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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Objetificação e intolerância*

 

Objectification and intolerence

 

 

Zeljko Loparic

Universidade Estadual de Campinas / Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

apoiando-se na fenomenologia filosófica (Heidegger) e numa ciência factual (a psicanálise de Winnicott), o artigo começa formulando dois problemas relativos à tolerância: 1) poder suportar os diferentes sentidos de realidade ou, respectivamente, os diferentes modos de dizer o real, e 2) poder estabelecer relacionamentos objetificantes e não-objetificantes com o mundo. Depois de mostrar que esses problemas foram sistematicamente negligenciados não somente pela literatura teológica, mas também pela filosófica (tanto iluminista como pós-moderna), o artigo prossegue salientando que a linguagem apropriada para descrever a realidade objetificável pode ser invasiva e mesmo aniquiladora - e, neste sentido, intolerante - se usada para falar da realidade não-objetificável, e que atitudes objetificantes podem destruir os modos não-objetificáveis de relacionamento com o mundo e outros seres humanos, sendo, portanto, ameaçadoras da própria essência do humano.

Palavras-chave: Objetificação; Tolerância; Kant; Heidegger; Winnicott.


ABSTRACT

Based on philosophical phenomenology (M. Heidegger) and a positive science (psychoanalysis of D. W. Winnicott), this paper starts by formulating two problems of tolerance: the one being that of coming to terms with different senses of the real and different modes of talking about it, and the other that of reconciling our objectifying with our non-objectifying relationships to the world. After showing at some length that both problems have been generally neglected not only in the theological but also in the philosophical literature, the post-modern as well as the enlightened one, it will be shown that a language appropriate for describing the objectifiable reality can be intrusive and even destructive - and thus intolerant -, if used to talk about the non-objectifiable reality, and that objectifying attitudes can destroy the non-objetifying ways of relating to the world and to other persons, being, in this respect, a threat to the very essence of our humanity.

Keywords: Objectification; Tolerance; Kant; Heidegger; Winnicott.


 

 

Colocação do problema

Tolerância, conceito-chave de nossa cultura, tem muitas acepções.1 Em todos os casos, contudo, trata-se da capacidade de suportar dificuldades, sejam elas dores físicas ou outros desafios de natureza somática, conflitos instintuais, paradoxos existenciais, contradições intelectuais ou práticas, dissenções sociais, choques de interesses, diferenças de opinião ou crença religiosa, etc. Escolhi discutir a capacidade de tolerar duas dessas dificuldades, ainda pouco estudadas. Uma delas é a diferença entre a realidade objetiva, expressa pela linguagem objetificante, e a realidade não-objetiva e não-objetificável, nomeada pela linguagem não-objetificante. A outra se manifesta no conflito entre os modos objetificantes e não-objetificantes e mesmo não-objetificáveis de relacionamento com o mundo, constituídos durante o processo de amadurecimento emocional dos seres humanos. A incapacidade de estar à altura dessas tensões constitui duas formas essencialmente modernas e ocidentais de intolerância: o monismo ontológico-lingüístico e a imaturidade emocional. Uma é, portanto, teórica e a outra prática, mas ambas são igualmente esquecidas pelo homem ocidental contemporâneo. Diferentes da intolerância política ou religiosa comum, elas exigem novas maneiras de pensar e praticar a aceitação: a tolerância ontológico-lingüística (abertura para o pluralismo ontológico e de linguagens) e a tolerância constitutiva da maturidade emocional (a capacidade de suportar os problemas e as incertezas da vida que surgem ao longo do processo de amadurecimento individual e coletivo). O primeiro dos dois modos de intolerância mencionados foi tematizado no pensamento do Ser de Heidegger e o segundo, pela psicanálise de Winnicott.

 

Diferença ontológica e pluralidade dos dizeres

Em Ser e tempo, desconstruindo a ontologia tradicional, Heidegger distingue três sentidos do ser dos entes: a presentidade (a mera subsistência, o modo do ser dos objetos intramundanos externos, dados na representação), a instrumentalidade (o modo da presença de objetos intramundanos externos, acessíveis no uso manual) e a existencialidade (a maneira de existir exclusiva dos seres humanos, que inclui a relação do homem ao ser, diferente da sua relação com os entes e acessível somente em determinados modos de disposição afetiva, em particular, na angústia). A constituição desses três sentidos do ser é possibilitada pelo fato de o homem existir como o aí de todos os sentidos, isto é, de ele ser o aí (das Da-sein), a abertura, o espaço de projeção da significância. Ao invés de rechaçar essa condição, o homem tem que tolerar o peso de existir como abertura e, nesse sentido, ser diferente, inclusive de si mesmo como ente factual. Essa diferença, nomeada por Heidegger de ontológica, precisa ser assumida e suportada como tal, sob pena de não deixar o homem ser como ele é e o que ele é na origem. Se for admitido apenas como uma mera presentidade, tal como ocorre na tradição metafísica que esquece a diferença ontológica e, em decorrência disso, a pergunta pelos diferentes sentidos do ser, o indivíduo humano torna-se um entre todos os outros entes meramente presentes dentro da região chamada “mundo”, mantendo com esses outros entes relações externas e, com si mesmo, relações internas.

É também de Heidegger a distinção entre linguagem objetificante e não-objetificante (cf. 1964, p. 70). A primeira expressa o pensamento que trata os entes como meras presentidades, fazendo deles objetos de atos representacionais de um sujeito de conhecimento, no sentido estabelecido de modo paradigmático por Kant.2 A coisa, considerada dessa maneira, é um objeto externo a ser ajuizado por um sujeito transcendental, que transcende o mundo (a “natureza”) no sentido de impor as condições de possibilidade da sua experiência cognitiva - isto é, da representação perceptiva e judicativa - como condições de possibilidade de objetos de experiência eles mesmos. A objetividade é reduzida à experiencialidade cognitiva e esta, à representidade. A verdade é entendida como a concordância entre dois tipos de representação: os juízos teórico-determinantes3 e percepções. Além disso, o homem, enquanto ser prático, e as suas relações práticas externas com outros seres humanos, são ajuizados em termos de juízos prático-determinantes, pelos quais lhes é imposto o regime das leis da razão prática, a humanidade do humano sendo definida em termos obrigação de agir de determinadas maneiras.

A linguagem não-objetificante, constituída na experiência hermenêutico-especulativa, é falada por um ser humano que não é, na origem, o sujeito transcendental kantiano, mas um ente que transcende as coisas sendo o aí, a abertura, da manifestação das coisas elas mesmas, ou, como diz o segundo Heidegger, pertencendo ao Aí da manifestação. Nesse contexto, a experiencialidade não é mais reduzida à representidade e o ser com outros seres humanos, a humanidade, deixa de ser uma relação externa. Usar a linguagem de regras teórico-determinantes ou prático-determinantes para dizer o ser-no-mundo do ser humano significa objetificar o ser humano, isto é, cometer um erro semântico grave.

Na sua segunda fase, Heidegger passa a considerar a poesia um exemplo paradigmático de uso não-objetificante da linguagem. “O dizer poético”, escreve ele, “é um ser presente a ... e para Deus. Ser presente significa: um simples estar de prontidão que nada quer, que não conta com êxito algum. Ser presente a ...: puro deixar-se dizer a presença de Deus” (1976, GA 9, p. 78). Heidegger acrescenta: “Em um tal dizer nada é posto ou representado como objeto. Aqui não se encontra nada a que um apanhar e abranger representacional pudesse se contrapor [como sujeito a um objeto]” (id.). A verdade do dizer não é definida como uma relação de concordância determinante, mas como um desocultamento que deixa ser. A obrigatoriedade não implica agir (fazer algo), mas ser e deixar ser. A moral dessa posição permanece a mesma que a do primeiro Heidegger: insistir em expressar a nossa presença originária a coisas e aos outros usando os recursos da linguagem objetificante - tratando de nós mesmos e dos outros em termos de relações teóricas ou práticas, externas ou internas - significa não deixar ser e, nesse sentido ontológico-lingüístico, ser intolerante.

 

A diferença entre o mundo subjetivo e o objetivamente percebido

Passemos a Winnicott. O psicanalista inglês sustenta que, durante o processo de amadurecimento que se estende da concepção à morte, o indivíduo humano passa por diferentes mundos.4 O primeiro deles é o mundo subjetivo, constituído pelo bebê humano apoiado em cuidados fornecidos pela mãe-ambiente, mãe da qual o indivíduo não se distingue no início da vida e da qual, num certo sentido, ele jamais se separa. Esse mundo é povoado de “objetos subjetivos” ou “subjetivamente concebidos”, com os quais o indivíduo se identifica, objetos não separados dele e ainda não objetificados. Objetos subjetivos não são, portanto, externos; mas eles tampouco são internos, pois, no começo da vida humana, ainda não existe alguém que tenha um interior - um si-mesmo ou um corpo onde poderia guardar algo. Esses objetos não têm natureza própria, não fazendo sentido para o bebê a distinção entre algo criado e algo encontrado. Dotados dos sentidos criados na fantasia, eles encontram-se submetidos ao nosso controle mágico.

O segundo mundo é o mundo objetivo, constituído ao longo do processo de separação entre o indivíduo e os objetos subjetivos. Os objetos desse mundo possuem a característica de serem externos, isto é, existirem no tempo e no espaço fora da criança, terem natureza própria, serem acessíveis só à percepção (sendo, por isso, chamados “objetos objetivamente percebidos”) e modificáveis tão-somente pelo agir apoiado em instintos de natureza biológica. Contudo, mesmo caracterizados pela externalidade, esses objetos guardam sempre uma relação com os subjetivos: a sua realidade externa é sustentada a preço de ser “aceita a destruição contínua na fantasia inconsciente” do objeto subjetivo (1971, p. 106). Na vida adulta, essa relação é esquecida, de modo que os objetos do mundo externo passam a ser considerados únicos, existindo por si mesmos na realidade externa e prontos para serem notados e usados.

O estabelecimento da verdade sobre a realidade externa exige o modo de pensar “lógico”, exemplificado pela ciência, bem como o emprego de uma linguagem objetificante, cujos termos são interpretados no domínio de objetos objetivamente percebidos e de relações externas entre o indivíduo e esses objetos, ou daquelas que existem neles próprios. Por outro lado, o acesso à realidade subjetiva exige insights intuitivos5 que só podem ser expressos por meios pré-verbais ou verbalizados numa linguagem não-objetificante. Assim como Heidegger, Winnicott não teorizou de modo sistemático sobre o modo de dizer não-objetificante. Mas ele o ilustrou magistalmente na apresentação dos seus casos clínicos, fazendo apontamentos preciosos sobre esse assunto. Por exemplo, no relato do caso Piggle, quando deixa claro que, ao falar com o paciente, o analista participa da situação do paciente, estabelecendo com ele um modo de comunicação muito diferente daquele que consiste em falar sobre o paciente, interpretando a sua situação. O mesmo vale para a fala da mãe com o bebê, de amigo com amigo ou de amante com amante.6 Muitos aspectos importantes e sutis das situações subjetivas, embora acessíveis na experiência direta, só podem expressos em palavras, de modo apropriado, por poetas.7

Parece-me seguro assumir que, para Winnicott, a semântica da linguagem não-objetificante usa, como domínio de interpretação, as “relações” pessoais dos indivíduos com o mundo-ambiente subjetivo e com os objetos subjetivos, e que essas relações não são internas nem externas. Daí se segue que não é possível falar do indivíduo humano na fase inicial da vida ou abordar a constituição fundamental desse indivíduo, estabelecida nessa fase, sem, ao mesmo tempo, mencionar seu mundo-ambiente e seus primeiros objetos. Em termos concretos: falar do bebê sem falar da mãe não faz sentido. Como a mãe não é um objeto para o bebê, nem tampouco o bebê o é para a mãe (à medida em que ela se dedica realmente aos seus cuidados), dizer o que acontece entre os dois na linguagem objetificante (linguagem que tematiza relações externas, entre entidades, ou internas, dentro das entidades que subsistem cada uma por si) significa cometer grave um erro categorial. Mais do que isso, tal modo de falar é intrusivo e mesmo aniquilador do sentido das coisas essencialmente não-objetificáveis e, desse ponto de vista factual, intolerante. Visto que o mundo subjetivo permanece presente durante toda a vida, o mesmo vale também para as estruturas “subjetivas” dos adultos.

