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Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.8 no.1 São Paulo June 2006

 

ARTIGOS

 

Para uma crítica da leitura hermenêutica da psicanálise*

 

For a critical hermeutics reading of psychoanalysis

 

 

Rosane Zétola LustozaI,II; Ana Beatriz FreireIII,IV

IProfessora de Psicologia da Universidade Estácio de Sá - RJ
IIDoutoranda de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IIIProfessora de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IVDoutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é empreender uma avaliação crítica da leitura hermenêutica da psicanálise, representada pela obra de Paul Ricoeur. O termo "crítica" será empregado no sentido de um exame da validade dos conceitos. Dessa forma, serão ressaltadas tanto as contribuições feitas por esse tipo de leitura quanto os impasses aos quais chegou. Embora tenha cumprido uma função importante, desvencilhando a psicanálise de interpretações naturalistas, a proposta hermenêutica não deixou de apresentar problemas. Após expor as dificuldades internas a essa proposta, este artigo mostra como alguns dos conceitos elaborados pelo psicanalista Jacques Lacan permitiriam evitar tais problemas.

Palavras-chave: Psicanálise, Epistemologia, Hermenêutica, Ricoeur, Lacan.


ABSTRACT

The purpose of this work is to carry out a critical evaluation of the hermeneutic reading of psychoanalysis represented by the works of Paul Ricoeur. The term criticism will be employed in the sense of an examination of the validity of the concepts. Thus, both the contributions accomplished by this type of reading as well as the impasses it has reached will be highlighted. Although the hermeneutic proposal has fulfilled an important role freeing psychoanalysis from naturalistic interpretations, it still poses some problems. After presenting the difficulties, we will show how some of the concepts developed by the psychoanalyst Jacques Lacan have permitted to avoid such problems.

Keywords: Psychoanalysis, Epistemology, Hermeneutics, Ricoeur, Lacan.


 

 

Introdução

Sabe-se que a psicanálise foi submetida, no final dos anos 1950, principalmente nos países anglo-saxônicos, a um verdadeiro processo em que, basicamente, se contestava sua cientificidade. Censurados por lógicos, epistemólogos e filósofos - por se apoiarem em enunciados que não se prestavam à validação empírica -, os psicanalistas replicaram, alegando ser a psicanálise ainda uma ciência jovem, cujas deficiências se corrigiriam com o tempo, e empreenderam tentativas de reformulação dos seus enunciados em termos operacionais. Nesse debate, o que tanto os adversários da psicanálise quanto seus defensores sequer pensavam em pôr em xeque era o pressuposto de que o destino da psicanálise se encontraria indissoluvelmente atrelado à afirmação de que ela é uma ciência natural: assim, ou bem ela exibiria proposições testáveis, tais como qualquer outra ciência, ou nada seria.

Uma outra corrente de intérpretes propôs uma releitura da obra freudiana a partir de novas bases. Tal corrente, representada, segundo Monzani (1989), por autores como Jean Hyppolite e Paul Ricoeur, buscou rever os termos em que o debate era colocado, precisamente o pressuposto de que a psicanálise é uma ciência natural. Em vez de detectarem nas insuficiências da psicanálise a prova de que ela é uma pseudociência (como fazem seus detratores) ou verem nessas deficiências apenas saudáveis índices de juventude de uma nova ciência natural (como fazem seus defensores), esses autores vislumbraram algo bem diferente: a impossibilidade de estudar o domínio de significações a partir do modelo das ciências naturais. Para eles, enquanto se insistisse em considerar a psicanálise uma ciência empírica, fugir-se-ia, ao mesmo tempo, do espírito científico e do espírito freudiano, descumprindo as exigências epistemológicas da cientificidade sem atender às exigências psicanalíticas. O discurso analítico pertenceria ao registro do sentido, de maneira nenhuma ao da objetividade. A estratégia desses autores consistiu, então, em defender a disjunçãoentre o domínio das significações e o dos fatos.

Uma vez que vivemos em uma época na qual a cientificidade da psicanálise vem sendo constantemente questionada, multiplicando-se as acusações de que seus conceitos não passariam de imposturas intelec-tuais, verificamos o quanto esses ataques ainda partem do princípio segundo o qual a precisão e a objetividade das ciências naturais devem ser consideradas normas em relação às quais a psicanálise deveria se adequar. Nesse contexto, a posição que defende a validade da psicanálise como ciência interpretativa conserva sua atualidade, por questionar o pressuposto de que as ciências naturais constituiriam o único modo legítimo de produção da verdade.

Todavia, por maiores que sejam os méritos da posição que entende a psicanálise como uma teoria do sentido, ela não deixa de apresentar limitações. Partindo desse pressuposto, nosso trabalho busca empreender um exame crítico da proposta de tratar a psicanálise como uma ciência do sentido, procurando ressaltar tanto as contribuições quanto os impasses aos quais essa proposta chegou. Dessa forma, a palavra "crítica" não assumirá aqui o sentido vulgar, de depreciação de uma teoria, mas antes o de um exame da validade dos conceitos. Nossa tese é a de que essa corrente exerceu um papel positivo ao ajudar a estabelecer o domínio próprio de validade dos enunciados freudianos. Entretanto, esse tipo de leitura não deixou também de se revelar insuficiente. Ao longo do trabalho, mostraremos serem duas as fontes principais de dificuldades. A primeira incide sobre a incapacidade de a tese em exame tornar inteligível a dimensão energética da obra freudiana. A segunda recai sobre sua incapacidade em explicar a inconsistência lógica própria ao discurso do sujeito em análise.

Com o objetivo de restringir nosso trabalho, elegemos como interlocutor apenas um representante dessa corrente, Paul Ricoeur. Contudo, essa escolha não foi inteiramente arbitrária, na medida em que ele talvez tenha sido, dentre os autores dessa corrente, o que mais aguda consciência teve dos problemas que uma interpretação do inconsciente como sentido enfrentaria, já que uma importante vertente da obra freudiana - a que se nomeia ponto de vista econômico - parece resistir a tal assimilação. Contudo, mesmo aceitando que os textos psicanalíticos pareciam abrigar um discurso misto, Paul Ricoeur jamais pretendeu superar a suposta cisão por meio da amputação da metapsicologia. Em sua obra Da interpretação: ensaio sobre Freud, Ricoeur (1977) empreendeu a tentativa de solucionar a aparente incompatibilidade, subordinando a metapsicologia freudiana ao registro do sentido. Desse modo, ele não só reconheceu a existência do problema, mas também tentou superá-lo - e é esta a razão que nos levou a escolhê-lo.

