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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

RESENHA

 

 

Inês Lacerda Araújo

Professora na Pontifícia Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação Mestrado em Filosofia,
Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (Departamento de Filosofia).

Endereço para correspondência

 

 

Foucault, Michael 2003:Le Pouvir Psychiatrique, Cours au Collège de France, 1973-74

O curso de 1973-74 compreende as aulas que se iniciaram em 7 de novembro e que se encerraram em 6 de fevereiro, Os manuscritos que compunham o conteúdo integral de suas aulas só começaram a ser publicados a partir de 1997, após o consentimento da família de Foucault, Há seis cursos publicados de um total de treze, com notas e comentários feitos por especialistas, Com isso a obra como um todo ganha dimensões inéditas, O leitor brasileiro dispõe dos seguintes cursos:Em defesa da sociedade (São Paulo, Martins Fontes, 1999), Os anormais (São Paulo, Martins Fontes, 2002) e Hermenêutica do sujeito (São Paulo, Martins Fontes, 2004), Em outubro de 2003, foi publicado na França o presente texto, cuja tradução está em andamento no Brasil, Ele é de excepcional valia por iluminar História da loucura através de um tema novo:o poder disciplinar, A questão da verdade do sujeito e a genealogia da subjetividade, temas de A vontade de saber, têm nesse curso seus primórdios, Entre a aula inaugural (1971) e a publicação de Vigiar e punir, há um hiato que a publicação esparsa de algumas aulas e as inumeráveis entrevistas e artigos de Ditos e escritos não preenche, Em geral, considera-se que Foucault mudou de "método", deixou de lado a perspectiva arqueológica e adotou a perspectiva genealógica, Ora, em
O poder psiquiátrico, Foucault prossegue com sua incansável e prolífica pesquisa dos arquivos da época, neste caso os textos médicos do século XIX, mais especificamente os textos que vão de Pinel e Esquirol até Charcot, Freud e a psicanálise aparecem nas entrelinhas, O poder das práticas discursivas apóia-se e repercute nas práticas não-discursivas sobre a loucura, o que fica demonstrado pela abordagem crítica, corrosiva e de alto impacto acerca da psiquiatria, de seu nascimento até a antipsiquiatria, Esta, curiosamente, é abordada no resumo do curso, ficando apenas delineada ao longo das aulas.

Foucault começa o curso mostrando que o asilo ideal descrito por Foderé (1817) deve isolar o louco para obter disciplina e ordem, as quais penetram nos gestos, nos corpos e até mesmo no cérebro, A observação, para ser objetiva, requer corpos distribuídos num espaço, bem como gestos, comportamentos e discursos controlados, A ordem disciplinar cura e, ao mesmo tempo, reproduz o poder do médico, Os requisitos disciplinares vieram antes da construção de um saber médico, o qual se vale do poder assimétrico e ilimitado do psiquiatra, Este deve impor-se como personagem central e superior de uma hierarquia que vai do médico ao serviçal, a quem cabe a lida diária com os doentes, Os serviçais devem fingir que aceitam o jogo da loucura e fornecer relatórios aos serviçais que fazem a vigilância e aos médicos, Nesses lugares e através dessas práticas, o louco é dobrado e submetido.

Em História da loucura, o autor mostrou que o asilo era o local de uma "ortopedia moral" rústica e bárbara, de enfrentamento e submissão da loucura através da força física, da ameaça e do amedrontamento, Segundo ele, esses procedimentos não são propriamente terapêuticos, não visam às causas, nem produzem discursos de verdade, O médico o doente confesse, admita a verdade de sua loucura, Portanto, algo muito diverso dos procedimentos clínicos que se constituem nessa mesma época e que permitiram à medicina sua inscrição no discurso científico, Psiquiatria e medicina são irredutíveis epistemologicamente no início do século XIX, A psiquiatria interessa-se apenas pela instituição da medicina, pelo status e pela qualificação de médico.

Já em O poder psiquiátrico, Foucault muda de enfoque; no lugar de uma análise das representações acerca da loucura, do temor que despertava, do saber que formava _ abordagem típica de uma história das mentalidades _, nas aulas de 1973-74 apresenta os dispositivos de poder que produzem enunciados e discursos, A arqueologia o leva "a um nível que permitiria apreender a prática discur-siva no ponto preciso em que ela se forma" (p, 14), Se a prática discursiva fosse remetida às relações econômicas de produção, como fez em História da loucura, teria que apelar para um suposto sujeito dessa representação, É mais produtivo mostrar como os arranjos do poder _ as táticas e estratégias _ são capazes de produzir afirmações, negações, experiências, teorias; enfim, todo um jogo de verdade.

