SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue1O cérebro e o pensamento author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Natureza humana

Print version ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.8 no.1 São Paulo June 2006

 

RESENHA

 

 

Conceição A. Serralha de Araújo

Doutoranda em Psicologia Clínica - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

Décio Gurfinkel, 2001: Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções. São Paulo, Casa do Psicólogo.

O estudo da obra de Winnicott tem sido intensificado em nosso país há pouco mais de uma década. Décio Gurfinkel é um dos estudiosos que, iniciado desde cedo nas leituras dos textos de Freud, tem procurado de forma incansável aprofundar a pesquisa em psicanálise e, em conseqüência, buscar o desenvolvimento das idéias winnicottianas num diálogo constante com o pensamento freudiano. Os impasses experienciados em sua própria clínica, bem como os questionamentos dela oriundos em casos de adicções e de problemas psicossomáticos, têm nutrido e servido de mola propulsora para o seu estudo.

Este livro é, até o momento, a mais completa evidência do esforço do autor nesse sentido, reunindo artigos revisados, de publicações anteriores, a partir do ano de 1990, em coletâneas ou revistas científicas, e dois trabalhos inéditos ao final. É apresentado pelo próprio autor, que procura demonstrar a "costura" que une os vários textos, escritos em momentos diferentes e com pretensões também diferentes; poder-se-ia dizer uma "costura psicanalítica". Gurfinkel sugere haver, desde os primeiros textos, processos inconscientes atuando em sua produção, que possibilitaram a sua reunião posterior.

Composto de três partes, o livro tem o conteúdo mais geral da primeira, organizado numa seqüência lógica do desenvolvimento da metapsicologia e, também, numa seqüência cronológica do surgimento dos conceitos e da escrita dos artigos desde o início da psicanálise, começando com a teoria do sonho e das formações do incons-ciente e chegando ao estudo dos traumas e das falhas de simbolização.

No primeiro capítulo, o autor apresenta um de seus estudos iniciais, no qual aborda o processo de construção da metapsicologia freudiana pre sente no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, enfocando a sistematização do modelo do aparelho psíquico e outras noções. Adota o caminho do sonho como paradigma de compreensão da realidade psíquica e busca o seu estatuto na teoria freudiana, bem como suas implicações para a metodologia e a clínica psicanalíticas. Pressupõe que a constituição do saber psicanalítico com seu objeto, a realidade psíquica, acontece paralelamente à construção de uma metodologia particular, denotando uma relação de sobredeterminação entre o saber e o método.

Atento à proposição da dualidade realidade psíquica/realidade material, contida nesse capítulo da obra de Freud, Gurfinkel alerta para o fato de que essa dualidade não deve ser compreendida como uma dicotomia simples e linear, mas como uma "relação de imbricação dialética, pois a realidade psíquica, no seu estado puro, seria algo assim como a alma sem corpo" (p. 22). Para refutar tal simplicidade de compreensão, o autor busca a noção de apoio da realidade psíquica sobre a realidade material, uma vez que não se pode desconsiderar a influência das experiências dos acontecimentos sobre a vida de fantasia do indivíduo.

O entendimento do processo analítico torna-se possível, para ele, tomando o sonho - a prova maior da existência da realidade psíquica - como metáfora da sessão psicanalítica. Em sua tese, "a situação analítica procura configurar-se como um campo onde o fenômeno que nele se produz - a sessão - mantenha uma analogia com o fenômeno onírico" (p. 25) e considera notável a semelhança existente entre a transferência e o sonho.

Contudo, à medida que explora o seu modelo, as diferenças entre a sessão e o sonho vão emergindo e fazem com que Gurfinkel confirme a inadequação do modelo do sonho para abarcar suficientemente a situação analítica, sendo eficiente apenas em um dos aspectos do processo. Relembra que o sonho é uma expe-riência tão-somente individual e, na situação analítica, existe um outro, cuja função deixa de ser considerada no modelo do sonho. É um outro que favorece a realização alucinatória de desejos regressivo-narcísicos, mas também que entra em cena sempre que o terceiro é tolerável.

E, exatamente por se dar conta - à luz de Winnicott - de que nem todos os indivíduos tiveram a possibilidade de alcançar um amadurecimento no qual as dualidades façam sentido, no qual os processos de sim-bolização garantam a experiência do sonhar, o autor inicia um questio-namento, que perpassará todos os capítulos de seu livro, acerca das diferenças no manejo da situação analítica existentes na clínica do recalcamento - na qual, para ele, o paradigma do sonho é inquestionável - e na clínica da dissociação, a qual não tem garantidas as operações psíquicas presentes na primeira e, sendo assim, o para-digma do sonho torna-se questionável. Segundo Gurfinkel, o trabalho de Winnicott acerca dos objetos e dos fenômenos transicionais permite um remodelamento capaz de abrir o campo de trabalho na clínica da dissociação.