 

Redefinindo a tolerância

Apoiado nessas fontes, proponho que sejam distinguidos dois conceitos fundamentais de tolerância: a tolerância objetiva e a não-objetiva.8 A primeira é uma atitude ou maneira de ser definida no domínio constituído pelo mundo objetivo, dizendo respeito a relações externas dos seres humanos, considerados, à maneira kantiana, sujeitos do conhecimento ou agentes isolados, dotados de um grau de liberdade e submetidos à razão prática. Ser tolerante no sentido objetivo significa, por exemplo, deixar que cada um pense livremente e expresse livremente suas opiniões, mesmo quando não são compatíveis com as nossas, ou que pratique, dentro dos limites da ordem e da segurança pública, nacional ou internacional, modos de vida baseados nessas crenças e opiniões, com a seguinte condição: que aceite a discussão pública do que diz e do que faz. A tolerância no sentido objetivo é, portanto, um conceito essencialmente teórico-prático. O seu componente teórico consiste em um compromisso com um certo conceito de verdade objetiva: a disposição de não ser dogmático e de não tentar decidir questões indecidíveis - no caso mais comum, as diferenças nas crenças e nas práticas religiosas. O seu componente prático é um postura ética; a de regulamentar, de maneira racional e coletivamente aceitável, o nosso tratamento dessas diferenças. As regras consideradas dizem respeito a relações entre agentes humanos, capazes de fazer isso ou aquilo, de exercer influência causal externa uns sobre os outros. Assim como as relações entre eles, esses agentes pertencem, eles próprios, à realidade externa, objetificável.

Por outro lado, a tolerância no sentido não-objetivo diz respeito, em primeiro lugar, à prontidão de suportar o fato de que as coisas e os seres humanos existirem de modos diferentes. Em segundo lugar, refere-se à capacidade de suportar os outros seres humanos como outros - não considerados como agentes isolados, mas como aqueles que coexistem conosco ou que, para poderem ser, dependem de nós (por exemplo, deixar que um amigo se apóie em nós para poder continuar existindo). Em terceiro lugar, tolerância significa assumir a estrutura do ente que somos (por exemplo, deixar-se levar pela fantasia ou suportar as contradições internas da vida). Ser tolerante, no sentido não-objetificado, significa aceitar, pela situação em se está, todas essas diferenças essencialmente não-objetificáveis como parte do nosso a-ser e sustentar o peso que elas nos impõem.

A tolerância tomada nessa acepção não é, portanto, um conceito teórico-prático no sentido especificado acima. Ela tem uma dimensão de verdade, mas não da verdade objetiva, fundada em processos cognitivos objetificantes, mas de verdade como espaço de emergência do sentido - seja do ser, seja das coisas, dos outros, seja de nós mesmos - que exige ser correspondido. A tolerância não-objetiva tem também uma dimensão ética, mas esta não consiste em agir ou fazer algo, exercendo influências de acordo com regras coletivamente criticáveis, mas em acolher o que se dá e como se dá, ser alguém para alguém ou ser si mesmo, sem apelo possível a regras práticas universais. As relações pessoais e os indivíduos envolvidos nelas não fazem parte da realidade externa, representável, mas de uma esfera de realidade que, na terminologia de Heidegger, pode ser chamada pré-representacional ou não-representacional, e na de Winnicott, subjetiva ou pessoal. O que acontece nessa esfera não pode ser expresso na linguagem objetificante, mas tão-somente num modo de dizer não-objetificante, na acepção de Heidegger, ou não-lógico, no sentido de Winnicott. Os dois autores aproximam, conforme observei anteriormente, esse dizer à linguagem da poesia.

Segue-se que a postura de praticar exclusivamente a tolerância objetiva constitui-se em intolerância no sentido ontológico e maturacional, levando, em última análise, à aniquilação dos momentos não somente pré-objetivos, mas essencialmente não-objetificáveis, do existir humano. Em outras palavras, há um sentido de intolerância que pode ser definido como redução de vários sentidos do real a um só (ao que é objetivamente dado), de vários sentidos da verdade a um só (à verdade objetiva), de vários modos de obrigação a um só (aos deveres relativos ao fazer) e, finalmente, de vários usos da linguagem a um só (o objetificante).

Essa tese contém, ao mesmo tempo, uma crítica do conceito tradicional de tolerância e uma proposta de ampliação desse conceito, incluindo sentidos esquecidos ou reprimidos, sem os quais, contudo, não podemos entender as dificuldades da existência humana em comunidade, em particular nos dias de hoje. Mas o ganho esperado desse empreendimento não se limita ao enriquecimento do conceito de tolerância pelo acréscimo dos conceitos de deixar ser e de cuidar do ser - tomados, no sentido heideggeriano, como ocupação com as coisas e preocupação com outros ou, no sentido winnicottiano, como facilitação do amadurecimento pessoal. De acordo com Winnicott e Heidegger, algo muito mais importante está em jogo: a própria preservação da natureza humana tal como definida pelas grandes civilizações mundiais.

Antes de aprofundar esses pontos, gostaria de recordar, por um lado, algumas das principais manifestações da intolerância objetiva e, por outro, colocar em evidência a intolerância implícita nos diferentes conceitos de tolerância objetiva.

 

A intolerância em nome da verdade religiosa

O sentido mais freqüente da palavra “tolerância” foi introduzido no século XVI para designar atitudes que visavam evitar ou diminuir os efeitos da intolerância praticada, nos países cristãos, em nome da verdade revelada. Essa intolerância começou logo no início da era cristã, com o estabelecimento do cânone do Novo Testamento, e recrudesceu, sob várias formas, logo depois de o cristianismo ter se tornado, no século IV, a religião oficial do Império Romano, realizando assim o projeto profético-judaico de construir um império universal submetido a leis reveladas.9 De perseguidos, os cristãos tornaram-se perseguidores. A perseguição cristã dirigia-se não somente aos pagãos - pela proibição de suas práticas religiosas e destruição sistemática de templos de seus deuses ou sua conversão em igrejas -, mas também, e sobretudo, contra os hereges. São Tomás de Aquino defende a pena de morte para os hereges fundamentada na tese de que é mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar dinheiro, que serve para sustentar o corpo. Portanto, se é justo punir com a morte um falsário, tanto mais justo é aplicar a mesma pena ao herege,10 argumento que está nas bases da Inquisição.11 No século XVI, na época das Guerras de Religião, tratava-se, no essencial, de prevenir que os cidadãos dos países cristãos massacrassem uns aos outros por causa das suas crenças e práticas religiosas. O modus vivendi preferido variava de tolerância teológica e eclesiástica até civil e política, sempre dependendo do poder discricionário, meramente subjetivo, de clérigos ou de soberanos.

Esse princípio de tolerância, essencialmente cristão e político, não se estendia forçosamente aos grupos não-cristãos - aos judeus (que, sendo minoritários e na condição de gueto, defendiam a tolerância religiosa) ou aos outros “infiéis”. A colonização devastadora dos países não-europeus era justificada, em parte, pela propaganda fidei.12 Tampouco dizia respeito às formas não-religiosas de vida e de cultura (arte, etc.) nos países cristãos. Nesse ponto, contudo, o judaísmo anterior ao iluminismo não era essencialmente diferente do cristianismo. Todas as religiões de raíz bíblica - o próprio judaísmo, o cristianismo e o islã - continuaram, apoiadas em verdade revelada, intolerantes em relação ao domínio do não-religioso, leigo, em geral.13

 

A tolerância iluminista

Isso era verdadeiro, em particular, em relação à filosofia e à ciência empírica, duas maneiras de pensar provenientes de um outro tronco da cultura ocidental - da tradição grega. Censurava-se, de um modo geral, todo pensamento não submetido à autoridade do versículo ou do dogma, isto é, à verdade revelada. Tal como na Idade Média, a filosofia ou era servente dócil da teologia ou continuava não-tolerada. A ciência da natureza tinha de ser compatível com a visão do mundo das Escrituras; caso contrário, era proibida. Nós esquecemos muito depressa que há pouco tempo, no limiar do grande século XVII, Giordano Bruno foi queimado vivo, Galileu calado, Descartes induzido a fugir de seu país natal - tudo pela Igreja. Spinoza, por sua vez, foi anatematizado pela Sinagoga. Kant e Fichte ainda sofreram censura religiosa.14

Não é por acaso, portanto, que um dos aspectos essenciais do iluminismo foi precisamente a defesa da liberdade do pensamento e da autonomia na determinação do agir, contra toda e qualquer ingerência, sobretudo contra a intolerância praticada pelos representantes das religiões cristãs. A estratégia era a seguinte: substituir, como fundamento das relações com a natureza, a verdade revelada pela verdade racional e, nas relações inter-humanas, a moral estatutária por regras da razão prática. À luz desse novo conceito de moralidade, a concepção meramente política, pragmática, de tolerância religiosa foi substituída pelo dever de tolerância, baseado na razão: o dever de respeitar o direito natural dos seres humanos à liberdade de religião. Esse direito foi logo estendido ao de expressar livremente crenças e opiniões em qualquer matéria, política, filosófica, científica, etc., criando o conceito de domínio público.

O dever de tolerância era justificado de diversas maneiras.15 Uns recorriam à tese de finitude de todas as formas da fé e, mais geralmente, de todas as formas de saber, curvando-se diante do pluralismo insuperável de doutrinas abrangentes, religiosas e não-religiosas (tal como farão, mais recentemente, os pragmatistas americanos, de William James a John Rawls). Outros valiam-se da crítica de todas as crenças, em particular as religiosas, acompanhada de teorias abrangentes da verdade e da falsidade, do bem e do mal, dos direitos e dos deveres, capaz de substituir por uma doutrina do Estado de direito a concepção de mero modus vivendi social.

