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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006

 

RESENHA

 

 

Leopoldo Fulgencio

Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas

Endereço para correspondência

 

 

Letícia Minhot, 2003: La mirada psicoanalítica. Um análisis kuhniano del psicoanálisis de Freud. Córdoba, Editorial Brujas.

O livro de Minhot, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2001, na Unicamp, sob a orientação de Zeljko Loparic, é uma proposta de utilização da noção kuhniana de paradigma para o estudo da obra de Freud, com o objetivo de explicitar a maneira como o fundador da psicanálise concebeu seus problemas e encaminhou as soluções para eles. A aplicabilidade da noção de paradigma ao estudo da psicanálise tem sido proposta por diversos autores, com mais ou menos rigor na aplicação do conceito. A autora insere-se no roll daqueles que procuram fazer um uso mais pleno e rigoroso do conceito.

Minhot centra sua atenção sobre os modelos que Freud tem em mente para a compreensão de seus casos clínicos, e percorre, inclusive, o período pré-psicanalítico.

Para enquadrar sua análise e seu ponto de vista, ela retoma, no primeiro capítulo, as características centrais do conceito de Kuhn, explicitando que um paradigma corresponde a um conjunto de crenças compartilhadas por uma determinada comunidade científica. Ou seja, ele estabelece quais são os conjuntos de problemas e soluções válidas para seu campo de atuação, funcionando, então, a prática científica desse grupo como solucionador de quebra-cabeças de determinado tipo.

Mais ainda, detalhando as características específicas das crenças compartilhadas, ela explicita, retomando Kuhn [ao rever Kuhn e detalhar as características específicas das crenças compartilhadas, ela explicita] que um paradigma é composto de: 1. generalizações simbólicas (leis gerais que regem os fenômenos, cujo funcionamento também define os significados dos termos e conceitos utilizados); 2. modelos heurísticos (conjunto de analogias e metáforas comumente aceitas, que servem para procurar relações entre os fenômenos) e modelos ontológicos (os quais representam o aparelho psíquico e têm como principal função introduzir um registro lingüístico, com o qual são analisados os diferentes fenômenos da alma humana); 3. valores (mormente os epistemológicos, que estabelecem, por exemplo, o tipo de predições que devem ser feitas e os critérios de exatidão, consistência, alcance, simplicidade, fecundidade, coerência e compatibilidade com outras teorias etc.); e 4. os exemplares (soluções concretas de problemas, então empregadas como modelos). Ao final dessa caracterização, Minhot enfatiza que um paradigma se diz principalmente em função dos problemas e das soluções que ele coloca, ou seja, que são os exemplares, os carros-chefe que definem esse conjunto de crenças compartilhadas.

Nesse sentido, ao avançar a perspectiva geral da autora, seriam encontrados diversos exemplares em Freud, verificando-se modos e concepções diferentes de entendimento. Minhot não diz exatamente, mas seria possível deduzir que ela considera haver diversos paradigmas no interior da proposta freudiana.

Antes de fazer algumas considerações críticas, retomarei sucintamente suas posições. A autora defende que na obra de Freud há diversos modelos heurísticos, a saber: o que toma a doença psíquica como um análogo da tuberculose; o que pensa o psiquismo como se fosse uma Pompéia; o que compara o retorno de moções pulsionais infantis na vida adulta à [a] uma rede de vasos comunicantes, nos quais a água faz [tem] um refluxo ao ver-se [se ver] impedida de ir numa direção; o que toma o psiquismo e suas instâncias tal como um cavaleiro lutando para dominar seu cavalo; o que concebe os fins da existência psíquica como análogos aos fins da existência biológica (a preservação do indivíduo e da espécie); e, por fim, o que considera a alma humana como um sistema tal qual qualquer outro sistema físico (regido por leis de inércia, ação e reação etc.).

Minhot afirma também ter reconhecido três modelos ontológicos: um caracterizado como neurológico, referindo-se à esquematização feita por Freud em “Esboço para uma psicologia para neurólogos”; outro apresentado na Interpretação dos sonhos, figurando o psiquismo e suas instâncias (Ics-Pcs-Cs), conhecido como a primeira tópica; e aquele que é a reformulação dessa primeira tópica, figurando o psiquismo como composto pelo Id-Ego-Superego. A autora aprofundará os comentários sobre esses modelos e desenvolverá a parte passível de ser reconhecida como os valores compartilhados, distinguindo valores metodológicos (simplicidade da teoria, precisão, consistência, etc.) e valores ideológicos (o que a comunidade reconhece como as características da ciência). Neste último caso, dos valores, ela se restringe aos valores ideológicos e foca sua análise na defesa que o próprio Freud faz da psicanálise versus uma ciência natural.

Então Minhot prossegue nesse tipo de aplicação do conceito de paradigma, e, ao final de seu livro, chega a considerar que Freud teria organizado seu modo de pensar os problemas clínicos em função de dois grupos de exemplares. No primeiro, estão incluídos “aqueles casos de solução bem-sucedida para o problema de encontrar uma versão adequada à generalização que coloca como causa do sintoma a recordação de um momento traumático” (p. 214), tal como seria possível verificar nos casos Emmy, Lucy, Catarina, Isabel, Rosália e Cecília. No segundo grupo estão incluídos aqueles casos que “mostram a regressão [do paciente] a um ponto de fixação no desenvolvimento da libido, e esse ponto pertence à atividade sexual infantil. [...] À medida que esse ponto de fixação vai se constituindo segundo o complexo paterno, podemos falar de uma solução do enigma que apresenta as patologias por meio do complexo de Édipo” (p. 218). Dentre os casos clínicos desse segundo grupo, estariam Dora, o Pequeno Hanns, o Homem dos Ratos, Schereber, o Homem dos Lobos.

