SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número2Winnicott: a poesia e a realidadeArquivo da agressividade em psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Heidegger, história e alteridade: sobre a essência da verdade como ponto de partida

 

Heidegger, history, I and other: regarding the essence of truth as the beginning point

 

 

Edgar Lyra

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Reiteradamente, ao longo de sua obra, Heidegger referiu-se ao opúsculo Sobre a essência da verdade, cuja primeira elaboração data de 1930. Chega a dizer, em entrevista ao L’Express (1969), ser esse trabalho a “dobradiça” entre Heidegger I e Heidegger II, inseparáveis um do outro. A questão da história é nele abordada na sua relação com a verdade do ser, mais exatamente, com a idéia de que a continuidade dos eventos que concerne a essa verdade está ontologicamente ligada a uma recusa original do ser a uma inteligibilidade plena ou definitiva. Dessa recusa original decorre a liberdade e, simultaneamente, a possibilidade do erro, a errância; decorre, igualmente, a possibilidade de completo desnorteamento. Tomando essas teses como ponto de partida, é possível afastar da concepção heideggeriana de história quaisquer traços de processualismo ou teleologia, e, sobretudo, reconciliá-la com uma idéia simultaneamente geral e “concreta” de alteridade. É o que aqui se pretende.

Palavras-chave: Heidegger; História; Verdade; Liberdade; Errância; Alteridade.


ABSTRACT

Over and over along his works Heidegger has mentioned the opuscule On the Essence of Truth, whose first elaboration dates from 1930. In an interview to L’Express (1969) he even comes to say about this work that it is a “hinge” between Heidegger I and Heidegger II, inseparable from each other. The text deals with the question of history in its reference to the truth of being, more precisely, to the idea that the continuity of events related to this truth is ontologically tied to an original refusal of being to a full or conclusive intelligibility. What is brought out of this original refusal is freedom but, at the same time, the possibility of error, errancy; it also follows the possibility of complete disorientation. Taking these thesis as a starting point, it is possible to move away from the heideggerian conception of history any traces of processualism or teleology and, above all, to reconcile it with an idea both broad and “concrete” of alterity. That’s what we intended to do here.

Keywords: Heidegger; History; Truth; Freedom; Errancy; Alterity.


 

 

I

O tema da história aparece cedo na obra de Heidegger, textualmente, desde o ensaio intitulado O conceito de tempo nas ciências históricas, lido em Freiburg em 1915. Mas a perspectiva principal associada ao seu nome é, sem dúvida, a da história do ser (Seinsgeschichte). Heideggger não se ocupa, no cerne da sua obra, de quaisquer âmbitos específicos de acontecimentos, sequer da distinção entre ciências históricas e ciências naturais. Volta-se sempre para o problema histórico-ontológico do acontecer dos entes em geral.1 Sobre essa perspectiva ampliada e radical, sobretudo depois dos eventos totalitários contemporâneos,2 pairam as suspeitas que hoje concernem a quaisquer esboços de “filosofias da história”: certos acontecimentos, por aguda precaução, precisam permanecer injustificados e injustificáveis, e não podem sê-lo através de nenhum processo ou lei da história. Esses senões se aguçam quando se percebe que, no pensamento de Heidegger, a elaboração de uma história do ser está associada a uma viravolta (Kehre), de algum modo ligada à sua experiência nacional-socialista. A tarefa de abordar o tema, portanto, eivado que está de nós ético-políticos, é tão difícil e delicada quanto necessária.

 

II

Sobre a essência da verdade (1930) é o ponto de partida destas notas. O opúsculo constitui momento singular em meio ao volume e à complexidade das Obras reunidas do autor. Sempre que vem à frente a questão da aludida metamorfose de Heidegger I em Heidegger II, é o próprio pensador quem recomenda que se preste atenção àquele momento. Desde a primeira menção textual à viravolta, em Sobre o Humanismo (1946), até, pelo menos, uma entrevista dada ao jornal L’Express em 1969,3 Heidegger refere-se a essa conferência como sendo a “dobradiça” entre “Heidegger I e Heidegger II”, inseparáveis um do outro. Não só isso, o texto da conferência original, várias vezes pronunciado entre 1930 e 1932,4 foi editado somente em 1943 e seguiu sofrendo modificações até 1967,5 o que denota a importância que tinha para o autor.6 Ele aqui serve apenas como fio condutor destas reflexões, mas espera-se com isso também chamar atenção para suas inesgotáveis possibilidades de leitura.