No segundo capítulo, Gurfinkel discute a atualidade dos trabalhos de Ferenczi, com o valor dado ao viés "traumático" da teoria da sedução - idéia freudiana suprimida que reaparece redimensionada - e ao Infantil, que alteram questões técnicas e o manejo na clínica. Uma das proposições discutidas é a da técnica do relaxamento, que permite ao analista entrar em contato com a parte dissociada do paciente - conseqüência do recalque primário traumático - e na qual a regressão pode acontecer, permitindo que a relação traumática adulto- criança seja transferida para a atualidade. Vê-se, assim, como Ferenczi inicia uma concepção clínica que considera a regressão um instrumento terapêutico, diferente do que era considerado até então, como um aspecto resistencial da transferência e que deveria ser tomado com cautela.

Considerando o trabalho de Ferenczi uma "volta aos princípios", principalmente pela retomada da "teoria da sedução", o autor busca evidenciar a proximidade desse trabalho com a proposta freudiana, "em todos os sentidos" (p. 69). Apesar de ressaltar a mudança de enfoque do desenvolvimento psicossexual para um desenvolvimento do eu, as mudanças técnicas e outras diferentes noções, a concepção ferencziana do infantil, para ele, foi ampliada, sem, no entanto, alterar substancialmente o processo analítico. Essas afirmações dão início ao que poderá ser percebido em todo o exercício comparativo realizado ao longo do livro: o empenho do autor em assimilar e abranger as transformações e evoluções de um "corpo" - o "corpo psicanalítico" - mantendo-o único e integrado.

Gurfinkel questiona a sanidade do otimismo de Ferenczi, sem, contudo, deixar de confirmar seus méritos e sua grande contribuição para o tratamento e o pensamento psicanalíticos. Os novos recursos terapêuticos utilizados, a atitude mais humilde do analista e a maior liberdade dentro do setting conseguiram diminuir a resistência dos pacientes. E, em relação à possibilidade de trazer a análise de crianças para a análise de adultos, Gurfinkel acredita ter sido um caminho percorrido de Ferenczi a Winnicott e considera que o espírito com o qual o primeiro conduziu seu trabalho clínico pode se aproximar muito mais do modo como Winnicott desenvolveu seu próprio trabalho do que o de Melanie Klein.

No terceiro capítulo, Gurfinkel passa a retratar brevemente aspectos do trabalho de Balint, membro do Middle Group e considerado um continuador das idéias de Ferenczi. Destaca o criticismo de Balint às produções do movimento psicanalítico e, de modo especial, o seu reconhecimento dos riscos próprios do manejo da regressão, numa crítica a Ferenczi. Aponta ainda a contribuição pessoal de Balint com a formulação dos conceitos de regressão maligna e benigna, assim como a sua abordagem da toxicomania como "um modelo clínico do círculo vicioso da regressão maligna" (p. 85).

Abordando o conceito de regressão, o autor procura cotejar a concepção de Balint - a partir do livro A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão - com a de Winnicott, e conclui que, em linhas gerais, há uma proximidade do pensamento de ambos. Alerta para a nossa responsabilidade, como analistas, em não banalizar tais propostas e em trabalhar a nossa compreensão crítica dos fenômenos nelas contidos, muito mais do que em nos preocupar em aceitá-las ou não. Nos capítulos subseqüentes, ele buscará estabelecer conexões com as discussões empreendidas neste.

No quarto capítulo, Gurfinkel, discutindo o artigo de Winnicott "Objetos e fenômenos transicionais", estabelece o ponto mais alto de diálogo entre Freud e Winnicott de todo o livro. Preocupa-se em inserir a teoria presente neste artigo numa perspectiva histórica, com suas conseqüên- cias para os conceitos psicanalíticos de "objeto" e de "realidade", e em articulá-los com temas que passam a ser desenvolvidos nos outros capítulos, tais como a clínica da dissociação e o estudo das adicções. Para tanto, o autor recupera, em versões anteriores, trechos suprimidos na última versão do artigo winnicottiano, como o termo de Wulff - "objeto-fetiche".

Além disso, dedica-se, num primeiro momento, a enfocar toda a preocupação de Winnicott em filiar ou não suas idéias às idéias psicanalíticas tradicionais, destacando a não-linearidade do seu pensamento e a questão da discutida "propriedade intelectual" de suas idéias. Para Gurfinkel, "Winnicott usou e abusou dos objetos psicanalíticos que estavam ao seu alcance, mas não deixou de se sentir responsável e comprometido com eles, manteve uma relação paradoxal de usar e jogar fora, como no jogo da espátula, sem por isto, devemos ressaltar, construir um Frankstein remendado e monstruoso: criou uma obra e um pensamento coerente, unitário e coeso, à imagem e semelhança de seu self" (p. 97).