No último capítulo de História da loucura, percebera que o poder sobre os corpos não é só moral, Isso fica evidente nos procedimentos utilizados por Pinel, Segundo ele é preciso impor ordem e vigilância para recuperar as qualidades físicas e morais dos doentes, Esse poder é também físico, apresenta uma violência calculada, racional, As análises das instituições em termos sociológicos e psicológicos de História da loucura, o modo como elas regulamentam e reprimem, dão lugar, a partir dos cursos no Collège de France e de Vigiar e punir, às disposições de poder, com seus traçados, pontos de apoio, trocas e diferenças de potencial que constituem o indivíduo, A individualização é um efeito dos dispositivos táticos; são eles que atravessam as instituições, Não se trata de um modelo familiar no qual o médico seria o pai, Essa imagem só aparecerá na psiquiatria do século XX.

A aula do dia 14 de novembro é aberta com o contraste entre duas cenas:a da libertação dos loucos de suas correntes por Pinel (no Hospital de Bicêtre, em 1793) e a que se passa na Inglaterra, na qual o rei Jorge III tem seus acessos controlados, protegido com colchões nas paredes, Este recebe cuidado de pajens, não para servir à sua vontade, mas às suas necessidades básicas, Nas crises, o rei é dominado; os pajens o abatem, o dobram, o desnudam e o limpam, numa cena que representa o início da psiquiatria, Nos hospitais psiquiátricos, não se fazia análise nem diagnóstico da doença, Para curar, era usado o jogo da disciplina, Ao passo que com Pinel, o castigo visava uma volta a si, à tranqüilidade, ao autodomínio, Pinel induz o doente a encenar o delírio; a princípio concorda com o paciente, mas o faz para depois poder suprimir o delírio, levar o paciente a aceitar a intervenção do médico, que exige o reconhecimento do doente de que ele delirava, Essa prática algo mágica acaba nos anos 1830-40, quando o internamento passa a ser regulado por lei, A prática disciplinar passa a funcionar; nela se forma o discurso verdadeiro dentro da instituição asilar:o discurso do médico, Para a antipsi-quiatria, o ponto chave é o poder e a violência da instituição, Foucault, no entanto, leva em conta o poder de um discurso de verdade sobre a loucura.

Nessa aula, Foucault introduz a noção de poder capilar, disciplinar, A história desse poder, que atravessa a sociedade ocidental, começa com os procedimentos disciplinares das comunidades religiosas na Idade Média, que foram difundidos pelos métodos pedagógicos até serem generalizados e usados de modo maciço e regular a partir do final do século XIX, No exemplo do rei Jorge, já se trata de um poder pan-óptico, calcado no modelo da arquitetura circular que facilita a vigilância e induz ao comportamento desejado.

Foucault não faz uma análise da instituição psiquiátrica, nem do suposto discurso verdadeiro da psiquiatria, Os mecanismos desta _ e mais adiante os da psicanálise, que brota do campo da psiquiatria _ se enraízam no poder disciplinar, Enquanto o poder soberano depende de relações assimétricas, submete o súdito ao regime de cobrança, abusa do direito absoluto sobre a vida e a morte, é reativado por rituais e sustentado pela guerra, o poder disciplinar se apossa do comportamento e das atividades reguladas em fases, Temos aí o que será a sociedade disciplinar, tema de Vigiar e punir, O indivíduo é examinado e classificado, separando-se, assim, os aproveitáveis dos não-assimiláveis, É o caso do débil mental, inadaptável à disciplina escolar, A criança que não consegue aprender a ler e a escrever é problemática, A sociedade disciplinar é também o lugar de outra figura:a do delinqüente, Além de violar a lei, ele é um residual, não-assimilável, E o resíduo dos resíduos, inassimilável em todas as instâncias disciplinares (escola, prisão, fábrica, hospital), é o doente mental.

Para recuperar esses resíduos, há sistemas disciplinares suplementares, como as escolas para deficientes mentais, A anomalia requer a norma, cujos princípios resultam dos dispositivos disciplinares que vigiam, punem, adestram, Nasce assim uma psyché que funciona como a projeção de uma certa "alma", parte de um certo sistema político, que requer um sujeito individualizado, O indivíduo foi efetivamente construído por meio de tecnologias de poder e de registros de saber, Ele resulta dessa espécie de política sobre o corpo subjetivizado, psicologizado, normalizado, Acerca dele se sustentam discursos, ele é objetivado pelas ciências ditas humanas, O sujeito de direito _ o sujeito abstrato do Iluminismo _ não representa todo o sujeito, As novas forças produtivas e políticas, a partir do século XVIII, demandam novas tecnologias políticas:da disciplina, da vigilância, da punição, Foucault recusa a concepção psicológica de que atrás do sujeito jurídico há o homem natural, concreto e real, O que existe é o indivíduo constituído por dispositivos disciplinares.

O autor discorda também do discurso humanista, para o qual o indivíduo alienado e reprimido pode ser resgatado, recuperando sua autenticidade, A grande conquista da burguesia não foi o poder jurídico para constituir o sujeito abstrato do direito; sua conquista - na qual utilizou toda sua competência - foram mecanismos disciplinares que constituem indivíduos aptos ao trabalho.