Acreditamos que nosso empreendimento crítico seria estéril se nos limitássemos a mostrar por que as ferramentas conceituais disponibilizadas pelas teorias do sentido não são suficientes para pensar a experiência analítica. Por isso, seguindo a orientação de leitura proposta por Jacques Lacan, pretendemos também indicar os conceitos lacanianos que pretendem solucionar e/ou evitar as dificuldades mencionadas.

Embora, inicialmente, o psicanalista Jacques Lacan tenha seguido uma orientação semelhante à dos autores ligados às "ciências do sentido", esboçando um gesto de aproximação da psicanálise a elas (Lacan 1998 [1953]), ele terminou por se afastar dessa posição, por considerá-la inadequada para dar conta da clínica. Aliando-se posteriormente a outras referências, tais como o estruturalismo, a topologia e a teoria dos conjuntos, Lacan formulará conceitos que lhe permitirão ganhar um distanciamento crítico ainda maior em relação a esse tipo de leitura da psicanálise. Desse modo, embora considere válida a afirmação de que o analista lida com o registro das significações - e não com o dos fatos -, ele terminou rejeitando a assimilação da psicanálise às ciências do sentido. Reconhecendo o mérito dessa posição, sobretudo quando ela ataca o preconceito segundo o qual só tem valor o que é objetivo, Lacan, entretanto, não pôde deixar de identificar seus impasses.

Aceitamos que a recusa de Lacan em classificar a psicanálise como uma teoria do sentido não pode ser creditada a uma mera vontade sua de se diferenciar. Seria uma leviandade intelectual rejeitar uma posição movido apenas pelo desejo de originalidade. Se houve um afastamento de Lacan em relação a uma tese na qual ele mesmo se inspirou durante algum tempo, haverá razões que se devem a problemas internos àquela teoria. Por isso, julgamos ser possível circunscrever as insuficiências desse tipo de leitura sem que seja preciso qualquer cumplicidade do leitor com a orientação de Lacan.

Este artigo seguirá o seguinte percurso. Primeiramente, realizaremos uma breve exposição da leitura hermenêutica da psicanálise realizada por Paul Ricoeur. Na medida em que serão abordados apenas os aspectos relevantes para o debate que nos concerne, a apresentação das teses desse autor não pretende ser, portanto, exaustiva. Em um segundo momento, explicitaremos de que modo Paul Ricoeur solucionou a aparente divergência de princípios existente entre os textos metapsicológicos de Freud e os textos clínicos (que seriam os mais abertos a uma interpretação hermenêutica). Por último, examinaremos as limitações da solução proposta, anunciando alguns conceitos lacanianos que, a nosso ver, permitiriam resolver e/ou contornar o problema.

 

Uma leitura hermenêutica da psicanálise

Se se admite que a situação analítica é, enquanto tal, irredutível a uma descrição de observáveis, cumpre retomar a questão da validade das asserções da psicanálise em outro contexto que não o de uma ciência de fato do tipo naturalista. A experiência analítica tem muito mais semelhança com a compreensão histórica que com uma explicação natural. (Ricoeur 1977, p. 303)

Conforme Paul Ricoeur, o psicanalista não estuda fatos, realidades acessíveis à observação por um método específico, mas o sentido assumido pelos fatos na história do sujeito. Sendo assim, o que importa para o analista não são os fatos tais como poderiam ser conhecidos por um observador exterior, mas como o sujeito "acredita" que sejam; o que é pertinente não é o fato propriamente dito, mas a significação que ele adquiriu na história do sujeito.

Contudo, a especificidade da hermenêutica nos escaparia se nos limitássemos a destacar sua pertinência ao campo das significações. A tarefa hermenêutica só se faz necessária quando lidamos com um conjunto particular de expressões lingüísticas, aquelas cujo sentido precisa ser interpretado. Ora, quando compreendemos imediatamente o sentido de uma palavra, jamais chegamos a dizer que a interpretamos. A exigência de decifração apenas se apresenta ao nos deparamos com um conjunto de signos que dizem algo diferente do que querem dizer, ou seja, em que o sentido imediato oculta, ao mesmo tempo que revela, um outro sentido. A esse subconjunto particular de signos que demanda interpretação Ricoeur denomina símbolos. Conforme ele mesmo diz:

Dizemos que as palavras, por sua qualidade sensível, exprimem significações e que, graças à sua significação, designam algo. A palavra "significar" recobre os dois pares: o da expressão e o da designação. Não é dessa dualidade que se trata no símbolo. Ela é de um grau superior: não é nem a do signo sensível e da significação, nem a da significação e da coisa, a qual, aliás, é inseparável da precedente. Ela se acrescenta e se superpõe à precedente como relação do sentido ao sentido; pressupõe signos que já possuem um sentido primário, literal, manifesto, e que, por esse sentido, remetem a outro sentido. Portanto, restrinjo deliberadamente a noção de símbolo a expressões de duplo ou múltiplo sentido, cuja textura semântica é correlativa ao trabalho de interpretação que explicita seu sentido ou seus múltiplos sentidos. (Ibid., p. 22)

Os símbolos possuem uma estrutura intencional de segundo grau, em que um sentido manifesto se apresenta e, através dele, outro sentido se anuncia. Como existe a possibilidade de o símbolo se opacificar, não remetendo ao segundo sentido visado e fazendo com que nos detenhamos num primeiro nível de leitura, faz-se necessário o trabalho da interpretação, o qual revelará a multiplicidade dos sentidos: "(...) a interpretação é um trabalho de compreensão, visando a decifrar símbolos" (ibid., p. 19). A hermenêutica seria a teoria das regras que presidem à decifração dos símbolos, ou seja, das regras que tornam possível passar do sentido aparente para o oculto. No caso, Freud teria sido um hermeneuta, justamente por haver descoberto os procedimentos de elaboração que se intercalam entre o sentido latente dos sonhos, sintomas e atos falhos e o sentido manifesto deles.