O autor também critica o que seria uma tendência existente, de considerar a obra de Winnicott um "território sagrado, intocável" e o sentimento de violentação para com o pensamento winnicottiano quando de um estudo comparativo com o pensamento de outros autores. Se realmente existe essa tendência, teria sido importante para o leitor saber quem seriam os representantes dela, uma vez que não condiz com o posicionamento de Winnicott, como demonstrou o próprio Gurfinkel, em seu texto, ao citar a carta de 1952, escrita a Melanie Klein, na qual Winnicott critica a "sacralização" da obra dessa autora. Uma tal sacralização, segundo Winnicott, vai contra o espírito científico da psicanálise e é um dos principais obstáculos ao progresso dessa disciplina. Para Gurfinkel, a própria teoria do uso do objeto valida um exercício comparativo, sem caracterizar falta de rigor e seriedade. E, talvez, de fidelidade?

Ao lado de um exercício que busca o rigor, fica perceptível, em todo o trabalho de Gurfinkel, uma preocupação constante em não se desgarrar, em manter-se fiel ao pensamento freudiano, mesmo quando o seu próprio pensamento, assentado também em suas próprias observações clínicas, tende a conduzi-lo a outras paragens. Possibilitaria isso o rigor pretendido?

Em vários pontos, Gurfinkel reconhece a originalidade do trabalho de Winnicott. Seguem-se alguns exemplos.

Ao comparar as idéias de Winnicott e Wulff, Gurfinkel comenta: "Comparando os dois autores, temos a oportunidade de observar com nitidez algo freqüente no desenvolvimento de uma área do conhecimento: um esforço de ler as novas `realidades empíricas' segundo o referencial estabelecido, e o esforço de criar novos modelos teóricos a partir de alguns impasses intransponíveis. Os objetos e fenômenos transicionais talvez sejam, como `fatos' ou `dados', de uma natureza tal que exigem um reordenamento significativo e até certo ponto radical do quadro referencial da psicanálise, ainda que em si mesmos pareçam simples ou até banais. (...) é inegável que aquilo a que nos levou a posição de Winnicott é de muito maior alcance e relevância do ponto de vista do avanço do conhecimento" (pp. 100-101, itálicos meus).

Num outro ponto, ao discutir as proposições clínica do recalcamento e clínica da dissociação, o autor destaca a diferenciação que Winnicott faz entre o "fantasiar" e o conceito de fantasia e afirma: "A metapsicologia clássica não nos fornece os instrumentos para tal discriminação" (p. 105).

Da mesma forma, com base no artigo de Winnicott, de 1945, sobre o desenvolvimento emocional primitivo, Gurfinkel faz um comentário sobre "a insistência de Winnicott em afirmar os fenômenos transicionais como universais e saudáveis". Escreve: "vemos a sutileza de um pensamento que discrimina um estado inicial de não-integração da desintegração como fenômeno patológico de natureza psicótica que implica em uma regressão a este estádio primário. É esta sutileza que permite a construção de uma verdadeira teoria sobre a criatividade humana que prescinde em absoluto de um modelo psicopatológico - já que se baseia nesta fonte de criação que é o estado de não-integração" (p. 106, últimos itálicos meus).

E, ainda, "evidentemente, não é cabível uma relação direta entre a dissociação em Freud e Winnicott; como já sugeri, Winnicott desenvolve o seu pensamento a partir de um novo quadro de referência que altera substan-cialmente algumas proposições do modelo freudiano" (107, itálicos meus).

Apesar de todas essas afirmações, Gurfinkel coloca-se ao lado de Mezan (s/d) - quando este propõe a concepção de uma nova matriz clínica -, ao invés de confirmar a sua própria percepção de alterações substanciais e da exigência de um "reordenamento significativo e até certo ponto radical do quadro referencial da psicanálise", em suas próprias palavras.

Na proposição de Mezan (A sombra de Don Juan, São Paulo, Brasiliense, 1993), não existem mudanças suficientemente significativas que sustentem, por exemplo, o reconhecimento de uma mudança paradigmática dentro da psicanálise como a proposta por Phillips (1988, Winnicott. London, Fontana Press), Loparic (1997, "Winnicott e Klein: conflito de paradigmas". In: Catafesta, I. F. M. (org.), A clínica e a pesquisa no final do século: Winnicott e a Universidade de São Paulo. IPUSP, pp. 43-60; e 1999, "Heidegger and Winnicott". Natureza Humana, v. I, n. 1, pp. 103-135. PUC-SP, Educ) e Dias (1995, "Winnicott e a teoria das pulsões". Boletim de Novidades, v. 8, n. 77, pp. 53-60). Principalmente por acreditar, mesmo com alguma reserva, que apenas o trabalho de Freud poderia ser considerado um paradigma, segundo a definição de Kuhn (A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 2000). De acordo com Mezan, seria mais justificado utilizar o termo "matriz disciplinar", entendendo, com esse termo, um "foco gerador de hipóteses complementares e de problemas a serem investigados" (Mezan 1993, p. 83). Contudo, recentemente, durante o I Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise (PUC-SP - 2005), Mezan declarou estar revendo esse seu posicionamento, colocando-se favorável à idéia de paradigma, desde que se coloque essa idéia em um nível mais alto de abstração, desligada deste ou daquele autor.