Kant é o representante exemplar dessa segunda maneira de fundar a tolerância como dever de respeito aos direitos do outro. Em O que é o iluminismo?, de 1784, ele afirma ser o dever de um Príncipe “nada prescrever aos homens em matéria de religião, deixando-lhes nesse assunto plena liberdade”. Um Príncipe esclarecido “descarta até mesmo o nome arrogante de tolerância”,16 livrando, pelos menos no que depende do seu governo, “o gênero humano da minoridade” e deixando “a cada um a liberdade de se servir da sua própria razão em todos os assuntos de consciência” (Kant 1784, pp. 491-2). O ponto de referência deixou de ser a verdade (ou a lei) revelada - expressão da vontade divina, representada na terra por alguma instituição (Sinagoga, Igreja, Mesquita) - e passou a ser a razão humana.

De acordo com o programa crítico de Kant, a razão pura caracteriza-se, em primeiro lugar, pela capacidade de decidir, a priori e com toda a certeza, quais questões teóricas e práticas são solúveis e quais não são. 17 Determinados os limites de seu poder de resolver problemas, a razão poderá evitar cair em obscuridade e contradições, no domínio cognitivo, e em incertezas, no prático, isto é, envolver-se com problemas insolúveis, isto é, sem sentido. Eles não devem ser simplesmente censurados, mas excluídos do domínio da ciência e da práxis humana com base em resultados relativos aos limites da razão humana estabelecidos pela crítica dessa faculdade.18 Em segundo lugar, dentro de seus limites, a razão é capaz, pelo menos em princípio, de achar soluções para todas as questões solúveis, isto é, chegar ao conhecimento da verdade, da falsidade, do bem e do mal. Ou seja, ela possui 1) um programa de pesquisa, determinado a priori, para ampliar, com confiança, o conhecimento objetivo da natureza, tanto puro como empírico, constituindo um sistema de natureza, isto é, um sistema único de conhecimentos verdadeiros, base confiável para o agir técnico-prático, 2) meios apropriados - o imperativo categórico, a forma da lei moral para os seres humanos, além de outros princípios fundamentais da doutrina do direito e da virtude - para elaborar um sistema de liberdade, constituído de leis moral-práticas para o agir moral-prático e 3) uma capacidade de influenciar de modo decisivo, pela combinação de regras técnico-práticas e moral-práticas, o progresso definido como processo de tecnicização e de moralização. Kant baseia essa concepção de um sistema único de filosofia teórico-prático - evitando o subjetivismo e o pluralismo, tanto cognitivo quanto moral - na prova da objetividade dos juízos que fazem parte do sistema de natureza e das regras do sistema de liberdade (cf. Kant 1797a, p. 12).

A validade objetiva dos juízos cognitivos é assegurada pelo princípio, aludido anteriormente, segundo o qual as condições ,a priori de possibilidade da experiência em geral - as intuições puras do tempo e do espaço, e as categorias - são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade dos objetos da experiência. Esse princípio é a base tanto da semântica transcendental kantiana do discurso teórico - isto é, da sua teoria sobre a referência e o significado dos conceitos teóricos e sobre a verdade dos juízos teóricos no domínio de interpretação constituído pela experiência possível - como da sua teoria das provas teóricas.

A validade objetiva de uma máxima prática em geral é garantida, por sua vez, pelos princípios a priori da moral, do direito e da virtude, que legislam sobre as ações livres pelas quais nos influenciamos mutuamente, ou seja, produzimos efeitos causais uns sobre os outros. Essa legislação é a base tanto da semântica a priori kantiana do discurso prático - que se vale do domínio de ações humanamente exeqüíveis para determinar a realidade objetiva prática de conceitos e juízos de caráter acional - como da sua teoria de asseguramento da vigência das leis práticas.19 Em Kant, a objetividade de um juízo sobre um objeto ou de uma regra de ação significa, portanto, a interpretabilidade desse juízo no domínio de objetos da natureza ou no de atos da liberdade, respectivamente, sempre em conformidade com uma regra semântica a priori, universal e necessária.20

Foram imensos os efeitos desse projeto de racionalização dos processos cognitivos e da interação inter-humana sobre a tradição ocidental. No domínio teórico, a determinação crítica dos limites da razão resultou na tese da indecidibilidade das questões relativas à existência e às propriedades de Deus. Com isso, ficou proibido o recurso ao Ente Supremo no estabelecimento de qualquer proposição relativa a questões de fato. No domínio prático-moral, com a tese da autonomia, ficou excluída a possibilidade de Deus ser a fonte de obrigação moral. O que nos obriga a sermos morais é a coerção interna a cada consciência individual, exercida pela própria razão em termos da sua lei, que inspira respeito, no sentido de causar em nós esse sentimento. No domínio prático-jurídico, vale o axioma de que uma ação externa (que influencia o livre arbítrio dos outros em relação ao uso de coisas externas) é reta (recht) se e somente se a sua máxima for compatível com as ações de todos os outros seres humanos em termos de uma lei universal (em conjunto com a tese de que ter direito significa ser autorizado a exercer coação externa). A partir desse axioma e de um certo número de outros princípios a priori, chega-se à conclusão de que a coerção inicial que assegura a vigência da lei natural, inclusive dos direitos humanos, só pode e deve ser exercida, em última instância, pela vontade geral, baseada nas exigências da razão humana devidamente institucionalizada, isto é, pelo Estado fundado em leis que satisfazem a condição de que um povo poderia tê-los imposto a si mesmo.21 Nessa teoria, a vontade de Deus foi substituída, em todas as questões de fundamento, pela vontade geral unificada. O exemplo publicamente mais evidente de uma tendência anti-autoritária foi precisamente a substituição da idéia de que o poder emana de Deus pela tese de que ele decorre da vontade reunida do povo.22

 

A intolerância iluminista: a ditadura da razão

A teoria da tolerância do iluminismo consiste em dizer que só as regras racionais ou universalizáveis devem ser toleradas, tanto na teoria como na prática. As que não satisfazem esse critério devem ser combatidas: os enganos teóricos devem ser expostos à crítica pública e os práticos, submetidos à censura moral (exemplo: desprezo público do mentiroso) ou punidos segundo os termos da lei positiva, previamente compatibilizada com o direito natural. A teoria crítica da verdade e da decidibilidade não permite tolerar, na ciência e na filosofia, certos tipos de discurso (juízos sem realidade objetiva, poesia, mito, etc.) ou de prova (autoridade). O imperativo categórico serve, precisamente, para eliminar máximas empíricas não universalizáveis e submeter o agir humano à “coerção interna, mas não obstante intelectual” (Kant 1788, p. 57). As inclinações naturais podem ser toleradas somente se submetidas ao controle racional, que consiste em “domesticar” (bezähmen, Kant 1793, p. 63). Com isso, deixa de ser tolerada a práxis humana não realizada de acordo com regras técnico-práticas ou moral-práticas universalizáveis.

O lugar atribuído à religião revelada no sistema kantiano ilustra bem os efeitos da domesticação racionalista. Uma parte da religião revelada, o cristianismo, foi reduzida ao conjunto de esquemas simbólicos das regras da moral racional, tendo a função exclusiva de ajudar os menos preparados para o pensamento independente a obedecer às leis da razão. Uma outra parte dessa religião, o judaísmo, foi condenado à “eutanásia”, a morte suave decorrente da sua substituição por uma “religião meramente moral” praticada dentro dos limites da razão prática (1798, p. 81).23 Embora empenhada em ser tolerante, a razão iluminista herdou, portanto, uns dos traços essenciais do seu principal opositor, a religião judaico-cristã, revelando-se ditatorial. Kant deixa claro que a imposição feita pela razão ao homem do imperativo categórico tem o sentido de um “assim quero, assim mando”,24 que não admite contra-argumentação.25

A intolerância do tipo iluminista tem também sentidos menos comuns que, embora não sejam de todo desconhecidos na literatura anterior, só recentemente foram postos em evidência em certas ciências humanas e filosofias contemporâneas. A psicanálise, por exemplo, introduziu o conceito de censura, que ilustra bem a intolerância da razão no interior do psiquismo humano. Embora construído por analogia à intransigência política, o conceito psicanalítico de censura não designa apenas uma influência externa de um agente real sobre outro agente igualmente pertencente à realidade externa, mas também a de um indivíduo sobre si mesmo. Na metapsicologia freudiana, a auto-censura é caracterizada como pressão da instância do superego sobre as forças contidas na instância psíquica chamada id, isto é, como repressão. Um exemplo de repressão é a proibição do incesto, que é um componente constitutivo e, por isso, não-eliminável da vida humana como tal.26 Essa proibição não é decorrência de uma lei moral, pelo contrário, a moralidade é a herança direta da proibição do incesto. Arauto assumido do iluminismo e crítico feroz da censura religiosa do desejo, Freud explicitou, com aprovação, o caráter ditatorial da razão e os benefícios da “coerção” sobre todos os homens exercida pelo “domínio da razão”:

[...] o intelecto - ou, para chamá-lo pelo nome que nos é mais familiar, a razão - é um dos poderes dos quais nos é permitido esperar antes que de outros uma influência unificadora sobre os homens, esses homens que é tão difícil manter unidos e que, portanto, são quase impossíveis de governar. [...] A nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto - o espírito científico, a razão - estabeleça, com o tempo, a ditadura dentro da vida mental. A essência da razão garante que, em tal caso, ela não deixaria de assinar seu devido lugar a moções afetivas dos homens e a tudo o que é determinado por estas. (1933, SA, p. 598)

Como em Kant, o fundamento dessa esperança é a verdade, fonte de um novo tipo de intolerância: “Acontece que a verdade não pode ser tolerante, não admite compromissos nem restrições; a pesquisa considera como de sua alçada todos os campos de atividade humana e deve tornar-se implacavelmente crítica quando um outro poder quiser confiscar para si qualquer uma dessas áreas” (1933, SA, p. 588; os itálicos são meus). A verdade que não pode ser tolerante é a teórica - “a concordância com o mundo externo real” (p. 597) - e a prática, o imperativo categórico de Kant devidamente reinterpretado como a herança intrapsíquica da proibição do incesto, sobre a qual se funda a estrutura psíquica dos indivíduos humanos e a ordem social e moral. É interessante notar que Freud atribui o mal-estar na civilização não somente à moral religiosa - à religião enquanto ilusão -, mas também à razão iluminista. A sua teoria da censura neurotizante trabalha tanto com o conceito de repressão não-esclarecida quanto com o de repressão esclarecida, uma vez que a objetificação como tal, pode ser repressiva ao ser intrusiva ou impossibilitadora da vida humana.

 

A tolerância dos pós-modernos

Algumas exceções à parte, foram sobretudo os neo-kantianos contemporâneos que propuseram princípios de tolerância tanto no campo da verdade racional, quer filosófica quer científica, como no do agir racional, iniciando um modo de pensar que Jean-François Lyotard chamou de pós-moderno.27 Thomas S. Kuhn, que denomina a sua posição “neokantismo pós-darwiniano”, recusará a unicidade do esquema conceitual, admitindo a historicidade das estruturas categorias28 e as mudanças revolucionárias nos programas de pesquisa que não podem ser eliminadas pela argumentação racional, devido, em particular, às falhas incontornáveis na comunicação entre representantes de diferentes paradigmas, resultantes da incomensurabilidade dos paradigmas abraçados. Lyotard (1979) deduziu daí o fim das “grandes narrativas” totalizadoras e sitematizadoras.