Entretanto, a psicanálise não se definiria somente como um empreendimento de decifração de símbolos, ponto que compartilharia com outras espécies de hermenêutica, mas, principalmente, pela afirmação de que o sentido revelado pelo trabalho de decifração oferece uma contestação ao sentido consciente. O sentido, tal como se apresenta imediatamente à consciência, é destituído como uma impostura; a ele é recusado qualquer valor de verdade, pois a técnica analítica descobriu que constituía um mero disfarce para a realização de desejos sexuais. O sentido manifesto não passa de formação de compromisso; ele realiza, de maneira despistada, um desejo incompatível com as exigências oriundas das instâncias ideais. Assim, graças à revelação do sentido oculto por trás das pretensas verdades da consciência, a técnica analítica mostra que elas não passam de ilusões destinadas a mascarar desejos incompatíveis com nossos ideais.

Segundo Ricoeur, considerar a consciência, em seu conjunto, como consciência falsa seria o ponto de partida da investigação de Freud, que, com Marx e Nietzsche, integrariam a denominada "escola hermenêutica da suspeita". Enquanto, por exemplo, em uma hermenêutica do sagrado, a decifração do texto apenas faz aprofundar seu significado literal, acrescentando significados novos ao significado consciente, a hermenêutica da suspeita institui uma nova relação entre manifesto e latente, similar à tradi-cional oposição aparência/essência. Em vez de tão-somente complementar o sentido manifesto, o sentido latente termina por dissolvê-lo como falso saber, por denunciá-lo como mentira e mistificação.

A invenção de uma ciência da interpretação constitui condição necessária, mas não suficiente, para que a batalha contra as pseudo-evidências da consciência seja ganha, já que a interpretação analítica, justamente por portar uma mensagem que abala e humilha nosso narcisismo, precisará ainda vencer uma força psíquica, denominada resistência, que se opõe à descoberta do sentido em questão. Sendo assim, a dificuldade não consistirá tanto em trazer o recalcado à consciência, mas em superar a não aceitação de sua verdade pela consciência. A simples comunicação do conteúdo recalcado ao analisando não produz efeitos, sendo necessário que a batalha seja travada no campo das resistências. Assim, diferentemente de uma hermenêutica do sagrado, em que o esforço se concentra na decifração da mensagem oculta, a hermenêutica freudiana caracterizar-se-ia, além disso, pelo esforço em vencer resistências psíquicas à admissão da verdade.

 

O problema que a metapsicologia freudiana coloca para a leitura hermenêutica

A tradição hermenêutico-fenomenológica estabeleceu uma oposição clássica entre dois tipos de explicações: por motivos ou por causas. As primeiras seriam adotadas pelas ciências do sentido; as segundas, pelas ciências da natureza. Qual a diferença entre ambas?

Quando explicamos ações, pensamentos e sentimentos dos agentes, atribuímos a eles, ordinariamente, motivos, que correm o risco de serem confundidos com causas. De fato, a linguagem parece favorecer essa indistinção, pois o termo "porque" é usado tanto na referência a atos causados ("Ele fez isso porque tomou uma injeção de cocaína") quanto a atos motivados ("Ele fez isso porque queria ser justo"). Contudo, como diz Ricoeur, "essa redução do motivo ao tipo de explicação, inaugurado pela causa formal aristotélica e ilustrado na epistemologia moderna pela noção de dependência funcional, nada tem a ver com o motivo no sentido de `razão para...' " (ibid., p. 296; os itálicos são meus). A conexão entre, por exemplo, certa ação e o motivo que a justifica não é um laço extrínseco, a ser estabelecido por intermédio da observação de uma sucessão observável de eventos, mas um laço intrínseco ou lógico: sabe-se, de maneira imediata, que o motivo alegado é o correto. No segundo exemplo considerado ("Ele fez isso porque queria ser justo"), não se deve falar propriamente em causa, mas sim em motivo, pois ele justifica a verdade de certo modo de pensar ou, pelo menos, coloca em jogo a questão da verdade.

Há, de fato, uma parte da obra freudiana que parece se adequar perfeitamente a esse esquema de leitura. Quando a psicanálise se propõe a decifrar sonhos, estaria demonstrando que atos aos quais o paciente atribuía uma causa (por exemplo, supondo que um pesadelo foi conse-qüência de uma perturbação fisiológica) possuem, na verdade, fortes motivos para existir, ou seja, têm um sentido que pode ser desvendado. Como diz Freud:

Se adotarmos o método de interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo. (Freud 1900, p. 155)

Entretanto, a metapsicologia freudiana impõe dificuldades a esse tipo de leitura, uma vez que nela Freud (1915a) parece francamente determinado a fornecer uma explicação do psiquismo em termos causais. Os pensamentos inconscientes são transformados em objetos; a presença ou ausência de tais pensamentos na consciência encontra-se na dependência direta de processos energéticos, eles também objetivos. A leitura causalista poderia ser respaldada por passagens do texto freudiano como esta:

Parece plausível supor que, no trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos de alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem uma transferência e um deslocamento de intensidades psíquicas no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e dos pensamentos do sonho. (Freud 1900, p. 333)

Isso gerou um problema para os teóricos que, como Ricoeur, pretendiam ler a psicanálise como uma teoria do sentido. A metapsicologia deveria ser rejeitada como um preconceito naturalista de Freud ou o seu valor de verdade deveria ser reconhecido? O mérito de Ricoeur foi escolher a segunda hipótese, tentando solucionar o problema através da compatibilização da metapsicologia com o registro do sentido. Examinemos até que ponto Ricoeur foi bem-sucedido nessa empreitada.