Além da colonização externa de povos, grupos e nações, houve a colonização interna dos delinqüentes, das prostitutas, dos pobres e vagabundos, através dos dispositivos disciplinares, Estes foram também eficazes nos aparatos militares, nas primeiras vilas operárias, nas fábricas servindo como força útil, o que demanda treino e aprendizado, O acúmulo de capital se deve também à regulamentação do acúmulo de indivíduos num espaço e num tempo (horário), resultando disso a máxima eficácia e o mínimo desperdício.

Uma das teses mais fortes de Foucault é a de que as ciências humanas nascem dessa necessidade tática de distribuição de tempo, atividade e de espaço, O asilo como instituição pan-óptica, de controle permanente, multiplica e intensifica o poder psiquiátrico, possibilita codificar, anotar e constituir um saber através de relações de poder, O modelo para o asilo não foi a família, Nela prevalece o poder soberano do pai, sendo secundários os laços de dependência, o cuidado e a vigilância, No entanto, a família é essencial ao poder disciplinar; é ela que remete o anormal e o indisciplinado, ao asilo psiquiátrico e à escola especial, As funções da família, que eram imprecisas sob o poder soberano, tornam-se precisas sob o poder disciplinar, Para um ótimo funcionamento da produção, há de haver um ótimo funcionamento da família, Nasce aí o discurso psicológico, a função psiquiátrica, a crimi-nologia e a própria psicanálise.

Os dispositivos disciplinares se engatam no poder soberano da família, Esta pede o internamento dos seus doentes e o hospital os devolve a ela, Aos poucos, a função "psi" penetra e é exigida na escola, na prisão, na fábrica, no exército, Neles são controlados e neles circulam os discursos da psicopedagogia, da psicologia do trabalho, da criminologia, da psicopa-tologia, Na família, é detectado o anormal, o incurável, o louco, O discurso da família que mais ressalta a função "psi" é o da psicanálise, Desde meados do século XX, o discurso da família "funciona como o discurso de verdade a partir do qual se pode fazer a análise de todas as instituições disciplinares", enfatiza Foucault (p, 88), O discurso da família, a partir do qual se constitui o discurso da psicanálise, impede a crítica da instituição e da disciplina escolar, psiquiátrica, asilar, E o discurso psiquiátrico investe-se de um discurso de verdade, cujo campo de referência é a família, Ou seja, a família pede o internamento, mas o estatuto de louco é um campo técnico, administrativo e médico, pois o saber e o poder psiquiátricos precisam do interrogatório e do exame, Feito o internamento, a família fica em segurança, Ela é também protegida contra a delinqüência (pois o delinqüente vai para a prisão) e exige da pedagogia a tarefa de educar, treinar e disciplinar, Na medida em que o poder estatal penetra na família nuclear e nela intensifica suas relações internas, as decisões jurídicas passarão a determinar se há ou não necessidade de internamento do doente, Bom tratamento só fora da família, pois ela produz e desencadeia as alucinações, quer dizer, ela sustenta a alienação.

O asilo é uma "máquina de curar", desde a arquitetura (com seus pavilhões térreos, que facilitam a presença rápida e constante do médico) até a vigilância central, anônima, que produz uma hierarquia que vai do atendente ao médico, O isolamento não serve para impedir que um paciente perceba o outro, e sim para reforçar a disciplina e a punição, Portanto, o que está em jogo não é o reconhecimento de sua própria loucura pelo jogo especular, A punição faz parte do tratamento, cujos recursos são as camisas-de-força, a cadeira fixada na parede e as coleiras de cachorro com dentes, Esses "tratamentos ortopédicos" não decorrem de uma necessidade econômica que leva a internar os pobres e reserva as casas de saúde para os ricos, como pensara em História da loucura, Os sistemas disciplinares é que ampliaram suas funções a fim de ajustar o acúmulo de homens aos aparelhos de produção, Esse ajuste permite excluir os inadaptáveis, os inúteis, que as casas de saúde recolhem, Por outro lado, as famílias que podem pagar têm como compensação uma reprodução do modelo familiar no hospital, A família detecta a anomalia, pede o internamento e o hospital recria a família em seu interior, É também a família que envia a criança à escola e o jovem ao exército.

Esse destaque que Foucault dá à família permite uma melhor compreensão de A vontade de saber, A partir do século XIX, à família tradicional, que Foucault caracteriza como família do tipo aliança, isto é, com laços conjugais, nuclear, e que tem poder soberano sobre as crianças, soma-se à família que disciplina, que funciona como uma pequena escola, "É ali que aparece a categoria curiosa de pais de alunos, é ali que começa a aparecer os deveres de casa, o controle da disciplina escolar pela família; ela se torna uma casa de saúde em formato reduzido, que controla a normalidade ou a anomalia do corpo, da alma; ela se torna caserna em formato pequeno, e talvez se torne, voltaremos a isso, lugar onde circula a sexualidade" (p, 116), resume Foucault.

