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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.8 n.1 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

As vassouras da feiticeira

 

The witch's brooms

 

 

Jurandir Freire Costa

Prof. Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é uma réplica ao artigo A psicanálise pragmática e o paradoxo da interpretação, de João José Rodrigues Lima de Almeida. Discuto nele as noções de introspecção, linguagem privada, vida interior, linguagem referencial, sentido, ação intencional, sintomas, critérios, razões causais e objetivos da clínica psicanalítica, todas questionadas pelo autor do artigo. Sugere-se que as críticas feitas às idéias de Márcia Cavell e de Jurandir Freire Costa sobre esses tópicos devem-se a mal-entendidos teóricos e não à incompatibilidade conceitual entre o vocabulário psicanalítico e as teses do neopragmatismo lingüístico.

Palavras-chave: Psicanálise, Fenomenologia do corpo, Neopragmatismo lingüístico, Marcia Cavell, Donald Davidson, Richard Rorty.


ABSTRACT

This article is an answer back to João José Rodrigues Lima de Almeida's article "The pragmatic psychoanalysis and the paradox of interpretation". It deals with notions such as introspection, private language, inner life, referential language, meaning, intentional action, symptoms, criteria, causal reasons, and aims of the psychoanalytical clinic, all of them objected to by Almeida. It is suggested that the criticisms on Marcia Cavell's and Jurandir Freire Costa's readings on those conceptions are due to theoretical misunderstandings rather than conceptual incompatibility between the psychoanalytic vocabulary and the linguistic neopragmatism.

Keywords: Psychoanalysis, Phenomenology of the body, Linguistic neopragmatism, Marcia Cavell, Donald Davidson, Richard Rorty.


 

 

Agradeço o convite do editor de Natureza humana para responder às críticas feitas a alguns de meus textos no artigo A psicanálise pragmática e o paradoxo da interpretação. Aceitei o convite por duas razões principais. A primeira concerne à qualidade do artigo. Considero-o competente, intelectualmente honesto e feito com o empenho de quem leva a sério o trabalho e o debate universitários. A segunda concerne à oportunidade que tenho de esclarecer o que afirmei sobre pragmática de linguagem e suas relações com a teoria psicanalítica.

Inicio a discussão com duas precisões. Em primeiro lugar, gostaria de notar que o autor do texto, João José de Almeida, expôs meus pontos de vista sobre o assunto associando-os aos de Marcia Cavell, e, por extensão, aos de Davidson e de Rorty. Entendo que não poderia ter sido diferente, pois seu interesse era o de evidenciar o traço teórico geral que separa o neopragmatismo americano do pragmatismo de Wittgenstein, tomado como padrão crítico. O procedimento, contudo, resultou, freqüentemente, na diluição do que penso no pensamento dos três autores. No comentário, a fronteira entre o que é de minha autoria - atestado por citação ou paráfrase - e o que me é imputado - por ter sido sustentado por Cavell, Davidson ou Rorty - nem sempre fica clara. Imagino, portanto, que certas afirmações que me foram atribuídas são de Cavell, de Davidson ou de Rorty, cujos trabalhos, diga-se de passagem, deixei de seguir de perto há mais de 10 anos, antes mesmo, portanto, da recente morte de Davidson.

Em função disso, vi-me obrigado a proceder de forma similar, isto é, respondi às críticas como se tivessem sido dirigidas, em bloco, ao que escrevi. Desse modo, talvez venha a ser injusto com João José. Mas não havia como sublinhar, em cada item discutido, meu acordo ou desacordo com os outros autores, sob pena de perder o foco da réplica. A influência de Davidson e de Rorty sobre o que publiquei naquele período foi enorme. Entretanto, nunca me senti obrigado a segui-los naquilo com o que não concordava. Isso, aliás, corresponde ao que ambos pensavam sobre a natureza do trabalho intelectual. Não tive ocasião de conhecer Davidson pessoalmente. Quanto a Rorty, no breve tempo de contato pessoal que tive com ele, pude apreciar sua excepcional inteligência e seu extraordinário respeito pela liberdade de pensamento dos que o admiram, entre os quais me incluo.

Em segundo lugar, percebi que muitas das críticas ao meu trabalho se deveram a mal-entendidos pelos quais me julgo responsável. Admito ter abordado a pragmática da linguagem com a insegurança e a imperícia de quem não controla o vocabulário de uma disciplina que acaba de conhecer. O risco justificou-se apenas pelo objetivo visado, qual seja, o de tentar renovar a leitura psicanalítica de um assunto tão delicado quanto o da moralidade sexual. Continuo a acreditar que a tentativa valeu a pena, e aproveito o espaço desta réplica para elucidar um pouco mais o que penso acerca de neopragmatismo lingüístico, subjetividade e psicanálise.

 

Sobre introspecção, linguagem privada e vida interior

Começo por afirmações feitas, logo de início, sobre o "externalismo", conceito da filosofia da linguagem e da filosofia da mente que integra o grupo de pressupostos teóricos no qual se assenta o neopragmatismo lingüístico. Nas primeiras páginas do texto, é dito que essa premissa levou-me a "extinguir a introspecção", a rejeitar a "possibilidade de uma linguagem privada" e a "não acreditar numa vida interior do sujeito". Aqui aparece o primeiro mal-entendido. Não consegui encontrar em meus textos nada que justificasse essa imputação que me foi feita. Um propósito dessa ordem seria, a meu ver, um contra-senso psicanalítico e neopragmático. Contra-senso psicanalítico porque sem introspecção, linguagem privada e vida interior não existe sujeito e ainda menos psicanálise; contra-senso neopragmático porque o neopragmatismo, por razões teóricas e éticas, defende incansavelmente o valor epistêmico da psicologia vernacular na investigação da vida mental.

Vejo uma grande diferença entre o hábito psicológico da introspecção e o uso metafísico desse termo. O hábito psicológico consiste na capacidade de falar de si, de rememorar, de fantasiar, de construir hipóteses, de imaginar diálogos em silêncio, de refletir sobre aquilo em que se acredita, etc. Desejar "extinguir" tais fatos mentais seria um despropósito. Outra coisa é a introspecção de teor metafísico. A palavra introspecção, neste caso, alude à hipotética atividade de um eu abstrato, de um "olho mental" fictício distinto do resto do psiquismo e definido como o fundamento das certezas indubitáveis que podemos ter sobre o contingente e o necessário em nós e no mundo. Apenas nessa acepção de espectador fantasma, que seria a garantia segura das últimas verdades sobre a natureza do que percebemos ou pensamos, a introspecção é refutada pelo neopragmatismo.

A distância entre as duas concepções é grande. Assim como é grande o fosso entre "não acreditar numa vida interior do sujeito" e duvidar de que o solo da vida interior, como bem apontou João José, seja um contêiner de sensações, de objetos mentais abstratos ou de uma sintaxe lingüística universal e apriorística, interposto entre nossas impressões sensório-motoras e o mundo, e do qual emergiria o "sentido" do que dizemos ou pensamos. É este último sentido de "vida interior" que recusei e não o primeiro. A posição antiinterioridade - segunda imputação que me foi feita - é incompatível com minhas convicções pessoais e profissionais.

