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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007

 

CASO CLÍNICO

 

Lugar de Winnicott na História da Psicanálise entre Freud e Masud Khan

 

The Place of Winnicott in the History of Psychoanalysis: Between Freud and Masud Khan

 

 

Maria Ivone Accioly Lins

Psicanalista
Mestra em Psicanálise pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica)
Doutora em Psicanálise pela Universidade de Paris X - Nanterre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise começa com a interpretação dos sonhos, quando Freud dá razão, contra a psiquiatria organicista, aos oniromantes. Para Winnicott, os sonhos, antes de serem objetos de interpretação, são objetos de experiências de . Esse modo de conceber os sonhos é retomado e desenvolvido por Masud Khan.

Palavras-chave: Interpretação; Significado; Inconsciente; Espaço; Processos e experiência do self; Devaneio; Imaginação; Dissociação; Onipotência.


ABSTRACT

Psychoanalysis begins with the interpretation of dreams, when Freud, in opposition to organicist psychiatry, defends the oneirocritics.  For Winnicott, rather than objects of interpretation, dreams are objects of experiences of the self.  This way of looking at dreams is then adopted and developed by Masud Khan.

Keywords: Interpretation; Signification; Inconscient; Space; Process and experience of self; Fantasying; Imagination; Dissociation; Omnipotence.


 

 

A História da Psicanálise tem seu começo com A Interpretação dos Sonhos, primeira publicação psicanalítica de Freud. Considerando o desenvolvimento dos estudos psicanalíticos sobre o fenômeno onírico, situo, nesta palestra, o lugar de Winnicott na História da Psicanálise entre Freud e Masud Khan.

 

A teoria do sonho em Freud

Em 1908, no prefácio da terceira edição de sua obra inaugural, Freud escreve: “Em 1899, quando escrevi este livro, eu não tinha ainda formulado minha teoria da sexualidade e a análise das formas mais complicadas da neurose ainda se encontrava no início” (Freud 1899-1900).

Tendo descoberto que os sonhos, assim como os atos falhos e os sintomas neuróticos, têm um sentido e que esse sentido pode ser interpretado, Freud cria, naquela ocasião, uma técnica psicológica que permite interpretá-los.

Em seu texto “Sobre os Sonhos” (1900-1901), afirma:

O que se coloca em primeiro plano em nosso interesse é a questão da significação dos sonhos, questão que encerra um duplo sentido. Em primeiro lugar, indaga sobre a significação psíquica do sonhar, sobre a relação dos sonhos com outros processos anímicos e sobre sua eventual função biológica. Em segundo lugar, busca descobrir se os sonhos podem ser interpretados e se o conteúdo de cada sonho tem um sentido tal como estamos acostumados a encontrar em outras estruturas psíquicas como os atos falhos e as neuroses. (Freud 1899-1900)

Na avaliação da significação dos sonhos, Freud propõe três linhas de pensamento. A primeira delas expressa-se nos trabalhos de certos filósofos que definem o sonho como um estado peculiar da atividade anímica, chegando a aclamar esse estado como uma elevação a um nível superior. Freud criticou o romântico Schubert [1814], para quem os sonhos são emancipações do espírito do jugo da natureza externa e liberação da alma das amarras dos sentidos.

A segunda linha proposta, defendida por outros pensadores, afirma que os sonhos brotam, essencialmente, de impulsos da alma e representam manifestações de forças anímicas impedidas de se expandirem, livremente, durante o dia.

Freud refere uma terceira linha de pensamento, encontrada na maioria dos autores médicos. Para estes, os sonhos mal chegam a atingir o nível de fenômenos psíquicos. Os únicos instigadores dos sonhos são os estímulos sensoriais e somáticos que incidem sobre a pessoa adormecida a partir do exterior ou que se tornam, acidentalmente, ativos em seus órgãos internos. Na opinião desse grupo, os sonhos são desprovidos de sentido, não passando de processos somáticos inúteis, na maioria deles, positivamente patológicos &— Binz [1878]. As características da vida onírica, segundo essa linha de pensamento, resultariam de uma atividade desconexa de órgãos ou de grupos de células isoladas no cérebro, atividades que lhes são impostas por estímulos fisiológicos.

Em contraste com as três linhas de pensamento apresentadas, chamadas de juízo científico sobre o sonho, Freud cita uma quarta linha, baseada na opinião popular:

[...] uma visão que parece persistir na crença de que os sonhos possuem um sentido que se relaciona com a predição do futuro e que esta pode ser descoberta por algum processo de interpretação de um conteúdo que se apresenta, freqüentemente, de modo confuso e enigmático. (Freud 1900-1901)

Freud chama a atenção para o fato de a interpretação psicanalítica do sonho ter sido o primeiro exemplo de interpretação na psicanálise. O método utilizado nesse trabalho consistia, inicialmente, em transformar o conteúdo do sonho tal como é lembrado, seja dividindo-o em pequenas partes de acordo com uma chave fixa, seja substituindo a totalidade do sonho por um outro conteúdo com o qual ele mantém uma relação simbólica.

