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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

A construção do eu de crianças cegas congênitas

 

The ego development of children with cogenital blindness

 

 

Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

este artigo propõe-se a refletir sobre a construção do Eu de crianças com cegueira congênita a partir da teoria winnicottiana do amadurecimento. Para Winnicott, a natureza humana é uma questão de psique-soma em constante interação; o ser humano é essencialmente psicossomático, sendo o corpo o primeiro a chegar e a elaboração imaginativa das funções corpóreas o elemento constitutivo e enriquecedor da vida psíquica. Essa concepção da natureza humana parece ser a mais esclarecedora para a compreensão do desenvolvimento e da construção do eu das crianças com cegueira congênita; crianças que chegam ao mundo com uma constituição orgânica significativamente diferente, que as conduzem por caminhos peculiares em seu processo de percepção e amadurecimento. Muitas dificuldades são apontadas na descrição do desenvolvimento dessas crianças: passividade de ego, ausência de interesse por objetos, atrasos na aquisição de capacidades, desinteresse por brincadeiras e verbalismo. Comportamentos considerados semelhantes aos de crianças autistas. Acreditamos que, a partir da teoria winnicottiana do desenvolvimento, muitas dessas vicissitudes podem ser compreendidas e alguns procedimentos terapêuticos indicados.

Palavras-chaves: Construção do eu; Cegueira congênita; Teoria do amadurecimento; Psicanálise de Winnicott.


ABSTRACT

This article proposes a reflection upon the ego development of children with congenital blindness through maturation theory. For Winnicott the human nature is a matter of psyche-some in constant interaction, the human being is essentially psychosomatic, in which the body is the first to arrive and the imaginative elaboration of the body functions are the elements that constitute and enrich the psychic life. This conception of the human nature seems to be the most clarifying for the comprehension of the development and the self constitution of the children with congenital blindness; children who arrive into the world with a significantly different organic constitution, which conducts them through a peculiar path in their process of perception and maturity. Many difficulties are pointed out on the description of the development of these children: passivity of the ego, absence of interest for objects, delay on the acquisition of abilities, disinterest for children’s play, verbalism. Behaviors similar to those of autistic children. We believe that through Winnicott’s developmental theory a lot of these vicissitudes can be comprehended and some therapeutic procedures can be indicated.

Keywords: Ego Development; Congenitally blind children; Theory of Maturation; Psychoanalyze of Winnicott.


 

 

O desenvolvimento emocional de crianças cegas congênitas é um tema que tem interessado a especialistas de diferentes correntes teóricas. A observação dessas crianças tem mostrado que elas estão expostas a grandes vicissitudes em seu processo de desenvolvimento.

Em algumas ocasiões, verificam-se condições atípicas, consideradas por muitos como atrasos no desenvolvimento e aparentando distúrbios graves já em bebês cegos. Além disso, pode-se também observar um pequeno número de crianças com cegueira congênita que, a despeito da ausência de visão, mostram amadurecimento pessoal adequado à sua idade cronológica, com alto nível de habilidades e competências.

Há, portanto, entre as crianças com cegueira congênita, uma grande variedade de possibilidades de desenvolvimento. Assim, questões básicas e fundamentais colocam-se: Qual a natureza e qual a causa das diferenças observadas no comportamento dessas crianças? Por que parece ser tão difícil para elas um tranqüilo processo de desenvolvimento, que possa conduzi-las a um amadurecimento pessoal de acordo com sua idade cronológica? Quais as condições peculiares a que essas crianças estão expostas que lhes trazem dificuldades e percalços nesse caminho?

Estudos e pesquisas sobre o desenvolvimento dessas crianças são de grande importância. Compreender como elas constroem seu ego e se relacionam com o mundo externo parece ser uma questão enriquecedora, não só por oferecer instrumentos que venham a facilitar o desenvolvimento de grupo de crianças, como também por nos levar a ricas reflexões que podem trazer novas luzes sobre o processo do desenvolvimento e amadurecimento do ser humano.

Uma análise dos estudos sobre o desenvolvimento de crianças com cegueira congênita mostra-nos que eles têm sido realizados sob dois enfoques.

Por um lado, uma aproximação à questão a partir da Psicologia do Desenvolvimento que podemos denominar clássica. São estudos na maioria das vezes quantitativos e comparativos, nos quais se busca assinalar as diferenças de desenvolvimento encontradas em crianças cegas. Nesses, pode-se ver a marca do modelo médico, no qual a cegueira é vista como déficit e a criança cega como deficiente. A perda visual é, com freqüência, considerada como a causa única das dificuldades e das diferenças que ocorrem no comportamento entre os dois grupos.

Como exemplo, pode-se apontar o trabalho de Janson (1993), que, ao relatar um estudo comparativo entre crianças cegas e com visão normal, assinala que as crianças cegas apresentaram comportamentos altamente desviantes e semelhantes ao das crianças com transtornos invasivos do desenvolvimento (TID). Relata entre as crianças cegas comportamentos estereotipados, ecolalia, atraso motor, baixa manutenção de atenção e freqüentes ações de auto-estimulação. Embora afirme que esses sintomas não indiquem, necessariamente, tal distúrbio, mostra-nos sua crença de que a condição visual é a causa dessa sintomatologia. Nesse enfoque, um atraso ou perturbação no desenvolvimento dessas crianças será sempre esperado e o procedimento de intervenção indicado é o treinamento de funções e exercícios físicos que possam vir a minimizar as conseqüências da perda visual.