 

III

Muitos pontos são dignos de menção e exploração em Sobre a essência da verdade. Texto de leitura difícil, como se um parto estivesse em curso, seu tema principal está indicado no título: a verdade. Dividido em nove partes, ele abriga de início uma crítica à noção mais tradicional de verdade, entendida como concordância de um enunciado com o objeto ao qual se refere. Essa noção sonegaria o problema do sentido prévio do objeto com o qual o enunciado deve concordar. Heidegger volta-se para a alétheia grega, por ele compreendida como “desvelamento” (Unverborgenheit) – espécie de fluxo de vir-a-ser e permanecer que dá ao ente a sua presença. Procura pensar, nesse recuo em direção ao ser do ente – ao qual, em última instância, deve referir-se o enunciado –, aquilo que origina a possibilidade mesma de se falar em “concordância”. Fazendo remissão a Ser e tempo (1927) e à sua “ontologia hermenêutica”, pode-se dizer que o tema do §33 – O enunciado como modo derivado da explicitação7 – ganha aqui um outro e incisivo foco: o que se detém na iluminação de um “co-pertencimento original entre verdade e não-verdade”.8 É, segundo Heidegger, porque o ser dos entes não é algo definível, delimitável, apreensível, ou seja, também ele um ente, que os entes em geral não podem fazer-se plenamente presentes em seu ser, conservando sempre aspectos e possibilidades veladas, passíveis, por conseguinte, de múltiplas explicitações; é também por isso que pode ter curso algo de propriamente histórico, diferente da mera repetição de um acontecer sempre idêntico ou previsível. O dito co-pertencimento entre verdade e não-verdade refere-se, em outras palavras, à liberdade característica da abertura na qual podem dar-se acontecimentos que, em sua diversidade, mobilidade e, sobretudo, novidade, permitem que se fale de história. Junto com o desnudamento integral do(s) ente(s) dar-se-ia o fim da (sua) história.

Sobre a essência da verdade explora mais especificamente a questão do desvelamento nos moldes de um comportamento (Verhalten), espécie de perspectiva ontológica definida pelo modo de o Dasein dispor-se em relação aos outros entes, comportamento esse que pode ser mais ou menos constante. Deixando ainda de lado os fatores que, em maior ou menor grau, restringem ou predeterminam essa “liberdade de comportamento” que, essencialmente, concerne à possibilidade de história, vê-se que, para Heidegger, ela é aí, em última instância, tributária da impossibilidade de desnudamento do ente em sua plenitude.

A remissão ao inacabado Ser e Tempo é, de novo, relevante: lá a ênfase final recaía sobre o problema do sentido de entes essencialmente marcados pela finitude compreensiva do Dasein, ou seja, já sempre pré-compreendidos em seu ser, mas nunca inteiramente. Mesmo a posterior delimitação da compreensão possível ao Dasein por um horizonte temporal visava a dar conta desse sentido nunca abarcável em sua totalidade. A viravolta, Heidegger indicará mais tarde, começa com o esgotamente da busca por uma explicação exclusivamente estrutural desse sentido perpetuamente em vias de fazer-se. É a experiência dessas dificuldades explicativas, junto com a das limitações postas pelo mundo no qual o Dasein já sempre se encontra lançado, que vai dar origem a um pensamento progressivamente mais atento à sua história e à linguagem que nela se sedimenta. Sobre a essência da verdade, no caso, definiu a manhã dessa metamorfose.9

 

IV

A história é abordada, em Sobre a essência da verdade, a partir da idéia de que a verdade, ou seja, o desvelamento dos entes, está essencialmente ligada a uma recusa original do ser a qualquer apreensão plena ou definitiva. Afastando qualquer forma de determinismo, essa recusa afirma a história como errância,10 espécie de gravitação em torno de algo que se dá contínua, mas nunca definitivamente. Heidegger acrescenta: dá-se nessa abertura constitutiva dos acontecimentos também a possibilidade de desnorteamento (die Beirrung), de extravio, de perda de contato com o “norte” que, em última análise, dissemina suas linhas magnéticas a partir de um mistério original, misto de concessão e recusa que sustenta uma espécie de “órbita” interrogativa. Ele antecipa aí algo que será tema privilegiado da interrogação que mais tarde dirige à técnica contemporânea. O desnorteamento, diz, pode abrir ao Dasein a possibilidade de provar a errância no seu caráter constitutivo, simultaneamente aprisionante e aberto para outras possibilidades, por exemplo, a de redescobrir o “mistério do ser-aí” (Geheimnis des Da-seins – cf. p. 25; tr.br., p. 133).

Além de afastar do pensamento heideggeriano da história as nuances teleológicas, a leitura cuidadosa de Sobre a essência da verdade desencoraja quaisquer entendimentos desse pensamento da verdade como sendo índice de uma filosofia subrepticiamente agarrada à “plena presença”. Errância, foi dito, é a palavra que define o acontecer histórico do homem. Erramos em nosso destino comum assim como o Dasein, na sua impropriedade cotidiana, “errava” em torno de si mesmo, isto é, da sua possibilidade de ser inteiro em sentido próprio, completando-se ou decidindo-se por esse “si mesmo” apenas quando compreendia e aceitava a finitude compreensiva como algo constitutivo do seu próprio ser.

Tematizada e distinguida da historiografia (Historie), a história (Geschichte) em Ser e tempo compreendia o Dasein como um ente que, lançado num mundo que já sempre o precedia e condicionava, era, ao mesmo tempo, capaz de ressignificar esse mundo em seus projetos. O que ainda não se discutia ou dimensionava naquele panorama preferencialmente estrutural era, para além do diagnóstico do papel condicionante do passado e da tradição, o “estofo histórico” que, efetivamente, em maior ou menor grau, predetermina os projetos do Dasein. Apenas a menção transversal a um certo conde Yorck evocava uma tendência da historiografia tradicional a recolher esse estofo de forma figurativa, visualizável, “ocular”.11

Sabe-se que Heidegger, em sua obra posterior, dedicou-se mais e mais à identificação das sedimentações que, tempestivamente presentes no mundo, definem já em nível fundamental o que tem importância e o que não tem. Disse, por exemplo, em Sobre o humanismo, que a condição para um “diálogo fecundo com o marxismo” é a reavaliação, liberta de leituras engajadas, das noções em si mesmo históricas de matéria e base material, especialmente do real poder de determinação a elas concernente (cf. Heidegger 1946, p. 27; tr.br. 1973, p. 360).