Já Loparic (2000), em seu texto "Esboço do paradigma winnicottiano" e apoiado na proposição kuhniana, vai afirmar que "Winnicott, chegando à psicanálise nos anos 20, descobriu que não lhe era possível ver as coisas daquele modo - modo freudiano, que via as situações psicopatológicas como similares ao conflito edípico e que interpretava tais situações em termos da sua teoria da sexualidade. Ele acabou vendo a situação mãe-bebê como realmente exemplar, o que, por sua vez, forçou-o a desenvolver uma teoria do desenvolvimento emocional, ou seja, uma teoria do binômio `natureza e cultivo'. Esta é, em essência, a mudança de paradigma da qual resulta a diferença entre a psicanálise freudiana, edípica, triangular ou `de três corpos', adotada pela Escola Britânica (A. Freud, M. Klein, Fairbairn, Bion) - e pela maioria de grupos psicanalíticos franceses (especialmente os lacanianos) - e a psicanálise de Winnicott centrada na relação mãe-bebê, dual ou `de dois corpos', atualmente aceita por um número crescente de psicanalistas de vários países" (p. 56). Loparic, assim, identifica na psicanálise os paradigmas freudiano e winnicottiano sem ficar devendo o reconhecimento aos seus autores.

Voltando à análise do caminho tomado por Gurfinkel: da mesma forma que, ao discutir a possibilidade de localizar uma gênese da clínica da dissociação na obra freudiana, Gurfinkel questiona se estaria "forçando algo para dentro de Freud", pode ser que haja também, em relação ao seu estudo da teoria winnicottiana, um grande dispêndio de energia no sentido de não permitir que esta, ao se constituir em um desenvolvimento da psicanálise tradicional, seja considerada revolucionária.

Nesse mesmo capítulo, como contribuição pessoal do autor, pode-se destacar a sua proposição de que as perturbações na área intermediária, postulada por Winnicott, estariam relacionadas ao colapso do sonhar, tema que ele voltará a discutir em capítulo posterior.

No capítulo cinco, o autor estuda o conceito de dissociação desde a sua origem, em Freud, até as estruturas não-neuróticas, concebidas por Winnicott, retomando o seu intento de discutir as substanciais diferenças entre uma clínica do recalcamento e uma clínica da dissociação. Ressalta as transformações que se operaram nesse conceito pelas exigências de problemas que não conseguiam ser trabalhados a partir da teoria do recalcamento freudiano, uma vez que se percebiam processos dissociativos mesmo em pessoas que não haviam chegado à constituição de um EU e, portanto, não se tratava de uma defesa do EU como pensado inicialmente por Freud. Segundo Gurfinkel, o pensamento winnicottiano pode ser visto como um "caminho possível de desenvolvimento das intuições tardias de Freud" (p. 122), já que, como este, Winnicott acreditava numa "fratura do EU que nunca se cura" ou, melhor dizendo, "por não haver um EU minimamente constituído, o processo de defesa não pode ser do EU - como é o caso no recalcamento - mas no EU, na medida em que compromete o processo de sua constituição" (p. 125).

Embora reconheça diferenças entre o pensamento de Winnicott e o de Freud, como no tratamento dado por Winnicott ao conceito de inconsciente de uma forma até então não explorada pela psicanálise, e, segundo as próprias palavras de Gurfinkel, não podemos "deixar de reconhecer uma ressignificação da fórmula `tornar consciente o inconsciente'" (p. 127), ele acredita que Winnicott elabora uma "`tópica do existir' que não deve (...) ser isolada do conjunto do complexo tecido conceitual da psicanálise" (p. 127).

Nesse capítulo, Gurfinkel, além de apresentar um caso de sua própria clínica, sugere o estudo de várias obras literárias, como Estranhamente familiar (Hoffmann, 1919), O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), Colecionador (John Fowles), entre outras, para um estudo mais rico da clínica da dissociação.

No último capítulo da primeira parte, que consiste em um artigo escrito em 2001, Gurfinkel estuda o conceito de "realidade" fazendo uma aproximação entre Merleau-Ponty e Winnicott. Procura enriquecer e contextualizar algumas discussões psicanalíticas dialogando com a sua proposição do sonho como paradigma da situação analítica de dez anos antes, conteúdo do primeiro capítulo.

O autor acredita na necessidade de um trabalho rigoroso do texto winnicottiano e, no artigo, procura "perceber como a problemática do traumático que interrompe o sonhar deixa de ser referida apenas a uma área da psicopatologia, mas pode e deve ser levada em conta em cada experiência analítica; esta concepção de análise coloca em evidência o papel da criati-vidade, trabalhada no capítulo através do conceito de `concepção'" (p. 12).