Por outro lado, temos um outro enfoque, que podemos denominar modelo social, representado pela Psicologia Comportamental, no qual os prejuízos causados pelas condições ambientais são a causa do atraso de desenvolvimento observado em crianças com cegueira congênita. Para os profissionais que se utilizam desse referencial, as crianças cegas são feitas, não nascidas, no sentido de que são socializadas pelo “sistema da cegueira” (Scott, 1969), ou seja, os grupos sociais impõem padrões e papéis sociais que resultam em características identificáveis à cegueira. Nesses casos, os procedimentos de intervenção indicados teriam como objetivo principal propor modificações nas condições ambientais dessas crianças.

Entre esses dois modelos encontra-se a psicanálise, com sua compreensão do ser humano como um ser de relação. Muitos psicanalistas procuraram compreender o desenvolvimento das crianças com cegueira congênita. São encontrados trabalhos e pesquisas, realizados nas décadas de 60/70, pelo grupo de Dorothy Burlingham em Londres na Hampstead Child Therapy (Burlingham 1961, 1965. Sandler 1963, Wills 1975 e 1970, Nagera e Colonna 1965) cuja diretora era Anna Freud, outros coordenados por Selma Fraiberg da Universidade de Ann Harbor em Michigan (Fraiberg e Freedman 1964, Fraiberg 1977 e 1971, Omwake e Solnit 1961) além daqueles no Canadá (Freedman et all 1989), todos financiados pela Psychoanalytic Research and Development Foundation of New York.

Pode-se deduzir pela leitura dessas pesquisas que esses trabalhos tinham como referencial uma abordagem da Psicanálise Clássica e traziam uma ênfase na observação do comportamento de bebês e crianças num enfoque influenciado por Anna Freud.

A questão básica salientada por esses trabalhos era a compreensão de como essas crianças se relacionavam com o outro e o ambiente, e como compreendiam o mundo ao seu redor, isto é, como essas crianças estabeleciam relações objetais e construíam o ego.

As observações, os estudos e trabalhos realizados apontaram muitos aspectos peculiares no desenvolvimento dessas crianças. Burlingham D. (1961) chama a atenção para as dificuldades que os bebês cegos e suas mães encontram para estabelecer seus primeiros contatos e que as crianças cegas nos períodos iniciais recebem menos estímulos da mãe, o que traz efeitos significativos ao desenvolvimento de suas funções de ego. A autora observou nessas crianças restrição da motilidade, tanto pela ausência do estímulo visual como pela falta de incentivo para a percepção e busca de objeto que para os bebês que enxergam é dado pela mãe. Segundo a autora, as mães das crianças cegas, seja por um estado pessoal de apatia, seja por desconhecimento de como fazer, pouco estimulam seus bebês. Essas crianças mostravam-se lentas para se moverem e pouco seguras em sua movimentação livre. O prazer potencial na descarga motora tornava-se sem efeito para a criança cega devido ao seu autocontrole para as manifestações motoras. Considera que essa imobilização é deslocada da área motora para outras funções do ego e que a auto-restrição da atividade motora é responsável pela depressão e falta de espontaneidade da criança cega. Foram observados, também, problemas de orientação, de dependência/independência e de agressão e medo de sua própria agressividade.

Sandler A M. (1963) propõem que o desenvolvimento do ego das crianças cegas desde o nascimento processa-se por diferentes caminhos em razão da ausência da mais importante modalidade sensorial do ser humano: a visão. Considera que o desenvolvimento do ego dos cegos congênitos é dificultado ou distorcido por sua desvantagem sensorial. Embora diga que, como podem ser observadas crianças cegas congênitas saudáveis, acredita que as outras modalidades sensoriais podem substituir a visão. Segundo ela, na transição da 1ª fase oral, essencialmente passiva, para a 2ª fase oral, essencialmente ativa, há uma parada no desenvolvimento e a criança cega segue um caminho de passividade autocentrada e de ausência de luta para alcançar estágios mais avançados.

Um aspecto salientado por esses artigos era a constatação de que a maioria dessas crianças apresentava atraso no desenvolvimento libidinal. Além da já apontada fixação na fase oral, descrita por persistente comportamento de colocação dos objetos na boca com desinteresse pela manipulação desses objetos, falam da busca de satisfação por atividades auto-eróticas. Consideram que há, também, uma proeminente permanência na fase sádico-anal, descrita pelo ambivalente comportamento agressivo. Foram observadas crianças extremamente agressivas com objetos e coisas, e incapazes de comportamentos agressivos com pessoas de quem dependiam, principalmente a mãe. Ou ainda, crianças extremamente agressivas em situações terapêuticas e sem qualquer comportamento agressivo em outras situações.

Consideram que as crianças com cegueira congênita dificilmente atingem a fase edipiana.

A inatividade motora observada em bebês cegos, com restrita busca de objetos e de interesse pelo mundo externo no processo de
desenvolvimento revelou-se nas crianças mais velhas como dificuldades em diferenciar o mundo interno do mundo externo e de diferenciar a realidade do faz-de-conta.