No seu todo, a história metafísica do ser contada por Heidegger apresenta-se como um conjunto de metamorfoses unidas por certo fio comum definidor da forma como o Ocidente, em meio às possibilidades salvaguardadas pelo encobrimento original desse ser, recolheu, deu abrigo ou recortou, em nível fundamental, o seu mundo histórico, mundo esse que, em certa medida e a cada vez, predeterminou as possibilidades subseqüentes de recorte. O fio comum identificado por Heidegger, sabe-se, foi a tentativa de pensar o ser como ente absolutamente fundamental, capaz dar conta do acontecer de toda a restante multiplicidade de entes.

 

V

O autor de Sobre a essência da verdade começa a urdir, já nos anos trinta, a tese de que o Ocidente teria relegado ao esquecimento, desde os pré-socráticos, justamente o papel que tem a ininteligibilidade plena do ser na possibilitação do devir dos entes em geral. Teria sido pensado no começo, sim, o desvelamento do ser, mas não o fato de ele fundar-se necessariamente sobre uma contrapartida de velamento. O desdobramento efetivo dessa perspectiva inicial acabaria configurando o advento da metafísica, busca renovada pelo “desvelado último” capaz de, subjacentemente, dar conta da totalidade dos entes em seu ser.12 A verdade do ente como um todo passaria a ser a almejada concordância com esse desvelado último. No fim, é porque a teoria das idéias – que marca, segundo Heidegger, esse abandono do solo pré-socrático – não dá plena conta da contemplação e tradução do ser que governa os diversos entes em seu devir, que há uma história da filosofia, ou seja, que surgem outras formas de pensar os entes na sua categorial diversidade de modos de ser. De Platão a Nietzsche, dirá Heidegger, o Ocidente buscou a verdade do ser a partir de uma idéia de concordância com um ente último, a ser fundamentalmente trespassado pelo olhar teórico. Nietzsche, no caso, apontou a metafísica como um erro, erro de procurar concordância com algo essencialmente em devir, vivo e incongelável. Permaneceria aí intacta, todavia, ainda segundo Heidegger, a noção de verdade como concordância.

Seja como for, denunciado e esgotado esse fôlego empreendedor capaz de experimentar o encobrimento do ser como recusa, insucesso ou insuficiência teórica, dar-se-ia o vácuo de pensamento no qual a técnica, em seu irrefreável progresso instrumental, estabeleceu sua contemporânea hegemonia. Instrumentalizar, diga-se, é, essencialmente, não colocar a questão do ser em sua amplitude, mas privilegiar aspectos dados como úteis ou relevantes. Essas partes instrumentais, cada vez mais fabulosas em seu sucesso, já não teriam mais necessidade de qualquer interrogação mais radicalmente abrangente.

É insuperável a metáfora do físico Werner Heisenberg, presente em A natureza na física contemporânea (1953): a de um navio construído com tamanha quantidade de aço e ferro que impossibilita ao capitão orientar-se pela bússola. Se ele não se dá conta disso, o barco está irremediavelmente à deriva (cf. Heisenberg, p. 22; tr.fr., p. 143).13

A história pensada por Heidegger, portanto, é a história das muitas tentativas de compreender o ser que rege os entes e lhes dá destino. O fracasso desse projeto seria simultaneamente um tesouro e um perigo.14 A impossibilidade contemporânea de recolhê-lo como tesouro, saltando para um “outro começo”, para uma outra história reconciliada com o velamento do ser, possibilitaria justamente a hegemonia atual da técnica, hegemonia cujas exigências mais características são bem conhecidas: que os entes estejam sob controle, disponíveis, garantidamente, reprodutivelmente, previsivelmente. Para cumprir, em seu conjunto, qual destino, qual propósito, qual fim, é o que, depois de tantos fracassos, não se põe e não se pode mais pôr em questão, bem entendido, sequer em questão.

 