A família passa a vigiar a criança em termos de sua normalidade, seu comportamento, seu caráter, sua sexualidade, enfim, tudo o que pode ser objeto da psiquiatria, da psicopa-tologia e dos cuidados psicológicos, O controle produzido no asilo quanto ao comportamento, incluindo a sexualidade, farão da criança objeto privilegiado dos estudos psiquiátricos, O internamento traz lucro ao hospital pelo trabalho do interno, além de vantajoso do ponto de vista médico; nele o adulto é "psiquiatrizado" através de um interrogatório acerca de sua vida, de sua infância, A cada tipo de doença corresponde um tipo de tarefa, Os ma-níacos e os dementes se prestam melhor para cuidar do gado; os imbecis e idiotas, para a limpeza, As mulheres delirantes, para lavação de roupa, O trabalho não tem função terapêutica.

Nos anos 1820-30, Pinel era o mestre ambíguo da realidade e da verdade; ele conduzia à encenação do delírio, Na segunda metade do século XIX, o poder disciplinar intensifica o real; a verdade não será mais imposta à loucura no momento da cura, O poder psiquiátrico se constitui como ciência médica e clínica, como prática médica, Assim, "o poder psiquiátrico é este suplemento de poder pelo qual o real é imposto à loucura em nome de uma verdade possuída definitivamente por este poder sob o nome de ciência médica, de psiquiatria" (p, 132), Esta se vale indiretamente da medicina clínica para, de um lado, classificar e descrever sintomas e da anatomia patológica para, de outro lado, buscar causas orgânicas e lesões neurológicas, garantindo, assim, a verdade inquestionável da ciência, Mas, nas práticas de cura, a única comprovação de fato era a própria pessoa do psiquiatra, detentor do saber científico e dos critérios de verificação, que dava satisfação de acerto ou erro unicamente a si próprio, A realidade da doença e a verdade pressuposta acerca da loucura por esse poder do médico eram impostas aos loucos.

Como não se trata propriamente de uma doença, e desse modo não é a verdade científica que está em jogo, a questão que desafia o poder psiquiátrico é a simulação da loucura que simula a loucura, Na histeria, um verdadeiro sintoma é um modo de mentir e um falso sintoma pode indicar doença de fato, De um lado, há o saber médico detentor das categorias da verdade; de outro, o louco que engana o médico, O louco se defende através da simulação, que funciona como um contrapoder, A histeria "não é uma questão de sintoma" (p, 136), mas de uma síndrome asilar, ou melhor, uma reação contra o poder psiquiátrico, não só por sua disseminação nos asilos, mas também decorrente de uma cumplicidade entre os histéricos, A ironia é que Charcot, médico neurologista, próximo da verdade científica, teve de lidar com a simulação, A questão da verdade retorna ao asilo através da simulação, depois de ter sido suspensa nos procedimentos disciplinares.

Nesse sentido, a psicanálise pode ser interpretada como o primeiro grande recuo da psiquiatria, "o momento em que a questão da verdade do que se dizia nos sintomas ou, em todo o caso, o jogo de verdade e mentira no sintoma, acabou por impor-se à força ao poder psiquiátrico" (p, 137), cuja derrota abriu as portas para a psicanálise, Foucault afirma que nesse sentido, a psicanálise se afasta da psiquiatria, ou como ele se expressa, ela se "despsiquiatriza", Portanto, a psicanálise deve mais aos simuladores do que a Freud, A simulação das histéricas foi uma verdadeira armadilha para o poder psiquiátrico, Este se viu diante do problema de agir como cientista sem poder confrontar a loucura em sua verdade, A "insurreição simuladora" da histeria não é um erro da psiquiatria que a psicanálise sanou, Não se trata de mudança de teoria científica, de corte epistemológico, em busca de um "calmo" solo científico para a psicanálise, O poder de realidade da psiquiatria foi confrontado pela "mentira questionadora dos simuladores" (p, 138).

Na aula de 19 de dezembro, Foucault mostra que a cura psiquiátrica não se valia de teorias científicas, nem do discurso da observação e da classificação das doenças, tampouco enunciava a verdade retirada a partir da anatomia patológica da doença mental, Os médicos usavam táticas e estratégias, procedimentos disciplinares, que, em certa medida, são ainda utilizados, O tratamento se baseia na linguagem imperativa, na dessimetria disciplinar, nas manobras com relação às necessidades, na obtenção de uma identidade e no necessário desprazer do tratamento, Assim, uma forma de realidade é imposta à loucura, constituindo o que Foucault chamou de "tautologia asilar":os dispositivos do asilo equivalem aos intensificadores e produtores da realidade externa que é reproduzida no próprio asilo, O espaço isolado e confiscado pelo saber médico corresponde ao espaço no qual os médicos prescrevem uma forma de realidade copiada do exterior.

Os elementos estratégicos do asilo, isto é, os elementos de realidade, são:o poder do médico; a prática da anamnese, da fala e do reconhecimento de si; a loucura vista como déficit moral que precisa ser corrigido; e a necessidade material de sobreviver, pelo trabalho dos doentes, que era pago, A cura significa a plena aceitação dessas quatro constrições e culmina no enunciado de verdade, quer dizer, o doente deve reconhecer sua fantasia, mesmo sem que ele venha a ter uma percepção exata ou um juízo justo acerca do real.