No domínio prático, John Rawls, outro autodenominado neokantiano, parte da convicção de que a filosofia - como busca da verdade e da ordem prática (moral, jurídica e política), fundamentada, no sentido sistemático kantiano, em princípios a priori - não pode fornecer uma base funcional e compartilhada para uma concepção política de justiça numa sociedade democrática. Rawls acredita que “um acordo público sobre as questões básicas de filosofia não pode ser obtido sem a violação por parte do Estado das liberdades básicas” (Rawls 1999, p. 395). A fim de fundamentar uma concepção política de justiça, Rawls propõe um princípio de tolerância baseado em duas idéias. A primeira é formulada “em termos de direitos e deveres protegendo a liberdade religiosa, em acordo com uma razoável concepção política de justiça” e a segunda consiste na suposição de uma doutrina razoável abrangente, religiosa ou não-religiosa, “que aceita alguma forma de argumento político para a tolerância” (p. 612). Rawls aplica esse princípio de tolerância à própria filosofia, isto é, às doutrinas filosóficas abrangentes sobre a natureza da verdade, dos valores morais e políticos, do si-mesmo, etc., dizendo que todas elas são compatíveis com uma concepção razoável de justiça (pp. 395 e 591). Sendo assim, o fim político básico, que é a reconciliação dos cidadãos de um Estado democrático de acordo com um princípio de eqüidade, pode ser obtido com base em “idéias intuitivas que nós todos aparentemente compartilhamos mediante a cultura política pública” (p. 435), sem que precisemos resolver as disputas metafísicas ou epistemológicas que se revelarem indecidíveis. “A aplicação do princípio de tolerância à própria filosofia”, diz Rawls, “deixa aos cidadãos a possibilidade de resolver individualmente, para si mesmos, as questões de religião, filosofia e moral, de acordo com o ponto de vista que eles livremente afirmam” (p. 437). O liberalismo político rawlsiano resolve os conflitos gerados pelas verdades religiosa e natural, assim como os que surgem da incompatibilidade entre essas duas verdades, simplesmente desclassificando ambos os tipos de divergências como assuntos particulares que não devem ser levados ao domínio público. Esse domínio não é definido, como no iluminismo kantiano, pelo uso público da razão teórica e prática, mas por um modo de argumentar, fundado na cultura política vigente, “sobre valores políticos compartilhados pelos cidadãos livres e iguais que não passem por cima de doutrinas abrangentes dos cidadãos, à medida em que essas doutrinas são consistentes com uma política democrática” (pp. 614-5).

Ambas as versões neokantianas de tolerância aqui evocadas29 reconhecem explicitamente os limites de sua aplicabilidade, ou seja, o fato de não eliminarem certos bolsões de intolerância. Kuhn não diz como lidar com as dificuldades de convivência institucional e política entre grupos científicos que praticam paradigmas diferentes, nem mesmo com aquelas que surgem entre os praticantes da pesquisa normal e os da pesquisa revolucionária relativamente ao mesmo paradigma. Rawls, por sua vez, admite que os conflitos que se originam do ônus de emitir juízos, quer teóricos quer práticos, sempre existem e limitam a possibilidade de acordo (1999, pp. 612-3). Contudo, nenhum desses dois neokantianos americanos - escolho eles porque as suas posições estão entre as mais conhecidas no espaço público globalizado - ao menos suspeita da persistência de uma forma de intolerância herdada do iluminismo kantiano e considerada por Heidegger e Winnicott como fonte de perigos extremos: a objetificação. As considerações de Kuhn sobre a mudança do esquema conceitual ou do léxico básico não levam em conta a diferença heideggeriana entre a linguagem objetificante e não-objetificante. O princípio de tolerância de Rawls, aplicado à filosofia e a todas as doutrinas abrangentes, previne até mesmo que se coloque a questão de objetificação, pois esta diz respeito, precisamente, à natureza da verdade e à estrutura do si-mesmo, temas que Rawls gostaria que fossem evitados nas discussões levadas ao domínio público nas sociedades democráticas como a norte-americana, e reservados exclusivamente aos espaços particulares.30

 

A intolerância pós-moderna: a objetificação exclusivista

A herança deixada pelo totalitarismo do século XX gera ceticismo, não somente quanto à esperança depositada por iluministas na ditadura de uma razão forte, como também nas estratégias liberais de trabalhar com uma razão minimalista. A primeira forma desse totalitarismo foi o socialismo internacional, baseado na seguinte palavra de ordem de Lenin: o poder dos sovietes e a eletrificação,31 que juntava, portanto, a idéia kantiana de regras técnico-práticas como guias de ação sobre a natureza com uma certa idéia de poder emanando diretamente do povo, representado por
uma classe, visando resgatar a dívida social deixada pela Revolução Francesa em termos de regras social-práticas que teriam permanecido impensadas por Kant. A segunda forma do totalitarismo contemporâneo foi o socialismo nacional (o nacional-socialismo), criado a partir do internacional, tendo como base a idéia de industrialização (regras técnico-práticas), mas substituindo as regras moral-práticas relativas à classe universal, supostamente investida de uma missão universal libertária, por regras para o comportamento de um povo com uma incumbência semelhante, mas privado de seus direitos de soberania nacional, também proclamados pela Revolução Francesa. O traço comum dos dois socialismos foi o recurso à técnica, um poder sem o qual não havia como realizar a justiça social universal nem estabelecer uma nova ordem social, também em escala planetária.

Os sovietes, como forma de democracia direta, são abandonados por completo32 e as virtudes nacionais foram recusadas por aumentar, ao invés de resolver, os conflitos, tanto internos (as minorias) quanto externos (a ordem mundial). Nos dias de hoje, resta apenas um dos componentes centrais do totalitarismo contemporâneo: a técnica, que corresponde ao iluminismo técnico-prático desligado do moral-prático. Existiria na técnica algo de intolerante, de totalitário?

Segundo Heidegger, sim. Desde que foi inserida, conforme mostrei anteriormente, no formato da teoria kantiana das condições de possibilidade da verdade, a técnica tornou-se fonte permanente de intolerância e mesmo de perigos extremos para os seres humanos como tais no seu todo. Ao enunciar essa tese, Heidegger não toma a intolerância apenas no sentido religioso ou político, nem mesmo no de perigo de
guerra mundial travada com armas atômicas.33 A intolerância da qual fala seria mais profunda que a das crenças ou mesmo de desejos egoistas. Ela atingiria a própria possibilidade de as coisas serem coisas, de o mundo ser o mundo e de os seres humanos existirem como seres humanos, podendo, com base nisso, ter crenças e desejos. A constelação intelectual na qual prospera a técnica moderna é a combinação de uma verdade fundamental da metafísica grega (a de que ser significa presença de um ente numa forma) com duas verdades reveladas da tradição judaico-cristã (a criação do mundo e a certeza da salvação dos fiéis). No seminário de Le Thor, de 1969, Heidegger deixa claro essa junção:

Mas que significa “criação” [Schöpfung]? Criação é criação do mundo. Em alemão: Herstellung [produção]. Em grego: poiesis. Os entes são criados [geschaffen]. O que é necessário à produção [Herstellung] dos entes? Devemos pensar aqui no exemplo aristotélico do arquiteto. O arquiteto cria a partir do eidos. Deus, antes da criação, pensa o eidos do mundo, ou seja, a totalidade das categorias. (GA 15, p. 360)

Em suma, desde que Kant fixou a tábua das categorias na filosofia e na ciência moderna, o ser das coisas passa a ser a objetidade do objeto determinada por categorias do entendimento humano, pela representidade. Ente virou sinônimo de coisa dada na intuição e submetida às categorias a fim de poder ser produzida. As coisas objetificadas nesse sentido são administradas pela ciência. Essa administração é intolerante, no sentido específico de aniquilar, de não deixar ser a não ser por encomenda, e de nenhuma outra maneira. Não se afirma que a ciência esteja cega. A ciência vê os entes, e muito bem. Mas não os vê como coisas e sim como constanteações,34 tão-somente como efeitos de causas, como pro-cedências (Her-stand) de um processo de produção, como objetos postos, tomados, por conseguinte, por algo que não são.35 A coisa enquanto coisa permanece oculta. Não essa ou aquela coisa, mas a coisidade (die Dingheit) mesma da coisa não chega a se mostrar, nem a ser falada. O ser, a presença e a essenciação (die Wesung) da coisa enquanto tal é anulada. Nos nossos dias, a presença dos entes passou a ser assunto exclusivo da produção tecnológica no quadro das instituições de indústria e comércio.36

No seu famoso ensaio “Das Ding”,37 Heidegger atribui à ciência moderna, motivada tecnologicamente, a aniquilação da coisa:

No seu domínio, o dos objetos, o saber impositivo da ciência aniquilou coisas enquanto coisas já muito antes da explosão da bomba atômica. A sua explosão é apenas a mais grosseira de todas as grosseiras confirmações da aniquilação da coisa [Vernichtung des Dinges] que vem acontecendo desde há muito tempo: do fato de que a coisa enquanto coisa permanece nula [nichtig]. (Heidegger 1954, p. 168)

A tese da aniquilação da coisa não afirma a destruição de coisas singulares nem de todas as coisas. O que vem sendo aniquilado é a coisa como coisa, a coisidade das coisas: “A coisidade [Dingheit] da coisa permanece oculta, esquecida. A essência da coisa nunca se manifesta, isto é, não recebe a palavra” (id.). Não somente as coisas, mas também e, sobretudo, o homem tornou-se um objeto de produção: “Aqui se anuncia [...] a transformação da biologia em biofísica. Isso significa que o homem pode ser produzido, de acordo com um determinado plano, como qualquer objeto técnico” (GA 15, p. 358).38 Heidegger completa: “O perigo maior é que o homem, fabricando-se a si mesmo, não sinta nenhuma outra necessidade senão aquelas suscitadas pelas exigências da sua auto-fabricação” (p. 359). Em que consiste esse perigo? Ele representa o fim da linguagem natural, do passado e do futuro, da tradição e da ética originária.