Comecemos discutindo o ponto de vista tópico. Segundo Ricoeur, ao criar modelos em que a consciência figura apenas como um lugar psíquico entre outros, Freud visaria a assinalar que aquilo que a consciência pode apreender num determinado momento se encontra em defasagem em relação à produção de significação pelo Espírito. A espacialidade a que nos remete o termo "tópica" não deveria ser entendida como se fizesse referência a regiões mentais, mas, antes, como metáfora indicadora de que há motivos que escapam à consciência, de tal modo que os atos surgem para ela como se fossem causados. Como se trata, no sintoma, de um motivo que o sujeito não aceita e que recusa a submeter à consideração intelectual, tal motivo retornará no símbolo de uma maneira tão deformada, a ponto de tornar-se irreconhecível à consciência, assemelhando-se, então, a uma causalidade exterior que a atormenta. No entanto, não se trata, de modo algum, de causalidade propriamente dita; senão, fica-ríamos impossibilitados de entender por que, uma vez levada a cabo a interpretação analítica, o paciente termina por se reconhecer como o autor das significações desvendadas. Se o sujeito é capaz de se responsabilizar por seus atos, é porque não foram causas exteriores que o levaram a agir. Na verdade, são atos motivados, que possuem a aparência de causados graças à deformação imposta pelo recalque.

Quanto ao obstáculo constituído pelos pontos de vista econômico e dinâmico para uma leitura racionalista, Ricoeur resolve-o afirmando que, como a energia psíquica não é detectável objetivamente, conclui-se que não pode ser objeto de investigação das ciências naturais. Contudo, como lhe conferir um estatuto compatível com o registro do sentido? As pistas para resolver o problema serão encontradas por Ricoeur nos textos metapsicológicos. Neles, embora às vezes Freud pareça identificar a pulsão a uma força natural, como quando define a pulsão como uma exigência orgânica, também afirma ser a pulsão em si mesma incognoscível. A pulsão só poderia ser conhecida através de suas manifestações psíquicas, como atesta a seguinte passagem freudiana: "Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência - só a idéia que a representa pode" (Freud 1915b, p. 182). Essa é a posição que Ricoeur irá valorizar: nada podemos dizer da pulsão em sua dimensão natural; a pulsão só importa quando ingressa no campo psíquico através de sua presentação psíquica (Repräsentanz),1 isto é, de algo psíquico que vale pela pulsão. Essa presentação não representa qualquer objeto, mas simplesmente anuncia a pulsão enquanto tal, como se fosse sua expressão psíquica mais imediata. O que chamamos de representação (Vorstellung), isto é, a idéia de algo (mundo, corpo próprio, etc.), já é uma forma derivada dessa presentação original.

Qual o estatuto dessa Repräsentanz? Seria preciso ir além do recalque primário para se atingir a expressão imediata da pulsão. Freud, porém, jamais mencionou em que condições poderia ser superado o recalque primário. O trabalho de interpretação dá acesso apenas aos derivados do recalcado, nunca ao recalcado primário. Isso sugere ser o recalque primário um postulado, cuja função é assegurar que, apesar da barra de resistência que separa inconsciente e consciente, há uma comunidade fundamental entre os dois sistemas, fazendo com que sejam igualmente psíquicos. "Ele [Freud] a toma [a Repräsentanz] como aquilo que permite transcrever o inconsciente em consciente e mantê-los juntos como modalidades psíquicas comparáveis" (Ricoeur 1977, p. 117). A função da Repräsentanz é garantir que, entre os dois sistemas, haja homogeneidade, de tal maneira que seja sempre possível transcrever o inconsciente em consciente. O inconsciente sempre poderá ser traduzido para a linguagem consciente, pois é homogêneo a ela.

Afirmar que a pulsão não pode nunca ser conhecida em si mesma, mas apenas através de suas expressões psíquicas, equivale a dizer que a energia pulsional só poderá ser apreendida através do registro da significação, jamais através da descrição de um fato objetivo que ocorreria no organismo. A esse respeito, diz Ricoeur:

Portanto, é nessa noção de expressão psíquica, de presentação psíquica, que vêm coincidir a econômica e a hermenêutica. A distância entre os dois universos do discurso da psicanálise, que nos parecera insuperável no nível da Interpretação dos Sonhos, parece ter-se desvanecido nos escritos da Metapsicologia. (Ibid., p. 119)

A solução apresentada teria sido perfeita, se pudéssemos assimilar simplesmente as presentações psíquicas (Repräsentanz) às representações (Vorstellungen), isto é, às idéias de algo. O problema é que, segundo Freud, as representações não são as únicas categorias de expressão psíquica, existindo ainda outra categoria, a dos afetos, distintos das representações. Freud chega a admitir que os afetos possam existir independentemente das representações, podendo inclusive conhecer destinos diferentes em relação às mesmas. Ora, se o afeto for considerado o quantitativo puro, homogêneo às forças físicas, a subordinação da energia ao registro do sentido encontraria aí um limite.

Procurando solucionar esse problema, Ricoeur recorre ao artigo metapsicológico "O inconsciente" (Freud 1915b), enfatizando a tese freudiana segundo a qual os afetos, por serem sempre conscientes, encontram-se inevitavelmente ligados a uma representação:

Por certo, faz parte da natureza de uma emoção que estejamos cônscios dela, isto é, que ela se torne conhecida pela consciência. Assim, a possibilidade do atributo da inconsciência seria completamente excluída no tocante às emoções, sentimentos e afetos. (...) Pode ocorrer que um impulso afetivo seja sentido, mas mal interpretado. Devido ao recalque de seu representante adequado, é forçado a ligar-se a outra idéia, sendo então considerado pela consciência como manifestação dessa idéia. Se restaurarmos a verdadeira conexão, chamaremos o impulso afetivo original de "inconsciente". Contudo, seu afeto nunca foi inconsciente; o que aconteceu foi que sua idéia sofreu recalque. (Ibid., p. 182)

Ao colocar em relevo a afirmação freudiana de que o afeto, como todos os processos de descarga, se torna sempre consciente, Ricoeur pretende consumar a subordinação do afeto ao sentido. De fato, o artigo de Freud favorece tal leitura, na medida em que, se não há afeto que não seja consciente, e se a condição do tornar-se consciente é, segundo Freud, ligar-se a uma idéia, conseqüentemente, o afeto sempre será designado pela representação de que é o afeto. Mesmo nos casos em que Freud se viu obrigado a introduzir a noção de um "afeto inconsciente", não se tratava verdadeiramente de um afeto do qual o indivíduo não tivesse consciência. Pelo contrário, tais afetos podiam perfeitamente ser sentidos. O que permanecia inconsciente era a representação à qual estiveram originalmente ligados. Ainda que ligado a uma representação falsa, o afeto permanece sempre sendo afeto de uma representação.