Em Cinco Lições Sobre a Psicanálise (1910), ele afirma:

A interpretação do sonho é, na realidade, a via régia do conhecimento do inconsciente, a base mais segura de nossas pesquisas e é o estudo do sonho, mais do que qualquer outro, o que vos convencerá do valor da psicanálise e vos formará em vossa prática. Quando me perguntam como alguém pode tornar-se psicanalista, respondo: pelo estudo dos seus próprios sonhos. (Freud 1910-1911)

Mais de setenta anos se passaram até que os psicanalistas, em seus trabalhos sobre o sonho, começassem a se preocupar com algo mais do que o sentido do sonho, sentido oculto a ser desvendado. O sonho deixou de ter sua importância atribuída apenas ao fato de ser veículo de acesso ao inconsciente. Refiro-me, em particular, às teorias do sonho desenvolvidas por D. W. Winnicott e Masud Khan.

 

A teoria do sonho em Winnicott

Em 1971, Winnicott publica o artigo “Sonhar, Fantasiar e Viver &— Uma História Clínica que Descreve uma Dissociação Primária”. Nessa ocasião, aponta sutis diferenças entre as três variedades da vida fantasmática: o sonho, a imaginação e o devaneio ou sonho diurno, chamado por ele de fantasying. Segundo Winnicott, tais variedades se diferenciam pelos mecanismos que lhes são subjacentes. No sonho, temos o deslocamento, a condensação e a figuração por meio de imagens; no devaneio, temos a dissociação. O autor também chama a atenção para o fato de, na imaginação, os projetos reais comportarem um programa de ação, enquanto no devaneio tudo se passa imediatamente, na medida em que, na verdade, nada acontece de fato.

Ele critica a estereotipia das interpretações do sonho carregadas de referências simbólicas, particularmente do simbolismo sexual, corrente em psicanálise, por levar à sujeição do paciente e ao reforço, nele, de um falso self.

Um novo significado é atribuído por Winnicott ao material diurno e às lembranças de acontecimentos reais que participam da formação do sonho O valor terapêutico do sonho, independente de sua interpretação pelo analista, foi por ele ressaltado. A capacidade de sonhar, rememorar e contar o sonho revelou-se, em sua clínica, como um fator propiciador de integração do material onírico à experiência pessoal do indivíduo, isto é, ao seu self.

 

Caso Clínico I

Winnicott relata o caso de uma paciente que apresentava uma dissociação entre o mundo da realidade objetiva e o mundo da subjetividade, cuja causa datava de acontecimentos traumáticos na infância. Os primórdios do padrão de seu funcionamento mental, segundo o autor, poderiam ser descritos como de uma pessoa que, sendo a mais nova de uma prole numerosa, descobre-se num mundo já organizado. Na impossibilidade de cooperar criativamente nas brincadeiras, ela se refugiava no devaneio.

Embora sua dissociação entre a realidade e a fantasia nunca tivesse sido completa, tal como acontece nas alucinações, em que há uma perda de contato com a realidade objetiva, quando ela estava na escola, e mais tarde, no trabalho, sentia que uma parte de si mesma, dissociada, levava uma vida separada.

Relata Winnicott que ela vivia quando não fazia nada, o que era disfarçado por meio de uma compulsão a fumar e da prática de jogos de baralho entediantes do tipo jogo de paciência. Por longos períodos, sua defesa foi devanear, mesmo tendo que pagar por essa proteção de si mesma um preço muito alto: ressentimentos e desesperos acompanhados de um risco real de suicídio.

A paciente possuía grande potencial para diferentes tipos de auto-expressão artística; separada, porém, da parte de si mesma que entraria em contato com a realidade objetiva, quando começava a dedicar-se, de fato, à leitura e à pintura, sentia o limite de sua onipotência como algo extremamente frustrante.

Segundo Winnicott, princípio de realidade não é uma boa expressão para falar dessa paciente, uma vez que não se tratava, no seu caso, de uma negação da realidade necessária à manutenção do prazer. Tratava-se, antes, de uma dissociação entre a realidade e a fantasia; dissociação que se constituíra, muito cedo, como um dado da estrutura de sua personalidade, impedindo-a de realizações criativas.

Quatro sessões da análise com essa paciente são relatadas por Winnicott. Nas duas primeiras, ela conta sonhos de conteúdo edipiano. Winnicott não faz interpretações, evitando assim interromper o curso de uma regressão que nela se iniciava, além de que, para ele, as experiências revividas na análise têm valor curativo, independentemente da interpretação dada pelo analista.

As duas sessões seguintes ocorreram mais tarde, quando a paciente começou a expressar para o analista sua percepção da diferença entre devanear, sonhar e viver de fato. Na primeira dessas sessões, ela lhe diz:

Você falava sobre a maneira pela qual o devaneio interfere no sonhar. Esta noite, acordei-me à meia-noite. Lançava-me com furor sobre o molde de um vestido que eu cortava febrilmente. Fazia tudo e nada ao mesmo tempo e estava exasperada. Isso é um sonho ou um devaneio? Dei-me conta do que me acontecia, mas naquele momento estava acordada. (Winnicott 1971f, p. 52)

Tais considerações levaram o analista e a paciente a tecer comentários sobre o aspecto pouco construtivo e prejudicial do devaneio e concluírem que excitar-se por meio do devaneio a impedia de agir na vida real, fazendo-a sentir-se doente. Ela dá, em seguida, exemplo de uma dissociação que acabara de acontecer na sessão: enquanto falava com seu analista, desligara-se da análise, passando a abrir e fechar o zíper de sua bolsa, ao mesmo tempo em que pensava: por que o zíper está nesta extremidade? Como é difícil fazê-lo voltar! Aquela atividade dissociada tinha passado a ser mais importante do que escutar o analista.