Iniciando por um destaque à crítica de Merleau-Ponty à ciência e à filosofia, com um enfoque na percepção, Gurfinkel o acompanha em sua problematização da forma como tomamos "ciência" do mundo e conclui que "toda ciência, seja qual for o seu objeto ou campo de investigação, se dá na ordem simbólica: trata-se sempre de um homem olhando para o mundo, e é neste espaço entre sujeito e objeto, entre idéia e coisa - no âmbi-to da estrutura da percepção - que se produz o conhecimento. O `dado' é uma representação da ciência; mas isto não deve nos levar, por outro lado, a um subjetivismo do ato de representar: a experiência do conhecimento se dá por um campo reflexivo e transcendente, necessariamente imerso em um campo intersubjetivo" (p. 140).

Rediscutindo o lugar das ciên-cias humanas, Merleau-Ponty reengloba a metafísica e, a partir da visão deste, Gurfinkel discute a concepção de psicanálise e sua prática, que pode ser diferente dependendo de quem a concebe e a pratica. Para este último, Winnicott estaria identificado com uma "psicologia da forma" consistente e não com uma psicologia do "cientificismo". Winnicott, a partir da clínica da psicose, vai se dedicar ao estudo do homem com a realidade, suas experiências de desrealização, despersonalização e desintegração, revelando a importância essencial dos estados de não-integração, do espaço de ilusão, da criatividade, ou seja, da "experiência paradoxal da percepção/concepção" (p. 145).

Ao comparar os dois autores, Gurfinkel propõe-se a aproximar a "fé perceptiva" de Merleau-Ponty e a ingênua naturalidade de se sentir que o mundo é real, que acredita estar presente na "crença em" de Winnicott. Para tanto, o autor questiona, inicialmente, se a "crença na confiabilidade é originalmente perceptiva?" e, por conseguinte, do que seria, no seu entendimento, a percepção concomi-tante ao fenômeno subjetivo na teoria dos objetos e fenômenos transicionais de Winnicott. Gurfinkel escreve: "Ora o fenômeno subjetivo, também ele é percebido? Penso que sim: é percebido subjetivamente" (p. 150).

De acordo com Winnicott, "desde o nascimento, [...] o ser humano está envolvido com o problema da relação entre aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido" (O Brincar & a Realidade, Imago, 1975, p. 26). Gurfinkel propõe a expressão fenômeno subjetivamente percebido, que somente pode ser compreendido à luz do paradoxo concepção-percepção, pois, segundo ele, "esse fenômeno é, no mesmo ponto do tempo e do espaço, também concebido" (p. 150). Continuando, ele afirma: "não creio ser produtivo supormos um momento originário mítico, abstrato, no qual teria havido uma concepção sem percepção". E ainda, "Considero, por isto, até certo ponto infeliz e criticável o modo com que Winnicott se expressa na frase `estou propondo que existe um estágio no desenvolvimento dos seres humanos que vem antes da objetividade e da perceptividade' (Winnicott, 1996, p.151). Se o bebê, em um início teórico, vive em um mundo subjetivo ou conceitual, não vejo vantagem em considerar este estágio como pré-perceptivo. Tal discussão depende, evidentemente, de como utilizamos o termo percepção, e procuro dar aqui apenas um pequeno passo nesse sentido" (p. 150).

Não que Winnicott não seja criticável, mas, ao criticá-lo, Gurfinkel parece ir na direção oposta ao que Winnicott sempre pediu, que nos colocássemos do ponto de vista do bebê para compreendermos a sua proposição. Quem se colocar do ponto de vista do observador, daquele que é capaz de identificar um paradoxo, acredito que perde a capacidade de alcançar o que Winnicott propõe. Na realidade, há um convite de Winnicott nesse pedido para nos distanciarmos por um momento de nossa intelectualidade e apenas "vivermos" o paradoxo, sem necessidade de identificá-lo. Se atendermos a esse convite, a frase em questão deixa de ser "infeliz e criticável". Winnicott afirma ainda: "Postulo um paradoxo essencial, que deve ser aceito e não se destina à solução. Esse paradoxo, central ao conceito, precisa ser aceito, e aceito durante certo tempo, no cuidado de cada bebê" (O brincar e a realidade, Imago, 1975, p. 203).

Em nenhum momento Winnicott nega que, do ponto de vista do observador, os objetos tenham uma presença objetiva para o bebê, tanto que, na sua teorização, o bebê só pode se iludir e, com isso, criar a partir dos objetos que lhe chegam da realidade, apresentados pela mãe. Porém, ele afirma que isso não é tudo: "O bebê percebe o seio apenas na medida em que um seio poderia ser criado exatamente ali e naquele então. Não há intercâmbio entre a mãe e o bebê. Psicologicamente, o bebê recebe de um seio que faz parte dele e a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma. Em psicologia, a idéia de intercâmbio baseia-se numa ilusão do psicólogo" (p. 27).