Na pesquisa realizada em New Orleans por Selma Fraiberg e David Freedman (1964) com vinte e sete (27) crianças cegas foi observado que sete (7) dessas crianças apresentavam um quadro clínico semelhante ao de autismo, estereotipados movimentos de mão, rodopio e balanceio do corpo e mutismo ou fala ecololálica. As outras vinte (20) crianças apresentavam alguns desses comportamentos e se diferenciavam do grupo anterior por apresentarem algum nível de funcionamento egóico, diferenciando o eu do não-eu, e o si mesmo do outro. Em contraste com o primeiro grupo, esse era capaz de manter laços e ligações com outras pessoas, embora de forma precária.

Esses autores consideraram que esse grupo representava a população das crianças congenitamente cegas; havia uma significativa incidência de crianças autistas e crianças com variáveis graus de competência e imperfeições no funcionamento do ego, sendo que essas se manifestavam por meio de comportamentos semelhantes aos das crianças autistas. Concluíram que o padrão de desenvolvimento desse grupo poderia ser generalizado como o padrão de desenvolvimento das crianças cegas congênitas.

Nesses trabalhos, alguns comportamentos foram considerados tão característicos das crianças cegas congênitas que foram agrupados com o nome de “ceguismo”, e podem ser encontrados em crianças com diferentes níveis de desenvolvimento emocional. Ex: verbalismo, apertar os olhos, balanço de corpo, movimento das mãos, etc.

Além desses comportamentos, podem-se acrescentar, tanto pela observação de bebês e de crianças cegas em diferentes situações como em procedimentos terapêuticos, outros comportamentos que são encontrados com freqüência nessas crianças; falta de interesse em brincar e por brincadeiras, e uma peculiar vida de fantasia. A fantasia da criança cega, ao mesmo tempo em que pode ser descrita como intensa, pela verbalização de acontecimentos imaginados, mostra-se pobre e restrita. Há um repetitivo relato dos mesmos acontecimentos. Observa-se também desinteresse por brincadeiras e certa ambigüidade entre os comportamentos da fala e os da ação. Há muitas vezes uma constante verbalização, algumas vezes monótona e cansativa repetição de acontecimentos passados ou imaginados. A criança cega fala sobre tudo e mantém, algumas vezes, conversas entremeadas pela repetição de discursos ouvidos sem que compreenda plenamente seu significado. Seus movimentos são sempre contidos, com dificuldade em expressar-se livremente.

Esses comportamentos nos incentivaram a refletir sobre o desenvolvimento das crianças com cegueira congênita a partir das propostas winnicottianas.

 

A teoria do amadurecimento e a construção do eu da criança com cegueira congênita

Analisar o comportamento de pessoas com cegueira congênita por meio da teoria do amadurecimento proposta por Winnicott parece-nos um caminho promissor, pois permite uma melhor compreensão do seu processo de desenvolvimento e um esclarecimento sobre as vicissitudes e complexidades deste, principalmente no que se refere a sua capacidade de relacionar o mundo interno com o mundo externo.

Acreditamos que esse entendimento nos possibilitará a indicação de procedimentos preventivos que possam vir a minimizar as dificuldades de desenvolvimento a que estão expostas essas crianças.

Retomando a discussão sobre os diferentes enfoques na consideração dos comportamentos atípicos das crianças cegas congênitas, pode-se dizer que a teoria do amadurecimento oferece uma nova possibilidade de entendimento ao propor uma diferente forma de interação entre os fatores orgânicos e ambientais que torna possível a emergência de um ser do não ser. Para Winnicott1 o processo interacional é o que constitui o ser humano, que passa a ser aquilo que aquele organismo e aquele ambiente possibilitaram a partir de suas experiências e conseqüente elaboração imaginativa das funções somáticas. Para Winnicott “A pessoa total é física, se vista de um certo ângulo, ou psicológica, se vista de outro. Existem o soma e a psique” (Winnicott, 1990, p. 29). A tendência ao amadurecimento é inata, mas sua realização depende do ambiente facilitador. O desenvolvimento do ser humano é um processo complexo e dinâmico, assim como a própria natureza humana. Como diz Lorapic (2000): “o homem winnicottiano, poder-se-ia dizer, existe como uma múltipla hifenização: entre o passado o presente e o futuro, entre as partes do corpo, entre o indivíduo e o ambiente, entre a vida e a morte, entre o ser e o não ser” (p. 394).

Ao falarmos sobre a construção do eu na teoria de Winnicott, creio ser importante, inicialmente, esclarecer a que estamos nos referindo. Embora a palavra “eu” tenha sido usada por Winnicott principalmente ao se referir a um momento do desenvolvimento no qual a criança, pela destruição do objeto subjetivo, torna-se capaz de relacionar-se com o ambiente e distinguir o eu do não-eu, inaugurando seu caminho rumo à independência, como se refere no texto “Sobre as bases para o Self no corpo” (1972): “Para mim o self que não é o ego, é a pessoa que é eu, que é apenas eu, que possui uma totalidade baseada no funcionamento do processo de maturação” (p.210).

Em outras partes de sua obra, como assinalado por Dias (2003) antes de 1962, utilizou os termos “self” ou ego sem fazer uma distinção clara entre eles. Assim, ao falarmos sobre a construção do eu das crianças cegas desde o nascimento, poderemos algumas vezes estar nos referindo ao self ou ao ego, embora posteriormente Winnicott tenha feito diferenciações entre eles2.