VI

Pode-se conjeturar que, ao contar a história do ser como “metafísica”, Heidegger estivesse tentando, ainda metafísicamente, dar forma a uma história chegada a um momento crítico, para que, tomando consciência de si mesma, essa história pudesse resgatar a liberdade de virar-se em outra. “Ainda metafisicamente”, é preciso dizer, porque essa história se conforma, afinal, a partir de um traço comum a todos os seus momentos: a compreensão do ser como ente. Segue-se a essa plausível hipótese uma pletora de questões: Qual seria a relação dessa outra história, dotada de uma outra forma e inaugurada num outro começo, com a metafísica? Qual o limite de elasticidade a ser enfim atribuído a essa “forma ontológica” que Heidegger chama de ente, que teria sido perseguida por filósofos tão diferentes quanto Platão e Nietzsche, quanto Aristóteles e Hegel, quanto Kant e ele mesmo, o Heidegger de Ser e tempo? Admite essa forma, intitulada “metafísica”, algo de totalmente outro? Erguido sobre qual solo e em que tempo? Qual a plástica da metamorfose radical prefigurada no chamado fim da metafísica? Ainda: Será que a atual hegemonia da técnica, pensada como ameaça de encadeamento e enrijecimento instrumental capaz de interditar toda e qualquer metamorfose posterior, não prefigura já a possibilidade, no caso indesejada, de uma forma radicalmente outra? E qual seria a tarefa do pensamento diante dessa última possibilidade? Procurar aproximação com a arte e a poesia? Apontar os implícitos de uma ciência que não cessa de tomar a parte pelo todo? Fazer da interrogação uma forma de devoção? Retornar à história da filosofia buscando nela, para além do enquadramento metafísico, frestas e plasticidades novas? E como, dentro de um mundo progressivamente avesso ao tempo, ao élan e às contorções topológicas do pensamento? Lembrado, enfim, de quê? Munido de qual sabedoria?

 

VII

Essas questões todas estão espalhadas, de forma mais ou menos explícita, pela obra de Heidegger posterior aos anos 1930. Contudo, diante das dificuldades concernentes à experiência do fim da metafísica e do umbral que define o “outro começo”, pensar às avessas, isto é, a penumbra que define não o novo, mas o “primeiro começo”, pode constituir um interessante contraponto de investigação, sobretudo quando se percebe que, para o autor, o começo da história não coincide exatamente com o começo da metafísica, mas o antecede.

Sobre a essência da verdade é ainda referência. Lê-se aí, não sem espanto, que “a ek-sistência do homem historial começa naquele momento em que o primeiro pensador é tocado pelo desvelamento do ente e se pergunta o que é o ente” (p. 17; tr.br., p. 129).15 Mais uma vez, o texto antecipa momentos posteriores do autor, nomeadamente a sua atenção aos pré-socráticos. Importante é o convite ao pensamento de uma “outra história”, no caso, de uma “história” anterior, vislumbrada na aurora daquilo que nós, hoje, propriamente entendemos por história.

 

VIII

A pergunta pelo ente – ti esti? – é grega, pré-socrática. A história começa com os gregos, afirma Heidegger, numa postulação estridente aos ouvidos do atual senso comum amparado pela ciência. “Pré-históricos” seriam todos os que precederam a Tales e Parmênides. Coincidiriam, sob essa ótica, o nascimento da história e o nascimento do pensamento filosófico, ainda não cristalizado como “metafísica”. A primeira possibilidade de interpretação é, simplesmente, entender história como “história do ser” e pensar a frase como um tipo de tautologia: a história do ser começa quando os homens se dão conta dele, quando perguntam pelo ser dos entes que são e assim lhe dão abrigo na linguagem. De que mais poderia ser história a história, se não das coisas que são no seu ser? Só que assim se atrofia justamente o problema da compreensão de “ser” que marcou aquela aurora, diferente tanto da cristalização metafísica posterior quanto das narrativas míticas anteriores. Identificado e aceito o problema, ganha outras nuances a questão de uma possível forma outra de recolher a história. A discussão da forma original das narrativas míticas, por exemplo, apresenta uma dupla face. Nela, à diferença da investigação que se volta para o fim da metafísica e para o advento mais ou menos distante de um outro começo, material disponível para leitura, para interpretação e substancialização do debate. Não obstante, a tentativa de entender radicalmente como o ser das coisas era pensado na alteridade mítica remete, inelutavelmente, à questão da elasticidade semântica da palavra “ser”, o que nos leva de volta, num salto de mais de 2.700 anos, ao problema da pré-compreensão do verbo ser, do horizonte de sentido que é tema de Ser e tempo, enfim, à outra ponta da história. Querendo ou não, estamos imersos numa espécie de plasma histórico cujos horizontes estão dados pela compreensão de ser.

Referindo-se ao surgimento pré-metafísico da pergunta pelo ente em seu ser, Heidegger prossegue dizendo em Sobre a essência da verdade:

Nesta pergunta o ente é pela primeira vez experimentado em seu desvelamento. O ente em sua totalidade se revela como physis, “natureza”, que aqui não aponta um domínio específico do ente, mas o ente enquanto tal na sua totalidade, percebido sob a forma de uma presença que eclode. Somente onde o próprio ente é expressamente elevado e mantido em seu desvelamento, somente lá onde tal sustentação é compreendida à luz de uma pergunta pelo ente enquanto tal, começa a história. (p. 17; tr.br., p. 129; grifo meu)

A história começa, percebe-se, quando a espantosa totalidade das coisas que são, a physis, conforme então pela primeira vez nomeada, toca os pensadores e é acolhida na pergunta pelo seu ser. Mas é preciso considerar que também o mito se constitui como uma “resposta” ao toque dessa imensidão espantosamente diversificada. Diz inclusive Aristóteles, no livro alfa da Metafísica, que os philómythos, os amigos dos mitos, são, em certo sentido, filósofos, posto que respondem ambos, diante do que é, a um misto de pasmo e admiração evocado pelo verbo thaumázein (982 b15-20) e suas variações. A história começa, portanto, em sentido heideggeriano, com o advento de um certo modo novo de recolher o envio de um ser que, em si mesmo transcendente, oculto, salvaguardado, pode ser recolhido de diferentes formas. Heidegger esclareceu em outras ocasiões: “história do ser” deve ser entendida no duplo sentido do genitivo, ou seja, algo concedido por um ser que, em si mesmo oculto, concede narrativas, acolhimentos, histórias dessa concessão. Talvez por isso tenha aparecido na sua obra, simultaneamente à atenção aos pré-socráticos e às origens do Ocidente, a forma arcaica Seyn,16 como que a lembrar que há algo que pôde e foi dito não apenas categorialmente, mas historicamente, de diversos modos.