O único caso que poderia fazer objeção à tese de Ricoeur seria a angústia, descrita por Freud como uma carga de afeto desligada de qualquer idéia. Como lembra Monzani, "é aqui [na angústia] que o afeto revela sua característica mais fundamental: a de ser um quantum energético" (1989, p. 92). Contudo, Ricoeur contorna o obstáculo, defendendo que a angústia consiste, na verdade, em um afeto que teria se separado de sua idéia original devido ao processo de recalcamento. A angústia seria um afeto à procura de um novo suporte representativo, que lhe abriria o caminho à consciência.

Assim, mesmo que o afeto esteja ligado a uma representação equivocada (caso do sentimento inconsciente) - ou até no caso limite da angústia, em que estaríamos diante do afeto puro, desligado de qualquer representação -, ele está sempre potencialmente ligado a uma idéia, mesmo que atualmente isso não se verifique. O resultado dessa leitura é que "toda a montagem operada por Ricoeur consistiu não em harmonizar o econômico e a interpretação, mas pura e simplesmente em eliminar totalmente do plano psíquico o econômico" (ibid., p. 89).

Contudo, como o próprio Ricoeur não deixa de notar, a noção freudiana de afeto parece resistir a uma total assimilação por uma teoria do sentido, já que Freud não cessou de lembrar a irredutibilidade do afeto ao sentido, enfatizando a possibilidade de afetos e representações conhecerem destinos diferentes. Além disso, ao tomar a angústia como um afeto que teria sido separado de sua idéia primitiva pelo recalque, Ricoeur negligencia completamente a segunda teoria freudiana da angústia, segundo a qual haveria uma angústia anterior ao recalcamento, assimilável a um excesso de estimulação. Como diz Freud: "É altamente provável que as causas precipitantes imediatas dos recalques primitivos sejam fatores quantitativos, tais como uma força excessiva e o rompimento do escudo protetor contra os estímulos" (Freud 1926 [1925], p. 98).

O próprio Ricoeur conclui que, embora o afeto não possa ser apreendido fora da dimensão da representação, também não é inteiramente redutível a ela, já que sofre vicissitudes distintas das da representação.

"Portanto, não podemos reduzir o afeto e seu fator quantitativo à representação, nem tratá-lo como uma realidade distinta" (Ricoeur 1977, p. 122).

Para uma leitura hermenêutica, é problemático aceitar que o afeto obedece a vicissitudes distintas das que ocorrem na representação, pois, com isso, corre-se o risco de recair num naturalismo, como se o afeto constituísse uma realidade natural, estranha à representação. Sendo assim, Ricoeur confessa não haver dado solução satisfatória para o problema da integração entre afeto e representação:

Mais que tudo, o que é difícil pensar é a idéia de uma "energia que se transforma em significação". Nada, conseqüentemente, está adquirido nesse domínio e tudo, talvez, esteja por fazer, eventualmente com a ajuda de esquemas energéticos muito diferentes dos de Freud. (Ibid., p. 316; os itálicos são meus)

 

Os problemas da posição hermenêutica e a alternativa lacaniana

Qual a posição de Lacan nesse debate?

O gesto inaugural de Lacan consiste em esposar incondicionalmente a hermenêutica: desde sua tese de doutorado de 1933, e especialmente no Discurso de Roma, ele se opõe ao determinismo em nome da psicanálise como pesquisa hermenêutica: "Toda experiência analítica é uma experiência de significação". É aí que se origina o grande tema lacaniano do futuro anterior da simbolização: um fato não vale como fato bruto, mas somente como sempre - já historizado. (Zizek 1999, p. 125)

Desde o início de sua teorização, Lacan subscreve os argumentos que defendem a disjunção entre o nível da significação e o dos fatos. Por mais que posteriormente Lacan termine por se distanciar inteiramente da hermenêutica, "o fato de que ele tenha se desviado da hermenêutica não significa nenhuma regressão ao naturalismo" (ibid., p. 126), permanecendo válida a recusa inicial em considerar a psicanálise como ciência natural.

Assim, podemos antecipar que, em linhas gerais, Lacan se rendeu aos argumentos daqueles que criticavam a naturalização do humano, mas nem por isso aceitou a alternativa positiva apresentada por tais críticos. Lacan concorda com os teóricos do campo do sentido quando eles negam a possibilidade de naturalização do pensamento, entretanto, discorda deles quando afirmam que o pensamento pode ser estudado pelas ciências da compreensão. Ou seja, para Lacan, os méritos de tais teóricos residem mais nas críticas que fazem que nas soluções que apresentam.

No caso da psicanálise, sua assimilação às ciências da compreensão levantaria problemas, partindo principalmente da experiência analítica. As dificuldades incidiriam sobre dois dos pilares sobre os quais se assenta o compreensivismo, a saber: a atribuição da função de fiador da linguagem ao significado e a rejeição de tudo o que for irredutível à significação para o campo da causalidade natural - recusa que, no caso da obra freudiana, termina por relegar a noção de pulsão para os limbos do fisiológico.

A concessão ao significado da função de fiador da linguagem

Comecemos por comentar a afirmação da leitura hermenêutica da psicanálise segundo a qual o significante deve remeter, em última instância, a um significado, capaz de fornecer àquele uma garantia última. Por mais que se admita, como fez Ricoeur, que o significante possa se opacificar, indicando um significado ilusório, e por mais que o sujeito possa permanecer estagnado num nível de leitura aparente, isso não passaria de um desvio, bastante remediável por sinal, em relação a um significado mais originário. É o que testemunha a interpretação de Ricoeur sobre o recalque originário, que seria a condição que garante, de direito, a tradução do inconsciente em representações conscientes. Com isso, o inconsciente é reduzido a uma espécie de "duplo" da consciência, cabendo à interpretação a tarefa de deslizar de um significado, aparente, para outro, mais oculto. "O sonho e seus análogos se inscrevem, assim, numa região da linguagem que se anuncia como lugar das significações complexas onde um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sentido imediato"(Ricoeur 1977, p. 18).