No texto "A criança no grupo familiar", de 1966, Winnicott comenta: "Uma dificuldade que se apresenta numa descrição desse tipo é que, quando uma criança nesse estágio se rela-ciona com o que estou chamando de objeto subjetivo, não há dúvida de que funciona, ao mesmo tempo, uma percepção objetiva. Em outras palavras, a criança não poderia ter inventado como é a orelha esquerda de sua mãe. Mesmo assim, é necessário que se diga que a orelha esquerda da mãe com a qual a criança está brincando é um objeto subjetivo. A criança alcançou e criou aquela orelha em particular que estava lá para ser descoberta" (Tudo começa em casa, Martins Fontes, 1996, p. 105). Um parágrafo antes, no texto, Winnicott chega a utilizar a expressão "percebido subjetivamente" para explicar o modo como o bebê se relaciona com o objeto externo. Contudo, ele precisou "traduzir" a expressão - "advém dos impulsos criativos da criança, da mente da criança" -, uma vez que ela era, de certa forma, "inadequada", para que ele se fizesse entender.

Ao optar pela expressão subjetivamente concebido, Winnicott nos convida a "regredir" a uma fase em que o termo "percepção" é limitado devido à imaturidade do bebê, tanto emocional quanto neurológica, que não lhe permite ver o mundo e dar-se conta dele. Além disso, "a mudança do estado primário para um estado em que a percepção objetiva é possível não é apenas questão de um processo de crescimento inerente ou herdado; necessita (...) de uma mínima provisão ambiental e relaciona-se a todo o imenso tema do indivíduo a deslocar-se da dependência no sentido da independência" (O brincar e a realidade, Imago, 1975, p. 203). Como pôde ser constatado, no início desse deslocamento, se tudo corre bem, encontra-se a criatividade primária, idéia para a qual o termo percepção não remete e que, para Winnicott, era tão importante que pudesse ser alcançada por aqueles que buscam compreender o amadurecimento emocional do indivíduo.

Desse modo, não vejo qual seria a vantagem clínica que teríamos em não nos colocarmos do ponto de vista do bebê e considero precioso o comentário de Winnicott acerca do paradoxo concepção/percepção em sua teoria: "Do objeto transicional, pode-se dizer que se trata de uma questão de concordância entre nós e o bebê, de que nunca formulemos a pergunta: `Você concebeu isso ou lhe foi apresentado a partir do exterior?' O importante é que não se espere decisão alguma sobre esse ponto. A pergunta não é para ser formulada" (id., p. 28).

A segunda parte do livro retoma algumas questões e investiga a interrupção do sonhar por efeito do traumático nos fenômenos psicos-somáticos e nas adicções. Inicia com o capítulo sete, em que o autor discute o estatuto da psicossomática. Seria esta "um novo campo do saber" ou "uma extensão", ou um "desenvolvimento da psicanálise"? (p. 167)

Já de início o autor revela o seu posicionamento de não acreditar que, quando se lida com distúrbios orgânicos, necessariamente, se aplique uma nova técnica. Mais uma vez, Gurfinkel faz questão de declarar o pressuposto contido em sua discussão, o de que a psicanálise é uma. Para manter-se fiel a esse pressuposto, a sua interpretação é a de que há uma ampliação, um rearranjo de toda a teoria.

A sua intenção é a de discutir os fenômenos psicossomáticos à luz do conceito de regressão sob dois ângulos:

1) Quanto ao seu mecanismo de formação, pensando numa regressão do percurso da pulsão da psicosse-xualidade às funções somáticas.

2) Quanto à proposição de Marty: processo de regressão como tentativa de cura; a busca de uma reorganização psicossomática.

Gurfinkel destaca quatro elementos da teoria de Freud - o sonho de comodidade, o sonho de angústia, a retração narcisista do sono e a pulsão de morte - que considera importantes para incluir a problemática psicossomática no campo ampliado da psicanálise, sem reproduzir a dissociação entre psique e soma que a psicossomática procura corrigir. E, para ampliação do campo psicanalítico, ele faz uso dos conceitos de regressão do Eu e regressão na análise.

Um ponto abarcado brevemente nesse capítulo vai ser aprofundado no capítulo seguinte, que é a abordagem winnicottiana da questão psicossomática. Na teoria do desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott, o ponto-chave para esse fim vem a ser a personalização, tanto em seu aspecto positivo - a integração -, quanto em seu aspecto negativo - a dissociação. O transtorno psicos-somático é visto, nessa interpretação da teoria winnicottiana, como uma "disfunção do psicossoma (...) resultante de fraturas precoces na constituição do EU" (p. 13).

Para Gurfinkel, o que se estabelece são falhas na atividade simbolizante, que podem ser compreendidas a partir da teoria de Winnicott sobre a mente, expressa no texto "A mente e sua relação com o psique-soma". Nessa teoria, Winnicott considera que a "mente" é uma especialização da psique. Portanto, não equivale a esta e pode se encontrar em oposição ao psique-soma, caracterizando uma psicopatologia. A mente atua na adaptação relativa, quando o ambiente começa a falhar em sua função adaptativa, assumindo a resolução de problemas por meio de um intelecto apurado. Segundo Gurfinkel, essa dissociação pode vir a se caracterizar patológica e o sintoma que incidir no corpo tanto poderá ser "um efeito da patologia dissociativa como uma tentativa de cura" (p. 210).