No que concerne a este último ponto, na época da técnica, diz Heidegger, a ética originária - a responsabilidade pela verdade do ser e, por conseguinte, pelo deixar ser as coisas como coisas e os outros como outros - é substituída por regras de controle do comportamento.39 Fica esquecido que as indicações iniciais que devem transformar-se em leis e regras para o homem não vêm da razão, mas do ethos originário do homem, do lugar primeiro do seu pensar e fazer, que não é outro que o lugar do desocultamento do ser, da verdade do ser. A perda desse lugar é substituída, nos dias de hoje, pelo planejamento que confere à práxis humana a aparência de uma constância confiável, de acordo com o modelo kantiano de regras técnico-práticas e moral-práticas (incluindo as jurídico-práticas e as social-práticas), universais e necessárias (GA 9, p. 353).40

Aqui está explicitado um conceito não meramente político, mas ontológico, de intolerância, que não é entendida como perseguição ou mesmo eliminação, pelos homens, de outros seres humanos por motivo de suas crenças, raça, etc., mas como processo de aniquilamento, devido a um acontecer que não é controlado pelo homem, da essência do ser humano ou da natureza humana, tal como foi pensada nas civilizações superiores dos últimos 2500 anos.41

Aqui, o psicanalista Winnicott junta-se ao pensador do Ser. Um dos casos de não-tolerância considerado por Winnicott é a da sociedade e da opinião pública com os significados inconscientes das coisas, com o significado de escuro e claro, da noite, do dia ou, então, das regras das mulheres, etc. No domínio do inconsciente, a menstruação das mulheres, por exemplo, “tem a ver com a Lua e a sua ligação com as mulheres e com o modo pelo qual o mundo se desenvolveu”.42 A Lua, nesse contexto, é um ente que possui um modo de ser e os sentidos essencialmente diferentes das propriedades do objeto Lua sobre o qual pousaram os astronautas americanos. Não somente os grandes poetas, nós todos, diz Winnicott, “quando a vemos no céu com seu brilho e esplendor, majestade e mistério, podemos retroceder à época em que elaborávamos tudo o que ela significa, quando sabíamos o que significa sombra e luz” (1986, pp. 207-8; tr. p. 162). Winnicott ensaiou essa “regressão” em alguns versos escritos, sem qualquer pretensão artística, por ocasião do pouso americano na Lua, em julho de 1969:

Eles dizem / que chegaram à Lua / fincaram uma bandeira / bem esticada, é claro / (nenhum deus lá respira) [...] / Mudou alguma coisa? / Será isso a forma do triunfo do homem, / o marco da grandeza do homem / o clímax da civilização / o ponto de crescimento da vida cultural do homem / será esse o momento para erigir um deus / que se satisfaz com os esforços criativos do homem? [...] Não para mim / Esta não é minha Lua / Esta não é o símbolo da pureza fria / Esta não é a senhora das marés / Nem a que governa as fases do corpo da mulher / [...] Minha Lua não tem bandeira / Nenhuma bandeira esticada / A vida da minha Lua se encontra em sua beleza antiga / Sua luz variável / Sua luminiosidade.

A capacidade de criar imaginativamente o sentido das coisas é um traço essencial da natureza humana e, portanto, uma das bases da civilização. Essa base está hoje seriamente ameaçada pela objetificação exacerbada promovida pela técnica. Só se pudermos “voltar à poesia”, diz Winnicott, “e nos recuperar do pouso americano na Lua, antes que aconteça a mesma coisa com a Vênus,43 talvez possamos ter o sentimento que a civilização ainda tem alguma esperança” (1986, p. 208; tr. p. 162).

A oposição entre o sentido inconsciente e o objetificado de coisas tais como a Lua está ligada a dois conceitos de verdade: a verdade poética e a verdade científica. O poeta em cada um de nós - que se vale da fantasia inconsciente - atinge a verdade num único flash; o cientista em nós - que recorre ao intelecto, pratica as regras da lógica e acredita no valor da objetificação - tateia em direção de uma faceta da verdade (1986, p. 172; tr. p. 135). Winnicott compara as duas verdades da seguinte maneira:

A verdade poética tem certas vantagens. Para o indivíduo, a verdade poética oferece satisfações profundas, e na nova expressão de uma velha verdade existe a oportunidade de uma nova experiência criativa, em termos de beleza. É muito difícil, no entanto, usar a verdade poética. Trata-se de uma questão de sentimentos, e nem todos nós sentimos a mesma coisa em relação a um determinado problema. Mediante a verdade científica, que tem um objetivo limitado, esperamos fazer com que as pessoas [...] cheguem a um acordo em certas áreas da vida prática. Na poesia, algo verdadeiro se cristaliza; contudo, para planejar nossa vida precisamos de ciência. Só que a ciência se embaraça com o problema da natureza humana, e tende a perder de vista o ser humano como um todo. (1986, pp. 172-3; tr. pp. 135-6)

Aqui existe, entretanto, um problema, “uma área não resolvida”, como diz Winnicott: a verdade poética e a científica não podem ser integradas numa única verdade. A lógica, por um lado, e os sentimentos e a fantasia inconsciente, por outro, “não se juntam” (1986, p. 202; tr. p. 158). Esses dois lados não se relacionam e um não resolve os problemas do outro. A solução não é abandonar um lado e ficar só com o outro: tem que haver os dois. Por quê? Pelo que foi dito na citação acima: sem a lógica e a objetividade, não sabemos o que fazer com as coisas; sem a fantasia inconsciente, a própria vida não vale mais a pena, pois perde as satisfações profundas fornecidas pela verdade poética. Qual é então a solução? Um conceito ampliado de tolerância.

 

A tolerância ontológica

Heidegger situa a origem da técnica na história, melhor dito, na acontecência do Ser e aguarda o ultrapassamento da técnica de uma virada no modo de auto-desocultamento do Ser, do advento de um outro mundo, antecipado e preparado pela poesia de Hölderlin. Não apenas a ciência moderna, mas toda a filosofia anterior a Heidegger jamais tratou de coisas, e sim de presentidades. Para que os entes possam finalmente manifestar-se como coisas, é preciso, para começar, que o homem abandone a sua condição de produtor. A crítica heideggeriana de Marx tem essa tônica. Nietzsche teria chegado ao niilismo extremo pensando o ser como a vontade de poder; Marx teria assumido a mesma posição pensando o ser como processo de produção.44 Diz Heidegger:

É que o marxismo pensa a partir da produção: a produção social da sociedade (a sociedade se produz a si mesma) e a auto-produção do homem como ser social. Na medida em que pensa assim, o marxismo é precisamente o pensamento de hoje, dominado totalmente pela auto-fabricação do homem e da sociedade. Eu estou inclinado a afirmar, ou melhor, a suspeitar [...] que a auto-fabricação do homem produz o perigo de autodestruição. (GA 15, p. 387)

Além disso, é necessário que aconteça uma outra verdade a priori possibilitadora, um outro lugar para as coisas como tais no seu todo. Que verdade? Que lugar? Uma coisa vem a ser, responde Heidegger, no lugar onde brincam (spielen), espelhando-se uns nos outros, a terra e o céu, os mortais e os divinos - a quadrindade (das Geviert). Onde fica esse lugar? Em canto nenhum. Ele ainda está por se abrir. A tendência para a objetificação resulta da acontecência do ser e da verdade do ser depositada na história da metafísica. Por isso, a defesa contra a intolerância objetificante só pode consistir no ultrapassamento da metafísica e no advento de um mundo pós-metafísico. Mas só é possível ultrapassar a metafísica e ficar disponível para a manifestação da quadrindade se, ao invés de esquecer (como faz a metafísica), nós nos abrirmos à diferença ontológica entre o ser e o ente, e, mas radicalmente ainda, à verdade do ser. Que significa isso? Significa compreender o ser como dádiva (Gabe) infundada da presença, a ser recebida e guardada, não mais como uma objetividade a ser explorada. Se o ser for pensado como favorecimento (Huld), o ente poderá ser experienciado como algo favorecedor em si mesmo, mas que, contudo, temos que preservar e pelo qual somos responsáveis, e não como algo que precisa ser produzido para ser proveitosamente consumido.

É importante notar que esse pensamento pós-metafísico, anunciado e preparado por Heidegger, é diferente do pós-moderno. O primeiro busca explicitamente ultrapassar o exclusivismo da objetificação progressiva do ente no seu todo, o que acontece como história da metafísica, cuja fase terminal é a época da técnica. Em decorrência disso, seria rompida a exclusividade do processo de objetificação dos entes como tais no seu todo e do agir humano; as coisas poderiam ser elas mesmas (não mais submetidas às leis teóricas, do tipo kantiano) e o agir humano seria um deixar ser diferente do produzir (libertado das injunções fundadas em regras técnico-práticas e moral-práticas, também do tipo kantiano). Por outro lado, o pensamento pós-moderno, embora definido por um certo tipo de pluralismo teórico e prático, não põe em questão o sentido exclusivo do ser dos entes no seu todo imposto pela objetificação, tanto no sentido de tecnicização como no sentido de moralização. Por evitar as “grandes questões”, a pós-modernidade torna-se de fato cúmplice do esquecimento do ser.

 

A tolerância constitutiva da maturidade emocional

Embora eu concorde em boa parte com o diagnóstico de Heidegger de que a objetificação, tomada no sentido da tecnicização desenfreada, é aniquiladora num sentido essencialmente novo - ela não é intolerante com este ou aquele grupo humano, mas com a humanidade tal como a conhecemos -, a concepção heideggeriana de tolerância ontológica, centrada, como acabamos de ver, na aceitação da diferença ontológica e na abertura para a verdade do ser que permitiria um deixar ser, um laisser être não mais tecnicizado, parece-me carecer de concretude.45 Além disso, a sua etiologia da intolerância tecnicizante, caracterizada como epocal, decorrente da acontecência do ser, e não como estrutural, devida à condição humana - isto é, ao processo de temporalização dos indivíduos e das sociedades humanas -, parece-se mais com uma versão finitista da história hegeliana do Espírito absoluto do que com uma análise atenciosa do que está acontecendo com o homem ocidental. Daí a importância de Winnicott. Em sua teoria do amadurecimento pessoal vejo a possibilidade de traduzir para a vida concreta as considerações de Heidegger sobre a intolerância da técnica, sem que seja necessário, contudo, passar por uma discussão com Hegel.

Vejamos isso mais de perto.46 A solução de Winnicott para o conflito entre a lógica e a fantasia é contida em um novo conceito de tolerância: a “tolerância das contradições” e “tolerância das tensões” internas à vida. É claro, sempre podemos recorrer à estratégia recomendada por Kant e Freud de tentar descartar as contradições e os conflitos, reduzir todos os problemas a questões solúveis e achar para eles uma solução adequada. Nós podemos, de fato, ceder à tentação de pensar que “somos capazes de resolver qualquer problema refugiando-nos na área cindida do intelecto”. Winnicott ironiza: “Lá em cima, em algum lugar, nós estamos livres de sentimentos; podemos dizer apenas: ‘dialética“; colocamos isto contra aquilo e então podemos resolver qualquer problema que exista”.47. Ocorre que esse recurso ao intelecto cindido, separado da existência psicossomática dos seres humanos, não torna os problemas solúveis. Os caminhos da fantasia não podem ser retificados pela razão tal como pode ser o desejo do incesto. A única posição realmente madura é reconhecer que há problemas racionalmente insolúveis, colocados pelos sentidos das coisas criados pela fantasia inconsciente, problemas “que nos deixam em dúvida sobre tudo, e nos fazem valorizar a dúvida” (id.). Esses problemas não devem ser simplesmente abandonados, como recomendam os modernos que prosseguem a estratégia mini-max de Descartes, expressa nas Regras para a direção do espírito na busca da verdade: de minimizar a incerteza das soluções dos problemas humanos e maximizar o alcance das soluções. A postura que consiste em nos refugiarmos na certeza do racionalmente solúvel e na sanidade psíquica sem lugar para a loucura é, de resto, “terrivelmente entediante”.48 É claro, reconhece Winnicott, que a insanidade também é entediante, mas “existe algo que a maioria das pessoas pode tolerar, até certo ponto - a incerteza” (1986, pp. 202-3; tr. p. 158).49

A tolerância à incerteza, isto é, ao caráter essencialmente enigmático do existir humano e aos limites da razão, é um dos traços essenciais da verdadeira saúde. Esta é sinônimo de maturidade, que significa integração, paradoxalmente, até mesmo daquilo que não pode ser integrado. Em outras palavras, a verdadeira saúde é, precisamente, tolerância: a capacidade de conviver com a diferença, tomada não apenas no sentido cristão-objetivo ou de uma regra teórico-prática, mas no sentido mais amplo, semelhante ao grego, estóico, de constância ou paciência em suportar as dificuldades insuperáveis internas à vida.