 

IX

Tanto a possibilidade de pensar a alteridade mítica à luz das questões ora levantadas (especialmente em Homero) quanto, quem sabe, a de buscar em Heródoto e sua(s) História(s) um estofo original para a noção de “história” que foi se cristalizando no dizer ocidental, são possibilidades que têm aqui que ficar apenas apontadas.

Fiquemos com os pré-socráticos. Foram eles que protagonizaram, segundo Heidegger, o advento da pergunta que dá origem ao perfil explicativo-investigativo característico do Ocidente histórico-filosófico. Heidegger chega a dizer, de certa forma que não exatamente a causal-determinista, que a bomba atômica começara a explodir já no Poema de Parmênides (cf. Heidegger 1969b). A correlação seria de entendimento mais imediato se o autor se referisse ao atomismo de Leucipo e Demócrito. Mas parece que é a explícita atenção ao ser presente no Poema que, segundo ele, melhor reúne o espírito que anima os pré-socráticos em seu conjunto, espírito que se manifesta, conforme a compilação de Aristóteles, em perguntas ora por aquilo de que todas as coisas são feitas, ora por aquilo que as gera ou move, ora pelo que as organiza ou governa, ora pela sua razão de ser, pelo fim ao qual atendem.17 Heidegger esclarece, numa digressão sobre as quatro causas aristotélicas feita em A questão da técnica (1953, p. 13 et seq), que, longe da noção restrita de eficiência (causa efficiens) que hoje concerne a todo entendimento da causalidade, as quatro causas se reuniriam como modos de uma poíesis que inclui a physis, em uma palavra, na alétheia, desvelamento do ser, natural ou provocado. O Poema de Parmênides, no caso, é o momento pré-socrático onde, explicitamente, trata-se da alétheia. Fato é que, se não há bomba atômica sem a forma causal de pensar aquilo que vem a ser, tampouco ela é inexoravelmente antecipada no puro advento dessa procura por causas. Diriam os lógicos que se trata de uma condição necessária, mas não suficiente. Convém aqui falar, com Hegel, de um farol que ilumina para trás: é a possibilidade inusitada de auto-aniquilação, tão bem “simbolizada” pelo arsenal atômico contemporâneo, que nos leva aos pré-socráticos, talvez como o perigo de Hölderlin, que salva (cf. Heidegger 1953, p. 36). Quem sabe a bomba e os perigos correlatos não ajudem a tirá-los da bruma do “primitivismo” que durante longo tempo os ocultou e que há bem pouco começou a se dissipar. Interessa notar, não é só a possibilidade inusitada de destruição atômica que as perguntas pré-socráticas abrem. É o Ocidente mesmo que elas inauguram, com tudo que lhe diz respeito.

 

X

Heidegger ocupou-se especialmente daquilo que se encontra mais ameaçado no momento histórico-planetário por ele chamado de era da técnica. Serenidade (1955) é o título de uma palestra comemorativa pronunciada em Messkirch, sua cidade natal, na qual trata diretamente do perigo atômico. Ele tece conjecturas sobre o direcionamento das forças atômicas para fins pacíficos e lucrativos, e pondera sobre um perigo maior, oculto por trás da bomba e mesmo de outras ameaças recentes como a fabricação da vida. Cita o pronunciamento do “químico Stanley”, por ocasião da cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de 1955: “Está próxima a hora em que a vida será posta nas mãos dos químicos, que irão decompor, reconstituir e modificar a substância viva como lhes aprouver (nach Belieben)” (p. 20, tr. port., p. 21).18 Referindo-se à hegemonia tremenda do pensamento calculativo-instrumental (rechnende Denken), Heidegger diz ainda: “a revolução que se está a processar poderia prender, enfeitiçar, ofuscar e deslumbrar o Homem de tal modo que, um dia, o pensamento que calcula viesse a ser o único pensamento admitido e exercido” (ibid., p. 25; tr. port., p. 26). Não só isso, o pensamento meditativo (besinnliche Nachdenken) ameaçado de extinção é explicitamente identificado como aquilo que é mais próprio do homem; trata-se, pois, de “salvar esse ser do homem” (ibid.).

É tentador ponderar que Heidegger estivesse mais preocupado com pensadores e com poetas ainda capazes de pensamento meditativo do que com o homem em geral, fosse ele europeu, paquistanês ou habitante de recôndita aldeia amazônica, médico, pajé ou funcionário público, ameaçados todos por uma guerra nuclear. Numa chave menos crítica, pode-se alegar que seria o homem ocidental, mais diretamente imerso na hegemonia do pensamento calculativo, aquele por quem Heidegger principalmente temeu.