Winnicott vê nessa atitude da paciente um momento de retraimento. Ele sabia que, muitas vezes, um tipo especial de retraimento antecede a regressão, esta sim um fenômeno curativo e esperado na análise. Em artigo de 1954, “Retraimento e Regressão”, já afirmara:

Eu diria que, no estado de retraimento, o paciente está dando uma sustentação para o eu, e que se no momento em que o retraimento aparece o analista consegue fornecer uma sustentação para o paciente, aquilo que teria sido um retraimento transforma-se em regressão. (1955 [1954], p. 354)

Voltando a desconectar-se na sessão, a paciente diz ao analista que estava falando com ele, mas já o deixara novamente. Encontrava-se, mentalmente, em seu ambiente de trabalho. Ela deixa entender que o tipo de envolvimento de seu corpo no devaneio produz grande tensão e, como nesse estado nada acontecia de fato, sentia-se candidata a uma oclusão coronária, alta da pressão arterial ou gastrite, mal do qual já padecera.

Nas palavras de Winnicott, ela se queixava da ausência de um clímax psicossomático, ou seja, daquilo que, em outros textos, ele chama orgasmo do ego, em oposição ao orgasmo do id, que é um clímax relativo a experiências eróticas.

A paciente conta a seu analista que tentara organizar, mentalmente, o fim de semana, mas sentia-se incapaz de distinguir entre o tipo de fantasia que paralisa a ação e o planejamento real que é uma antecipação da ação. Ela expressa sua vontade de encontrar algo que a fizesse realizar coisas, utilizar todo minuto em que está desperta e poder dizer: é agora e não amanhã. Com sua colaboração, Winnicott mostra-lhe que, enquanto devaneio, não havia nenhum valor simbólico em seu relato de cortar um vestido, tratava-se apenas de cortar um vestido; já um sonho de cortar o molde de um vestido teria um valor simbólico.

O autor retoma, no artigo citado, sua teoria do desenvolvimento psicológico do bebê que, inicialmente, encontra-se em um estado de não-integração, estado que pode ser reexperimentado mais tarde em momentos de grande confiabilidade no meio ambiente. Esse não era
o caso da paciente quando brincava com os irmãos. Devendo representar o papel que lhe era de certo modo imposto, ao invés de sentir-se relaxada, o que poderia levá-la a experiências criativas na brincadeira, sentia-se moldada pelos irmãos.

Segundo Winnicott, o sonho de cortar o molde do vestido poderia ser um comentário da paciente sobre sua própria personalidade (seu self não integrado, como o tecido antes de ser moldado e, em seguida, um
self que teria sido formatado, moldado pelo ambiente). Essa compreensão leva-o a dizer à paciente que a palavra-chave para entender aquela sessão era amorfia, ou seja, o self não integrado.

Ele deixa claro que a experiência de amorfia, vivenciada pela paciente no setting analítico, indicava que ela passara a ter confiança na capacidade do analista para neutralizar tudo que trazia de sua infância. De fato, ela começava a ter esperança de que algo poderia sair, espontaneamente, desse estado informe. Ao perceber, porém, não ter existido em sua infância alguém capaz de compreender que devia começar pela amorfia, ela é tomada por uma grande raiva.

Considera Winnicott que, se algum resultado terapêutico resultou dessa sessão, teria sido, antes de tudo, porque a paciente tinha podido chegar a essa cólera intensa; cólera experimentada por algo; não uma loucura, mas (uma cólera) com motivação lógica.

Ele contava, certamente, com tal reação, pois temos aqui o que chama de descongelamento da situação traumática: ante as carências do meio ambiente, o indivíduo desenvolve um falso self que protege o verdadeiro self, congelando a situação precoce adversa. Desde que um novo ambiente ofereça confiabilidade, ele pode descongelar a situação traumática e revivê-la.

As experiências clínicas de Winnicott ensinaram-lhe que, enquanto uma situação traumática, vivida originalmente de maneira passiva, é desintegradora e aniquiladora do self, a experiência do trauma, atualizada em um setting analítico confiável, leva à integração dos elementos dissociados da personalidade do paciente.

A segunda sessão ocorreu no dia seguinte. A palavra-chave desta sessão, segundo a paciente, é identidade. Ela comparece com o vestido que havia conseguido costurar. Conta que, em casa, fizera muitas coisas do tipo limpeza de lugares abandonados há meses e outros trabalhos construtivos. Sente muita satisfação pelo que fizera, mas teme uma perda de identidade, como se tudo não passasse de uma brincadeira de fazer progresso para o bem do analista, segundo o padrão por ele estabelecido.

Winnicott retoma, com ela, a questão do devaneio e, sabendo do seu interesse pela poesia, diz-lhe que, enquanto o devaneio não tem valor poético, um sonho equivalente tem poesia em si, pois tem camadas de significados relacionados ao passado, ao presente e ao futuro, ao interior e ao exterior, e é sempre a respeito dela própria. Por não ter poesia, o devaneio não pode ser interpretado.

A partir do trabalho realizado em conjunto pelo analista e sua paciente, dá-se uma mudança no funcionamento mental dela. Ela faz, na sessão, a experiência de falar de alguns projetos sem se perder no devaneio. Winnicott procura não se mostrar excessivamente contente com as mudanças por ela apresentadas, pois, caso contrário, poderia fazê-la sentir-se moldada por ele. No final da sessão, emocionada por perceber que a saúde está a seu alcance, ela diz: Poderia tornar-me capaz de tomar conta de mim. Ficar sob controle, utilizar a imaginação com moderação.