Na terceira imputação, é dito que "rejeito a possibilidade de uma linguagem privada, isto é, tratar sensações ou entidades mentais como objetos internos reais referidos pela descrição". O problema, aqui, é semelhante aos dois anteriores. Mesmo aceitando a definição de linguagem privada de João José, ainda assim, nem recuso nem recusei a idéia de linguagem privada in totum. Para economizar argumentos, cito na íntegra uma passagem na qual debato o tema:

Linguagem, para Wittgenstein, como, de resto, para Lacan, é um fenômeno público. Só sei falar porque alguém pode corrigir o que digo de certo e errado. Seguir corretamente a regra de uso de palavras, frases ou sentenças, exige, desta maneira, que mais de uma pessoa conheça a língua em que tais regras funcionam, conferindo sentido ao que se diz. Não existe "privacidade epistêmica" (aquilo que posso saber, o outro, logicamente, também pode) e nem existe "privacidade semântica" (o sentido do que digo é um sentido partilhado por muitos) da linguagem. O que pode existir é o jogo de linguagem que pode ser chamado de "privacidade ôntica", ou seja, é perfeitamente possível alguém dizer, com sentido: "existem coisas que só eu conheço". Mas esta frase é uma frase que pode ser conhecida e entendida por todos os falantes competentes da língua portuguesa. (Costa 1995a, p. 37)

Em outros termos, não nego a "experiência pessoal" - com perdão da redundância - da privacidade ôntica, isto é, do uso privado da língua vernacular. Contestei a existência da privacidade epistêmica e semântica, coisa com a qual penso que João José concorda, pois é uma das pedras de toque do pensamento de Wittgenstein. Por que insisto em dar ênfase a esse tópico? Porque, como disse, sem linguagem privada, a psicanálise clínica seria impraticável! Os casos nos quais essa habilidade não se desenvolve são, precisamente, aqueles que estão no limite das possibilidades da intervenção psicanalítica.

 

Sobre a linguagem referencial

Passo a outro ponto, a questão da "linguagem referencial". Em dado momento, João José me alinha aos externalistas diretos, que se afastaram da "concepção referencial da linguagem psicológica" e que "analisaram e desmontaram as pretensões da linguagem referencial na psicanálise [...]".

Este é um exemplo de ênfase em uma noção que não foi dada por mim, e que, portanto, julgo ser a provável extrapolação da opinião de outros às minhas opiniões. Não fiz da expressão linguagem referencial bali za para a crítica do idealismo ou do formalismo lingüísticos, pelo simples fato de, a meu ver, qualquer linguagem ser, ipso facto, referencial. A concepção pragmática da linguagem é perfeitamente compatível com a concepção referencial. Apenas insisti em mostrar a oposição entre 1) a idéia de linguagem como intermediário epistêmico, como esquema ou estrutura apriorística da mente humana e 2) a idéia de linguagem como habilidade natural para proferir atos de fala com sentido, na maioria dos casos e na maioria dos contextos. Disso, João José se deu conta. O que ele não acentuou suficientemente foi o fato de que aceitar a função referencial da linguagem não me leva a compreender a relação entre "linguagem" e "referência" da mesma forma que ele compreende. Referente, como entendo, é um construto semântico inventado para funcionar como equivalente lógico de qualquer entidade passível de inscrição lingüística.

Por que sublinho esse ponto? Porque o que me atraiu no pensamento de Davidson foi, justamente, o modo pelo qual ele desmontou o pretenso peso explicativo da noção de "referente". Na visão de Davidson, o que torna uma entidade "referente" de uma dada palavra é a existência prévia de uma teoria de verdade publicamente constituída e partilhada pelos falantes de uma comunidade lingüística. Dessa teoria depende a aprovação ou a validação do vínculo referencial entre tal entidade e tal palavra (Costa 1995a, pp. 58-72). Em outras palavras, o que induz o falante a aceitar que tal entidade é a referência de tal palavra nem é uma propriedade pretensamente intrínseca à entidade nem uma propriedade pretensamente intrínseca à palavra, mas a teoria de verdade que confere "valor de verdade" ao elo referencial considerado.

Para Davidson, contudo, verdade é somente a feição semântica própria a certas frases, e não um avalista metafísico que garantiria de forma incorrigível a correspondência ou a adequação de tal palavra ao referente "em si". Na terminologia davidsoniana, verdade não tem ramificações epistemológicas, isto é, não explica como e por que justificamos nossas crenças verdadeiras sobre o mundo (ibid., p. 78). Para saber se uma dada aparência do mundo causalmente ligada a uma certa atividade lingüística é o verdadeiro referente dessa atividade, é necessário estabelecer quais as "condições de verdade" responsáveis pela ligação em questão. Davidson entende por "condições de verdade" as diversas histórias pelas quais chegamos a aceitar, de forma tematizada ou não-tematizada, que tal entidade é o referente de tal palavra, frase ou sentença. Dito de outra forma, para compreender como adquirimos convicções tácitas ou conceitualmente fundadas sobre o uso apropriado da língua, temos de sair do plano achatado da semântica, do registro sincrônico das diferenças e oposições, no qual as palavras se articulam, para fornecer relatos histórico-fatuais sobre a formação de tais convicções (Costa 1994, pp. 43-53). É o que Rorty chamou de "história das justificações" das crenças que julgamos verdadeiras.

 

Sobre o sentido

Explicitado esse patamar da discussão, passo à objeção relativa à significação do termo "sentido". João José afirma que eu não soube distinguir a idéia de Wittgenstein segundo a qual "o sentido é o uso" da idéia vizinha de que "qualquer uso é sentido". Em suas palavras:

Comecemos por observar que embora o sentido esteja relacionado a um uso, não é verdade que o uso sempre tenha um sentido. Há usos desviantes de palavras, existem absurdos, contra-sensos, expressões sem sentido. [...] O uso, em si, não ocasiona o sentido, simplesmente porque pode haver uso correto e incorreto de uma palavra.

O motivo de tal desconhecimento, segundo ele, teria sido o equívoco que cometi ao pensar que usar palavras com sentido consiste em "interpretar regras" - regras estas erradamente entendidas como uma instância distinta dos hábitos correntes e regulares da língua. Seu raciocínio baseou-se na suposição de que empreguei o conceito de intérprete radical de forma mentalista e racionalista. Isso quer dizer que eu teria entendido a competência lingüística como uma operação precedida pelo ato racional de um intérprete - a interpretação -, intérprete este que seria uma espécie de homúnculo mental encarregado de "prever a correta aplicação de uma regra", ou seja, de decidir, de modo concludente, sobre o uso apropriado de palavras e frases.

Começo pelo mais fácil de responder. Nunca afirmei ou dei a entender que "qualquer uso é sentido". Para comprovar o que digo, permito-me reproduzir o que disse sobre o tópico:

É no uso que as falas sobre coisas e eventos estabilizam o sentido e tornam-se capazes de circular como mensagens significativas. É também no uso e pela varia-ção dos contextos que a mudança ou a recriação de sentidos novos para palavras antigas ou palavras novas com sentidos novos podem surgir. O que Derrida chamou de "repetição diferencial do signo" e o que Davidson e Rorty chamaram de "metáforas vivas" é a ruptura produzida por novos atos de fala, no universo semântico dos sentidos e intenções previamente conhecidos. (Costa 1995a, p. 47)

Em seguida, continuo:

Para Davidson, Rorty, Derrida etc., só existe metáfora ou repetição diferencial de signos, palavras etc., quando dispomos de um quadro suficientemente estável de regras semânticas para saber o que é ou não inovador, disruptivo etc. Prefiro, portanto, dizer que a linguagem existe e funciona por meio de "metáforas vivas" e "metáforas literalizadas"; por meio do que já tem sentido e do que emerge como "sem-sentido". (Idem)

Não misturo, portanto, "uso como sentido" com "qualquer uso é sentido". Admito que, se tivesse sido mais enfático na distinção, o mal-entendido talvez pudesse ter sido evitado. Penso, porém, que a raiz do desentendimento não está em minha suposta inabilidade para distinguir o que precisava ser distinguido, mas no modo como João José compreendeu o significado de "interpretação" e de "intérprete radical".