A interpretação que o autor dá à base em que essa teoria winnicottiana se apóia é semelhante à interpretação dada à base de apoio de Pierre Marty, uma "concepção monista da natureza humana no que tange a relação entre psique e soma" (p. 214). Gurfinkel indica o paradoxo da diversidade na unidade e afirma que o fato de psique e soma deverem estar em continuidade não deixa muitas dúvidas acerca dessa concepção.

O que é preciso deixar claro, contudo, é que, na teoria winnicottiana, a concepção é de uma relação de integração entre psique e soma. Loparic (Natureza humana, 2000, v. 2, n. 2), em seu texto "O `animal humano'", já advertia sobre a possibilidade de que interpretações reducionistas pudessem ocorrer. Não quero dizer com isso que Gurfinkel tenha intencionado fazer uma redução radical, mas creio ser importante que o leitor possa ser alertado sobre tal perigo. O comentário de Loparic pode ajudar nesse sentido: "É verdade que, em Winnicott, a mente e o corpo não são tratados como entidades separadas, de modo que o problema tradicional da relação mente-corpo não se coloca mais. Mas isso não implica que Winnicott caiu no monismo substancial. No pensamento winnicottiano, a diferença substancial entre a mente e o corpo, introduzida por Descartes, não é negada em prol do reducionismo, quer materialista, quer espiritualista; ela é substituída pela diferença operacional entre as funções corpóreas e as funções psíquicas. Analogamente, o problema da união entre a mente e o corpo é substituído pelo problema da integra-ção das funções corpóreas pelas funções psíquicas, sendo cada um desses dois grupos de funções tratado como irredutível ao outro" (nota 20, p. 360) [Nota da autora da resenha: em relação ao termo "mente", aqui utilizado para descrever a idéia winnicottiana, que o leitor entenda psique].

Uma questão técnica é oportunamente ressaltada por Gurfinkel nesse capítulo: a maior importância do "manejo" que da interpretação em tais casos, justamente por se tratar de uma questão de dissociação. "O problema da interpretação é que ou ela tem um valor traumático por forçar uma integração que não é por ora possí- vel ou ela alimenta, por via da intelectualização, uma mente disso-ciada e patológica que se afasta cada vez mais do cerne da questão" (p. 212).

Os dois capítulos seguintes são complementares e discutem as adicções, conforme desenvolvimentos de seu livro anterior A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania.

No capítulo nove, Gurfinkel expõe as diversas abordagens do problema da adicção, suas características, o caráter persecutório do objeto-droga no imaginário social, demonstrado no uso metafórico do filme "A coisa", de Larry Cohen (1985), no qual descreve o "enigmático poder de destruir a vida psíquica do sujeito", colocando esse objeto como agente do mal que deverá ser combatido.

Segundo o autor, devemos nos afastar dessa visão generalizante e reducionista, visto que a droga tem uma função diferente, dependendo da organização psíquica da pessoa com ela envolvida. Para ele, a adicção pode ser compreendida como uma psicopa-tologia na área dos fenômenos transicionais, devido a um fracasso na passagem da dependência absoluta para a dependência relativa, de acordo com a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott. Ao fazer um paralelo com o caso do "menino do cordão", descrito por Winnicott em O brincar & a realidade (caso mencionado no cap. 4 e com influência no seu título, inclusive), Gurfinkel entende que o uso da droga (objeto-fetiche) teria sua função de comunicação de uma dificuldade modificada para a função de negar a separação, ou seja, a dificuldade.

Algumas estratégias de tratamento também são discutidas antes da entrada no capítulo dez, no qual o autor problematiza o termo toxicomania, evidenciando o outro lado do objeto-coisa, o sujeito-quase.

Após levantar três linhas de pesquisa psicanalítica sobre a toxicoma- nia - a que a compreende no interior de uma psicopatologia psicanalítica próxima da perversão, a que faz um paralelo entre a toxicomania e o fenômeno da dependência e a que a com-preende como uma questão da relação sujeito-objeto -, Gurfinkel reconhece seu trabalho como sendo desenvolvido dentro da terceira linha, e conta novamente com uma obra literária, o livro de contos de José Saramago, Objeto quase, para sua discussão.

A sua hipótese é de que "a adicção é um fetichismo na sua forma mais pura, destituído de sentido simbólico, como se qualquer conexão significante tivesse sido desligada. Sobreviveu apenas o ato, e a repetição compulsiva que o anima; sobrou o ato sem sentido dramático, sem cenário nem enredo" (p. 242).

Considerando o texto dos objetos e fenômenos transicionais de Winnicott como uma retomada do problema do fetichismo, Gurfinkel quase avança um pouco mais na sua leitura das contribuições winni-cottianas. Embora fale que Winnicott retomou o problema de "uma maneira tão própria e recolocando tão radicalmente alguns princípios da teoria psicanalítica", a sua conclusão é de que o resultado foi apenas uma "quase- revolução" (p. 244, itálicos meus).