A paciente reluta em ir embora. Sua relutância, segundo Winnicott, já não expressava, como antes, a tristeza por deixar a única pessoa com quem pode examinar o que lhe acontece. Seu receio provinha do fato de sentir-se menos rigidamente fixada numa organização defensiva.

Ele percebe que ela se ressente de não poder mais predizer tudo o que lhe aconteceria; não sabia se faria algo que desejasse ou se o jogo de paciência a possuiria. Na verdade, ela sentia falta do padrão da doença e uma grande ansiedade devida à incerteza que acompanha a liberdade de escolha.

Não só ela estava receosa. Winnicott se diz ciente do grande perigo de tornar-se confiante ou até mesmo satisfeito com os resultados daquela sessão. Para ele, mais do que em qualquer outra parte do tratamento, a neutralidade do analista tornava-se necessária naquele momento, pois, nesse tipo de trabalho, sabemos que estamos sempre recomeçando e será melhor não esperarmos muito.

Relato em seguida os sonhos de dois adolescentes, que atendi em Consultas Terapêuticas (Lins e Luz 1997, cap. 8).

 

Caso Clínico II &— O sonho de Devanildo

Devanildo foi-me encaminhado por um profissional do Serviço após entrevistar uma mãe queixosa das dificuldades de aprendizagem de seu filho caçula, que acabara de completar dezessete anos e pretendia prestar concurso para entrar na Marinha.

Ao começar a primeira entrevista comigo, Devanildo fala do “sacrifício” que sua mãe faz para educar os quatro filhos. Embora fale de suas dificuldades de aprendizagem e relate os problemas familiares, sua expressão verbal é pobre e repetitiva.

Convido-o a jogar o jogo do rabisco, esperando, assim, que uma relação de confiança se estabeleça entre nós. Interpreta como sendo “nuvens” o primeiro rabisco que lhe proponho, não fazendo nenhum movimento para modificá-lo.

Sentia Devanildo incapaz de exprimir qualquer emoção e sem interesse no nosso encontro. Continuamos a jogar e, não por acaso, o último desenho de Devanildo, naquele primeiro encontro, foi um “papagaio”. Sua conduta, como um todo, faz-me senti-lo distante. Mesmo assim, resolvo perguntar-lhe por seus sonhos.

Meu sonho mais importante é ser cabo da Marinha, ser feliz, ter minha mãe perto de mim e dar a ela todo o conforto e todo o luxo; espero poder estudar para um dia realizar meu sonho.

Pergunto-lhe sobre seus sonhos verdadeiros, os que tem quando dorme. O que acabou de me contar é um deles, teve-o enquanto dormia e acrescenta: “Sonho em me casar e dar conforto a minha mãe. Ela diz que ela e eu somos a mesma coisa e temos os mesmos problemas”.

Em nosso segundo encontro, em resposta às minhas perguntas, Devanildo deixa-me entender que há três anos, em razão de os pais terem se separado, a família vive em condições materiais extremamente precárias: dividem com pessoas da família, de quem não gostam, uma casinha pertencente aos avós maternos; dispõem de um único quarto onde dormem a mãe e os quatro filhos.

A maneira como Devanildo se veste contradiz sua descrição da situação econômica familiar: as roupas são de boa qualidade e impecavelmente cuidadas; calças que acabaram de ser passadas a ferro; sapatos lustrosos; no peito, uma corrente que parece de ouro.

Ao longo das três entrevistas que realizamos, seus rabiscos são delineados com traçado pouco sugestivo, semelhante a esboços de cartografia. Na maioria das vezes, quando é sua vez de começar o jogo, executa um desenho completo e não um rabisco: um jogo sem troca entre os parceiros.

Em nosso terceiro encontro, fico sabendo que Devanildo, no momento da separação dos pais, fora o único filho que escolhera morar com o pai. Este, porém, não o aceitou: poderia acolher em sua casa dois dos seus irmãos, mas não Devanildo. Tudo isso é contado com aparente indiferença, em tom monocórdio. Nessa entrevista repetirá seu “sonho” que, no entanto, sem se dar conta, relata sob a forma de sonho diurno: “só penso em dar conforto e luxo a minha mãe”. Desde a primeira vez que Devanildo trouxe esse material, pareceu-me tratar-se de um devaneio, não de um autêntico sonho.

 

Caso Clínico III &— O sonho de Sônia

Sônia comparece desacompanhada e de imediato explica-me o motivo da consulta: uma “crise de nervos” durante a qual o corpo inteiro começou a tremer. Desde os onze anos sente dores na barriga, queixando-se também de dores nas pernas. Uma vez chegou a ser atendida na emergência hospitalar. Os vizinhos acreditam que sejam “coisas de macumba”, mas Sônia não gosta da idéia e diz que sua família é católica.

Enquanto escuto Sônia, vejo uma adolescente sorridente, endomingada, maquiada demais para a ocasião e também para a idade. Interessada nas questões que lhe dirijo, conta-me sua história.