Para explicitar meu argumento, retomo a passagem da crítica na qual é dito: "Há usos desviantes de palavras, existem absurdos, contra-sensos, expressões sem sentido. [...] O uso, em si, não ocasiona o sentido, porque pode haver uso correto e incorreto de uma palavra".

Concordo com este ponto de vista. Vou, contudo, adiante e pergunto: como reconhecer que certas palavras ou frases são "absurdos, contra-sensos ou usos desviantes e incorretos destas mesmas palavras ou frases"? João José responde: podemos diagnosticar a incorreção porque dispomos de "regras". Mas, continua ele, tais regras não se deixam apreender pela atividade interpretativa de um pretenso "intérprete radical". A força normativa da língua corrente vem "do treinamento em um costume ou prática". Ou, em suas palavras e de modo mais preciso:

O sentido das palavras é um fenômeno social, não pode ser separado do seu aspecto comunitário. [...] O caráter mandatório do seguimento de regras provém da formação de um hábito, do aculturamento, da incorporação de uma "segunda natureza" acima da predisposição particular do indivíduo.

Pois bem, nisto reside a real divergência entre eu e ele. Em sua opinião, as noções de "hábito", "aculturamento", "treinamento em costume" ou "incorporação de uma segunda natureza" dão conta 1) da função do "intérprete que adquire teorias de verdade sobre o mundo" e 2) da função da "história da aquisição dessas teorias". Eu penso de modo diferente. Penso que as noções de "interpretação", "intérprete radical" e "história da aquisição de teorias de verdade" explicam melhor o funcionamento pragmático da língua corrente do que as noções preferidas pelo autor, desde que sejam entendidas como acho que devam ser.

Desse ângulo, acho que João José se enganou quanto ao sentido da expressão "intérprete radical". Pareceu-me que ele tomou a expressão 1) como definição de uma individualidade psicológica ou 2) como um artefato lógico - o que ela é! - de natureza idealista ou empirista - o que ela não é! Em outras palavras, o intérprete radical não é um sujeito psicológico que ignora o que significa "seguir regras" de acordo com Wittgenstein e se obstina em recorrer a uma sorte de régua ilusória para corrigir desvios ou caucionar o uso correto de termos no cânone lingüístico dominante. O intérprete davidsoniano não pode, do ponto de vista teórico, "interpretar uma regra", na acepção de João José, porque foi concebido para ser o ponto zero da aquisição de teorias de verdade sobre o mundo. Apenas em um momento lógico posterior ele está habilitado a saber "o que é seguir regras prescindindo de interpretação" ou "o que é seguir regras partindo de interpretações". O intérprete não é um epistemólogo desprevenido, incapaz de ver o risco de regresso ao infinito que subjaz a qualquer tentativa de fundar a origem dos sentidos de uma língua, valendo-se de termos dessa própria língua. Tampouco é uma criança em idade escolar ou um utilitarista empenhado em calcular as chances e ganhos antes de agir ou falar. O intérprete radical é um termo do equipamento conceitual forjado por Davidson para tentar explicar a aquisição, a manutenção e a reprodução dos padrões lingüísticos das criaturas humanas.

O intérprete, assim, não é um sujeito psicológico. Mas também não é uma espécie de substituto do ego transcendental munido de uma mente idealista, como quer o cartesianismo, ou de feixes nervosos, como postula o empirismo, ambos capazes de dar sentido a coisas e eventos com base em fundamentos heterônomos e anteriores à relação do organismo humano com o ambiente. Segundo Davidson, nada disso pode ocorrer, pois a função do termo intérprete é a de mostrar que a interação significativa com o mundo nem se inicia nem continua com um sujeito solipsista, que dá sentido ao que lhe afeta mediante consultas preliminares a regras epistêmicas privadas de ordem biológica ou de ordem racional-transcendental. O intérprete aprende a dar sentido aos fatos do mundo participando de um triângulo interativo no qual estão, indissociavelmente ligados ele, o outro e o objeto visado pela ação desse outro.

A "interpretação" é o resultado dessa interação, e não de um processo conceitualmente trôpego que a antecederia, como pensa João José. Para Davidson, "interpretar", dar sentido a uma certa aparência da realidade, é, antes de tudo, perceber como o outro age ou reage diante de tal aparência e, em seguida, tentar agir ou reagir de forma suficientemente semelhante para que uma comunidade de significados se estabilize em famílias lingüísticas com traços distintos dos de outras famílias. O intérprete, portanto, é um posit lógico usado para ilustrar a tese davidsoniana de que o acesso ao mundo mental pessoal é um derivado da percepção da mente do outro, ou seja, do modo como percebemos o outro "lidar com" ou "intencionar" os objetos do mundo, no sentido fenomenológico do verbo intencionar (Davidson 1998). A interpretação, repito, é a resultante do ingresso do intérprete no sistema ternário que está na gênese do "sentido".

Aceito, todavia, que a ênfase dada por Davidson à idéia de "intenção" como atitude proposicional racionalmente reconstruível pode ter levado João José a me atribuir crenças que, hoje, já não partilho. Entendo que, para Davidson, Rorty ou Dennett, "intenção" é apenas uma atitude proposicional que, a posteriori, pode ser compreendida como causa ou razão de outras ações. Isto é, se uma ação X dessa ordem pode, em retrospectiva, ser formulada como uma razão ou uma causa racional da ação Y, então posso falar em intenção primária X como a razão causal da intenção secundária Y. Se, ao contrário, a ação primária X não puder ser reconstituída racionalmente como "intenção", então ela pode ser descrita como um reflexo, um automatismo, um mecanismo, etc., mas não como um ato intencional.

Minha opinião atual é outra. Aceito a noção de intenção como atribuição de racionalidade a posteriori a certas ações. Mas, ao contrário do que pude admitir, essa atribuição nem requer, de forma compulsória, que a ação interpretada tenha sido originalmente uma ação lingüística, nem que tenha tido compulsoriamente um formato proposicional. Minha idéia de "intenção", portanto, não coincide com a que creio predominar nos escritos de inspiração davidsoniana. Nesses escritos, a intenção esgota seu sentido na tríade crença, desejo e atitude proposicional. Ou seja, há intenção se e somente se o intérprete puder descrever retrospectivamente uma ação como crença na existência de um objeto causa do desejo. O movimento intencional seria o percurso que vai da crença que produz o desejo até a tentativa de realizá-lo.

De minha parte, emprego a palavra intenção e o verbo intencionar de outra maneira. Intenção, a meu ver, é o termo que descreve a ação do organismo humano em direção ao ambiente que resulta em autopercepção desse mesmo organismo. As intenções podem ser mentais e físicas. As físicas distinguem-se das meras trocas metabólicas com o meio pelo fato de ampliarem, reduzirem ou transformarem a autopercepção do esquema corporal ou da imagem corporal do indivíduo. E distinguem-se das intenções mentais pelo fato de não se articularem como crenças e desejos de natureza lingüística. Penso, além do mais, que, mesmo se a ação for de natureza lingüística, ainda assim não tem de assumir obrigatoriamente a forma de uma proposição sobre a existência de um objeto de desejo para ser descrita como uma ação intencional. Ou seja, nem toda ação lingüística deve ser uma crença para ter efeitos performativos sobre as condutas. A menos, é claro, que tornemos a idéia de "crença proposicional" idêntica a qualquer fator causal da ordem lingüística. Neste caso, entretanto, modificaríamos totalmente o sentido de "proposição" e não teríamos como explicar atos intencionais que não se deixam reger pela lógica das atitudes proposicionais relativas aos fatos do mundo. Às vezes, somos impelidos a realizar um desejo cuja natureza afetiva é obscura, cujo objeto de satisfação é ambíguo ou opaco e cujas etapas de realização não estão previstas por nenhuma crença sobre meios necessários para alcançar fins.