Daí a importância da história do paciente para conferir-lhe uma identidade construída a partir de elementos externos (família, emprego, estado civil, observações do médico), A verdade não vem de uma relação entre médico e doente, mas sim da realidade biográfica com a qual ele deverá identificar-se, Nesse discurso "extrapsiquiátrico" Freud irá apoiar-se, Esses elementos que eram exteriores ao asilo, na psicanálise se tornaram essenciais, O discurso da psicanálise necessita da história da vida do paciente.

Na aula do dia 9 de janeiro, Foucault mostra como o poder psiquiátrico se modifica no asilo e fora dele a partir dos anos 1850-60, Os dispositivos disciplinares se disseminam para a escola, o exército, as fábricas, A diferença é que o asilo pretende curar, Até o final do século XVIII, a loucura era tratada como doença no sentido ordinário, Ao longo do século XIX, houve uma mudança:a direção asilar precisa ser médica, mas não pela busca de causa ou diagnóstico de doenças, Os doentes não foram separados por suas doenças (como mania, monomania) e sim pelo seu comportamento, se podiam ou não trabalhar, se eram ou não curáveis, calmos ou violentos, Essa prática sobreviveu no século XX, basta atentar para o uso de eletro-choque e de tranqüilizantes.

A partir do final do século XIX, o poder de intensificar a realidade e constituir os indivíduos como portadores daquela realidade e alvo dela _ uma necessidade do asilo _ é transportado para a criminologia, para a patologia da doença mental, para a psicologia na escola, na fábrica, nas prisões, no exército, Na escola, por exemplo, as atitudes são diferenciadas em níveis, como se fosse um campo real, um campo de saber definido pela instituição, "Assim o saber funciona como poder e este poder do saber se dá como realidade no interior do qual o indivíduo se acha colocado" ( p, 187), Essa intensificação da realidade que se torna vontade de saber, que produz e restitui os indivíduos, proveio, em grande medida, da psiquiatrização das crianças idiotas, que eram separadas dos loucos no asilo, As crianças foram o primeiro alvo da psiquiatrização, afirma o autor na aula do dia 16 de janeiro, O conceito de normal aplicava-se ao aluno regular e saudável, A idiotia não é considerada doença (portanto, não é loucura), mas um déficit de desenvolvimento das faculdades intelectuais.

No idiota, a inteligência e a vontade param num certo estágio de desenvolvimento, ficam à mercê do instinto, que produz anomalias, Ele deve ser recuperado por uma pedagogia especial, Como se trata de anomalia, e esta não apresenta sintomas, só pode passar ao campo da psiquiatria após o exame e o interrogatório, geralmente realizado nas escolas, O internamento é necessário porque os pais não sabem ou não têm como lidar com o idiota, Enquanto o alienado não precisa do cuidado direto dos médicos, o idiota, como não pode ter vontade própria, é submetido ao médico e precisa ser ocupado pelo trabalho.

Aos poucos a literatura médica estigmatiza o idiota como perigoso, A perversão dos instintos inclui a criança portadora de anomalias, bem como as prostitutas, os incendiários, os mentirosos, os onanistas, os pederastas, os homicidas, os envenenadores e os estupradores _ todos eles "imbecis de nascença", O conceito de "perversões dos instintos" servirá como ponto de apoio teórico e prático para o poder psiquiátrico, Enquanto o louco apenas quando adulto importa olhar para trás, para sua infância, no caso da criança com anomalia a psiquiatria é conduzida para o terreno difuso e perigoso do "poder sobre o anormal, poder de definir o que é o anormal, de controlá-lo, de corrigi-lo" (p, 219), O poder psiquiátrico se torna ciência e poder sobre o anormal, de um lado, e sobre a loucura, de outro, O "instinto", que é natural, só se torna anormal por algum desvio; seu destino é ligar a criança anormal ao adulto louco.

Pela noção de degenerescência, via-se a loucura e idiotia como coisa herdada, Nesse campo da degenerescência e do instinto, a psicanálise situará as trocas de parentesco, dando um destino para o instinto, ao mesmo tempo em que dispensa a teoria da degenerescência.