Para Winnicott, o ser humano desenvolve-se a partir de uma interação entre um organismo, com uma inata tendência a continuar a ser, a se integrar e a amadurecer e um ambiente facilitador. Esse processo é descrito pelas diferentes formas de interação do ser humano com o ambiente. No início do desenvolvimento, há uma relação sui generis de dependência absoluta, que caminha para uma relação de dependência relativa e, desta, rumo à independência. A construção do eu, que ocorre progressivamente desde antes do nascimento, perpassa vários estágios, que possuem, cada um deles, uma forma peculiar de relação com o mundo externo. Esses estágios podem ser sucintamente descritos como o da primeira mamada teórica, o da transicionalidade, o do uso do objeto e o eu-sou.

Winnicott usa a expressão “primeira mamada teórica” para se referir à seqüência das primeiras experiências do bebê. A atividade de amamentação é central, mas isso não significa que a alimentação seja a condição primordial. O mais importante nesse momento é a qualidade da relação humana que promoverá o começo do contato com a realidade externa e o início da constituição do si mesmo. Nesse estágio, há uma dependência absoluta, sendo a relação mãe-bebê uma unidade de dois indivíduos. É o dois-em-um descrito por Loparic (1996).

A passagem da dependência absoluta para a dependência relativa ocorre no início do processo de amadurecimento e antes da constituição do eu como uma unidade. A dependência relativa caracteriza-se pela gradual desadaptação da mãe suficientemente boa, que dá origem à atividade mental do bebê, capacidade desenvolvida para compensar as deficiências de adaptação ambiental. No decorrer desse processo de desenvolvimento e amadurecimento, o eu vai se definindo, passando a se diferenciar do não-eu, completando a fase de dependência relativa e inaugurando o “rumo à independência”.

Para que esse caminho possa ser percorrido de forma a alcançar um desenvolvimento pleno, Winnicott descreve algumas condições necessárias que, acredito, nem sempre são encontradas pelas crianças que nascem cegas ou que adquirem a cegueira nos momentos iniciais de seu desenvolvimento.

O bebê, ao nascer, possui um ego ainda muito frágil, que necessita do apoio do ego materno para realizar a tendência à integração e construir seu psiquismo por meio da elaboração imaginativa das funções corporais.

Segundo Winnicott (1987):

É possível dizer que, na experiência comum de segurar adequadamente o bebê, a mãe foi capaz de atuar como um ego auxiliar, de tal forma que o bebê teve um ego desde o primeiro instante, um ego muito frágil e pessoal, mas impulsionado pela adaptação sensível da mãe, e pela capacidade desta em identificar-se com seu bebê. (p. 31)

Embora ele estabeleça clara distinção entre o desenvolvimento emocional e o crescimento do corpo, afirma que a natureza humana é uma questão de psique-soma em contínua interação, sendo o ser humano essencialmente psicossomático.3 Considerando a hipótese de Sandler (1963), da importância de uma desvantagem sensorial para a construção do eu, a teoria winnicottiana torna-se um rico instrumento devido à significativa importância dada às funções somáticas na construção do si mesmo. Se, para Winnicott, o ser humano é aquilo que suas experiências e vivências proporcionam, não como uma imposição social, como se referem aqueles que enfatizam as condições do ambiente na constituição do individuo, mas como um impulso pessoal para viver, originado do âmago do seu ser na busca de interação com o mundo, a criança cega se constituirá a partir de um organismo específico com um ambiente freqüentemente desfavorável.

Essa proposta nos permite compreender as difíceis interações que permeiam a constituição de um indivíduo com condições orgânicas peculiares e um ambiente que, muitas vezes, não está preparado para recebê-lo e, conseqüentemente, terá dificuldades em atender as suas necessidades, também especificas. Mas alerta-nos também para o fato de que se o ambiente vier a lhe proporcionar condições favoráveis para que ele encontre seu próprio caminho de desenvolvimento, o bebê cego poderá ter um amadurecimento saudável.

Na teoria do amadurecimento, à elaboração imaginativa das funções somáticas cabe um papel central. É a partir dela que o psiquismo se constitui, tornando-se capaz de relacionar o presente, o passado e o futuro, as diferentes partes do corpo, o mundo interno e o externo e estabelecer as diferentes formas de relações com o ambiente.

Em relação à criança cega, um ponto básico a considerar é que a ausência da visão, desde o início, impõem funções somáticas peculiares, que conduzem a uma forma específica de relação com o mundo. As relações das crianças cegas com pessoas, objetos e coisas ocorrerão por meio de um peculiar aparato sensorial, que lhe trará vivências e experiências pessoais que a conduzirão por caminhos de interação desconhecidos e muitas vezes desconsiderados pela maioria das pessoas.

Retomando as três formas de relação com o mundo, descritas por Winnicott &— a dependência absoluta, a dependência relativa e a busca da independência, inaugurada pela constituição do eu na diferenciação com o mundo externo &— escolhi pensar nessa construção a partir dos momentos iniciais do desenvolvimento. Isso não significa que outras questões sejam menos importantes ou menos esclarecedoras. Acredito que todas as etapas do desenvolvimento merecem estudos, análises e reflexões, que poderão nos falar sobre as dificuldades e vicissitudes a que estão expostas as pessoas com deficiência visual, sejam cegas ou com baixa visão; tenham ausência ou limitação visual, seja esta congênita ou adquirida em qualquer momento de sua vida.

 

O desenvolvimento emocional primitivo e a criança com cegueira congênita

No momento inicial do desenvolvimento, ponto de partida para os acontecimentos futuros, o ser humano, ainda incipiente, só existe no estado de uma dependência absoluta com outro ser humano; a mãe ou quem exerça a função materna.