Acho, por esse motivo, que devemos matizar o quadro geral definido por Davidson, ampliando a extensão do conceito de intenção com outras intensões do termo intenção. Em primeiro lugar, penso que a intenção pode se estender às metáforas vivas e aos significantes que podem ser causas lingüísticas de ações, embora não sejam crenças proposicionais. Podemos, por exemplo, ser estimulados a buscar certos objetos de desejo pela pura instigação de metáforas ou significantes cujo sentido não compreendemos. As ações irracionais, portanto, podem se formadas por 1) crenças com sentido conscientemente ignorado ou por 2) incitações lingüísticas a-semânticas - da perspectiva do receptor e não do emissor da mensagem, é óbvio -, ambas de ordem intencional.

Em segundo lugar, penso que o espectro da intenção deve ser alargado, de modo a incluir atos de ordem física irredutíveis a descrições anatomofisiológicas. No que tange a este último item, foi o que procurei fazer, dissociando o conceito de intenção fenomenológica de seu termo gêmeo, a consciência, e associando-o ao que Bergson, Merleau-Ponty, Samuel Todes, Erwin Straus, etc. definiram como intencionalidade física ou intencionalidade corporal tout court. Isto é, em vez de tomar a cons-ciência como ponto de partida do circuito intencional que visa a algo fora dela, tomei, em seu lugar, a ação motora do organismo que visa a algo fora dele e encontra nesse algo um "provimento" - o affordance de Gibson - que modifica sua autopercepção (Costa 2004).

A extrapolação da idéia de intenção para o domínio das causas lingüísticas que não são crenças proposicionais e para o domínio do corpo em seus "projetos motores", para falar como Merleau-Ponty, não anula, contudo, o central no pensamento de Davidson. Pois, uma vez interpretadas, as duas ações passam a integrar a trama narrativa do sujeito sobre si, a título de razões ou de razões causais. Em retrospectiva, portanto, qualquer ação lingüística despida de carga semântica ou qualquer ação não-lingüística podem se tornar causas racionais do que até então existia como causa irracional ou causa a-racional de condutas, desde, é claro, que apresentem as características exigidas para que uma causa se torne razão.

Em resumo, acho que boa parte das críticas feitas por João José à definição de "intenção" que empreguei naqueles trabalhos, em consonância com Davidson e Rorty, são críticas que, hoje em dia, partilho. O que não quer dizer que considere a noção de intenção tout court como algo "mecanicista" ou teoricamente obsoleto. No próximo tópico, voltarei ao tema.

Passo, finalmente, à história das justificações. Desse aspecto, penso que escapou a João José a meta precípua do meu trabalho. Tudo que afirmei sobre neopragmatismo lingüístico só faz sentido à luz do valor dado por Davidson à idéia de "condições de verdade" e por Rorty à idéia de história das crenças aprovadas. Vi as questões de filosofia da linguagem como uma propedêutica necessária ao estudo da gênese histórica de crenças vigentes entre especialistas e leigos sobre a presumida universalidade ou invariabilidade de certos fenômenos psicológicos. Porém, os relatos fatuais biográficos ou genealógicos sempre foram o objetivo primordial do que escrevi sobre o pragmatismo lingüístico.

No que tange à vertente biográfica, psicológica, disse com todas as letras que "a teoria pragmática da linguagem, no meu caso, só tinha interesse porque dispunha previamente da teoria freudiana do sujeito" (Costa 1995b). E, no que tange à vertente cultural, lembro que três de meus trabalhos consultados pelo articulista, além de um outro, não citado em sua bibliografia, mas contemporâneo aos demais, tratam da dimensão diacrônica da aquisição de crenças sobre a natureza de identidades sexuais e amorosas (Costa 1998). Isto é, não analisei tais fenômenos como figuras formais, cuja significação se exaure no uso pragmático correto dos predicados que as constituem, mas como o produto da ação de dispositivos de poder de ordem econômica, política, científica, religiosa, familiar, artística, corporativa, etc.

Não necessito do pragmatismo lingüístico para descrever a realidade psíquica que nos torna, da infância à adultez, uma multiplicidade identificatória e conflitiva. Para isso tenho Freud e a posteridade freudiana. Tampouco o julgo suficiente para entender como construímos visões de mundo ou estilos de vida. Recorri à pragmática lingüística para fazê-la funcionar naquilo em que ela funciona bem, ou seja, no esclarecimento de conceitos. Mas nem me detive aí, nem exigi de Davidson ou de Rorty o que nunca prometeram ou se interessaram em dar.

Posso entender, no entanto, por que João José julga que as noções de "hábitos", "aculturamento" ou "segunda natureza" substituem com vantagem as noções de "intérprete radical", "interpretação" e "história das justificações". Na discussão sobre a noção de sujeito, procurarei deixar mais clara a razão dessa suposição.

 

Sobre sintomas e critérios

Duas principais objeções foram feitas por João José à definição de sujeito como "rede articulada de crenças e desejos postulada como causa interior dos atos de fala dos organismos singulares". Primeiro, a de que confundo "sintoma" com "critério"; segundo, a de que descrevo crenças e desejos como ações intencionais, ou seja, como ações que podem ser interpretadas como razões ou razões causais. Por incorrer no primeiro erro, acabo cometendo o segundo, e reificando a noção de sujeito.

A propósito da descrição de sujeito, diz ele: "Parece-me que a psicanálise pragmática, diante da pergunta pelo sujeito, apresenta sintomas em vez de critérios. Substitui o aparente pelo oculto ao postular causas de comportamento".

Para ilustrar a diferença, ele dá o exemplo da inflamação de garganta. Um médico, ciente de que a inflamação de garganta consiste em "inchaço das amídalas, dor, supuração e presença de bacilos", ao ser perguntado por que sabe que esse quadro é uma "inflamação de garganta", responderá com os critérios "inchaço das amídalas, dor, supuração e presença de bacilos". Se ele respondesse, no entanto, que sabia da existência da inflamação de garganta porque o paciente apresentava febre, estaria recorrendo a um sintoma e não a critérios para validar a afirmação. Qual a característica de um sintoma? Responde João José: o sintoma "estabelece uma conexão não necessária entre dois eventos". A febre não especifica a inflamação de garganta. Poderia ser sintoma de inflamação em qualquer outro órgão. Ao usarmos critérios, ao contrário, "não saímos do plano da manifestação do fenômeno, da sua visão de aspecto (...)". Ou ainda: "os critérios são as características presentes na própria manifestação, enquadradas pela gramática numa conexão lógica (...)".

Resultado, prossegue ele: ao utilizarmos sintomas para responder à pergunta "como você sabe do que se trata?", "procuramos o que está oculto por detrás da aparência empírica, a sua causa remota e não vinculada logicamente ao mesmo campo semântico". Enfim, "os sintomas são hipóteses, inferências, elementos que não estão presentes no que aprendemos a ver no fenômeno". Pelo fato de ter confundido sintomas com critérios diante da pergunta "o que é um sujeito?", respondi que era uma rede articulada de crenças e desejos postulada como causa interior dos atos de fala dos organismos singulares. E porque respondi apresentando sintomas e não critérios, passei a procurar causas ou razões causais de comportamentos, démarche, em sua opinião, totalmente equivocada. De um tropeço a outro fui, finalmente, induzido

(...) a postular também o mecanismo das ações intencionais, o que retira imediatamente o privilégio da primeira pessoa. Não é mais alguém, Maria, Pedro ou João, quem faz as coisas, mas uma coisa faz-nos por seu intermédio, causadas por um postulado: redes interiores de crenças e desejos.