Mas não seria este mundo mesmo, ocidentalmente configurado, enrijecido pela escassez meditativa, pela aridez calculativa, que precisa primeiro ser salvo? Não é esse o mundo que precisa irrigar-se, fertilizar-se em suas possibilidades de história futura, para salvar também os “outros mundos” dos seus atuais planos-sem-fim? O mundo dos bosquímanos, pequenos habitantes do semi-árido do Kalahari,19 o que quer que fosse em si mesmo, só poderia ser preservado e dignificado na sua alteridade na medida em que a forma hegemônica ocidental reconhecesse e dignificasse a simples possibilidade de história, pensada como algo que diz essencialmente respeito à salvaguarda daquilo que tem nos escapado, daquilo que mantém sua alteridade em relação a nós. Seria o caso, em outras palavras, de salvaguardar a liberdade que possibilita, ao mesmo tempo, a nossa singularidade em relação ao mundo bosquímano (e vice-versa) e o risco sempre presente, a ser mantido na memória, de desnorteamento e aniquilação em termos amplos. Seria o caso, enfim, de buscar na floresta metálica de uma técnica cada vez mais cerrada a “abertura para o mistério” – hoje, primeiramente, diz Heidegger, a abertura para o mistério da própria dominação técnica, destino de um Ocidente cada vez mais inclusivo. Qual é, por exemplo, o “desígnio especial” que, conforme o cacique índio Seattle, da tribo dunawish, em suposta carta ao presidente do Estados Unidos, Franklin Pierce, em 1855, deu aos cara-pálidas “o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho” (cf. Seattle), além da possibilidade de deixar apodrecer nas pradarias bisões abatidos a tiros, disparados das janelas de formidáveis “cavalos de ferro”? A respeito da “inexorável marcha ferroviária para oeste”, vale a pena ler o impressionante relato do romancista-historiador Dee Brown, de título Enterrem meu coração na curva do rio, publicado nos EUA em 1970, com destaque para a idéia de “Destino Manifesto”, segundo a qual “os europeus e seus descendentes haviam sido escolhidos pelo destino para dominar toda a América” (p. 20). O general Carleton, comandante na campanha de “acomodação” dos navajos no Novo México, teria dito:

O êxodo de todo esse povo da terra de seus pais é uma visão não só interessante, como também tocante. Combateram-nos corajosamente anos e anos; defenderam suas montanhas e seus estupendos cânions com um heroísmo de que qualquer povo poderia se orgulhar de igualar; mas quando, afinal, descobriram que seu destino, também, como o de seus irmãos, tribo após tribo, no sentido contrário do nascer do sol, era dar lugar ao insaciável progresso da nossa raça, depuseram suas armas e, como homens corajosos e merecedores da nossa admiração e respeito, vieram a nós com confiança em nossa magnanimidade, julgando que éramos um povo demasiado poderoso e justo para retribuir essa confiança com baixeza e negligência – achando que, tendo-nos sacrificado sua bela região, seus lares, as amizades de suas vidas, as cenas tornadas clássicas em suas tradições, não lhes daríamos uma recompensa miserável em troca do que eles e nós sabemos ser uma região magnífica. (p. 46, grifo meu)

 

XI

Em perigo está, decerto, este mundo ocidental-globalizante, um mundo que abriga ao mesmo tempo sonhos de liberdade e equações algébricas, necessidades fisiológicas e verbos irregulares, garrafas plásticas boiando nos rios e o céu ainda estrelado sobre nós, a busca da teoria-de-tudo e a Sagrada família de Gaudi, tufos de cabelos expelidos por chaminés e textos filosóficos com possibilidade de serem relidos, um mundo, enfim, onde se esgueiram aqui e acolá, de formas mais ou menos insólitas, conjecturas sobre outros mundos, sobre o mundo da pedra, do besouro, dos esquilos, dos bosquímanos e dos homens-bomba em sua relação com a vida e a morte. Nem esquilos nem bosquímanos, note-se, desenterram ossos de dinossauros20 para dispô-los em museus ou investigam arqueologicamente o que fizeram e disseram seus antepassados. É em nós que esse mundo de alteridades encontra-se reunido e “preservado”, nas nossas prioridades, na nossa linguagem e nos nossos hábitos, tão formidável que, para todos os efeitos, sobreviverá ao último homem numa espécie de hard-disk divino. Convém insistir, macacos, até onde se sabe, não perguntam pelo Big-bang ou pelo ser dos entes que são; e se os chamados povos do Oriente, próximo ou distante, com suas mitologias próprias, passaram a depender de artefatos nucleares, assim como os peles-vermelhas se entregaram à barganha de rifles, é preciso perguntar como e por que isso se deu.

É, portanto, este nosso mundo, esta vertiginosa totalidade de entes experienciável em ainda possíveis interrogações, que precisa dar-se conta do seu estranho acontecer, da sua história e do seu destino, da sua responsabilidade para consigo mesmo e para com suas alteridades, que precisa, em suma, dar-se conta da impressionante saga de algo que, mesmo para um dia ter sido, precisa continuar a ser. É mister, para tanto, haver-se com o que, em todos os possíveis sentidos, não é.