Ainda em Kant, permanece vivo esse sentido de tolerância. A cultura da virtude, diz ele, em Princípios metafísicos da doutrina da virtude, “toma como sua divisa o dito estóico: acostuma-te a suportar [ertragen] os infortúnios acidentais da vida e a prescindir de seus prazeres supérfluos (assuesce incommodis et desuesce commoditatis vitae). Trata-se de uma espécie de dieta para manter o ser humano moralmente sadio” (Kant 1797b, § 53). Contudo, diferentemente dos estóicos e de Kant, Winnicott não pensa que a vida humana é incomodada apenas por “infortúnios acidentais”. A vida não é um processo natural que ocorra num cosmo governado pela Razão ou que, pelo menos, se mostre racionalizável, mas um acontecer maturacional que depende, essencialmente, de um ambiente facilitador humano e que é irremediavelmente problemático, como fica demonstrado pela oposição invencível entre a lógica e a fantasia inconsciente. Nesse ponto, Winnicott também diverge de Heidegger: a raiz da tecnicização, o perigo mortal para a civilização, não é o esquecimento do ser que acontece como metafísica, mas um “conflito essencial” que caracteriza, desde o começo, o processo de amadurecimento humano como tal. Descobri, diz Winnicott num fragmento tardio de 1968-9, “um conflito que já deve ser operante em data muito inicial, o conflito entre ser o objeto, que também tem a propriedade de ser, e, por oposição, uma confrontação com o objeto, que envolve uma atividade e um relacionamento objetal respaldados pelo instinto ou impulso”.50 Essa oposição constitui um “dilema básico” no relacionamento de um ser humano com o mundo. No quadro desse dilema, “pode-se ver que bebê = seio é uma questão de ser, não de fazer, enquanto que, em termos de confrontação, o encontro do bebê e do seio envolve o fazer” (id.).51

O dilema em questão é explicitado por Winnicott em termos da sua distinção, mencionada anteriormente, entre o relacionamento com objetos subjetivos, iniciais, e os objetos objetivamente percebidos, posteriores. Inicialmente, o ser humano “relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito” (p. 177; tr. p. 140). Nisso, acrescenta Winnicott, “não há nenhum impulso instintual”.52 A experiência dessa identificação primária abre o caminho para o indivíduo tornar-se um “sujeito objetivo”, isto é, “para a idéia de um si-mesmo e para o sentimento do real que surge do sentimento de possuir identidade” (id.). A idéia de um si-mesmo não é gerada, e o sentimento de ser real não surge “a não ser com base nesse relacionamento no sentido de SER”.53

Uma vez estabelecida a identidade primária e sendo disponível uma certa organização do ego, facilitada pelo ambiente, “o bebê concede ao objeto a qualidade de ser não-eu e separado, e experiencia satisfações do id”, isto é, satisfações instintuais. Ele começa a circular entre os objetos “em termos de um relacionamento ativo ou de um passivo deixar-se relacionar, cada um deles sendo respaldado em instinto” (id.). Esse tipo de relacionamento objetal pressupõe, portanto, a separação entre aquele que faz e aquele a quem algo é feito, e “leva à objetificação” (p. 178; tr. p. 140). Essa nova fase pode ser descrita com as seguintes palavras-chave: o ser humano já é um agente - alguém que faz -, contando com os seus instintos já integrados, busca agir e, para tanto, objetifica os outros (e todas as coisas) e se separa deles, distanciando-se da sua identidade originária com o ambiente, com os outros e com as coisas.

A partir daí, a identificação passa a se basear “em complexos mecanismos mentais, aos quais tem de se dar tempo para que apareçam, se desenvolvam e se estabeleçam como parte do novo dispositivo do bebê” (id.). Entre esses mecanismos está a capacidade de simbolização, tanto verbal como imaginal. Sendo assim, a linguagem adquirida durante o processo de objetificação é, necessariamente, uma linguagem objetificante. Essa linguagem é simplesmente errada quando usada na descrição do relacionamento com objetos subjetivos. Para essa tarefa, exige-se uma linguagem não-objetificante, com outras palavras-chave, cujo sentido é diferente do das palavras-chave da linguagem objetificante.54

O dilema básico do amadurecimento humano é ilustrado por Winnicott mediante uma reinterpretação do dilema de Hamlet. O “to be or not to be” do príncipe dinamarquês expressa, segundo Winnicott, apenas a forma inicial do seu dilema, introduzindo uma alternativa banal ao ser, o não-ser, verbalizada no momento em que o personagem ainda não sabia dessa verdadeira alternativa. Esta aparece somente depois, ao longo do drama, na seguinte forma: “to be or to do”, isto é, como oposição entre ser e fazer, que caracteriza todo ser humano como tal (1971, p. 98; tr. p. 118).55

Por que essa oposição entre ser e fazer se constitui num conflito ou, como diz Winnicott, num “problema humano universal”? Devido à incompatibilidade entre a tendência para a integração por identificação primária, definitória da natureza humana, e a tendência, igualmente presente nessa natureza, para a separação por objetificação destruidora. Conforme disse no início, a separação do objeto subjetivo, pela qual é criada a qualidade de externalidade dos objetos, acontece em conseqüência da “destruição contínua dos objetos subjetivos na fantasia inconsciente”, destruição que precisa ser aceita, isto é, tolerada. Para tanto, o indivíduo precisa de apoio do ambiente, ele precisa que o ambiente também suporte (tolere) a sua destruição como objeto subjetivo, o que só pode acontecer se, paradoxalmente, o ambiente permanecer subjetivo, identificado com o indivíduo. Os objetos externos são, portanto, objetos subjetivos que “sobreviveram” à destruição, ao processo “de serem destruídos por serem [subjetivamente] reais, e de se tornarem [objetivamente] reais por serem destruídos” (1971, p. 106; tr. p. 126 ). A partir de então, os diferentes mecanismos representacionais, notadamente os projetivos, participam dos nossos atos “de notar o que está aí”, mas, enfatiza Winnicott, “eles não são a razão pela qual o objeto está aí” (id.).56 Mais do que o desmame, o que dói ao ser humano é ter que reconhecer que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de experienciar a identidade com o real subjetivo, base inicial da sua capacidade de existir, ele terá que experienciar, para poder continuar existindo, a diferença entre o real subjetivo e objetivo.57
Não havendo meios de ser eliminado, o primeiro pode, contudo, ser esquecido ou, então, aceito e suportado, isto é, tolerado.

Dito de outra maneira, o dilema de Hamlet, na interpretação winnicottiana, é insolú 0vel. Por um lado, é possível dizer que nunca há nem pode haver separação entre o sujeito e o objeto subjetivo. Por outro lado, a separação por destruição parece de fato acontecer, para o proveito de ambos, na grande maioria dos casos. Como é possível pensar isso? Como um paradoxo, responde Winnicott, que “tem que ser tolerado” (1971,
p. 127; tr. p. 150). “Eu estou propondo”, diz Winnicott num outro texto, “a tese de que existe um estágio no desenvolvimento dos seres humanos que precede a objetividade e a perceptibilidade. No início teórico,58 pode-se dizer que o bebê vive num mundo subjetivo ou conceptivo.59 [...] Esse hiato concepção-percepção fornece amplo material de estudo. Postulo o paradoxo essencial, que deve ser aceito e que não está aí para ser resolvido” (1988a, p. 177; tr. p. 203; os itálicos são meus).60

Esse paradoxo tem que ser tolerado pelos dois lados envolvidos, o indivíduo que amadurece e o ambiente - seja ele a mãe que facilita o amadurecimento normal ou o analista que ajuda o indivíduo que não cresceu normalmente a amadurecer. O indivíduo precisa poder aceitar essa destrutividade como constitutiva do seu relacionamento objetal. Caso contrário, ele não conseguirá crescer. O ambiente precisa aceitar ser destruído e, ao mesmo tempo, permanecer como o objeto subjetivo do indivíduo, sem olhar para o processo de separação como um observador externo nem explicar esse processo como efeito causal do mundo externo. Caso contrário, o ambiente não poderá fazer o seu papel de facilitação. O dever de aceitar esse paradoxo não se aplica apenas às mães suficientemente boas ou aos analistas, mas vale para todos as relacionamentos inter-humanos nos quais os parceiros podem confiar uns nos outros, ou seja, em relacionamentos que não se reduzem ao exercício de influência causal mútua, quer intelectual quer prática, entre os agentes.

 

Observações finais: as lições tiradas de Heidegger e Winnicott

Tal como Heidegger, Winnicott descobriu novas formas de intolerância, que não podem ser definidas em termos teóricos ou éticos objetificantes, mas como efeitos da objetificação. Além disso, ele tem um diagnóstico sobre a objetificação tecnicizante parecido com o de Heidegger: trata-se de um perigo grave para a civilização tal como a conhecemos. Mas Winnicott trabalha com um conceito de objetificação diferente do de
Heidegger. Para Winnicott, a objetificação é, primordial e essencialmente, um processo de destruição do mundo subjetivo inicial, decorrente de um conflito constitutivo da existência humana. Só em seguida, e secundariamente, a objetificação por destruição se torna objetificação por representação mental (percepção, introjeção e projeção). Em Heidegger, a objetificação é de início, e essencialmente, o efeito da representação, entendida seja como um modo de ser do homem, seja como uma resultado da acontecência do ser. Winnicott situa a origem do perigo da objetificação no processo de amadurecimento - a história individual e social -, não na acontecência do ser depositada na história da metafísica. Nesse ponto ele é muito mais próximo do primeiro do que do segundo Heidegger. Como vimos, ele busca a defesa contra a intolerância objetificante na maturidade (saúde individual e social a ser conquistada) e não na espera piedosa do advento de um mundo pós-metafísico. Se a origem da objetificação invasiva está nas dificuldades estruturais internas da vida humana, que são decorrentes do nosso modo de inserção no mundo, seus efeitos precisam ser combatidos por uma tolerância também concebida em termos de modos de lidar com o mundo. Pela mesma razão, Winnicott não espera “ultrapassar” a lógica ou a técnica. O ter-que-fazer, no sentido de ter que trabalhar e produzir, é visto como um elemento estrutural do existir humano e da vida social, não como um momento epocal, um episódio da acontecência do ser. Por isso, ele procura, ao invés do ultrapassamento, a integração, mesmo que esta consista apenas em um tipo de tolerância paradoxal.