Todavia, argumento: e se um segundo especialista dissesse que o médico do exemplo se enganou, posto que os critérios usados para diagnosticar a inflamação não são critérios e sim sintomas? E se esse segundo especialista afirmasse que dor não é um sinal patognomônico de inflamação de garganta, mas um fenômeno comum a outras patologias infla-matórias ou não-inflamatórias. E se ele dissesse, além disso, que bacilo não é um critério para se diagnosticar inflamações de garganta, pois existem inflamações de garganta alérgicas ou viróticas? E se ele acrescentasse, por fim, que a origem da inflamação não era local e sim sistêmica, e que seria necessário fazer exames complementares para conhecer a causa ausente do "fenômeno aparente da inflamação"?

João José poderia replicar que mudamos os critérios, mas continuamos no terreno dos critérios. Mas em que consiste a barreira conceitual entre um sintoma e um critério, uma vez que a apresentada até agora sequer se aplica ao caso dado como exemplo? João José poderá responder que a fronteira é definida pelo aprendizado: sintomas são os elementos que não estão presentes no que aprendemos a ver no fenômeno! Critério, ao contrário, é tudo que aprendemos a ver como presença no fenômeno; tudo que "não sai do plano da manifestação do fenômeno", "das características presentes na própria manifestação, enquadradas pela gramática numa conexão lógica". Mas se alguém retrucar que "aprendeu a ver" no "plano da manifestação fenomênica enquadrada pela gramática" uma "conexão lógica" entre o termo sujeito e, por exemplo, o referente "rede articulada de crenças e desejos postulada como causa interior dos atos de fala dos organismos singulares"! Esta continuaria sendo uma definição baseada em sintomas do que é um sujeito? Mas, por quê? De quais critérios João José dispõe para persistir considerando esse critério aprendido como "sintoma" e não como "critério"?

Continuemos a série de perguntas. Por que a hipótese da causa oculta e remota não pode se vincular logicamente "ao campo semântico do que seja um critério para diagnósticos de patologias orgânicas"? Por que não podemos aprender a tomar causas ocultas e remotas como elementos que estão no "plano da manifestação fenomênica" dos fatos analisados? O vínculo lógico e o campo semântico de um critério pertencem à categoria dos enunciados analíticos, isto é, dos enunciados axiomaticamente definidos como verdadeiros por definição? Se não - e, de acordo com Wittgenstein, dificilmente poderiam pertencer -, por que a idéia de causa oculta não pode constar do aprendizado dos critérios diagnósticos de patologias orgânicas ou transtornos mentais? Tive a impressão de que João José toma a palavra oculto como sinônimo de algo misterioso. Mas não é este o significado que dou ao termo. Do ponto de vista psicológico, entendo que oculto é, simplesmente, o que está excluído da narrativa consciente do sujeito sobre si, e remoto é o que foi experienciado, portanto, representado no passado biográfico do sujeito. E, do ponto de vista lógico, o oculto e o remoto são o ponto em que pára a interrogação sobre as origens da cadeia causal do fato empírico estudado em uma dada etapa da investigação, ponto esse definido pelos objetivos pragmáticos dos agentes implicados na busca das causas, e não pela decisão arbitrária de quem diz qual deve ser a delimitação do campo lógico ou semântico apropriado ao assunto.

Em função disso, volto a perguntar: por que o oculto e o remoto não podem ser critérios para a descrição não-mentalista, não-idealista ou não-mecanicista do sujeito? João José pode achar que a noção de hábito ou de segunda natureza bastam para dar conta do que chamamos de causa oculta ou remota. Pode, igualmente, considerar que "sujeito" não é algo que se deva descrever, pelo fato de ser uma palavra pertencente ao registro da "expressão", da "ação pura sem justificativas". Mas essa preferência seria suficiente para tornar suas decisões teóricas critérios e as minhas sintomas?

Retornarei, em seguida, a esse ponto. Por enquanto, acompanhemos o seguimento do raciocínio: por que a idéia de causa oculta deveria necessariamente excluir da definição do sujeito como rede de crenças, etc. o privilégio da primeira pessoa? E se alguém sugerisse que a noção de rede articulada de crenças e desejos, etc., ou seja, o tecido histórico de ações inten-cionais, em absoluto se opõe à pessoalização, à singularização ou à predicação específica de um indivíduo em particular? E se, ao contrário de João José, alguém dissesse que o "privilégio da primeira pessoa" é um "sintoma" que alguns filósofos da mente e da linguagem "inferiram" da gramática da língua vernacular para provar a existência de um fenômeno chamado "primeira pessoa", fenômeno esse implicitamente identificado ao que outros teóricos chamam de agente ou sujeito? E se alguém afirmasse que os partidários do "privilégio da primeira pessoa" como indicador da existência subjetiva superestimam o valor explanativo dessa noção! E se alguém dissesse que a superestimação se deve ao fato de esses partidários desconhecerem que organismos singulares de fala não podem se dissolver em instâncias lingüísticas impessoais - como teme João José -, dado que as ações intencionais articuladas em redes de crenças e desejos que os constituem e os contextos que os cercam são irrepetíveis e inconfundíveis, e que, isto sim, é um critério imediatamente presente e logicamente conectado à irredutibilidade fenomênica de sujeitos como "Maria, Pedro ou João"?

Em suma, não acho que confundi sintoma com critério. Não usei a distinção wittgensteiniana por considerá-la confusa. O que decide se X é sintoma ou critério de Y não é um metro intelectual neutro, uma entidade autárquica que circula sub specie aeternitatis de um contexto lingüístico para outro, dizendo o que é um sintoma e o que é um critério. A diferença entre critério e sintoma é relacional, contingente, circunstancial, determinada pelos costumes teóricos dominantes ou pelos que têm poder institucional, científico, etc. para persuadir os interessados no assunto de que A, e não B, é sintoma ou critério de C. Por essa razão, preferi seguir Davidson e Rorty, falando em diferentes descrições de um "evento" apoiadas em diferentes evidências, as quais, por sua vez, dependem das teorias de verdade partilhadas pelos sujeitos.

 

Sobre as razões causais

Vejamos, agora, o caso da descrição de crenças e desejos como ações intencionais que podem vir a ser tomadas por razões causais. Este item é mais bem esclarecido ao tomarmos o comentário feito a uma de minhas afirmações. Em uma dada passagem do artigo, João José me cita:

Psicanálise não faz análise de conceitos, faz análise dos sujeitos e seus desejos. Seu objetivo é o de entender como se formaram crenças e que crenças justificam a descrição que o sujeito dá de si, de modo a sentir-se infeliz, inibido ou paralisado diante de seus Ideais de Eu.

Logo depois, comenta:

O sentido de um comportamento é a razão de sua ação, e uma razão, mais que uma ação, é uma interpretação [itálicos do autor]. [...] O sujeito não entende o que faz ou não entende o que lhe ocorre. Uma vez descobertas as causas de certos comportamentos ou, por outra, uma vez descobertos os entrelaçamentos que conformam o desenho de uma rede particular de crenças e desejos, o sujeito pode, para a Psicanálise Pragmática, inventar uma nova narração de si, refazer a sua biografia e apagar seu sofrimento, afinal de contas baseado em evidências inadequadas à ação. Podemos dizer, então, que a finalidade da análise, para nossos autores, é recuperar o sentido de ações tidas como "irracionais".

Retomo o comentário, assinalando o que julgo fundamental: "O sentido de um comportamento é a razão de sua ação, e uma razão, mais que uma ação, é uma interpretação". E como pode ocorrer que um sujeito "não entenda o sentido do que lhe ocorre", a solução da psicanálise pragmática seria a de buscar uma outra interpretação - a causa racional oculta - a fim de que novas narrativas de si pudessem ser postas em marcha, e o estado mental indesejado, alterado. Por isso, conclui ele: "Podemos dizer, então, que a finalidade da análise, para nossos autores, é recuperar o sentido de ações tidas como `irracionais'".