Mesmo intercalando desvios no percurso em direção ao significado, mantém-se sempre a possibilidade de encontrá-lo. Ou seja, a tese que permanece incontestada por Ricoeur é a da primazia do significado. No final das contas, reserva-se para o significante uma função expressiva, o que termina por engajar a análise numa pesquisa de significações, decerto ocultas, porém, sempre reencontráveis.

Há, entretanto, um problema que os tratamentos concebidos exclusivamente nesses termos não conseguem dar conta: como é possível a histericização do discurso, ou seja, o constante distanciamento assumido pelo analisando em relação aos seus próprios ditos? Em vez de se reconhecer integralmente nas significações às quais chega o trabalho interpretativo, o sujeito jamais as aceita como legítimas representantes de seu ser. "Eu disse isso antes, mas agora acho que não é bem assim..." Ele constantemente toma distância em relação a seus ditos, jamais consegue coincidir completamente com o que disse num momento anterior. O sujeito em análise é aquele que não consegue ratificar seus pensamentos, atos e sentimentos, cuja posição não cessa de colocar entre aspas a ante-rior, sem que a posição derradeira seja jamais encontrada. A propósito de qualquer um de seus atos ou ditos, o sujeito pode sempre se reposicionar; o que era verdadeiro em um determinado momento pode ser logo depois posto em dúvida, de maneira a nunca se conseguir dizer algo totalmente verdadeiro.

A histérica sofre exatamente porque esse constante deslizamento de significações a proíbe de encontrar a autenticidade e a unidade. Segundo a bela definição de Miller, trata-se de "sujeitos que sofrem em seu próprio ser do impossível da autenticidade" (1997, p. 237). O sujeito histérico é aquele que fracassa em formular, através da fala, uma representação adequada do que deseja. Assim, não é surpreendente que um sujeito que se apresenta na análise com um "ninguém me entende" acabe por se dar conta de que ele mesmo não consegue se entender. Ele desconhece o que quis dizer com o que disse, suas falas são enigmáticas para ele mesmo, sem que consiga alcançar, através de um significado último, a certeza. Portanto, a histericização do discurso, estranha circunstância em que o sujeito não compreende a si próprio, coloca uma dificuldade para a tese hermenêutica, de acordo com a qual o sujeito deverá sempre poder, no fim das contas, compreender a si próprio.

A incapacidade de a tese hermenêutica dar conta da experiência analítica pode ser ilustrada recorrendo a um caso clínico reportado por Freud (Freud 1916-17, p. 269). Trata-se de uma mulher casada, de cerca de 30 anos de idade, que executava, muitas vezes por dia, a seguinte seqüência de atos obsessivos: corria de seu quarto até o quarto contíguo, assumindo ali uma posição determinada, ao lado de uma mesa situada no meio do aposento; soava em seguida a sineta, chamando a criada, dizia-lhe algo sem importância e depois a dispensava, retornando logo a seu quarto. Ao longo do tratamento, a mulher acaba contando que foi, há mais de dez anos, casada com um homem muito mais velho, que, desde a noite de núpcias, se revelara impotente. Indo e vindo incessantemente de seu quarto ao quarto dela, em tentativas inúteis de consumar o coito, ele, pela manhã, por fim dissera: "Sinto vergonha do que pensará a criada, quando vier arrumar a cama". Ele pegou uma garrafa de tinta vermelha, derramando-a no lençol, mas, segundo a paciente, não no lugar adequado. A paciente lembrou, então, que a toalha da mesa ao lado da qual ela se posicionava durante os rituais obsessivos possuía uma grande mancha. Ela costumava assumir uma posição tal em relação à mesa que a criada não pudesse deixar de ver a mancha na toalha.

Entre as várias razões que explicariam o ato obsessivo dessa mulher, pode-se enumerar:

1. Através de seu ato obsessivo, a mulher corrigia a cena da noite de núpcias, mostrando à criada uma mancha, desta vez posicionada no lugar certo. Com isso, ela queria provar a virilidade do marido: "Ele não é impotente".

2. Com seus sintomas, ela podia se manter afastada do marido, de quem vinha tentando obter o divórcio legal, pois já não o suportava mais.

3. Graças ao sintoma, retirava-se do mundo para não ser assediada pelos outros homens e cair em tentação. Protegia, assim, o marido de comentários maldosos, salvando a reputação de ambos.

4. Mediante seu ato, ela não cessa de lembrar a humilhante condição do marido, o que é uma maneira de se vingar dele por haver fracassado sexualmente.

O procedimento de Freud foi considerar o ato obsessivo da mulher como o que Lacan chamaria de um significante, algo cuja significação é enigmática. No percurso do trabalho analítico, a paciente acaba enunciando não apenas uma, mas múltiplas significações para aquele significante. Em outras palavras, um ato obsessivo que a paciente exe-cutava automaticamente pôde ser explicado por razões.

Esse esquema, aparentemente, vai ao encontro da proposta hermenêutica, já que a interpretação freudiana parece ter se mantido, pura e simplesmente, no registro da revelação de uma infinidade de significações. Contudo, nossa atenção deve se voltar para um outro aspecto, freqüentemente pouco notado: como uma única formação do inconsciente pode condensar propósitos, não só múltiplos, mas também espantosamente contraditórios? O ato obsessivo pôde funcionar como uma espécie de "continente neutro" para diversas atitudes libidinais; um único significante (o ato obsessivo) serviu como um amálgama inconsistente de desejos, não apenas diferentes, mas, sobretudo, contraditórios entre si.