Na aula de 28 de janeiro, Foucault pede licença para esboçar uma "pequena história da verdade em geral", Ele contrasta dois tipos de verdade:uma própria da prática científica, baseada na tecnologia demonstrativa, que produz verdade constatável universalmente; a outra postura quanto à verdade, mais arcaica talvez e que foi aos poucos cedendo terreno à verdade demonstração, ou que foi sendo recoberta por ela, é a verdade dispersa, descontínua, que se produz em certos pontos, lugares e tem certos portadores, Seu momento é o da crise, Ela se produz como um acontecimento, como um raio, em relações de choque, de guerra, Ao contrário da verdade-demonstração, ela é reversível, "é uma relação de dominação e de vitória, uma relação, então, não de conhecimento, mas de poder" (p, 237), Ela se liga a rituais, a relações de poder, e difere da verdade metódica, calcada na relação entre sujeito que conhece e objeto conhecido, que é um modelo episte-mológico típico do cartesianismo, Esse tipo de verdade-demonstração fica evidente nos produtos da tecnologia obtidos pela prática científica, Mas esse tipo de produção de conhecimento é apenas parte da verdade ritual; a própria verdade científica depende de rituais como o da prova, Com isso, Foucault quer mostrar que "o sujeito supostamente universal do conhecimento não é, na realidade, senão um indivíduo historicamente qualificado segundo um certo número de modalidades" (p, 238), A própria descoberta da verdade é, no fundo, segundo o autor:"uma certa produção da verdade; reconstituir, assim, o que se dá como verdade de constatação ou de demonstração, a partir do patamar dos rituais, o patamar das qualificações do indivíduo de conhecimento sobre o sistema da verdade-acontecimento, é a isto que chamarei arqueologia do saber" (p, 238).

Em nossa civilização, especialmente após o Renascimento, a verdade-demonstração tomou a dianteira e colonizou, "parasitou", a verdade-acontecimento, sobre a qual exerce poder total, A esse processo Foucault chamou de "genealogia do conhecimento, reverso histórico indispensável à arqueologia do saber" (p, 239), A genealogia é fruto de dossiês que Foucault busca reconstituir em suas pesquisas históricas, como o dossiê das práticas judiciárias, que mostram uma progressiva substituição do modelo da verdade-prova pelo modelo da verdade-constatação, que precisa ser atestada, testemunhada.

O mesmo se deu com a psiquiatria ao longo do século XIX:a tecnologia da verdade-acontecimento acerca da loucura foi recoberta pela tecnologia da constatação, A verdade-acontecimento não desapareceu; houve momentos em que ela foi essencial, como nos julgamentos no século XII, em que a confissão teve o papel de estabelecer um confronto entre a vítima e o carrasco, A alquimia também foi um exercício para despertar, no momento adequado, um segredo, A medicina das crises se encaixa nesse poder de controlar as crises, combater a substância mórbida, acompanhar os ritmos naturais da doença, os momentos em que ela aparece, os intervalos em que se manifesta, A mudança para a verdade-cons-tatação surge com a relação médico-doente e com transformações econômicas, sociológicas e epistemológicas, O saber científico penetra a medicina, que, entretanto, não permanece estranha aos 22 séculos de verdade do tipo provação (épreuve).

A verdade-demonstração, na medicina, segue parâmetros distintos dos da física, da química e mesmo da biologia, No caso da medicina, houve dois processos que a levaram para o terreno da verdade demonstrada, O primeiro diz respeito aos seguintes fatores:disseminação dos procedimentos políticos de inquirir, verificar e fazer o saber circular, que estão na base do desenvolvimento político e econômico da sociedade industrial; inquirição policial, cujo alvo é o comportamento das pessoas, o modo como vivem, pensam e fazem sexo (as técnicas de inquirição se refinam, se estendem e se fecham em nossa sociedade, colonizando os gestos, os corpos e os pensamentos dos indivíduos, bem como de territórios e populações); a questão da verdade é posta a todo instante e com relação às mais diversas questões, O segundo processo inverte o modo como se produz e se tem acesso à verdade, Sendo ela questão para especialistas, se torna um bem raro, O acesso à verdade profunda, escondida e universal depende de qualificação, de seleção feita por universidades, sociedades científicas, laboratórios e pelo jogo das especializações e das qualificações profissionais.

Finda essa pequena história da verdade, Foucault mostra a relação dessa história com a loucura, A medicina das crises cede lugar à inquirição cerrada sobre a doença no ambiente hospitalar, com seus equipamentos; ao mesmo tempo, inicia-se uma maior vigilância das populações, A anatomia patológica progride, permitindo controle das doenças, Progride também a medicina estatística, que cuida das epidemias, Quanto à psiquiatria, algo diverso ocorre:o hospital é o espaço de inquisição e inspeção, mas não da verdade, Já não importa nem mesmo a antiga medicina da crise, Vige um sistema disciplinar, com atividades para distrair e ocupar o doente, Os progressos no campo da anatomia patológica levam a psiquiatria à neurologia, dispensando a pesquisa da crise, e buscando a verdade da loucura no campo da anatomia, Assim, a loucura se torna objeto verificável; por isso, cabe prendê-la na cadeira e silenciá-la, A verdade virá quando o cadáver for autopsiado.

Esse tipo de análise é levado para a criminologia, O criminoso é aproximado ao doente mental e, como tal, representa um perigo para a sociedade e para a família, É preciso evitar a crise, pois o louco em crise pode até matar, A crise, no entanto, tem valor de verdade; é útil para o saber médico, já que ela é constatável, O diagnóstico absoluto do psiquiatra não leva em conta uma possível caracterização da pessoa, Ele precisa de um comportamento observável que permita decidir se há doença ou simulação.