É a sexta de um total de sete filhos; os dois primeiros e o último morreram cedo. Sônia fará, em breve, quinze anos. Sua irmã tem doze e os irmãos, dezoito, dezesseis e onze, respectivamente. O pai, eletricista desempregado, faz biscates, enquanto a mãe, com problemas de saúde, cuida da casa. O irmão mais velho, auxiliar de pedreiro, é o único que tem emprego, pois o de dezessete anos não pode trabalhar porque tem sempre os pés inchados.

Seu pai foi aleijado: tendo os pés deformados, andava com dificuldade. Católico, fez, algum tempo depois do casamento, uma promessa para ficar curado: passou então a sentir, vez por outra, como se alguém lhe puxasse os pés. Curou-se, mas, tendo se convertido ao protestantismo, não pagou a promessa. Seu filho mais novo, como um castigo pela promessa não cumprida, veio ao mundo com uma má formação nos pés e nos joelhos, sobrevivendo apenas um dia. A mãe, explica-me Sônia, pedia sempre a Deus que levasse para junto d’Ele o filho que porventura nascesse defeituoso.

O jogo dos rabiscos parecia-me desnecessário, pois uma comunicação muito fácil se estabelecera entre mim e Sônia. Seus desenhos, entretanto, feitos a partir de meus rabiscos, mostraram-se muito expressivos e pessoais. Depois de ter desenhado dois meninos, desenha uma menina de joelhos. Fala-me, então, da morte dos dois irmãos mais velhos, dando a entender que o não cumprimento daquela promessa, por parte do pai, trouxera muitos malefícios à família.

Na segunda entrevista, Sônia diz sentir-se melhor e acrescenta que, naquela semana, foi o irmão doente que piorou. Parece-me que há uma relação de causa e efeito entre as mudanças nos estados de Sônia e do irmão. Seus desenhos, nessa entrevista, podem ser tomados como sugestivos de problemática na esfera sexual: oposição menino/menina, imagem corporal mal estruturada, facilmente relacionáveis a um complexo de castração.

Em nosso terceiro encontro, Sônia apresenta-se muito ansiosa. Insistindo bastante nas queixas somáticas, dá-me a entender que tem medo de morrer durante uma possível cirurgia. Graças ao jogo do rabisco, relaxa. Sinto intensificar-se o clima de confiança entre nós e aproveito a ocasião para perguntar-lhe sobre seus sonhos.

Tive um sonho no dia em que fui rezar por uma mulher; uma vizinha me chamou para ir com ela à missa de sétimo dia. Sonhei com a mulher morta; o moço que tinha feito a autópsia joga o corpo dela no rio. Eu chamo ela de “uma mulher” e minha mãe diz que é pecado falar assim. Pergunto a ela como é que se diz e ela me explica que devo chamar de “defunta”. A mulher morta vinha me buscar. Acordo gritando. Tive a impressão que tudo aquilo era verdade.

Parece-me claro que Sônia me fala de um estado de dissociação, seu eu psíquico tendo acordado antes de seu eu corporal. Minha paciente mostra-se muito excitada. Seu relato suscitou-lhe sentimentos intensos. Conta-me então um sonho recorrente em que a avó paterna, que falecera há tempos (Sônia sequer a conheceu), vem buscá-la: verdadeiro pesadelo que a faz acordar aos gritos, aterrorizada.

Tomo conhecimento da história da morte súbita e misteriosa dessa personagem &— a avó &— vitimada por um malefício: teve o pé transpassado por quatro pregos cravados numa tábua, ao lado da qual fora colocada uma vela envolta num laço vermelho. De acordo com as explicações do pai, uma mulher teria preparado o tal despacho e a avó, inadvertidamente, pisou na tábua, tendo morte instantânea. Sônia utiliza o espaço do sonho para falar-me de seu mito pessoal, mito que parece coincidir com o mito familiar ou é, pelo menos, uma de suas versões.

 

Discussão: o fantasiar (fantasying), o sonho e a imaginação

Winnicott aponta sutis diferenças entre as variedades da vida fantasmática. O fator tempo/ demarca a diferença entre o fantasiar e a imaginação. Na imaginação, projetos reais comportam um programa de ação, enquanto no fantasiar tudo se passa imediatamente na medida em que, na verdade, nada acontece.

O fantasiar não é construtivo; absorve energia, reduzindo as possibilidades de ação e de criação no mundo compartilhado. Nele, a experiência de onipotência é mantida; não falo de uma onipotência no nível da experiência de onipotência, criatividade primária anterior à diferenciação entre o “eu” e o “não-eu”, mas de um estado defensivo que supõe o desespero de sentir-se dependente. Uma negação da dependência. Daí porque as satisfações retiradas no hic et nunc do fantasiar de Devanildo rapidamente se transformavam em desapontamentos desde que se visse obrigado a confrontar-se com o mundo real.

As três entrevistas com Devanildo e mais um encontro do qual participou sua mãe, uma mulher ressentida por ter sido abandonada pelo marido, levaram-me a compreender a função que desempenhava o fantasiar na economia psíquica do meu paciente. Trabalhei com a hipótese de que o devaneio de Devanildo tinha dupla função (Cf. Winnicott 1958k [1935]). Por um lado, era defesa contra uma realidade externa. Através da manipulação onipotente e compulsiva de sua fantasia, isto é, do que Winnicott chama fantasying, tenta enfrentar as decepções de uma situação econômica marcadamente precária. Mas seu fantasiar teria uma outra função, ainda mais importante, em relação com sua realidade interna. A rejeição paterna representou, certamente, para Devanildo, uma dura prova, ainda mais que, ante as exigências materiais, sua mãe diz-lhe freqüentemente para ir viver com o pai se não estiver contente com o que ela pode lhe dar. Decepcionado e sentindo-se ameaçado, Devanildo fantasia compulsivamente uma situação idílica junto à mãe. Submetido ao desejo desta, assume, nesse tipo de fantasia, a função do pai, simples soldado do Exército.