 

Referências21

Arendt, Hannah 1951: As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo, Cia. Das Letras, 1997.        [ Links ]

_____ 1954: “O conceito de história – antigo e moderno”. In: Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa de Almeida. São Paulo, Perspectiva, 1997.

Aristóteles: Metafísica. Tradução de Valentin Garcia Yebra (ed. trilingüe). Madrid, Gredos, 1998.

Baffa, Manoella 2005: A forma da metafísica – sobre a história na obra tardia de Heidegger. Tese de doutorado em filosofia, PUC-Rio, 2005.

Brown, Dee: Enterrem meu coração na curva do rio. Tradução de Geraldo Galvão Ferraz. Porto Alegre, L&PM, 2003.

Heidegger, Martin 1927: Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1993. Tradução brasileira de Márcia de Sá Cavalcante: Ser e tempo, 2 v. Petrópolis, Vozes, 1988. Tradução francesa de François Vezin: Être et Temps. Paris, Gallimard, 1996.

_____ 1930: Vom Wesen der Wahrheit. Frankfurt A. M., Klostermann, 1967. Tradução brasileira de Ernildo Stein: „Sobre a Essência da Verdade“. In: Heidegger. São Paulo, Abril, 1991 (Coleção Os Pensadores).

_____ 1934/35: Hölderlin Hymnen „Germanien“ und „Der Rhein“. Gesamtausgabe Bd. 39, Frankfurt am Main, Klostermann, 1977. Tradução francesa de François Fédier e Julien Hervier: Les hymnes de Hölderlin – La Germanie et Le Rhin. Paris, Gallimard, 1980.

_____ 1936/38: Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis). Frankfurt am Main, Klostermann, 1989. Tradução argentina de Dina Picotti: Aportes a la filosofia – acerca del evento. Buenos Aires, Editoriais Almagesto e Biblos, 2003.

_____ 1940: Platons Lehre von der Wahreit. Frankfurt am Main, Klostermann, 1997. Tradução francesa de André Préau: “La doctrine de Platon sur la vérité”. In: Questions I-II. Paris, Gallimard, 1996.

_____ 1946: Über den Humanismus. Frankfurt am Main, Klostermann, 1956. Tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão: Sobre o humanismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. Tradução brasileira de Ernildo Stein: “Sobre o ‘humanismo’”. In: Heidegger. São Paulo, Abril, 1973 (Coleção Os Pensadores).

_____ 1953: “Die Frage nach der Technik”. In:Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, Neske, 1954. Tradução brasileira de Emmanuel Carneiro Leão: “A questão da técnica”. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.

Heidegger, Martin 1955: “Gelassenheit”. In: Gelassenheit. Pfullingen, Neske, 1977. Tradução portuguesa de Maria Madalena Andrade e Olga Santos: “Serenidade”. In: Serenidade. Lisboa, Piaget, 2000. Audio in: Von der Sache des Denkens – Vortrage, Reden und Gespräche, CD 5. Munique, Hörverlag, 2000.

_____ 1969a: “Seminare in Le Thor”. In: Vier Seminare. Frankfurt am Main, Klostermann, 1977. Tradução francesa de Jean Beaufret: “Séminaire du Thor”. In: Questions III-IV. Paris, Gallimard, 1996.

_____ 1969b: Entrevista ao L’Express, Jornal do Brasil, 1 de novembro de 1969, Rio de Janeiro.

Heisenberg, Werner 1953: Das Naturbild der heutigen Physik, Hamburg, Rowohlt, 1955. Tradução francesa de Ugné Karvelis e A. E. Leroy, com introdução de Catherine Chevalley: La nature dans la physique contemporaine, Paris, Gallimard, 2000.

Hérodote: Histoires. Tradução de E. Legrand (edição bilingüe). Paris, Les Belles Lettres, 1946. Tradução brasileira de J. Brito Broca: Heródoto: História – o relato clássico da guerra entre gregos e persas. São Paulo, Prestígio Editorial (Ediouro), 2001.

Seattle, Cacique Dunawish: Carta ao presidente. Tradução inédita para o português de Roberto Tamara, a partir do texto publicado na revista Norsk Nature 10 (1), 1974.

Stein, Ernildo 1979: “Vida e obra”, in Heidegger, coleção Os pensadores. São Paulo, Editora Abril Cultural.

Uys, Jamie: Os deuses devem estar loucos. C.A.T. Films, 1980. Distribuição em DVD pela SonyPictures, 2003.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: edlyra@terenet.com.br

Recebido em 15 de maio de 2006
Aprovado em 1º de dezembro de 2006

 

 