O hospital é o espaço de realização da loucura, A maioria das críticas reporta-se à instituição; duvida-se que o hospital possa curar sem mergulhar os loucos na doença, A posição de Foucault é outra:o hospital "realiza" a loucura numa instituição que elimina os sintomas da loucura, mas não a loucura, O poder psiquiátrico realiza a loucura e o asilo recusa-se a ouvi-la, uma vez que a ele não interessam os sintomas, Apenas os histéricos resistem ao poder psiquiátrico ao somatiza-rem seus sintomas através da simulação; com isso, impedem a busca da realidade de sua doença, A simulação de sintomas representa uma resistência à assinalação da loucura; o histérico marcha contra "o jogo asilar, e, nesta medida, saudemos os histéricos como os verdadeiros militantes da anti-psiquiatria", enfatiza Foucault (p, 253).

O diagnóstico absoluto do psiquiatra recorre a três técnicas:

1. O interrogatório, pelo qual busca antecedentes, marcas e anomalias da infância, O paciente se queixa e o médico transforma os relatos em sintomas, até a forma extrema da loucura, até poder atualizar a fonte do delírio, O doente deve ser levado a admitir, a confessar, que é louco e dizer qual é sua loucura, Assim, o psiquiatra realiza uma conduta como loucura; depois, faz da loucura uma doença; por último, designa a si próprio como seu guardião, como mestre do saber, Como não há patologia a diagnosticar, limita-se a expor o doente nas aulas, usando os ritos da apresentação clínica.

2. As drogas, São administrados ópio, láudano e haxixe; os efeitos da droga são assimilados aos sintomas, O haxixe produz um estado visto como o fundo da loucura, a chamada "excitação maníaca", Intoxicado pelo haxixe, o doente vive como num sonho, A aproximação entre loucura e sonho, compará-los, torna-se "um princípio de análise" (p, 284) e não mais uma simples analogia, Na loucura, não haveria barreira entre a vigília e o sonho⁄sono, Esse é um ponto chave para a psiquiatria e para a psicanálise; o sonho permite compreender a loucura, O haxixe induz ao delírio - a medicina da crise retorna, Drogado, o doente está sob a completa determinação do médico, Este pode experimentar o haxixe a fim de compreender o delírio do outro e distinguir entre normalidade (a sua) e loucura.

3. O magnetismo induzido por certos medicamentos facilita o interrogatório, levando às situações traumáticas que teriam causado a lou-cura, Mais tarde, nos anos 1858-9, o recurso mais empregado será a hipnose, que permite total domínio da situação, do corpo e do comportamento.

A anatomia patológica em nada auxiliava a compreensão e o tratamento da loucura, Mas a neurologia baseada no estímulo-resposta, que obedece ao circuito voluntário-involuntário, obteve sucesso, explica Foucault na aula do dia 2 de fevereiro, Um exemplo disto é o estudo sobre as afasias, de Broca, As pesquisas de Charcot também se situam nesse campo das reações e comportamentos solicitados pelo médico, Ele dá ordens e obtém respostas que servem para determinar se as reações são simuladas ou não, voluntárias ou involuntárias, Esse procedimento difere tanto do exame clínico como do interrogatório psiquiátrico, que usa a fala, a droga e a hipnose para penetrar na loucura, dominar o corpo, A neurologia inaugura um novo dispositivo para provocar reações:o corpo obedece, o indivíduo não precisa falar; é melhor até que ele se cale, Justamente aí a crise histérica irá se precipitar.

Foucault não aceita a repartição costumeira entre doença verdadeira e doença mental, Para ele, há a medicina do diagnóstico diferencial, que tem uma abordagem epistemológica eficaz das doenças, e a psiquiatria, em que as doenças precisam da prova de realidade, Entre esses dois domínios, há síndromes como a da paralisia geral, que é epistemologicamente "boa" - além de não acarretar dúvidas de tipo moral -, e doenças sensitivas decorrentes de lesões, como as convulsões, a epilepsia, a histeria e a hipocondria, que são inconvenientes epistemo-logicamente e, moralmente, más, Seus portadores podem simular sintomas; muitas vezes se reportam a um componente sexual.

No fim do século XIX, os psiquiatras apostam no avanço da neurologia para diferenciar as doenças nervosas da loucura, Quanto à histeria, pelo modo como é diagnosticada e de certa forma provocada por Charcot (e também por Freud), será considerada doença:suas causas estão no chamado "corpo neurológico", Freud diz que Pinel libertou os loucos das cadeias ao tomá-los como doentes, O mesmo fez Charcot fez com as histéricas; elas têm uma doença com sintomas que o neurologista pode abordar, As crises revelam sintomas de uma doença existente, mas, ao mesmo tempo, há outros sintomas difíceis, que Charcot aproxima da epilepsia para fazer o diagnóstico diferencial, A tela epistemológica não é a da loucura, A histeria fornece sintomas através de sucessivas crises, Para saber se resultam de lesões, Charcot compara com casos de paralisia e de anestesia, observados em trabalhadores que sofreram acidentes e que têm trauma-tismo detectável pelo exame físico, Sob hipnose, as histéricas farsantes podem ser desmascaradas ao não responderem às ordens de Charcot, Por isso, Foucault pergunta se a histeria não seria o resultado "do conjunto de poderes médicos que estavam se exercendo no interior do hospital" (p, 318).