O mecanismo subjacente ao fantasiar &— a dissociação &— torna o mundo real inacessível para Devanildo. Em um estado dissociado, mantém de si mesmo duas imagens antagônicas sem que elas entrem em conflito: é um rapaz pobre que não consegue reter nada do que estuda e um rico cabo da marinha que supre a mãe de tudo que lhe falta.

Pode-se pensar que uma dissociação, provavelmente de origem longínqua, excessivamente reativada na adolescência de Devanildo, encontra-se na origem do seu devaneio e das suas dificuldades de aprendizagem. Nessa etapa crítica do seu desenvolvimento, seus pais não foram capazes de desempenhar o papel de barreira protetora. Sufocado por um excesso de excitações internas e externas, Devanildo defende-se, em um movimento regressivo por meio de uma clivagem. Minha hipótese é que faltou a Devanildo a contribuição adequada do meio ao processo de maturação. Seu fantasiar compulsivo revela incapacidade para sonhar, isto é, incapacidade de seu ego utilizar os processos simbólicos que a formação do sonho impõe.

O sonho está do mesmo lado da imaginação. Nesta, existe uma exploração do mundo e do lugar em que a vida e o sonho são uma só coisa. É o oposto do fantasiar, algo da ordem do devaneio (day-dream), um fenômeno isolado que nem participa do sonho nem da vida. Idéias expressas por Winnicott ao chamar atenção para o espaço potencial como lugar do sonho e da imaginação.

Os relatos do devaneio de Devanildo e do sonho de Sônia dão-se de maneira muito diversa. Ao escutar o devaneio de Devanildo, sentia que ele não residia em seu discurso. Meu sentimento indicava-me o estado dissociado do meu paciente. Com Sônia, tudo se passou de outra maneira. A emoção que expressava, após o relato do sonho, indicava-me que, naquele momento da Consulta, poderia estar revivendo uma experiência fundamental.

A distinção entre o sonho e o fantasiar não pode, porém, ser captada unicamente na descrição verbal do paciente. A demarcação entre esses dois fenômenos é traçada, por Winnicott, pela diferença dos mecanismos que lhes são subjacentes: a dissociação ou o recalque. Boa parte do sonho, por ter uma significação simbólica, pode, como todos os sentimentos que levam a experiências, e não apenas à desintegração, ser submetida ao recalque (Kahn 1974a).

O material onírico de Sônia, relacionado com suas representações gráficas realizadas no jogo dos rabiscos, indicava o sentimento arcaico de ameaça de morte ou de deformação física, ante a emergência do conflito edipiano por ocasião das mudanças corporais da fase pubertária. Mas levei particularmente em conta, na tentativa de compreender o sonho da mulher morta, a relação que, articulado à fantasia de Sônia, ele mantém com sua vida real. Pude então compreender mais amplamente seu simbolismo, relacionando-o com o que me contara nas entrevistas precedentes e com o sonho da avó relatado em seguida. Enquanto fragmento do real, ele evocava menos a sexualidade recalcada pelo ego do que um traumatismo arcaico. Visto dessa maneira, o sonho de Sônia deixa de ser apenas a tentativa de ocultação de representações conflitantes para expressar, sobretudo, a tentativa do ego para integrar, no psiquismo, experiências que foram traumáticas.

Faço a hipótese de que a fantasia de uma criança deformada esteve presente, no imaginário da mãe, a cada parto. É essa fantasia, provavelmente, o que o olhar da mãe refletia, em espelho (Winnicott 1967c), no momento em que se deparava com cada novo filho; mais precisamente, talvez tenha sido um corpo deformado o que viu quando olhou para sua primeira filha. Em tais circunstâncias, os cuidados maternos, responsáveis pela integração mente/corpo (personalização), tornam-se inadequados às necessidades do bebê.

Uma comparação entre os dois sonhos relatados por Sônia, o sonho da mulher morta e o sonho da avó, ilustrará alguns pressupostos das novas teorias do sonho às quais me reporto neste trabalho. Em ambos os sonhos, falta ao ego de Sônia a capacidade de utilizar o sonho em vista de preservar o sono, o que os transforma em pesadelos. Existem, entretanto, várias diferenças entre eles quanto ao grau de elaboração do material: no sonho da mulher morta o processo do sonho foi bastante elaborado, o que não de deu no sonho da avó.

Um fragmento da realidade, uma missa de sétimo dia assistida por Sônia no intervalo entre a segunda e a terceira Consultas, serve de material para o novo sonho: o sonho da mulher morta onde houve um deslocamento da figura da avó para a de uma mulher tão desconhecida quanto aquela. Essa mulher, a quem não se deve chamar de mulher mas de defunta (o que indica que está de fato morta), após ter a causa de sua morte averiguada por uma autópsia (procedimento científico e não mágico), é jogada fora, no rio, tal como se procede, no meio cultural de Sônia, com tudo que não tem mais utilidade nem importância.