Para Winnicott, esse momento fundamental exige um peculiar estado materno, que possibilite ao ser humano realizar com sucesso suas tarefas de integração, de personalização e de realização, ou seja, sua tarefa de se constituir como uma pessoa. Para que essas tarefas possam ser realizadas de maneira satisfatória, é necessário também que a mãe cumpra com eficácia suas funções; de holding, de handling e de apresentação dos objetos.

Para que ela possa realizar satisfatoriamente suas funções será necessário que ela vivencie um estado especial denominado por ele “preocupação materna primária” (Winnicott 1958n).

Para definir esse estado, Winnicott parte de contribuições de Anna Freud sobre a importância e a significação da relação mãe-bebê. Compartilha sua opinião quando diz: “Culpar as falhas maternas na fase oral pela neurose infantil não é mais que uma generalização fácil e enganadora. A análise deve investigar mais longe e mais profundamente na sua busca das causas da neurose” (Anna Freud 1954 apud Winnicott 1958n, p. 491) e defende sua tese de que essa especial condição psicológica se desenvolve gradualmente e se torna um estado de sensibilidade aumentada que permite à mãe identificar-se com seu bebê de modo a realizar satisfatoriamente suas funções e permitir ao bebê que suas tarefas sejam plenamente realizadas.

Esse estado, que, segundo Winnicott, é uma espécie de “doença”, paradoxalmente, só pode ser alcançado por mães saudáveis, capazes de o viverem, mas também dele se recuperarem no momento oportuno. O que caracteriza esse estado é que a mãe passa a ter uma preocupação única: o seu bebê, o que a leva a excluir de sua vida qualquer outro interesse, sendo, por essa razão, um estado temporário do qual a mãe deve se recuperar.

Quais as dificuldades percebidas nesse momento para as crianças com cegueira congênita? Pode-se facilmente compreender as dificuldades que a mãe de uma criança cega ao nascer terá, em viver o estado de preocupação materna primária com seu bebê cego. Ela se preocupará principalmente com as questões orgânicas e funcionais desse bebê, com suas possibilidades presentes e futuras e, muitas vezes, como essa
ocorrência repercutirá em suas relações familiares, conjugais, de amizade e vizinhança.

As observações, os estudos e as pesquisas têm mostrado que elas, muito freqüentemente, vivenciam um estado depressivo, desencadeado não só pela perda atual que estão experienciando, mas também pelo afloramento e retorno de dúvidas, inseguranças e angústias desenvolvidas por suas experiências passadas. Percebe-se também incremento de conflitos e sentimentos de culpa pelo acontecimento que, mesmo que tenha ocorrido por causas fortuitas, é freqüentemente sentido pelos pais como responsabilidade sua.

Há inúmeros exemplos que nos mostram essa atitude. Mães que relacionam a condição de cegueira de seu filho ao seu desejo consciente ou inconsciente de interromper a gravidez, aos problemas e conflitos familiares ou à falta de cuidados pessoais durante a gestação. Um exemplo que nos mostra como os sentimentos de auto-culpabilização dessas mães são irrealistas e estão, na maioria das vezes, relacionados a conflitos inconscientes é o caso de uma mãe que entrevistei. Ela me disse pensar que a cegueira do filho tinha como causa seu desejo insatisfeito de comer morangos durante a gestação.

Em outras ocasiões, os pais culpam-se mutuamente por terem gerado um filho imperfeito. Situação na qual o pai não assume o papel protetor para com a mãe, sua função paterna nesse momento, que é necessária e fundamental para que a mãe possa vivenciar o estado de “preocupação materna primária”.

Uma mãe, com uma filha cega por retinopatia da prematuridade, contou que não queria ter mais filhos, estava com problemas com o marido, que, por essa razão tinha feito vasectomia, ficou grávida, mas com muitas dúvidas sobre a manutenção dessa gestação, mantida por insistência do marido. A criança nasceu prematura e adquiriu retinopatia da prematuridade.4 Essa mãe não conseguiu assumir sua função materna, entrou em estado de depressão e o bebê foi entregue aos cuidados de uma babá. Essa criança apresentou um excelente desenvolvimento. Quando estava com cinco (5) anos de idade, a mãe conseguiu assumir plenamente seu papel de mãe junto a essa criança. Acredito que, nesse caso, a babá conseguiu realizar com sucesso a função materna nos períodos iniciais do desenvolvimento. Essa mãe, consciente de suas dificuldades, pôde encontrar a melhor solução para proporcionar o caminho do desenvolvimento para sua filha.

Para Winnicott, a depressão da mãe é uma condição que a impede de perceber e atender às necessidades de seu bebê, de oferecer a ele a ilusão da onipotência e de lhe proporcionar uma identificação primária a partir da qual o bebê começa a “ser”. Nesses casos, as tarefas de integração, personalização e realização ficam prejudicadas.

Outra garota, aos cinco (5) anos, foi trazida pela mãe. Moravam em outro estado e vieram à procura de orientação. A menina me foi trazida com diagnóstico de cegueira e deficiência mental. Em meu contato com a criança, pude perceber uma excelente capacidade de orientação espacial, uma difícil aquisição para crianças cegas, o que me levou imediatamente a descartar um quadro de deficiência mental. Apresentava comportamento instável, andava por toda a sala tocando os móveis e objetos, mas não se detinha em lugar algum e não pegava qualquer objeto para manipular. Ao tocar em uma banqueta com assento de couro afirmou: uma moto. Ela havia reconhecido pelo toque o couro do banco da moto de seu pai e nos falou de como ela experienciava o mundo.