Passo direto à réplica. Dizer que uma razão é uma "ação sob interpretação", como sustento, é diferente de dizer que "uma razão, mais que uma ação, é uma interpretação". No último caso, a "interpretação" aparece como um adendo metafísico imposto à ação para torná-la "uma razão". Acontece que não vejo as coisas deste prisma. A meu ver, ações intencionais apenas se tornam "razões" ao serem solicitadas a alterar o sentido do que está sendo objeto do interesse afetivo, cognitivo ou volitivo do sujeito. Neste momento, e somente neste momento, passam a ser elementos das narrativas sobre si, a título de causas ou origens passadas das condutas atuais. Uma razão é uma ação retrospectivamente interpretada quando e se a história psicológica do sujeito assim exigir. Uma ação intencional pretérita pode, hipotética e empiricamente, nunca vir a ser uma razão, e ainda menos uma razão com o estatuto de causa de mudança de outras realidades psíquicas.

Por conseguinte, mostrar a "interpretação" como um acréscimo nocional que distorce a natureza da ação é, novamente, desconhecer que uma "razão" é somente "uma ação X" que se mostrou capaz de dar sentidos novos a fatos psíquicos que deles careciam. A interpretação que faz de uma "ação" uma "razão" apenas traz à consciência cognitiva e à experiência afetiva do sujeito o que é passível de restaurar um outro equilíbrio psicológico. O fato de uma ação ser potencialmente candidata à razão causal não a torna necessariamente um fenômeno dessa ordem. Ações intencionais, lingüísticas ou extralingüísticas podem hibernar no passado do sujeito, sem jamais serem chamadas a compor a paisagem de sentido requerida pelas exigências de sua vida atual.

 

Sobre a finalidade da análise

Vistas as críticas à questão do sintoma x critério e à idéia de ação intencional passível de ser interpretada como razão ou razão causal, passo à conclusão do comentarista: "Podemos dizer, então, que a finalidade da análise, para nossos autores, é recuperar o sentido de ações tidas como `irracionais'".

A isso respondo sem hesitar: a finalidade da análise não é esta! A finalidade da análise, afirmei de modo inequívoco, citando um texto de Freud escrito em 1937, é a de "instaurar as condições psicológicas mais favoráveis às funções do Eu; isto feito, sua tarefa está cumprida" (Costa 1994, p. 58). Recuperar o sentido racional de ações tidas como irracionais ou a-racionais foi a maneira que encontrei de mostrar que a interpretação, no sentido técnico psicanalítico, não pode fazer economia teórica do sentido. Meu objetivo era o de propor que o sentido é tão fundamental à constituição da subjetividade quanto marcas significantes a-semânticas, postuladas como o verdadeiro referente ou o verdadeiro núcleo ontológico do sujeito por certas teorias.

Isto dito, o processo psicanalítico inclui muitas outras coisas além da recuperação do sentido de ações "irracionais" ou "a-racionais". Inclui o setting, a transferência, a livre associação, a atenção flutuante, a resistência e, sobretudo, a capacidade do sujeito de fazer face ao resto da existência que não se inscreve na linguagem: a angústia, o objeto a, a viscosidade libidinal, a inveja do pênis, o medo da castração, a agressividade criadora, o verdadeiro self, a experiência da não-integração, etc. Estes outros fatores presentes na análise não foram explorados por não serem pertinentes ao tema abordado. Centrei o debate sobre o problema do sentido porque era disso que se tratava e era nisso que o pragmatismo lingüístico poderia ser útil. O relevo dado à noção por João José não reflete sua importância na metapsicologia que utilizo; reflete a importância que ele concede ao termo na estratégia expositiva de suas idéias sobre sujeito e ação.

Explicitemos essa estratégia. O sujeito, em sua visão pragmática, é um fenômeno "expressivo". Isso significa afirmar que termos como "eu", "desejo" ou "crença" não são entidades preexistentes à própria expressão subjetiva ou às "ações puras". Entificar esses termos significa ser levado a procurar descrições causais "mecanicistas" para a expressão subjetiva em sua nudez de "ações cruas, sem justificativas". Ora, diz ele, "a teoria que tradicionalmente busca motivos como `causas' dos comportamentos é a psicologia clássica". Aderir a essa tese seria retroceder aquém de Lacan. Para o pragmatismo defendido por João José, nada existe na subjetividade além das "ações puras". A psicanálise, portanto, deveria se afastar da psicologia das causas e razões, já que uma "descrição psicológica, tomada sem dogmatismos, não pode ser mais do que expressão comportamental [itálicos do autor]". Eis o sumário de suas convicções:

Se concebemos que ação não se justifica, que se trata de um costume socialmente coagido e incorporado em comportamento, o que estará em jogo na análise não será o conteúdo psicológico, apresentar ao analisando outras possibilidades descritivas ou narrações de si mesmo, mas apenas um confronto de poderes clinicamente calculado, sem qualquer sugestão de conteúdos. Esse confronto se daria entre o analisando e o analista pautado pela transferência, isto é, pela regra fundamental da psicanálise: o analisando deve dizer tudo o que lhe ocorrer na mente sem nada ocultar. Ao analista caberia frustrar as figuras de linguagem apresentadas pelo analisando e facilitadas pela transferência: histeria, neurose obsessiva, perversão, depressão, mania, paranóia e/ou esquizofrenia. O objetivo será que o analisando reaprenda, sem sugestões por parte do analista, a reatualizar suas expressões na forma de vida que envolve o jogo da psicanálise. Tratar-se-ia de estabelecer um "armistício" entre os poderes inconscientes envolvidos em jogo, fazendo valer subjetivamente o império da lei por cima das exigências pulsionais e suas contra-reações. A compulsão à repetição não seria mais um entrave: dado que o conteúdo não interessa na análise, a reedição de práticas anteriormente frustradas é sinal de que o analisando ainda não incorporou em hábito uma nova maneira de atuar diante do "outro", uma maneira que, sem submissão incondicional ao poder do outro, saiba alternar entre a consecução das exigências pulsionais e a sua renúncia em proveito de outros ganhos. Acredito que a teorização sobre a "subjetividade" seja dispensável nessa proposta. Não importa que o sujeito seja um efeito da linguagem, que seja subdividido por redes de crenças e desejos ou descrições em conflito, ou que comporte elementos reprimidos em fantasias guardadas na memória. Desde uma perspectiva filosófica em que proposição de teo-rias deve ser reduzida ao patamar minimalista, justamente para não servir de obstáculo à ação, deveria importar não o que é o "sujeito" ou a "subjetividade", mas somente como [itálico do autor ] as fantasias vão atuar na análise mediante as figuras que colocam a linguagem num cativeiro.

Em primeiro lugar, uma observação en passant: por que apenas a psicologia se ocuparia de causas dos comportamentos? A noção de causa está presente, sem exceção, em todos os grandes pensadores da psicanálise, desde, é óbvio, que não seja definida como um artifício mecânico "por trás dos comportamentos".