A relevância da significação do sonho é bastante conhecida em psicanálise e considerada incontestável na clínica. Mas busquei entender, baseada nas idéias de Masud Khan (1974a), qual teria sido a experiência de Sônia no sonho da mulher morta, isto é, qual o papel do self neste sonho.

O sonho da mulher morta permite que Sônia reviva experiências traumáticas, representadas pela ameaça de morte e medo de ser “levada” pela avó. Esse sonho não foi, entretanto, capaz de levar minha paciente à realização de nova experiência de si mesma. Tal impossibilidade leva-a a encontrar, nos seus males físicos, uma maneira de atuar seus sonhos, buscando, repetidamente, ultrapassar a dissociação psicossomática responsável, senão por sua doença física, ao menos pela maneira como esta é experimentada.

Existe uma relação de oposição e de complementaridade entre a experiência do sonho (dream-experience) e seu texto (dream-text, o sonho rememorado). A experiência não é simbólica no sentido em que o são as diferentes estruturas do sonho, ou seja, ela é um modo de atualização que difere do sonho concebido como criação psíquica simbólica. À experiência, o texto não dá acesso, uma vez que na sua base encontram-se os processos primários e não a simbolização. Na experiência do self total de um indivíduo, entretanto, a experiência do sonho e seu texto podem, por vezes, se superpor. Mais que isso: o texto do sonho é um trabalho complementar que se impõe para que a experiência do sonho possa tomar forma e constituir essa entidade psíquica da qual guardamos a lembrança, contamos aos outros e compartilhamos com eles.

No enquadramento analítico, o terapeuta pode ajudar o indivíduo a integrar a experiência do sonho a um discurso que pode ser compartilhado. Era disto que Sônia precisava. Nossos encontros deram-lhe a possibilidade de compartilhar comigo seu mito e, ousaria dizer, dar início a um trabalho de integração do material onírico.

 

A Teoria do Sonho em Masud Khan

Masud Khan, psicanalista de origem indiana com formação na Sociedade Britânica de Psicanálise, considerado herdeiro do pensamento de Winnicott, dedicou alguns de seus trabalhos ao estudo do sonho. Dois deles serão aqui comentados.

Em “Uso e Abuso do Sonho na Experiência Psíquica” (1972), Khan afirma que os sonhos, antes considerados por ele como defesas contra recordações ou fantasias dolorosas, passaram a ser avaliados por meio de uma nova abordagem que, em sua opinião, mostrou-se clinicamente muito útil. Na trilha de Winnicott, ele diz que o sonho, tratado como um fetiche a ser interpretado, passou a ser considerado como qualquer outro comportamento expresso; como um fragmento da realidade e do funcionamento psíquico que deve ser avaliado e interpretado em relação ao aqui e agora da situação transferencial.

No artigo citado, o autor afirma que boa parte dos sonhos, por ter uma significação simbólica, pode ser submetida ao recalque, tal como ocorre com todos os sentimentos que levam à experiência. Diz que o sonho integra elementos da vida real com elementos do mundo interno pessoal e que os recém-nascidos e os psicóticos, não tendo bem estabelecida a diferença entre o interno e o externo, o dentro e o fora, não são capazes de recalcar, portanto, não podem sonhar.

Segundo Khan, existe onipotência no sonho, mas não do tipo presente no devaneio. Trata-se, no sonho, da experiência de onipotência que teve seu início na criatividade primária, quando o bebê não era capaz de diferenciar o “eu” do “não-eu”. Uma onipotência que está na base do agir criativo.

Na trilha do conceito de espaço potencial de Winnicott, ele aponta a distinção entre os processos do sonho (sistema inconsciente, deslocamento, condensação, alucinação) e o que chama espaço-sonho. Os processos do sonho são dons biológicos do psiquismo humano. Já o espaço-sonho é uma aquisição do desenvolvimento da pessoa quando ainda bebê, por meio de um processo facilitado pelo cuidado fornecido pelo holding ambiental. Enquanto os processos articulam conflitos e impulsos inconscientes, o espaço-sonho é o lugar onde o sonho concretiza uma experiência.

O espaço-sonho, esclarece o autor, é o lugar que a criança estabelece a fim de descobrir seu self e a realidade externa. Fica claro nessa afirmação que, ao falar de espaço-sonho, Khan se refere à área intermediária própria do espaço potencial, tal como concebida por Winnicott.

Dessa perspectiva, temos no espaço-sonho o equivalente de uma estrutura intrapsíquica específica, na qual a pessoa concretiza determinado tipo de experiência, uma experiência que se diferencia da experiência biológica geral do sonhar e do sonho como criação simbólica.

Em sua clínica, diz Khan, começou a perceber que, para alguns pacientes, os processos do sonho podiam estar ao alcance deles, o que não ocorria em relação ao espaço do sonho. Nesses casos, os sonhos lhes traziam pouquíssima satisfação, tendo o sonhador uma sensação paupérrima da realidade experimentada no sonho sonhado. Daí sua recomendação no sentido de redução máxima da interpretação do conteúdo do sonho, pois, tal como observara em sua experiência clínica, uma superelaboração dos processos do sonho não faria mais do que encobrir a incapacidade do paciente para instituir o espaço do sonho.

Do ponto de vista do autor, o sonho atualizado no espaço do sonho, ao mesmo tempo em que limita sua atuação no espaço social, conduz a uma integração psicossomática da experiência do sonho e de tudo o que ela implica no que diz respeito aos impulsos instintuais e aos modos de relação com o objeto.