Pude perceber uma personalidade desorganizada, caótica, com total falta de integração pessoal, o que explicava seu comportamento, semelhante ao dos deficientes mentais. Seu mundo interno era pobremente organizado a partir de percepções isoladas por meio das quais estabelecia relações entre os poucos objetos com os quais havia realmente entrado em contato. Havia verbalização, mas com pouca compreensão das palavras que utilizava. Seu psiquismo parecia ter sido organizado não a partir de suas vivências pessoais, mas como um recurso defensivo submetido às informações impostas por meio de estimulações, verbalizações e transmissão de conhecimentos dos adultos. A queixa principal da mãe era sua falta de comunicação. A mãe dizia: “ela fala, mas não conversa” (sic).

Suas experiências corporais não pareciam ser sentidas como próprias. A mãe dizia, “às vezes por qualquer coisinha ela chora e em outras ocasiões ao cair e se machucar bastante, não reclama” (sic).

A mãe mudou-se para São Paulo e essa criança foi atendida por mim até os doze (12) anos de forma regular. Com o retorno da família para seu estado natal, foi atendida ainda pelo período de dois (2) anos, mensalmente, com sessões diárias por uma semana. Durante esse período, pudemos perceber a retomada de seu processo de desenvolvimento. Tínhamos, no início, quatro (4) sessões semanais, com quem chamarei de Gabriela, e em uma dessas sessões a mãe estava sempre presente. Além disso, a mãe era atendida individualmente, ocasiões em que eram discutidas suas dificuldades pessoais na relação com Gabriela e outras questões, relacionadas ao fato de ter uma filha cega. Em algumas sessões, o pai, quando em São Paulo, também esteve presente.

Nas sessões com Gabriela, procurávamos dar-lhe condições para que vivenciasse experiências pessoais de modo que pudesse vir a criar uma individualidade, sentir e habitar seu próprio corpo e estabelecer contato com o mundo externo. Inicialmente, as sessões eram caóticas; Gabriela andava de um lado para o outro mexendo em tudo, mas sem se deter em nada. Meu atendimento consistia em falar o que ela estava fazendo e tocá-la quando se aproximava de mim; nesses momentos ela parava para me ouvir. Considerei como o início de uma comunicação. Começou a parar mais vezes perto de mim e permanecer por algum tempo em uma mesma atividade. Uma atividade que foi explorada por muito tempo era a de jogar objetos no chão, algumas vezes do outro lado da sala com pequenas variações de objetos e lugares, e esperar que eu o pegasse. Foi o início da brincadeira. Outra atividade que foi explorada por longo tempo foi a brincadeira com água; ela ficou durante um grande período brincando com a água. Durante horas deixava a água correr por suas mãos, braços e pulsos. Molhava-se toda; depois, passou a se interessar por objetos amorfos; tintas, massinhas, barro, etc. Só depois começou a se interessar por brinquedos. E assim, progressivamente, foi organizando seu mundo interno.

Minhas interpretações consistiam, primordialmente, em repetir seu comportamento e nomear suas ações. A técnica que usei era a de cumprir as funções maternas de sustentar (holding), de possibilitar o alojamento da psique no corpo (handling) e de propiciar seu contato com os objetos de uma maneira compreensível para ela, uma apresentação do mundo através dos sentidos que possuía. Durante todo esse tempo, meu propósito era o de conseguir uma efetiva comunicação com Gabriela.

Ao mesmo tempo, dava apoio e sustentação à mãe, para que pudesse realizar satisfatoriamente suas funções. Durante esse período, Gabriela também freqüentava uma pré-escola especializada para deficientes visuais. Teve uma boa professora, com quem eu mantinha contato. Trocávamos informações e eu procurava sempre lhe explicar o que eu fazia e qual a minha intenção nessas ações.

No fim desse período, Gabriela já conseguia estabelecer uma boa interação com as pessoas, freqüentava escola comum e conseguiu atingir a 8ª série do ensino fundamental. Tornou-se uma jovem com limitações, mas participativa da vida familiar.

A integração, uma das realizações básicas do ser humano na construção de sua individualidade, parece ser um difícil processo para as crianças cegas. A integração, que compreende integrar-se no tempo e no espaço e habitar um corpo estabelecendo seus limites pela incorporação de suas funções, tem como base uma mãe dedicada comum capaz de apresentar o mundo a seu bebê de acordo com suas possibilidades e necessidades. Será que uma mãe às voltas com sua dor e suas angústias por ter gerado um filho cego saberá os caminhos para atingi-lo? Caminho diferente daquele trilhado por aqueles que vêem?

A integração no espaço em crianças sem visão depende, exclusivamente, de sua movimentação e exploração no e do ambiente de forma a poder experimentá-lo e elaborá-lo imaginativamente. Mas, como mostram as observações realizadas com bebês cegos, a maioria deles é bastante restrita em sua capacidade para se movimentar, condição que explica em muitos uma grande dificuldade para se orientar no espaço. Será que não podemos relacionar essa dificuldade de orientação com a difícil discriminação, feita pelas pessoas com cegueira congênita, entre o mundo interno e o mundo externo? Entre um espaço interior e um espaço exterior? E, mais ainda, na difícil construção de um espaço potencial?

