi transmitida a J. A. Miller pela Sra. Ellie Ragland­Sullivan; transcrita pela Sra. Gloria Gonzales e o Sr. Russel Grigg, foi publicada em Ornicar? nº 33, abril - junho de 1985, pp. 7­10.

 

Villa La Brigida - Parcs de Saint­Tropez - Saint­Tropez - Var

 

 

Muito caro amigo.

Eu trago comigo sua carta desde 11 de fevereiro (digamos 12) quando a recebi. É somente agora, depois de alguns dias de férias, que eu me sinto bastante à vontade para responder­lhe a meu gosto (poupe­se, poupe­me de imaginar o que isso representa enquanto ausência de descanso).

Eis­me aqui, portanto, a relê­la e a degustá­la como uma gentileza recente. Ponhamos fim à vergonha que eu senti pelo equívoco da alteração de seu nome, e não somente numa citação de um texto, mas como um autor que estava honrando o nosso sumário1 . Equívoco mesmo: aquele que corrigiu as provas, embora conhecendo seu nome bem como seus artigos, não constatou o erro de impressão. O ridículo afeta todos nós; não o tome como uma ofensa.

Com referência à oferta amável que você me faz de ir falar à Sociedade de Londres, como não ser sensível a esta quando ela se cerca de explicações tão profundamente benévolas. Apresentadas conforme são, como eu pensaria em melindrar­me com estas conveniências, mesmo se elas me recordam aquilo que constantemente me fere?

Eu estava demasiado atarefado para responder ao seu convite antes das férias (eu havia recebido sua carta ao retornar de Bruxelas, onde realizei duas conferências). Mas irei no começo do ano quando convir a você e nas condições que você estabelecer.

Eu consagrei o meu ano de seminário à tentativa de estabelecer as bases de uma Ética da Psicanálise. Você me dá, creio eu, o crédito de imaginar que eu mensurei as dificuldades, a audácia do tema. A paixão do trabalho não me deixa tempo para nenhum vão arrependimento.

Eu poderia, no entanto, talvez ressentir­me hoje do que você me diz sobre não haver podido assimilar propriamente o sentido do meu artigo nem mensurar a sua importância2.

É aí que eu posso sentir o que perde o meu ensino por não ter dentro da nossa comunidade sua difusão normal. E isto me é tanto mais sensível quando se trata de você, com quem eu me sinto com tantas razões para entender­me.

Posso precisar que escolhi, para esse memorial de Jones, falar da sua teoria do simbolismo.

1. porque eu encontro seu esforço como o mais fundamentado, em princípio, para situar em relação à metáfora, quer dizer, a uma figura de linguagem, os efeitos ditos do simbolismo em análise (lamentando que este esforço, antes de mim, tenha ficado sem continuidade);

2. porque seu fracasso é instrutivo, como o são os fracassos dos espíritos vigorosos. Os furos que se mostram em seu empreendimento designam os lugares onde estes devem ser retificados;

3. porque encontro ali, ainda, uma confirmação das minhas teses sobre a função privilegiada do falo: a forma como a derivo de suas relações com o significante está ilustrada de forma tão mais impactante na medida em que o é sem o conhecimento do autor, pelo fato de que cada um dos exempos que ele é levado a promover para satisfazer sua teoria não é outra coisa que um símbolo fálico.

Isso não pode, porém, ser bem compreendido se não por aqueles que sabem o que eu faço girar de decisivo (para o pensamento da nossa ação tanto como para sua técnica) em torno das relações do significante com o real. Posição que resume a afirmação de que "a relação do real com o pensamento não é aquela do significado com o significante, e que o primado que o real tem sobre o pensamento se inverte do significante para o significado".

Digamos que se deve inverter a passividade implicada no verbo significar, e conceber que o significante marca o real tanto ou mais do que o representa.

Não se equivoque, não há aí nem idealismo nem mesmo simples filosofia, mas tão somente esforço para inverter um preconceito cuja falsa evidência se confunde com tudo aquilo que oferece mais obstáculos a nossa experiência, com tudo o que nos desvia do caminho na sua configuração exata, com tudo que nos anima a camuflá­la para fazê­la admitir no exterior.

Eu admiro em Jones uma profunda a percepção da verdadeira relevância desta experiência, e eu poderia encontrar muitos outros termos originais de sua obra, a aphanisis, ou a noção de privação como distinta da frustração, ou eu teria podido demonstrar o que elas acrescentam ao que eu mesmo ensino. Eu escolhi este artigo sobre o simbolismo porque ele me permitia esclarecer para meus alunos certos pontos difíceis da teoria e da história analíticas.

Tal é o que me orienta sempre em minha escolha. Tudo o que tenho escrito há sete anos não vale mais que no contexto do meu ensino.

De fora, você nåo pode saber tudo o que eu construí sobre uma distinção tão simples, decisiva e fundamental como a do desejo e da demanda. Ela aparecerá com vários anos de atraso sob a forma de uma reenunciação de meu relatório de Royaumont (1958) no próximo número de La Psychanalyse (você se lembrará talvez do título: "The rules of the cure and the lures of its power")3.

E no entanto, como eu me sinto sustentado e de acordo com suas pesquisas em seu conteúdo e em seu estilo. Este "objeto transicional" do qual eu mostrei aos meus todos os méritos4, não indica ele o lugar onde se marca precocemente esta distinção entre o desejo e a necessidade?