O modelo de Winnicott, segundo o autor, possibilita compreender as adicções como "uma defesa contra a perda do sentido do estar no mundo", sentido que, a meu ver, só é possível numa relação com o outro e, de maneira tal que o indivíduo se sinta reconhecido e com um lugar junto a esse outro.

Na terceira parte do livro, vamos encontrar elementos dos capítulos anteriores agora mais amplamente trabalhados, como também constatar o lançamento da hipótese da pulsão de morte como recurso teórico para abarcar formas clínicas - psicossomáticas e adicções. Como isso se daria na visão do autor?

No décimo primeiro capítulo, Gurfinkel apresenta um diálogo entre o que chamou de "duas diferentes lentes metapsicológicas": a teoria das pulsões de Freud e a teoria dos objetos e fenômenos transicionais de Winnicott. Esta última abordagem, para o autor, realiza "uma mudança de ponto de vista muito instigante", propiciando-lhe um insight sobre a natureza da posição de Winnicott contra a pulsão de morte. Gurfinkel propõe que se coloque no lugar da pulsão de morte a figura da mãe (psiquicamente) morta, fazendo um contra-ponto: pulsão de morte e mãe morta. Sua intenção é estudar o fenômeno da adicção de um nível descritivo para um nível compreensivo e considera como marcas típicas das adicções relacionadas à pulsão de morte a compulsão à repetição e a destrutividade. Percebe em Winnicott a indicação de uma outra direção possível na gênese da compulsão à repetição, a falha precoce da mãe-ambiente e a não concordância com uma destrutividade originária e inerente ao ser humano, levantando toda uma discussão acerca da possibilidade de um fator antivida, derivado da depressão materna. Considera encontrar uma "verdadeira alternativa metapsicológica à hipótese de pulsão de morte, que busca recobrir, (...), aproximadamente o mesmo campo clínico para o qual a proposição freu-diana é em geral utilizada" (p. 267).

Há de se considerar, porém, que Winnicott, em seu livro Natureza Humana, afirma: "No momento, encontro-me diante da necessidade de admitir a existência de uma agressi-vidade primária e um impulso des-trutivo, apropriado ao estágio muito precoce de desenvolvimento do bebê" (p. 99, nota). Portanto, se há algo que pode ir na direção da afirmação de Gurfinkel é que, nesse momento, ainda não há o objetivo de destruir por parte do bebê, como também não há o reconhecimento, por ele, "do elemento destrutivo na idéia excitada primitiva e bruta". Esse reconhecimento só acontece "quando a criança finalmente integra a si própria numa única pessoa responsável e olha para trás" (id., p. 99). Segundo Winnicott, é "conveniente dizer que o impulso amoroso primitivo (id.) tem uma qualidade destrutiva, apesar de o objetivo do bebê não ser a destruição, já que o impulso é experimentado na era pré-remorso" (Textos selecionados: da pediatria à psicanálise, Francisco Alves, 1993, p. 364).

Em seu último capítulo, Gurfinkel hipotetiza o "colapso do sonhar", tentando reorganizar o campo clínico e metapsicológico em que certos problemas surgiram na história da psicanálise; aproxima Marty e Winnicott quando considera que, no campo psicopatológico, eles partem de "uma problemática comum: aquilo que falha na organização do indivíduo" (p. 274) e analisa os desenvolvimentos feitos nos capítulos do livro.

Para Gurfinkel, houve uma ampliação sem volta "da problemática da toxicomania na direção da construção de uma `clínica das adicções'", como também "uma mudança de foco da questão pulsional para a problemática da simbolização". Contudo, faz questão de frisar que "não se trata de pontos de vista excludentes: apenas ocorreu um deslizamento do olhar que traz consigo, necessariamente, uma mudança de ênfase" (p. 275).

Propõe que o que entra em colapso nas adicções é a função do sonhar e faz um estudo do que pôde ser constatado desde a publicação de A Interpretação dos sonhos, passando pela conexão do traumático com o colapso em Além do pincípio do pazer, pela investigação da vida onírica proposta por Marty até os trabalhos de Winnicott em que localiza o sonhar ao lado do viver e em oposição ao fantasiar.

É inegável a seriedade com que Gurfinkel trabalhou nesses textos e com a qual procurou organizá-los na formação de um todo. Fica evidente, também, a necessidade de que o trabalho possa ser reconhecido em seu rigor e acuidade. É um material denso e todas as discussões possibilitam ao leitor um olhar sobre vá-rios elementos analisados em diferentes pontos de vista, daí o seu mérito maior.

Para tal reconhecimento, contudo, acredito ser necessária a revisão de alguns pressupostos que parecem atender mais à delimitação inicial de seus estudos ou, como dito pelo próprio autor acerca de uma das vias tomadas no desenvolvimento de uma área do conhecimento, a um "esforço de ler as novas `realidades empíricas' segundo o referencial estabelecido" do que às evidências encontradas.

 

 

Endereço para correspondência:
Conceição A. Serralha de Araújo
E-mail: serralhac@hotmail.com

Recebido em 15 de novembro de 2005.
Aprovado em 30 de maio de 2006.