Neste momento, gostaria de apontar duas críticas a serem consideradas na avaliação deste livro: a primeira diz respeito à delimitação do campo de trabalho e à análise proposta pela autora; e a segunda, tema para discussão, refere-se à interpretação dada às características que definem o paradigma freudiano, seja no que se relaciona à interpretação da obra de Freud, em termos das características que definem um paradigma, seja em relação à própria interpretação dos conceitos formulados por Kuhn.

Minhot circunscreveu-se ao texto de Freud, buscando nele o material que explica e caracteriza as partes de um paradigma. Se tivesse considerado um espectro mais amplo, procurando esclarecimento e apoio em outros autores e referências importantes para a compreensão do pensamento de Freud, teria dado à sua interpretação um ponto de vista mais geral e abrangente. Nesse sentido, faltou neste livro uma análise epistemológica e metodológica da formação de Freud e das concepções de ciência que distinguem o século XIX, introduzindo, assim, a análise das posições de uma série de autores importantes para a compreensão do pensamento de Freud – tais como Theodor Lipps, Ernst Mach, Theodor Fechner e, como referência filosófica fundamental, Kant e seu programa de pesquisa a priori para a elaboração da psicologia como uma ciência empírica da natureza.

Além disso, também seria possível discutir a avaliação que Minhot faz do que caracteriza o paradigma freudiano. Nesse sentido, caberia contrapor às distinções apresentadas pela autora aquelas de outros autores, que também se propuseram o mesmo objetivo, aplicando o conceito kuhniano de paradigma ao estudo da psicanálise – dentre eles, Ricardo Bernardi (1988: “The Role of Paradigmatic Determinants in Psychoanalytic Understanding”. Internacional Journal of Psychoanalysis, 70, pp. 341-55), Jay R. Greenberg e Stephen A. Mitchell (1983: Relações objetais na teoria psicanalítica. Porto alegre, Artes Médicas) e seu orientador Zeljko Loparic (2001: “Esboço do paradigma winnicottiano”. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, v. 11, n. 2, pp. 7-58).

Suponho que não era esse o objetivo da autora no momento em que escreveu sua tese, em 2001, mas caberia, para um estudo mais amplo, ter incluído, talvez como posfácio a seu livro, de 2003, uma discussão com esses autores. Senão com todos eles, ao menos com aquele que tem uma maior proximidade com a sua leitura de Kuhn e Freud, seu orientador Zeljko Loparic.

Para este último, ao explicitar aqui as diferenças de interpretação, há um paradigma freudiano que tem as seguintes características: como exemplar, o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares; como generalização-guia central, a teoria do desenvolvimento da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais; como modelo ontológico, aquilo que é explicitado pela teoria metapsicológica freudiana, na qual temos as ficções heurísticas do aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais; como modelo heurístico, todas as metáforas ou analogias com máquinas ou sistemas que funcionariam tal como máquinas, até mesmo os pensados em termos de máquinas biológicas; em proximidade ao modelo heurístico, ele também se refere aos aspectos metodológicos, afirmando que o paradigma freudiano tem sua metodologia (clínica) centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação; os valores epistemológicos seriam os das ciências naturais, incluindo explicações causais; e, por fim, o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal (cf. Loparic 2001: “Esboço do paradigma winnicottiano”, Cadernos de história e filosofia da ciência, v. 11, n. 2, pp. 7-58).

Não cabe aqui desenvolver a análise das diferenças entre uma interpretação e outra, mas tão-somente retomar essas duas propostas, reconhecendo-as como um modo de buscar a utilização do mesmo instrumento teórico, ainda que exista divergência quanto ao entendimento do instrumento e dos resultados de sua aplicação.

Mesmo que Kuhn esteja errado, tanto quanto à caracterização do que define uma ciência como quanto à avaliação de que modo ocorre o desenvolvimento de uma ciência, nada disso invalida a importância e a fertilidade das perguntas que ele formulou como significativas para a compreensão de uma determinada disciplina. Retomo-as: há um problema e uma solução exemplar que servem de modelo para pensar todos os outros problemas e suas soluções de uma determinada ciência? Qual é a teoria geral que serve para a compreensão de todos os fenômenos de uma determinada disciplina? Quais são os elementos a priori que servem de apoio para a compreensão de todos os fenômenos e suas relações de determinação mútua? Quais são os valores teóricos ou epistemológicos partilhados pela comunidade em questão? Quais são os valores práticos compartilhados?

Para concluir, parece, então, que os resultados desse tipo de pesquisa podem contribuir para esclarecer o pensamento de Freud e o desenvolvimento da psicanálise, num momento em que há tantas dificuldades de comunicação e acordo sobre o que define os fundamentos da psicanálise e o lugar epistemológico a ser dado a ela.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ful@that.com.br

Recebido em 15 de setembro de 2006
Aprovado em 20 de dezembro de 2006