Quanto ao primeiro Heidegger, ele pensa o surgimento do sentido do ser como presentidade objetificável como uma modificação do sentido mais originário dos entes intramundanos, a instrumentalidade. Entretanto, aqui também existem diferenças importantes a serem notadas. O processo winnicottiano de amadurecimento diz respeito ao “animal humano”, animal que, além de ter o problema de vir a se sentir real e de continuar existindo, também precisa integrar as suas funções corpóreas inatas. A existência humana é essencialmente psicossomática e, por isso, o amadurecimento também sempre diz respeito à relação psique-soma. Em Heidegger, a modificação do sentido do ser dos entes intramundanos é um acontecer no ser humano, caracterizado exclusivamente como Dasein: como ser-o-aí, como relação ao ser. Por isso, a animalidade pode ser incluída nessa relação tão-somente por privação (cf. Heidegger 1927, § 10). Essa me parece ser a principal razão pela qual aquilo que Heidegger veio a dizer, em diferentes ocasiões, sobre a corporeidade, está muito aquém do que precisamos para compreender o lado somático da psique-soma. A diferença entre Winnicott e Heidegger em relação à animalidade humana pode ser ilustrada pela maneira como falam em deuses. Nenhum dos dois ficou com o Deus dos teólogos, dos filósofos e dos tecnólogos: um engenheiro criativo.61 Heidegger se concentra na mera presença de um Deus desconhecido (“o dizer poético é um [...] puro deixar-se dizer a presença de Deus”). Por sua vez, Winnicott preocupa-se com a possibilidade de os deuses respirarem numa Lua totalmente objetificada (“no gods breathe there”) como se se tratasse de animais divinos, mas com as necessidades básicas semelhantes às do animal humano.

Contudo, a maior divergência entre Winnicott e Heidegger diz respeito à própria experiência inicial do ser. Em Winnicott, essa experiência, primeira de todas e fundante, constitui-se essencialmente na identificação com um outro ser humano, subjetivamente real; portanto, sempre numa relação inter-humana originária dual. Essa experiência é preservada mesmo depois da separação por destruição desse outro ser humano: este se torna um objeto externo, mas, paradoxalmente, fica preservado, com a sua própria colaboração, como objeto e ambiente humano subjetivo. Em Heidegger, a experiência do ser é essencialmente solitária. Em Ser e tempo, ela é vivida com toda a radicalidade só na disposição afetiva da angústia, na qual todas as relações perdem o sentido, inclusive as inter-humanas. Na sua segunda fase, Heidegger pensará a experiência do ser como a da diferença ontológica entre o ser e os entes como tais no seu todo, não mediatizada por outros seres humanos, e, mais radicalmente ainda, como abertura à verdade do ser, como inserção no lugar da manifestação do ser, que é um ambiente essencialmente não-humano.62

Pareceu-me interessante apresentar e contrastar as teses de Heidegger e Winnicott relacionadas com o tema da intolerância. Creio que essas teses, que, para falar como Rawls, não fazem parte da “cultura política pública” nem são facilmente assimiláveis à “razão pública” dos nossos dias, podem, assim mesmo, servir de indicações63 de aspectos significativos, embora ainda pouco explorados, do peso que temos que suportar nesta época de objetificação desrealizadora em que vivemos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: loparicz@uol.com.br

Recebido em 3 de março de 2007.
Aprovado em 25 de junho de 2007.

 

 