1 Vale a pena ler Arendt 1954: “O conceito de história – antigo e moderno”, para um contraponto com teses mais tradicionalmente ligadas à oposição entre natureza e história, esta última entendida como âmbito dos voláteis assuntos humanos.
2 Cf. Arendt 1951: As origens do totalitarismo.
3 Entrevista traduzida e publicada no Caderno B do Jornal do Brasil em 1/11/1969.
4 Em Baden, Karlsruhe, Bremen, Freiburg, Beuron e Dresden.
5 A quinta edição alemã, de 1967, traz modificado apenas o início da nota final (Anmerkung). Heidegger acrescenta aí menção à viravolta, referindo-se inclusive a Sobre o humanismo (1946). A quarta edição, de 1954, tinha no parágrafo modificado em 1967 o esclarecimento: “A questão fundamental da conferência nasceu de uma meditação sobre a verdade da essência e foi revista mais tarde diversas vezes, mas mantendo inalterados o ponto de partida, a posição fundamental e a estrutura do trabalho.”
6 Sobre os múltiplos aspectos da importância do texto, vale a pena consultar a nota inicial do tradutor Ernildo Stein na edição brasileira de Os Pensadores (tr.br., pp. 121-122).
7 Cf. §33: Die Aussage als abkünftiger Modus der Auslegung. Sobre a decisão de traduzir Auslegung por “explicitação”, seguindo a tr. francesa de F. Vezin e não a brasileira, é preciso levar em conta que Heidegger usa o termo Interpretation com certa freqüência em Ser e Tempo, por exemplo, em “[...] die Interpretation der Welt bei Descartes” (p. 89), em “Die existenzial-ontologische Interpretation des Phänomens der Wahrheit [...]” (p. 223), ou no §34, onde os dois termos aparecem juntos: “[...] in der bisherigen Interpretation der Befindlichkeit, des Verstehens, der Auslegung und der Aussage [...]” (p. 161). Os grifos são meus.
8 Cf. Ser e tempo §33 (p. 158) e §44 (p. 223 et seq): a alétheia já é de fato tematizada. Heidegger chega a dizer, à página 223, que “O Dasein está co-originariamente na verdade e na não-verdade” (Das Dasein ist gleichursprünglich in der Wahrheit und Unwahrheit).
9 A primeira menção explícita de Heidegger à viravolta (Kehre) é feita em Heidegger 1946: Sobre o humanismo, p. 17, onde Sobre e essência da verdade é explicitamente mencionado. Mais tarde, num dos Quatro seminários (1969a), Heidegger diz: “[...] depois de Ser e tempo o pensamento substituiu a expressão ‘sentido de ser’ por ‘verdade do ser’. E para evitar qualquer falseamento de sentido acerca da verdade, para excluir que ela possa ser entendida como correção (Richtigkeit), a ‘verdade do ser’ foi elucidada através da expressão ‘situação (Ortschaft) do ser’ – verdade como localidade (Ortlichkeit) do ser” (p. 73, tr. minha).
10 Cf. §7 – Die Um-wahrheit als die Irre (A não-verdade enquanto errância).
11 Cf. §77. Boa pesquisa sobre o tema se encontra em Baffa, Manoella: A forma da metafísica – sobre a história na obra tardia de Heidegger, pp. 47-48. Registre-se ainda a nota de Hannah Arendt 1954, op. cit., dando conta, em Heródoto, de um significado original de história, via ístor, ligado ao “testemunho ocular” (p. 69).
12 O texto central onde Heidegger desenvolve o tema é A doutrina de Platão sobre a verdade (1940).
13 O livro reúne três conferências de Heisenberg. A primeira delas na ordem da publicação dá título ao livro e foi pronunciada em 1953 na Technische Hochschule de Munique, na série Die Künste im technischen Zeitalter (As arte na era técnica), na qual Heidegger, também presente, apresentou A questão da técnica, com referências a Heisenberg.
14 Cf. Heidegger 1946, p. 20 (tr.br. 1973, p. 356).
15 Stein, autor da tradução brasileira, usa o termo “historial” para traduzir geschichtlich, deixando o termo “histórico” (historisch) para o que é referente à historiografia.
16 Cf. Heidegger 1934/35: Os hinos de Hölderlin – “Germânia” e “O Reno”. O termo aparece no poema No adorável azul... (In lieblicher Bläue), lido por Heidegger no curso em questão. Seus ecos se farão notar mais imediata e explicitamente em Heidegger 1936/38: Sobre o Ereignis– contribuições à filosofia. Registre-se também a sua repetida presença no acréscimo à edição de 1967 de Sobre a essência da verdade (cf. nota 5, neste).
17 Cf. Aristóteles, Metafísica I, cap. 3 e V (delta), cap. 2, e Física II, cap. 3 e 7.
18 Essa conferência foi gravada e publicada em CD (Heidegger, Martin: Von der Sache des Denkens – Vorträge, Reden und Gespräche, CD 5). É digno de nota que Heidegger repete, com pausa e ênfase ausente no resto da fala, a expressão “nach Belieben”, “como lhes aprouver”, “à vontade”, “como bem entendam”. O grifo é meu.
19 A região semi-árida chamada Kalahari fica entre a Namíbia, Botswana, Zimbabwe e a África do Sul. Vale ver Os deuses devem estar loucos (1980), do sul-africano Jamie Uys, sobretudo seus idílicos e inspirados 20 primeiros minutos. Vale a pena também conferir os “extras” disponíveis no DVD hoje comercializado, onde Uys acompanha o destino do clã do bosquímano Nixau (Xi), protagonista do filme, até 2003. Registre-se ainda a existência de um fundo destinado aos povos do Kalahari – cf. www.kalaharipeoples.org
20 Que, de todo, só passaram a “existir” em 1842, descobertos pelo anatomista britânico Charles Owen.
21 A datação concerne prioritariamente ao período de elaboração dos textos.