Agora me parece, entretanto, que devo reunir todo esse esforço em uma obra que fixe disso o essencial. Mesmo se eu não tivesse tempo de fazê­lo, sei que um impulso é dado a um grupo ou uma direção será preservada o tempo suficiente para ser transmitida mesmo que se esqueça sua origem.

Como tudo isso será forjado, neste relativo isolamento, não é uma questão que me concerne particularmente. A confusão de línguas no interior da Internacional me poupa muito de lamentar ter continuado minha carreira fora dela.

Você sabe, talvez, que nós faremos este ano um pequeno Congresso com os holandeses, em Amsterdã, sobre a sexualidade feminina. Outro tema, negligenciado desde Jones, que acreditei dever trazer à ordem do dia. Eu me abstenho esta vez de produzir um relatório lá, eu abrirei o Congresso e me interessarei menos em nele intervir do que em ver o que darão aqueles que eu formei.

Eu estou aqui com minha mulher e minha filha mais jovem. A outra, Laurence, a filha de minha mulher que você evoca tão gentilmente a propósito da garrafa quebrada na cozinha, deu­nos este ano muita preocupação (do que nós estamos orgulhosos), tendo sido presa por suas relações políticas. Ela está livre agora, não obstante nós permanecemos ansiosos por um assunto que não está ainda encerrado.

Nós temos também um sobrinho, que viveu como um filho em nossa casa durante seus estudos, que foi recentemente condenado a uma pena de dois anos de prisão por sua atividade de resistência à guerra da Argélia.

Que isso complete para você o quadro daquilo que envolve um silêncio demasiado longo. Que isso o ajude a me perdoar, se eu acrescento que meu pensamento está seguidamente dirigido a você e sua esposa, com toda a amizade que nós lhes devotamos em minha casa for ever.5

J. Lacan
Neste 5 de agosto de 60.

 

 

*Tradução do francês e notas por Roberto B. Graña, psicanalista, membro titular da Associação Psicanalítica Internacional.
1 Trata­se do sumário do número 5 da revista La Psychanalyse (PUF, 1959), onde figura uma tradução do artigo de Winnicott "Transitional Objects and Transitional Phenomena"; o nome do autor aparece ali com um só t.
2 O artigo em questão, que abre o número 5 de La Psychanalyse, é "À la mémoire d′Ernest Jones: sur sa théorie du symbolisme" (reimpresso nos Écrits, pp. 697­717).
3 A alusão de Lacan a este relatório, A direção do tratamento e os princípios de seu poder, posteriormente incluído nos Écrits, p.612, encontra sua explicação no fato de o autor haver­se neste referido elogiosamente à investigação de Winnicott sobre a gênese do psiquismo a partir da observação direta de crianças e às citações recorrentes do nome de Winnicott ao longo do seu seminário dos anos 1956­57, sobre as relações de objeto. Encontramos, no relatório referido, a seguinte passagem: "E por havermos nós mesmos retomado, num ano de nosso seminário, os temas da relação de objeto, mostramos o valor de uma concepção em que a observação da criança se nutre da mais precisa reformulação da função dos cuidados maternos na gênese do objeto: referimo­nos à noção de objeto transicional introduzida por D.W.Winnicott, ponto­chave para a explicação da gênese do fetichismo".(Nota do Tradutor)
4De fato seria exaustiva a transcrição, e mesmo a indicação, aqui de todas as passagens dos Seminários nas quais Lacan articula laudatoriamente as referências ao gênio e à obra de Winnicott. No seminário 4, A relação de objeto, no seminário 10, Angústia, e no seminário 15, O ato psicanalítico, estas são freqüentes e Lacan não hesita em atribuir a Winnicott uma das mais importantes descobertas da teoria psicanalítica: o objeto transicional. No ano mesmo em que escreveu esta carta, ele havia afirmado num artigo intitulado Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano: "Quanto ao ganho obtido em relação à angústia no que tange à necessidade, esse desprendimento tem êxito desde sua modalidade mais humilde, aquela sob a qual um certo psicanalista a vislumbrou em sua prática com a criança, denominando­a de objeto transicional - em outras palavras, o pedaço de pano e o caco querido que não abandonam mais o lábio nem a mão".(Nota do Tradutor)
5 O conhecedor de Lacan não se surpreenderá com o fato de Lacan ser sempre demasiadamente econômico em saudar o talento ou a obra de um autor em especial. Além de Freud, com quem Lacan parece pretender mimetizar­se e seguir muito mais de perto do que a leitura de sua obra poderia justificar (ele na verdade promoveu uma desconstrução tão completa e profunda da obra de Freud que ela teve como efeito residual uma efetiva reenunciação da psicanálise sobre bases epistemológicas que se afastam sensivelmente das de um Freud que Lacan insiste sempre em reverenciar) apenas Winnicott será reiterada e sinceramente honrado com assinalamentos tão notavelmente afetuosos que contrastam vívidamente com as comuns e cáusticas referências aos colegas ingleses, norte­americanos e franceses. Surpreendente é, certamente, o fato destas cartas terem sido trocadas num ano em que a negociação da nova Sociedade Francesa de Psicanálise com a IPA assumira conotações dramáticas, em virtude da apresentação de um novo pedido de integração à entidade, a qual rejeitara já o primeiro pedido encaminhado em 1953, ano da exclusão de Lacan das funções didáticas na Sociedade Psicanalítica de Paris devido a sua prática de sessões curtas, ocasião em que uma comissão de inquérito enviada de Londres para investigar o grupo francês trazia por presidente justamente D.W.Winnicott. (Nota do Tradutor)