Diante dessa reunião inconsistente de desejos incompatíveis suportada pelo significante, seria equivocado decidir entre tais desejos, demandando qual a verdadeira significação do gesto da paciente, quais as verdadeiras razões por trás de seus atos. "É em que reside o êxito paradoxal da simbolização: um único gesto significante ocupa o lugar da pesquisa vã da `verdadeira significação' (do significado último)" (Zizek 1996, p. 197).

Por que Zizek usa a expressão "êxito paradoxal"? Se o significante possibilita fazer uma formação de compromisso entre desejos irreconciliáveis e se o gesto de simbolização é bem-sucedido, o que há de paradoxal nisso? O problema é que a possibilidade de a consciência exercer a função de unificar essa multiplicidade de significações encontra-se embargada. Com a descoberta do inconsciente, a consciência não se encontra, como quer Ricoeur, apenas provisoriamente descentrada; a consciência não se acha provisoriamente incapacitada de fazer a síntese, mas se encontra estruturalmente descentrada, por não poder fazer convergir propósitos divergentes. Tais desejos irreconciliáveis somente podem ser colocados juntos fazendo um conjunto, sob pena de se sacrificar a noção de um sujeito unitário. Daí Lacan afirmar que:

Ele [o Sr. Ricoeur] estava seguramente longe o bastante para aceder ao que é de mais difícil acesso para um filósofo, isto é, o realismo do inconsciente - que o inconsciente não é ambigüidade de condutas, futuro saber que já se sabe por não saber, mas lacuna, corte, ruptura que se inscreve em certa falta. (Lacan 1985 [1964], p. 146; os itálicos são meus)

Embora a hermenêutica possa admitir a existência de infinitas significações para uma determinada produção do inconsciente, o que ela não está em condições de aceder é ao significante como lugar de uma lacuna, isto é, da impossibilidade de constituir um conjunto consistente de significados.

Pelo que foi dito, conclui-se que o significante possui duas características singulares: pode abrigar infinitas significações e estas podem, perfeitamente, ser contraditórias entre si. Portanto, concepções de linguagem que estabelecessem para o significante um significado ou uma coisa capaz de lhe dar sustentação (como limite exterior) mostrar-se-iam incompatíveis com a psicanálise, já que incapazes de explicar como se-riam possíveis tanto a infinitização das significações quanto a contraditoriedade entre as mesmas. A invenção freudiana exige, portanto, que não se pense o significante como possuidor de uma instância exterior a ele (significado ou referente), capaz de lhe fornecer um lastro, uma garantia última.

A sujeição total do afeto à significação

Outra dificuldade que subsiste no caminho de uma leitura hermenêutica é a energética. Embora o desígnio de Ricoeur fosse exatamente demonstrar, no texto freudiano, a continuidade de uma mesma ordem, não a ruptura entre dois universos distintos de discurso (causas versus motivos), é duvidoso que tenha cumprido a tarefa com êxito.

Recapitulemos a posição dele: reconhecendo que enxergar na energética um mero preconceito naturalista de Freud seria mutilar a psicanálise, Ricoeur não deixa, entretanto, de ver na vertente econômica um problema, por esta assemelhar-se a uma explicação naturalista. Contudo, se é verdade que a psicanálise é uma ciência das relações de sentido a sentido e se o único emprego legítimo do conceito de energia limita-se às ciências naturais, cabe conceder ao conceito freudiano de energia pulsional um estatuto compatível com o registro do sentido. A partir daí, Ricoeur tenta resolver a questão valorizando passagens de textos freudianos em que o estudo da pulsão, considerada estimulação endossomática - ou seja, enquanto força natural -, é descartado como irrelevante para a psicanálise. O que teria interessado Freud não seria a pulsão como fenômeno natural, mas sim suas expressões no âmbito psíquico, que já comportariam, portanto, relações de sentido. Sendo assim, ao conceito de Repräsentanz caberia o ônus de realizar a conexão entre o sentido e a força.

Contudo, ao relegar a pulsão ao organismo e atribuir toda responsabilidade da explicação ao conceito de Repräsentanz, Ricoeur apenas adiou o problema (Tort, 1966). Se o problema que o fator econômico impunha a uma teoria do sentido parecia haver sido habilmente resolvido - graças à expulsão da pulsão para o plano somático e à colocação em relevo daquilo que, do somático, pode se exprimir psiquicamente como representante ideativo -, é reintroduzido sob a forma do representante afetivo. Vejamos:

(...) tudo iria bem se nós pudéssemos assimilar simplesmente as expressões psíquicas (Repräsentanz) às representações, isto é, às idéias de alguma coisa. Ora, as representações não são senão uma categoria de expressões psíquicas e nós fingimos ignorar que existe uma outra categoria, a dos afetos. (Ricoeur 1977, p. 119)

A solução dada por Ricoeur será afirmar a dependência do afeto em relação à representação, de tal maneira que mesmo o caso da angústia, afeto desligado de qualquer representação, pode, ainda assim, ser considerado um afeto à espera de uma representação.

Se o afeto depende da representação, como poderia vir a se desligar dela e a conhecer vicissitudes independentes, tal como descreve Freud? Vimos que Ricoeur oscila sempre, equilibrando-se entre a impossibilidade confessa de uma total sujeição do afeto ao sentido e a arriscada concessão de autonomia ao afeto, cuja conseqüência poderia ser sua transformação numa força natural.

Nos primórdios de sua teorização, Jacques Lacan trilhou caminho muito semelhante ao de Ricoeur, ao conceber a psicanálise como uma pesquisa do sentido. Reconhecendo a existência dessa fase "hermenêutica" na obra de Lacan e buscando extrair suas conseqüências para a teoria das pulsões, Miller (2000) conclui que o resultado foi uma tendência a subordinar a pulsão ao registro do significado. Desse modo, de acordo com Miller (ibid.), no primeiro paradigma do gozo em Lacan, a satisfação seria em grande parte de ordem semântica, estando condicionada à revelação do sentido dos sintomas. Ao acoplar a satisfação à descoberta do sentido, Lacan nitidamente se aproxima de Ricoeur. Porém, Lacan irá afastar-se dessa posição gradativamente. Por que devemos julgá-la insuficiente?