De qualquer forma, sem um quadro patológico para os sintomas histéricos (como uma lesão), resta a saída pela medicina da crise:o acontecimento traumático, resultado de certo golpe, certo episódio violento, um medo, uma cena, enfim, tudo que suscite uma idéia - forte a ponto de penetrar no córtex e submeter para sempre o indivíduo, O próprio hipnotismo pode induzir ao trauma, ao reativar um acontecimento perturbador, O trauma é uma "espécie de lesão invisível e patológica" (p, 319) que deve ser buscado no acontecimento fundamental do passado, atualizado a cada episódio da crise.

Instadas a falar da vida cotidiana, as histéricas geralmente falam de sua vida sexual, Isso ocorre apenas no hospital, isto é, no próprio local em que os episódios são provocados, Esses episódios não são levados em conta por Charcot, que se limita à descrição da crise, Os gestos, esgares e atitudes de teor sexual foram reportados apenas pelos seus alunos, A vida sexual não é vista como manifestação de uma patologia, pois patologias requerem causa orgânica, E, se a sexualidade não é doença, está fora da alçada médica, Ora, para Charcot, a histeria difere da epilepsia, mas pertence ao mesmo campo, Assim, quando Charcot produzia as crises, as histéricas exibiam um comportamento lúbrico, mas ele não poderia reconhecer que a lubricidade estava em jogo.

Um episódio, que, para Foucault, é decisivo (mencionado por ele também em outros escritos) é aquele em que Freud, num estágio que fazia com Charcot, fica estupefato quando este lhe confidencia que a sexualidade agia nas histéricas, Freud fica intrigado, pois não entende porque Charcot nada diz a esse respeito, Estamos no ano de 1886, e mesmo Freud só falará sobre a descoberta da sexualidade na histeria alguns anos mais tarde.

A sexualidade é o grito de vitória da histérica contra o poder psiquiátrico, diz Foucault, O neurologista queria captar o corpo neurológico, entretanto a histérica oferece seu "corpo sexual", Daí os sucessores de Charcot desqualificarem, por um lado, a histeria como doença, Por outro lado, há novas tentativas de investimento médico com relação "ao corpo neurológico que os médicos haviam fabricado, Este novo investimento será tomar a sexualidade a cargo médico, psiquiátrico, psicanalítico" (p, 325), Sendo assim, as histéricas deixaram de ser loucas para serem doentes, Foi preciso encontrar um modelo epistemo-lógico para enquadrar a histeria, As histéricas, provavelmente para o seu prazer, fornecerem sintomas reais aos médicos, O lado triste dessa história foi o fato de a sexualidade passar a ser coisa médica, lamenta Foucault.

Em suma, para Foucault, os discursos das ciências que produziram o fator "psi" provocaram efeitos de saber e poder na sociedade moderna (sociedade disciplinar), A loucura se torna objeto de saber/poder médico, no asilo e no hospital psiquiátrico, Foucault não entra no mérito de verdade ou falsidade dos conteúdos produzidos pelos psiquiatras e, mais tarde, pelos neurologistas, O discurso do neurologista, - com seu modo de interrogar, de trazer à luz, sem admiti-lo, o corpo sexual - buscava sintomas que pudessem configurar um campo epistemológico para a psiquiatria, Ao deparar-se com um tipo de verdade, a verdade da crise, que não pode ser demonstrada, constatada, o neurologista não pode admitir aquilo que a crise produziu, não pode admitir que a sexualidade seja um componente da histeria, Ao mesmo tempo, não desiste da outra verdade obtida na clínica, pela observação dos sintomas, É nesse quadro que a histeria pode ser considerada como doença, Nesse espaço de saber ela se constituiu como doença neurológica.

As pistas para saber onde essas considerações críticas levam estão no próprio resumo que Foucault fez para o Anuário do Collège de France, explicitadas no volume 1 de História da sexualidade (Paris, Gallimard, 1976), Trata-se de uma crítica ao tipo de saber e de poder que as ciências psicológicas, a psiquiatria e a psicanálise produzem, a saber, uma subjetividade constituída pelas técnicas confessionais, de extração da verdade, As aulas de 1973-74 esclarecem como o autor chegou a essas conclusões, Na seqüência - as aulas de 1974-75 (Os anormais) -, a noção de instinto, degenerescência e anormalidade completam o curso sobre o nascimento da psiquiatria.

 

 

Endereço para correspondência
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Recebido em 04 de julho de 2005
Aprovado em 09 de outubro de 2005