Para Winnicott, uma das mais difíceis conquistas do ser humano é o desenvolvimento da capacidade para estabelecer uma saudável relação entre o mundo interno e o mundo externo. O caminho da relação com o mundo através dos objetos subjetivos para uma relação com os objetos objetivamente percebidos passa, necessariamente, pelo estágio da transicionalidade, uma nova maneira de relacionar-se com o mundo ao seu redor. Percurso que só poderá ser realizado por uma relação satisfatória com a figura materna que lhe possibilitará esse processo. Percepção algumas vezes difícil para as mães das crianças com cegueira congênita que, além das dificuldades afetivas emocionais já apontadas, nos falam de sua incompreensão de como a criança cega se relaciona com o mundo dos objetos objetivamente percebidos.

Para nós, o mundo interno e externo são, com freqüência, povoados por imagens visuais, nossa transformação de objetos subjetivos em transicionais, possibilitado pela função materna, é ajudada pela percepção dos objetos reais, na maioria das vezes, visualmente apresentados. É difícil para nós pensarmos em imagens táteis e auditivas. Será que essa predominância da visão não nos dificulta a apresentação do mundo para os bebês cegos? Não será essa uma das razões para a dificuldade de algumas crianças cegas em diferenciar o mundo externo da fantasia ou do devaneio?

Pode-se também levantar a hipótese de que as dificuldades das crianças cegas em mobilidade e movimentação no espaço estão relacionadas à dificuldade de personalização: o habitar um corpo. Notei, em várias situações, o desconhecimento que as crianças cegas têm a respeito das possibilidades de uso do seu próprio corpo, o que nos fala de uma ausência de incorporação de suas vivências corporais.

Pode-se observar, em diferentes situações, que as crianças cegas não pulam, não sobem em cadeiras, os bebês não tentam se levantar e freqüentemente não engatinham. Observa-se também, em crianças maiores, que elas não usam as articulações dos membros, as torções de tronco e pescoço e toda mobilidade corporal que o torna pessoal e um meio de expressão dos sentimentos e das capacidades desenvolvidas no decorrer da vida, além de um meio para a manifestação de seus gestos espontâneos. Como diz Winnicott “As bases de um self se formam sobre o fato do corpo, que, sendo vivo, não apenas tem forma, mas também funções” (1971b [1970], p. 209)

Uma das condições básicas para que o bebê possa realizar sua tarefa de personalização é a capacidade da mãe em realizar sua função de “handling”, ou seja, revestir e manipular o corpo do bebê com atenção e afeição, de uma forma tal que esse possa vir a senti-lo como um bem pessoal, como a origem de suas sensações e dos seus instintos e também como uma condição pessoal que lhe possibilitará a manifestação de suas necessidades e de seus impulsos. Será que não é muito difícil para as mães de crianças cegas esse contato?

Diz Winnicott (1971b) [1970]:

Uma mãe com um bebê está constantemente apresentando e reapresentando o corpo e a psique do bebê um à outra, e pode-se facilmente ver que esta tarefa fácil, mas importante, torna-se difícil, se o bebê tem uma anormalidade que faz a mãe sentir-se envergonhada, culpada, assustada, excitada ou desesperançada. (p. 210)

A mãe de um garoto cego por retinopatia da prematuridade dizia: “No começo era muito difícil pegar ou cuidar de meu filho. A minha preocupação básica era com os tratamentos médicos, íamos de consultório em consultório, fomos até aos EUA para ver a possibilidade de corrigir sua cegueira” (sic).

Essa criança, que chamarei de Lucas, mostrava pobre capacidade para discriminar a fantasia da realidade, era extremamente agressiva verbalmente e com comportamento motor passivo. Locomovia-se mal e não tinha domínio sobre seus movimentos.

Um dado que considero importante salientar é que as mães parecem se ressentir e temer o contato corporal com seus bebês cegos. Dizem que quando pegam seus bebês eles choram muito e que eles parecem preferir ficar deitados e sossegados em seus berços. A observação de mães segurando seus bebês mostra, por parte delas, muita dificuldade em pegá-los de forma aconchegante. A impressão que me causou uma mãe carregando seu bebê de nove meses era que ela o segurava como um objeto, como uma coisa e não como um bebê. Ela o trazia longe de seu próprio corpo. Era um bebê com grande atraso de desenvolvimento, tinha tônus diminuído com grande flacidez, era pouco ativo e com movimentos lentos, não se arrastava pelo chão, nem era aí colocado, não apresentava qualquer movimentação de busca. Tudo o que pegava era colocado na boca e imediatamente jogado longe.

Uma qualidade especial é exigida das mães dessas crianças. Aceitá-las e amá-las, plenamente, como são. Não tentar modificá-las para amá-las. Esse talvez seja um dos pontos básicos do desencontro entre a mãe e seu bebê; para a mãe, essa criança só será feliz se for como as outras, mas, para ela, o importante é o reconhecimento de si como ela se vê. “Como me conheci pelo conhecimento de meu próprio corpo”(Winnicott 1971b, 1970, p. 209).