Em segundo lugar, observe-se mais cuidadosamente o que João José propõe como núcleo da atividade psicanalítica: "Se concebemos que ação não se justifica, que se trata de um costume socialmente coagido e incorporado em comportamento, o que estará em jogo na análise não será o conteúdo psicológico [itálicos meus], apresentar ao analisando outras possibilidades descritivas ou narrações de si mesmo, mas apenas um confronto de poderes clinicamente calculado". Minha questão é: por que a ação como "costume socialmente coagido e incorporado em comportamento" prescindiria da idéia de conteúdo psicológico? As ações sem justificativas, os hábitos socialmente incorporados, são entidades cindidas ou isoláveis de seus conteúdos psicológicos? São um esquema, uma forma, uma cadeia significante, uma matriz geracional de ações lingüísticas empírica e logicamente dissociável dos conteúdos psicológicos significativos? Se for assim, como João José sabe distinguir uma histeria de uma fobia ou de uma depressão? Na sua terminologia, como um "hábito histérico" ou uma "ação sem justificativas de natureza paranóica" seriam reconhecíveis ou alteráveis sem que analista e analisando se apoiassem no conhecimento partilhado dos conteúdos psicológicos da histeria ou da paranóia? Vamos adiante. O jogo do confronto clinicamente calculado entre os poderes, que consiste na frustração imposta pelo analista ao analisando, "frustraria o quê"? O que poderia ou deveria ser frustrado neste caso? Seria, por acaso, a emissão sonora, os gestos do analisando ao falar? Ou seria a "forma lógica" das ações puras sem conteúdos psicológicos? Como o analista saberia que está frustrando uma "ação sem justificativas", a não ser considerando seu conteúdo psicológico?

Continuemos a seguir o desenvolvimento da proposta, analisando a seguinte afirmação:

A compulsão à repetição não seria mais um entrave: dado que o conteúdo não interessa na análise, a reedição de práticas anteriormente frustradas é sinal de que o analisando ainda não incorporou em hábito uma nova maneira de atuar diante do "outro", uma maneira que, sem submissão incondicional ao poder do outro, saiba alternar entre a consecução das exigências pulsionais e a sua renúncia em proveito de outros ganhos.

Se o conteúdo psicológico não interessa, como o analista pode saber se um novo hábito em face do Outro (maiúscula de minha autoria) foi incorporado? Como, no vocabulário das ações puras ou expressões comportamentais nuas, pode-se saber que algo é novo ou velho? A novidade ou senilidade de um hábito é reconhecível, a despeito da ignorância de seus conteúdos psicológicos? Mais ainda: se o conteúdo psicológico é irrelevante para a dinâmica dos hábitos, como saber se o novo hábito significa "não submissão incondicional ao poder do Outro" [maiúscula de minha autoria] ou "alternância entre a consecução de exigências pulsionais e a renúncia a estas exigências em proveito de outros ganhos"? O que seria uma alternância ou uma não submissão dos tipos mencionados, sem a configuração que lhes pudesse ser dada pelos conteúdos psicológicos significativos?

Minha dificuldade com a teoria lacaniana dos anos 70 e início dos anos 80 do século passado, quando ainda estava fortemente influenciada pelo estruturalismo lingüístico, estava em admitir o papel que foi reservado ao sentido na formação da subjetividade. A idéia de que tudo que era da ordem do sentido seria imaginário e, portanto, interessava apenas ao narcisismo e ao ego, enquanto o sujeito estaria implicado no simbólico, na estrutura significante a-semântica, sempre me pareceu artificial. Mas Lacan, ao lado disso, insistia na indissolubilidade dos registros do Real, do Simbólico e do Imaginário, mostrando a importância do sentido - pouco importa se como resistência narcísica do analista ou do analisando - na condução da análise.

A impressão que tive da sugestão de João José foi outra. Ao que pude perceber, seu receio de não contaminar o "ouro puro" da psicanálise com o "chumbo" da sugestão acabou reduzindo o significado dos conteúdos psicológicos à mera função semântica de uso, sem nenhuma participação dinâmica na vida emocional do sujeito. Por exemplo, ao sugerir cautelosamente que o objetivo da análise é fazer com "que o analisando reaprenda, sem sugestões por parte do analista, a reatualizar suas expressões na forma de vida que envolve o jogo da psicanálise", ele parece ter querido evitar qualquer referência a termos como inibição, sintoma ou angústia. Essa imagem da direção da cura pareceu-me um supremo esforço para afastar as impurezas psicológicas da cena analítica. É como se o rigorismo wittgensteiniano, destinado a fazer a linguagem filosófica confessar sua impotência diante do enigma da ética, tivesse migrado para a psicanálise, na forma de ascese purificadora da fenomenologia psicológica. Mas, pergunto: perseguir esse ideal de isenção e eqüidistância dos conteúdos psicológicos não seria uma maneira de confinar a "linguagem num outro cativeiro"? Vou além: João José realmente acredita que o analista pode expurgar da clínica o "sentido psicológico" que o analisando pode vir a dar ao que ele diz ou faz? Se não pode, se a criação pelo analisando de "outras possibilidades descritivas ou narrações de si mesmo" de natureza psicológica é incontornável, como lidar com o problema sem levar o analista a querer "calar" para não "errar"? Por fim, refaço uma pergunta que fiz 20 anos atrás: fugir das sombras do psicológico para refugiar-se numa "forma de vida" ou num "jogo psicanalítico" que busca neutralizar teoricamente o vocabulário cotidiano no qual o desejo se exprime é, de fato, uma boa troca? Deixo a João José a resposta.

Em terceiro lugar, consideremos o restante da afirmação:

Acredito que a teorização sobre a "subjetividade" seja dispensável nessa proposta. Não importa que o sujeito seja um efeito da linguagem, que seja subdividido por redes de crenças e desejos ou descrições em conflito, ou que comporte elementos reprimidos em fantasias guardadas na memória. Desde uma perspectiva filosófica em que a proposição de teorias deve ser reduzida ao patamar minimalista, justamente para não servir de obstáculo a ação, deveria importar não o que é o "sujeito" ou a "subjetividade", mas somente como [itálico do autor] as fantasias vão atuar na análise mediante as figuras que colocam a linguagem num cativeiro.

Concordo que a descrição do sujeito como "redes de crenças e desejos, etc." seja perfeitamente opcional. Relembrando Freud, cada um de nós pode ter sua feiticeira metapsicológica com suas respectivas vassouras. Discordo, todavia, das feiticeiras que usam as vassouras para voar e, depois de estarem no ar, jogam-nas fora, afirmando que chegaram ali sem a ajuda de vassouras ou de qualquer outro instrumento propulsor. Acho que João José não dispensou a teoria da subjetividade; utilizou-a sem a nomear. Se não, vejamos. De sua perspectiva, "o que importa é como as fantasias vão atuar na análise mediante figuras que colocam a linguagem num cativeiro". Pergunto, no entanto: fantasias de quem? De Maria, de Pedro, de João? Ele poderia retrucar que para saber que Maria, Pedro ou João fantasiam não precisamos de nenhuma teoria do sujeito. De acordo. Mas, então, que tipo de "primeira pessoa" seriam Maria, Pedro e João? Seriam conjuntos de "hábitos socialmente incorporados", "expressões de ações sem justificativas", tipos ideais que encarnam "instituições sociais"? Mas essa subpessoalidade ou impessoalidade do agente não era o defeito que ele havia criticado na noção de "rede articulada de crenças de desejos"?

Acredito que João José tem razão em alertar-nos contra os usos e abusos de termos como "sujeito" ou "subjetividade", posto que podemos correr o risco de fetichizá-los de modo reducionista, mecanicista, racionalista, idealista, mentalista, etc. Mas também acho que ele não pode fugir à tarefa de explicitar a natureza da entidade que ele fez funcionar teoricamente como suporte de hábitos ou fantasias. Explico o que quero dizer: o que Maria, João e Pedro têm em comum para torná-los passíveis de adquirir hábitos, de fantasiarem ou de se expressarem como entidades que dispensam justificação de ações intencionais? Por que "frustrações" provocam mudanças de hábitos em Maria, João e Pedro, em vez de deixá-los absolutamente indiferentes à atividade frustradora? Por que Maria, João e Pedro devem aceitar que as exigências pulsionais e suas contra-reações se subordinem ao império da lei? Por que o analista deve recusar-se a "sugestioná-los" e pode se autorizar a frustrá-los em nome da "forma de vida que envolve o jogo da psicanálise"?