Nossa tese é de que a hermenêutica se mostrou incapaz de pensar a energia, justamente por não haver extraído todas as conseqüências da impossibilidade da totalização do sentido. A fim de fundamentar nossa afirmativa, recordemos a distinção feita por Ricoeur entre motivos e causas. Muito convincente ao argumentar que as ações humanas resultariam de motivos, o autor, por sua vez, falhou ao deixar de conceituar um aspecto fundamental: motivos diferentes podem ser alegados para explicar a mesma ação, assim como um mesmo motivo pode levar alguém a agir de várias maneiras diferentes. Desse modo, se alguém diz que realizou um determinado ato por amor, o mesmo amor poderia explicar um ato completamente diferente. Por amor pode-se entregar um filho que cometeu um crime à Justiça ou mentir para a polícia a fim de salvá-lo, por exemplo. Ou seja, partindo da premissa de que amo meu filho, são possíveis diversas conclusões. Entre o princípio e a conclusão há um hiato, de tal modo que a conclusão vai muito mais longe do que autoriza-riam as premissas. Não se tratando de um sistema acabado de princípios, haverá sempre um salto do princípio à conseqüência. Os motivos jamais fornecem a razão suficiente do ato.

Segundo a psicanálise, a adesão do sujeito a uma determinada posição (política, teórica, existencial, etc.) jamais pode ser inteiramente imputada a motivos. Em vez de conceber o ato amparado em motivos, a psicanálise sabe que a razão suficiente que justificaria de forma satisfatória o ato está ausente. No entanto, é impossível que o sujeito deixe de escolher. Embora não haja posição suficientemente legitimada, não se pode deixar de eleger alguma. Se há efetivamente um vazio de saber e, no entanto, elegemos uma posição e não outra, devemos supor haver satisfação n'Isso. Assim, a noção de satisfação pulsional responde à hiância que separa motivos e atos, correspondendo precisamente ao lugar de uma falha no saber.

Conseqüentemente, haverá sempre um caráter de precipitação inerente a qualquer escolha, de tal forma que, em vez de os motivos justificarem a escolha, a escolha será antes um ato que funda retroativamente seus próprios motivos. A despeito do desconhecimento da razão sufi-ciente que fundamentaria nossos atos, a escolha se faz forçosamente. Como a razão suficiente está ausente, mas o sujeito não pode deixar de escolher, segue-se que a adesão a uma posição qualquer se deve a um investimento libidinal. A satisfação consiste justamente num suplemento capaz de responder à hiância existente entre motivos e atos, constituindo precisamente um não-sentido no seio do sentido. Por isso, Ricoeur está equivocado quando tenta subordinar a pulsão ao sentido, pois a satisfação pulsional é condição do sentido, não podendo estar assujeitada a ele.

No lugar desse não-sentido, daquilo que não se pode dizer, mas que é antes condição do dizer, Lacan colocará uma letra: objeto a. Quando dizemos objeto a estamos introduzindo algo que ocupa o mesmo lugar da letra "x" em matemática, o lugar de uma incógnita, desprovida de sentido. Só que, no caso do objeto a, trata-se de algo que não tem sentido, no entanto, é correlativo ao campo do valor e da significação.

Podemos concluir que, se o fator quantitativo pôde aparecer como uma dificuldade insolúvel para Ricoeur, não sendo possível incluí-lo completamente no campo do sentido nem expulsá-lo totalmente desse campo (pois isso equivaleria a conceder-lhe o estatuto de força natural), assim foi graças à dificuldade do autor em conceituar um não-sentido no seio do próprio sentido.

 

Referências

Freud, Sigmund 1900: "Interpretação dos sonhos". In: Freud 1996, v. 4 e 5.         [ Links ]

----- 1915a: "Artigos sobre metapsicologia". In: Freud 1996, v. 14.

----- 1915b: "O inconsciente". In: Freud 1996, v. 14.

----- 1916-17: "Conferência XVII sobre o sentido dos sintomas". In: Freud 1996, v. 16.

----- 1926 [1925]: "Inibições, sintomas e ansiedade". In: Freud, 1996, v. 20.

----- 1996: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud [ESB]. Rio de Janeiro, Imago.

Lacan, Jacques 1985 [1964]: O seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

----- 1998 [1953]: "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Miller, Jacques A. 1997: Lacan elucidado. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

----- 2000: "Os seis paradigmas do gozo". Opção lacaniana, n. 26/27, pp. 87-105.

Monzani, Luiz R. 1989: Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, Unicamp.

Ricoeur, Paul 1965: De l'interprétation: essai sur Freud. Paris, Seuil.

----- 1977: Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro, Imago.

Tort, Michel 1966: "De l'interprétation, ou la machine hermeneutique". Les temps modernes. Paris, n. 237/238, pp. 1461-93/ 1629-52.

Zizek, Slavoj 1996: Essai sur Schelling: le reste que n'êclot jamais. Paris, L'Harmattan.

----- 1999: Suversions du sujet: psychanalyse, philosophie, politique. Rennes, Presses Universitaires de Rennes.

 

 

Endereço para correspondência:
Rosane Zétola Lustoza
E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br
Ana Beatriz Freire
E-mail: freireab@terra.com.br

Recebido em 24 de maio de 2005.
Aprovado em 11 de agosto de 2005.

 

 

* O presente artigo é baseado na dissertação de mestrado realizada pela autora, cujo título é A solidão teórica de Freud e as psicanálises contemporâneas. Essa dissertação, orientada pela Profª Drª Ana Beatriz Freire, foi apresentada em fevereiro de 2002, ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (PPGTP) do Instituto de Psicologia da UFRJ. O trabalho foi financiado pelo CNPq e realizado no grupo de pesquisa resultante de acordo entre o PPGTP e o Instituto P. Pinel, coordenado pela Profª Ana Beatriz Freire.
1 Neste trabalho, será respeitada a tradução dada pela edição brasileira da obra de Ricoeur (Ricoeur 1977, tradução de Hilton Japiassu). Dessa forma, o termo Repräsentanz foi traduzido como presentação, equivalendo ao recalcado originário, e Vorstellung foi transformado em representação, equivalendo aos derivados do recalcado.