* Texto revisto e modificado da palestra “Dizendo a verdade podemos ser intolerantes?”, proferida no XV Congresso Inter-Americano de Filosofia, Lima (Peru), 12-16/01/2004.
1 Em latim, tolerantia designa constância em suportar uma dificuldade, em particular, a dor. O verbo tolerare significa suportar, não se curvar, agüentar, resistir, referindo-se à dor, peso, fome, etc.
2Mais recentemente, a linguagem objetificante foi explicitada de modo exemplar na concepção técnico-cientificista da linguagem de Rudolf Carnap (Heidegger 1976, p. 70).
3Enunciados “lógicos”, na terminologia de Kant.
4Uma reconstrução detalhada da teoria do amadurecimento de Winnicott encontra-se em Dias 2003.
5Precisa-se até mesmo da capacidade de pensar alucinatoriamente. Veja, sobre esse ponto, Winnicott 1989, p. 157; tr. p. 123.
6Para um apontamento nesse sentido, cf. Winnicott 1977, p. 30; tr. p. 40.
7Cf. Winnicott 1988b, p. 7; tr. p. 4.
8Não me limitarei, portanto, à análise do uso comum dos termos “tolerância” e “verdade” nessa ou naquela linguagem comum dos nossos dias. Creio que tal análise, por lúcida que possa ser, possui defeitos graves, por deixar de lado os usos esquecidos, e mesmo reprimidos, negligenciando as diferenças de uso que possam existir nas culturas do Ocidente e do Oriente, do Norte e do Sul, além de reduzir as dimensões teóricas de sentido desses usos.
9No Ocidente cristão, antes do surgimento da tolerância religiosa (política), o termo “tolerância” tinha o sentido jurídico: o ato de suportar, sem protestos, a infração de uma lei, positiva ou eclesiástica, um direito ou um costume. Esse sentido é próximo de indiferença, polidez e mesmo permissividade. A “casa de tolerância” é uma expressão que pertence a este campo semântico.
10Cf. Summa theologica, II. 2, qu. 11, art. 3.
11Esse tipo de argumento é de difícil compreensão fora do âmbito cultural do Ocidente. Nos países orientais, em particular no Japão, em que predominam religiões com raízes não-bíblicas, a intolerância religiosa e, em particular, guerras de religião são praticamente desconhecidas como fenômeno social.
12Mill (1962, pp. 157-8) descreve um interessante exemplo de intolerância com religiões não-cristãs manifestada em 1857 por um alto funcionário do governo inglês.
13Nos nossos dias, esse problema tende a tornar-se um dos desafios centrais da civilização mundial.
14Estou deixando de lado, por exemplo, os restos da inquisição religiosa na Espanha, em suas colônias e em Portugal, que se fizeram sentir até o século XVIII.
15 aceitação de divergências intelectuais - a tolerância teórica - exige uma atitude não-dogmática. Os fundamentos possíveis para essa atitude são os mais diversos, variando desde ceticismo, e mesmo niilismo teórico, até as teorias da racionalidade forte, que se atribuem a capacidade de oferecer fundamentos últimos.
16No original: “den hochmütigen Namen der Toleranz”.
17Cf. Loparic 2005, Introdução e cap. 2.
18Sobre a diferença entre a censura e a crítica, cf. Kant 1786, pp. 788 e 792.
19Esse procedimento nem sempre é uma dedução. Assim, por exemplo, a validade objetiva da lei moral para os seres humanos (o imperativo categórico) pode ser mostrada, mas não “deduzida” (cf. Loparic 1999a).
20Para um estudo detalhado sobre a semântica transcendental de Kant, cf. Loparic 2005.
21 O problema de pôr fim às guerras de religião foi generalizado, mais tarde, como tarefa de acabar com todas as guerras e estabelecer a paz perpétua nos e entre os Estados nacionais. Abbé de Saint-Pierre, um representante do clero, foi um dos primeiros defensores dessa idéia. Rousseau a acolheu, mas ela amadureceu mesmo só na obra do Kant tardio. A paz, o bem supremo político, é garantida pela união entre a liberdade (a doutrina do direito) e a natureza humana (tendência do gênero humano ao progresso para o melhor), não pelas intenções da natureza nem pela providência.
22Apesar da poderosa reação antiiluminista do idealismo alemão, a campanha do saber secular contra a religião continuou com a crítica aberta do cristianismo (Strauss), da moral e da religião (Nietzsche, Marx e Freud), paralela aos desenvolvimentos revolucionários na biologia (Darwin). O primeiro Heidegger está no fim desta série, tentando pensar o ser sem deus, opondo o Logos de Heráclito ao de João Evangelista e declarando a filosofia cristã ser um ferro de madeira. Apesar de todos esses desenvolvimentos, seria prematuro cantar a vitória definitiva do saber secular sobre o religioso. O conflito entre os dois, que marcou toda a filosofia moderna, permanece até os nossos dias. O ressurgimento recente do fundamentalismo em todas as religiões de raiz bíblica faz pensar, pelo contrário, que, pelo menos localmente - nos Estados Unidos, por exemplo, a democracia aceita que posições políticas sejam fundadas em versículo, contrariando o direito internacional, a Carta das Nações Unidas ou as decisões dessa instituição -, assistimos ao retorno triunfante da verdade revelada em detrimento às regras racionais abrangentes para a verdade e a moralidade. A guerra travada atualmente contra o terrorismo é justificada, em boa parte, por uma estilização tipicamente ocidental-religiosa da oposição entre o bem e o mal, ponto que mereceria, de resto, ser analisado à luz da teoria psicanalítica mais recente. Consideram-se, a esse respeito, as teses de Winnicott sobre os perseguidores idealizados, a busca do perigo pelos homens, o valor psíquico da guerra, a personalidade ditatorial, a atitude anti-social, etc. (Winnicott 1986, parte 3).
23A intolerância de Rousseau em relação à religião não-oficial era expressa em termos muito mais virulentos (cf. Rousseau 1762, livro 1, cap. 7).
24Trata-se, diz Kant, de uma imposição da razão do tipo “sic volo, sic iubeo”, análoga ao modo de comandar dos governantes tiranos (1788, p. 56).
25Adorno e Horkheimer tentaram explicar isso em Dialética do esclarecimento (1947). O iluminismo de inspiração kantiana de Habermas, o principal representante da segunda geração da Escola de Frankfurt, aproxima-se, pelo contrário, do terror prático (cf. Loparic 1990). Antes de Adorno e Horkheimer, Heidegger deu vários passos na mesma direção. A ciência e a filosofia modernas definem-se, diz Heidegger, como um saber absolutamente certo, incorporando uma herança do cristianismo: a idéia da certeza de salvação. O saber filosófico, a verdade e a moralidade definidas em termos dos poderes da razão tornaram-se a medida do que há e do que deve ser.
26Há, contudo, um complicador na teoria freudiana. Assim como a tolerância, a verdade na psicanálise não é definida no domínio da realidade objetiva externa, mas no da realidade psíquica, subjetiva. O pai de uma criança na fase edípica pode não ser repressor objetivamente falando, mas a criança pode não obstante sentir-se reprimida por ele. Além disso, a mudança objetiva para a tolerância não assegura o fim da repressão. Por outro lado, a intolerância tampouco precisa ter efeitos repressivos diretos. Ao se falar do pai em psicanálise, é essencial, portanto, distinguir entre o pai dado na realidade material e o pai dado na realidade psíquica (fantasia). Sendo assim, no contexto de um tratamento psicanalítico freudiano, a relação entre a realidade (e a verdade) e a tolerância muda de natureza. A “desrepressão” só ocorre mediante uma fala sobre o pai repressor interno, ou seja, uma verbalização que não pode, em princípio, ser controlada intersubjetivamente, verificando-se somente pelos efeitos no comportamento do indivíduo, os quais, contudo, permanecem dependentes da realidade psíquica. Por isso, o conceito psicanalítico de tolerância não pode ser definido única e exclusivamente como uma regra para o comportamento externo, por exemplo, regras para a prática de atos sexuais. Uma sociedade pode ser sexualmente repressiva, no sentido psicanalítico, precisamente por ser declaradamente permissiva. Aliás, o objeto da intolerância nunca é, primordialmente, a ação ou qualquer tipo de relação efetiva com um objeto externo real, mas o desejo do objeto, real ou imaginário.
27Entre as exceções está K. R. Popper, que tentou atualizar a idéia de Kant de caracterizar a ciência por um único e universal método de pesquisa.
28Kuhn escreve: “Tal com as categorias kantianas, o léxico supre as precondições da experiência possível. Só que as categorias lexicais, diferentemente das suas predecessoras kantianas, podem mudar e de fato mudam, tanto com a passagem do tempo como devido à sua transferência de uma comunidade à outra” (2000, p. 104).
29Para os efeitos desta exposição, trato Rawls como neokantiano, embora não esteja claro para mim o porquê de Rawls insistir em chamar a sua posição, construída de maneira apenas analógica à de Kant, de “construtivismo kantiano”.
30Caberia perguntar, tendo em vista essa posição, se as universidades financiadas com dinheiro público deveriam continuar mantendo cursos de filosofia, de teologia e de ética.
31Nos anos 30, Heidegger gostava de citar essa frase de Lenin. Cf. GA 90, pp. 40, 230, 380 e 393.
32Eles foram abandonados já no início da Revolução de Outubro e substituídos por uma forma de poder mais eficiente: o centralismo democrático controlado pela vanguarda do proletariado.
33Heidegger afirmará que as guerras, mesmo a Segunda Guerra Mundial, não mudam nada na questão dos “perigos extremos”.
34“Constanteação” é a minha tradução do termo “Bestand” de Heidegger.
35Sobre este ponto, cf. GA 15, p. 374.
36Wittgenstein refere-se a esse mesmo fenômeno de ocultamento a priori de certos sentidos do ser quando diz que qualquer fato, por mais extraordinário que seja, nunca poderá ser tratado pela ciência como um milagre. Isso não quer dizer que a ciência provou que não há milagres, mas tão-somente que o modo científico de ver os fatos não é o de vê-los como milagres (cf. Wittgenstein 1965).
37Das Ding” (“A coisa”) é a primeira de quatro palestras proferidas por Heidegger em Bremen, em 1949, sob o título geral “Einblick in das was ist” (“Um olhar sobre o que há”). Essas palestras foram publicadas conjuntamente pela primeira vez no volume 79 da Gesamtausgabe (1994). Usarei uma versão ligeiramente ampliada da mesma palestra, publicada em Heidegger 1954, pp. 163-81. O tema tratado neste e nos próximos parágrafos foi desenvolvido em Loparic 2005a e 2005c.
38Essa tese é discutida por Heidegger desde pelo menos 1939, nas suas criticas ao biologismo socialista nacional.
39Tratei desse tema em Loparic 2003 e 2004.
40Nesse sentido, o ser como processo de produção possibilita novas configurações de poder e condiciona novos tipos de relações políticas. Deve-se meditar, diz Heidegger, “sobre uma nova forma de nacionalismo fundado no poderio técnico e já não (por exemplo) em caracteres étnicos” (id.). Essas palavras, ditas em 1969, antecipam com bastante propriedade a idéia norte-americana, que começou a ser divulgada nos anos 90, de que os EUA são o império do bem, destinados a exercer a hegemônica mundial. O ponto mais notável antevisto por Heidegger é a pretensão à hegemonia fundamentada essencialmente em supremacia tecnológica. É verdade que argumentos a favor da democracia, direitos humanos, justiça social, paz e segurança mundial são também usados. Mas eles são anulados pelo desrespeito gritante desses mesmos valores por parte dos EUA (considere-se os campos de torturas de Abu Ghraib e Guantanamo). O fundamento da hegemonia desse país - estar em condições (assim planejam os tecnológicos americanos) de ditar ao mundo as regras básicas de pensamento e de conduta - não é um nacionalismo ou um internacionalismo do tipo tradicional, mas essencialmente o poderio militar e econômico, ajudado pela propaganda (a cargo da mídia). O poder do nacionalismo tecnológico americano vai aumentar ou diminuir à medida que aumenta ou diminui a diferença entre os EUA e o resto do mundo na produção dessa forma de saber objetificante. Análises desse tipo levam-me a concordar, no essencial, com a sugestão de Sloterdijk, de ser possível falar em uma esquerda heideggeriana (1983, v. 1, pp. 369-96).
41Nada é mais natural aqui que perguntar se é possível deter a tecnologia a tempo. Segundo Heidegger isso é impossível, pois o problema não é o de estabelecer um limite para o saber objetificante, nem mesmo despertar a questão do ser em escala mundial. Nos EUA, por exemplo, o “interesse” (essa palavra é significativa) pela questão do ser serve, sobretudo, para “disfarçar, ao olhar dos interessados, a realidade da América: conluio entre a indústria e os militares (o desenvolvimento econômico e a instrumentação [Rüstung] que este requer)” (GA 9, p. 353).
42De acordo com Winnicott, os homens também podem experienciar o significado das regras, por exemplo, em sonhos.
43Winnicott talvez queira sugerir que, depois da objetificação da menstruação, seguirá a da sexualidade, o que é hoje uma perspectiva bastante realista.
44Sobre esse ponto, cf. os seminários de 1969 e 1973 (GA 15, pp. 353 e 393).
45O próprio Heidegger não estava muito seguro da sua proposta, como se depreende das seguintes palavras sobre o poeta Hebel, seu amigo de casa: “Atualmente nós perambulamos pela casa do mundo na qual falta o amigo de casa, aquele que, do mesmo modo e com a mesma força, pende tanto para o mundo edificado e explorado tecnicamente quanto para o mundo como casa de um morar originário. Falta aquele amigo de casa, capaz de reabrigar o caráter mensurável e técnico da natureza no mistério aberto de uma naturalidade da natureza novamente experienciada” (Heidegger 1957, p. 31).
46No que segue, a relação entre a psicanálise de Winnicott e o pensamento do ser de Heidegger não será submetida a uma análise conceitual, tarefa que excederia o quadro do presente trabalho, mas apenas ilustrada. Em particular, deixarei em aberto a questão de saber até que ponto as formas de intolerância detectadas por Winnicott podem ser tomadas como exemplos ônticos da intolerância ontológica diagnosticada por Heidegger.
47Essa caricatura da dialética pode ser usada como ilustração da crítica de Heidegger à esperança que Hegel depositava em sua Ciência da Lógica, entendida como exposição do autodesenvolvimento do Absoluto.
48Winnicott resume a sua posição ao dizer: “Estou pedindo que conservemos o lado fantasioso, emocional, da[s] coisa[s], ainda que sejamos indulgentes ao extremo com a lógica, porque eu acredito absolutamente na objetividade, em olhar para as coisas de um modo direto e em fazer isso ou aquilo a respeito delas; mas não em tornar as coisas tediosas pelo esquecimento da fantasia inconsciente” (1986, p. 205; tr. p. 160).
49Aqui é o lugar oportuno para lembrar a pergunta de Heidegger se o homem contemporâneo como tal não se tornou entediante (langweilig) para si mesmo (Heidegger 1983, § 37), bem como a sua tese de que os problemas verdadeiramente importantes, como a do sentido do ser, não têm respostas decidíveis no sentido kantiano.
50Winnicott 1989, p. 191; tr. p. 149; tradução modificada; os itálicos são meus.
51Uma abordagem anterior do mesmo tema encontra-se em Winnicott 1964, pp. 74 e 127-8; tr. pp. 82 e 144-5. Eu mesmo tratei desse assunto em Loparic 2005b.
52No original: “instinct or drive”.
53 No original: “relating in the sense of BEING”.
54Uma formulação semelhante, com certos adendos importantes, encontra-se em Winnicott 1989, p. 191; tr. p. 150.
55O Hamlet winnicottiano não é, portanto, o mesmo Hamlet freudiano: o primeiro padece de problemas maturacionais, o segundo, de problemas sexuais. Como alguns dos problemas maturacionais de Hamlet e de todos nós dizem respeito ao sentido
do existir humano e da realidade, abre-se a perspectiva de uma leitura do processo do amadurecimento de Winnicott à luz da analítica existencial (ontologia fundamental) de Heidegger. Apontamentos que vão nessa direção encontram-se em Loparic 1999b.
56A tese segundo a qual a destruição pertence ao relacionamento objetal é reafirmada em toda obra tardia de Winnicott, por exemplo, em 1986, p. 206; tr. p. 161. Essa tese deve ser aproximada da afirmação de que o amor instintual primitivo não é distinguível do impulso destrutivo (1988a, p. 79; tr. p. 99) e do “axioma”: o que é bom está sempre sendo destruído (1986, p. 262; tr. p. 207).
57O contato com o real é uma ilusão, fato que só incomoda, diz Winnicott, quando estamos cansados ou quando a ilusão não foi realmente constituída.
58No original: “theoretical beginning”. A expressão é construída analogamente a “theoretical first feed”, primeira mamada teórica, isto é, a primeira mamada tal como conceitualizada na teoria winnicottiana do estágio inicial do processo de amadurecimento.
59No original: “conceptual”. Obviamente, não de trata de conceitualização em termos de conceitos, enquanto construtos mentais cognitivos, mas em concepção tomada como geração ou criação de sentido (cf. Winnicott 1988a, parte 4, cap. 1). Winnicott costuma aproximar a concepção nesse sentido primário (conceiving of) da concepção no sentido procriativo (being conceived) (1986, p. 48; tr. p. 38). Acrescenta-se a isso o fato de os primeiros sentidos da palavra “conceber” serem “ficar grávida” e “gerar”.
60Da mesma forma, deve ser aceito, isto é, tolerado e deixado não resolvido, um outro paradoxo, que faz parte da teoria winnicottiana dos objetos transicionais, típicos da fase que se segue imediatamente à fase inicial. Ele é gerado pela questão de saber se o objeto transicional (objeto que faz as vezes da temporariamente mãe ausente) foi concebido, gerado e criado, pela criança ou, pelo contrário, apresentado à criança a partir do exterior e apenas encontrado por ela. Numa relação satisfatória mãe-bebê e no tratamento psicanalítico de pacientes regredidos às fases muito primitivas, nenhuma decisão sobre essa questão é esperada; ela nem mesmo deve ser formulada (1971, p. 15; tr. p. 28). Aqui temos “um paradoxo que precisa ser aceito, tolerado e não solucionado” (ibid., p. 62; tr. p. 79). O conceito winnicottiano de tolerância aplica-se, em geral, à aceitação da vida como difícil em si mesma, incluindo a responsabilidade pessoal pelos efeitos dos seus atos. Ele se aplica também à sociedade, sobretudo à sua capacidade de suportar falhas individuais, por exemplo, atos de violência de indivíduos “deprivados” (1984, pp. 222 e 243; tr. pp. 227 e 249).
61Obviamente, as referências aos deuses em Heidegger ou em Winnicott não devem ser interpretadas como uma recaída numa religiosidade relacionada às Igrejas cristãs estabelecidas.
62 Cf., por exemplo, GA 15, p. 390.
63 Da tolerância no sentido não-objetivo só é possível falar usando a linguagem de modo não-objetificante e, de acordo com o que foi dito anteriormente, tal uso de linguagem não determina, mas apenas indica ou nomeia, ao mesmo tempo que convida para um diálogo participativo, mutativo.