Acho que João José, além de uma teoria da subjetividade psicológica, ainda lança mão de uma teoria do sujeito moral que justifica suas opções em matéria de clínica. É pelo recurso implícito a tais teorias que ele consegue formular os objetivos do processo analítico que defende. A noção de "redes de crenças e desejos" está, certamente, sujeita a numerosas correções e revisões. A melhor prova são as objeções levantadas contra ela em A psicanálise pragmática e o paradoxo da interpretação. Em contrapartida, pergunto a João José: assumir uma teoria inconfessa do sujeito não pode resultar em sua blindagem contra críticas?

 

Sobre as relações da pragmática da linguagem com a teoria psicanalítica

Por fim, o fundamental. Minhas incursões no campo da pragmática da linguagem estiveram diretamente relacionadas ao contexto de duas pesquisas. A primeira visava a mostrar como a intervenção psicanalítica era possível em uma instituição pública, na qual os clientes eram pessoas de baixa renda assistidas em grupo. Naquele momento, meu interesse era o de mostrar que a idéia de que tais pessoas eram "inanalisáveis", por serem atendidas em grupo ou por não apresentarem a disposição psíquica para associar da mesma forma que os analisandos de consultório privado, era uma idéia preconcebida, sem apoio algum na realidade clínica. Um dos esteios da minha argumentação, além do resultado prático, foi a revisão das relações entre "imaginário" social, livre associação e relato de si. Procurei mostrar que o imaginário social que modelava as identidades egóicas dos analisandos modelava igualmente o conteúdo das experiên-cias afetivas e o modo de expressão lingüística dessas experiências. Assim, por exemplo, tanto a narração da intimidade sentimental quanto a elaboração dos conflitos traduziam-se em modos de falar mais imperativos e menos interrogativos ou em proferimentos em terceira pessoa, mais do que em primeira pessoa, etc. Essas diferenças, entretanto, não tornavam tais pessoas menos sensíveis ao dispositivo analítico do que quaisquer outras.

A segunda pesquisa foi feita no quadro de um programa de investigações patrocinado pela Fundação Ford, sobre o impacto da Aids no que, então, eram chamados grupos de risco. Um desses supostos grupos era o dos "homossexuais masculinos". Meu papel era o de analisar, do ponto de vista psicanalítico, o material empírico coletado pelo colega antropólogo Richard Parker. Rapidamente me dei conta de dois fatos: primeiro, o de que os indivíduos mais expostos ao risco de infecção pelo vírus HIV eram os que mais hesitavam em expor publicamente suas inclinações sexuais, em função do preconceito de que foram ou eram vítimas; segundo, o de que a maioria esmagadora dos teóricos da psicanálise não apenas admitia com desenvoltura a idéia de "uma identidade homossexual" como a definia como uma "estrutura psíquica", no mais das vezes, etiquetada de "perversa".

Foi neste ponto que procurei aprofundar os estudos sobre pragmática da linguagem, com vistas a dois objetivos principais: 1) mostrar que o sentido da expressão "identidade homossexual" não remetia a um referente psicológico claro, como supunha o grosso dos analistas que debateu o assunto; 2) mostrar que admitir, de modo ingênuo, a existência da "identidade homossexual" tinha conseqüências clínicas indesejáveis e conseqüências morais condenáveis. Procurei desconstruir, com o auxílio da pragmática lingüística, o hábito naturalizado e difundido na psicaná lise, que consistia, até onde investiguei, em tomar como evidente por si mesmo o sentido de termos como "identidade", "sexo" e "mesmo sexo", todos componentes implícitos da semântica da expressão "identidade homossexual". Portanto, a longa discussão sobre a gramática da sexualidade, baseada no pragmatismo de Austin e Wittgenstein, e no neoprag-matismo de Davidson e Rorty, teve como objetivo criticar a facilidade com que os teóricos, contrariando o espírito freudiano, vinham engrossando a reprodução cultural de identidades sociomorais discriminadas, por meio de opiniões pretensamente científicas sobre "homossexualidade".

Isso aconteceu há 13 anos, aproximadamente. Desde então, não voltei ao assunto por razões fáceis de explicar. No estudo que fiz sobre o romantismo amoroso, não mais senti necessidade de rediscutir os fundamentos pragmáticos das crenças sobre a universalidade, a espontaneidade e compulsoriedade psicológicas da experiência do amor romântico. Bastou-me, de um lado, analisar os referentes das emoções românticas, mostrando a história de sua construção cultural, e, de outro, rediscutir a metapsicologia do amor em autores como Balint. Nesse sentido, a literatura extrapsicanalítica que utilizei consistiu, sobretudo, em trabalhos sobre a filosofia das emoções e sobre a história das mentalidades.

Em seguida, ao abordar o problema dos transtornos da imagem corporal e dos abusos na exploração das sensações corporais, voltei à pragmática apenas para retificar o que havia dito sobre ações intencionais. Convenci-me, como expus acima, de que existem atos intencionais não-lingüísticos, e, neste caso, a fenomenologia do corpo, a psicologia ecológica de Gibson e Edward Reeds e algumas pesquisas da psicologia cognitiva foram os trabalhos exteriores à psicanálise que mais me ajudaram a explicitar as idéias de Winnicott sobre o assunto.

A pragmática da linguagem continua a me interessar, mas não deixa de ser o que sempre foi: um meio de elucidar problemas psicanalíticos passíveis de investigação pela via da análise de teorias de verdade sobre crenças psicológicas. Se isso não for necessário, não vacilo em substituí-la por outros saberes mais afinados com meus propósitos. É o caso, por exemplo, da clínica do laço transferencial diante das mudanças do estatuto simbólico e imaginário do Outro. Por acreditar que esse problema é relevante, estou tentando delimitá-lo com o auxílio de trabalhos filosóficos, históricos, sociológicos e teológicos sobre o papel da transcendência religiosa nas sociedades ocidentais. Mas, repito, todos esses saberes são coadjuvantes em um enredo teórico cujo personagem central foi e continua sendo o sujeito psicanalítico.

Para finalizar, agradeço, uma vez mais, a João José a forma inteligente, respeitosa, delicada e firme com que criticou idéias que defendi. Chances como esta são raras e gostaria de poder tê-las sempre que possível. É disto, penso, que é feito o melhor da psicanálise e o melhor da tradição universitária.

 

Referências

Borradori, Giovanna 1998: A filosofia americana - Conversações. São Paulo, Editora da Unesp.         [ Links ]

Costa, Jurandir Freire 1994: "Pragmática e processo psicanalítico: Freud, Wittgenstein, Davidson e Rorty". In: Redescrições da psicanálise - Ensaios pragmáticos. Rio de Janeiro, Relume/Dumará, pp. 9-61.

----- 1995a: A face e o verso. São Paulo, Escuta.

----- 1995b: "Resposta a Zeljko Loparic". Percurso, ano 7, n. 14, pp. 96-108.

----- 1998: Sem fraude nem favor - Estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro, Rocco.

----- 2004: O vestígio e a aura - Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro, Garamond.

Davidson, Donald 1998: "Visões pós-analíticas". In: Borradori 1998, pp. 61-81.

 

 

Endereço para correspondência:
Jurandir Freire Costa
E-mail: jurandirfcosta@superig.com.br

Recebido em 10 de janeiro de 2006.
Aprovado em 6 de junho de 2006.