Creio ser importante nos remetermos aqui a uma fala de Winnicott (idem) ao se referir à importância das experiências corporais na constituição do “self”:

Muitas anormalidades físicas não são de natureza tal que um bebê possa estar consciente delas como anormalidade. Na realidade, o bebê tende a presumir que o que se acha lá é normal. Normal é o que está lá. Constitui amiúde um fato
que o bebê ou a criança se dê conta da deformidade ou da anormalidade através de fatos inexplicados, tal como a atitude daqueles ou de alguns daqueles situados no meio ambiente imediato. (209)

Muitos outros aspectos importantes podem ser apontados, entre eles as interações mãe-filho extremamente enriquecedoras pela troca de olhares. Mães de crianças cegas dizem, “não sei se estou fazendo certo, não vejo em seu olhar satisfação, raiva ou tristeza. Não sei se ele me compreende”. Winnicott (1967c) nos chama a atenção sobre o olhar da mãe como um espelho que reflete o próprio filho. O olhar no qual o bebê se encontra, se conhece e a partir do qual vai construindo o seu si mesmo. Essa condição, que nas palavras do próprio autor deve ser analisada no caso dos bebês cegos, leva-nos a pensar que as mães de bebês cegos precisam encontrar um outro caminho capaz de refletir seu bebê de modo que torne possível a este que se encontre no modo de ser de sua mãe e possa expressar e se manifestar no seu modo próprio de ser.

A solução encontrada por muitas mães que conheci para se relacionar e apresentar o mundo ao seu filho era o uso da fala. Falam incessantemente com a criança, sobre tudo e sobre qualquer coisa, como se dessa forma pudessem estar em contato com ela.

Vemos, todavia, que esse é um caminho criado pela mãe a partir de seu funcionamento corporal, que é o uso da linguagem como representação de algo. Para a criança cega, entretanto, as informações adquiridas pela fala não constituirão uma representação, pois não ocorreu uma experiência anterior que pudesse ser representada. Sua fala é, então, muitas vezes equivalente a um fazer em substituição ao ser, é uma fala concreta, com articulações e uso de palavras corretas, mas sem significação. Um papaguear.

Uma garota que comecei a atender aos sete (7) anos, trazida por grande atraso de desenvolvimento, incapacidade para aprendizagem escolar e comportamento instável e agressivo, apresentava uma extrema dependência da mãe, entrava em pânico com manifestações de extre-
ma angústia quando percebia que a mãe se ausentava da sala. Só se alimentava pelas mãos da mãe. O seu tempo era gasto com movimentos corporais e a repetição de programas de rádio e TV que havia ouvido. Em nossas tentativas de comunicação, parava de recitar os programas assistidos, ficava quieta por alguns minutos, e depois repetia o que eu havia falado.

 

Considerações finais

A preocupação de diferentes especialistas com o processo de desenvolvimento das crianças com cegueira congênita nos mostra que essas crianças têm um árduo caminho para seu desenvolvimento e muitos obstáculos para alcançar um amadurecimento saudável. Ao mesmo tempo, o contato com pessoas cegas congênitas que alcançaram um desenvolvimento pleno, tornando-se pessoas com expressiva riqueza de personalidade, capazes de assumir sua responsabilidade para com a sociedade e o outro nos mostra que não é a condição de ausência visual em si que torna esse caminho difícil, mas sim a complexa interação entre um organismo com diferente condição perceptual e o ambiente.

O atendimento clínico de crianças cegas congênitas com graves distúrbios de desenvolvimento nos mostra a importância de intervenções preventivas que devem ocorrer desde o início do desenvolvimento ou assim que os pais saibam do problema visual de seu filho. Os atendimentos precoces poderão proporcionar a essas crianças um processo de desenvolvimento que lhes possibilitem amadurecimento de acordo com sua idade cronológica e a constituição de um indivíduo saudável, que, como diz Winnicott: “sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas” (1971f [1967]).

Nossa proposta inclui um atendimento precoce para as mães e seus bebês, com o intuito de lhes apontar as diferentes possibilidades de interação com o bebê cego, mostrando-lhes as atividades que podem realizar e ajudando-as a encontrar a melhor maneira de interagir com seus bebês. Essas mães precisam aprender a apresentar o mundo para seus bebês de um modo que eles possam experimentá-los e significá-los. Entretanto, muitas vezes, essas mães precisam, principalmente, de momentos só para si, de modo a poder elaborar suas dificuldades e resgatar sua confiança na capacidade de criar um filho, mesmo que seja cego.

 

Referências

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Endereço para correspondência.
E-mail: mltma@usp.br

Recebido em 22 de setembro de 2006.
Aprovado em 13 de maio de 2007.

 

 

* Psicóloga formada pela PUC de São Paulo, psicanalista, dra. em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, docente do Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora do LIDE/IPUSP, diretora do Atendimento Especializado da Fundação Dorina Nowill.
1“a partir de uma interação primária do indivíduo com o ambiente, surge um emergente, o indivíduo que procura fazer valer seus direitos, tornando-se capaz de existir num mundo não desejado” Winnicott (1990, p. 25).
2 Para mais esclarecimentos, ver livro de Dias 2003, p.142.
3Winnicott, 1972 “A integração no ser humano em desenvolvimento assume uma ampla variedade de formas, uma das quais é o desenvolvimento de um arranjo operacional satisfatório entre psique e o soma” p. 209.
4Retinopatia da prematuridade (ROP) é uma das causas mais freqüentes de cegueira congênita. Ocorre devido à permanência do recém-nascido em incubadora, cuja concentração de oxigênio ultrapassa 40‰. Os olhos dos recém-nascidos são suscetíveis à ação do oxigênio, que, inicialmente, promove vasoconstrição nos vasos retinianos e depois proliferação, podendo incluir desde pequenas alterações até cegueira total (Ruiz Alves e Kara José 1996)