A compulsão de certos pacientes a sonhar e contar seus sonhos em análise é vista por Khan como um tipo particular de atuação destinada a mascarar a ausência do espaço do sonho em sua realidade psíquica interior. O que permite a redução da atuação dos conflitos internos inconscientes, no mundo externo, é precisamente a capacidade psíquica do indivíduo para atualizá-los no espaço do sonho.

No artigo “A experiência do sonho na realidade psíquica”, (1974b), Masud Khan trata do papel do self nos sonhos. Ele deixa entender que é difícil falar da experiência do self, no sonho, só sendo possível inferir as vicissitudes dessa experiência a partir de um jogo dialogado entre o analista e o paciente, em uma atmosfera de confiança no não saber.

O autor distingue a experiência do sonho durante o sono do texto do sonho rememorado; diz que o texto é necessário para que a experiência do sonho possa tomar forma e constituir essa entidade psíquica da qual guardamos a lembrança, contamos e compartilhamos com os outros. Quanto à experiência do sonho afirma que ela não constitui, por si mesma, o caráter e a singularidade de uma pessoa. Para isso, faz-se necessário um trabalho complementar.

Em consonância com Winnicott, Khan acredita que ninguém é capaz de comunicar pela verbalização, a si mesmo ou a outra pessoa, a totalidade de sua experiência do self. Disso resulta que certo tipo de experiência psíquica não se torna jamais disponível para a articulação mental ordinária.

Com freqüência, lembra Khan, artistas e escritores deploram a situação em que se encontram quando vivem uma experiência que se recusa a atualizar-se e tomar corpo na estrutura de um quadro ou na escrita. Sobre essa não atualização na experiência, ele cita uma observação dolorosa retirada de um dos Cadernos de Albert Camus:

Sei o que é o domingo para um homem pobre que trabalha. Sei, principalmente, o que é a noite do domingo e se pudesse dar um sentido e uma figura àquilo que sei, poderia fazer de um domingo pobre uma obra de humanidade. (Kahn 1974b, p. 394)

A experiência clínica de Khan comprovou-lhe o que já afirmara Winnicott em relação à incapacidade de sonhar presente nas crianças que apresentam distúrbios anti-sociais. Quando o paciente não consegue instituir o espaço do sonho na sua realidade interior, ele passa a utilizar o espaço social e as relações de objeto para, neles, atuar impulsivamente (acting out) seus sonhos.

Foi no tratamento de jovens drogados que ele se deu conta, pela primeira vez, da distinção, no sonho, entre experiências conflituosas intrapsíquicas e experiência do self. A qualidade repetitiva dos sonhos desses pacientes e a banalidade das imagens chamaram sua atenção.

Khan estabelece um paralelo entre o relato dos sonhos dos drogados e o relato de suas viagens que, verbalizadas, tornavam-se igualmente repetitivas e prosaicas, contrastando com o sentimento subjetivo que eles tinham de ter vivido, durante a viagem, uma experiência única, viva e intensa. Khan descobre que o relato verbal não dava conta da experiência vivida durante a viagem efetiva, mas, ao contrário, a encobria e, por vezes, chegava a negá-la.

 

Caso Clínico IV

Khan ilustra suas idéias com o relato do sonho de um jovem músico pop. Na noite anterior à sessão, o jovem havia fumado maconha. Durante a sessão, a pobreza das recordações que ele guardava dessa experiência o consternava.

Depois de um silêncio, o jovem lhe diz:

[...] quando estou nesse estado e escuto o som, eu sou o som ao mesmo tempo em que o escuto. Isso pode parecer estúpido, mas é assim que eu sinto: nós somos quatro: o som, eu que escuto o som e, finalmente, o som e eu, que formamos um. E, no entanto, novamente, para nós quatro, não somos mais de que um.

Khan diz ao paciente que eles estavam falando, de fato, da distinção entre a experiência e o texto do sonho: na experiência do sonho, a história contada está ausente; no texto, a história se reestabelece.

Ele lembra ao paciente que ele procurou a análise, não para se aliviar de sintomas definidos, mas para aprofundar sua capacidade de sentir. O jovem lhe havia dito: Eu estou com a vida, mas não estou na vida. Sei que outros experimentam a vida de maneira diferente da minha; eles sentem as coisas mais plenamente que eu. Sou apenas um espectador.

O paciente deixa entender ao analista que, durante o sono e durante as viagens, experimenta algumas coisas que escapam inteiramente à sua consciência ao despertar. Ele se vê, então, em suspenso como um sonâmbulo, esperando deixar-se ir no sonho, onde poderia reencontrar essa experiência.

Khan começou a vislumbrar, naquele momento, que a incapacidade do paciente de ser, no sonho, e de estar com o sonho, fora do sono e durante o sono, tinha como finalidade controlar seu mergulho profundo em direção à experiência do sonho. Foi essa busca da experiência do sonho que o levou ao uso da maconha e do LSD. As viagens lhe faziam algo, mas quando voltava ao estado consciente normal, era incapaz de manter essa experiência ou entrar em contato com ela. Era isso o que o levava a fazer, cada vez com mais freqüência, essas viagens e mantinha nele o desejo de permanecer nelas um tempo mais longo. De fato, passou a ausentar-se de seu self, tanto quando estava acordado como quando dormia, permanecendo continuadamente no estado psíquico satélite próprio da viagem.

 

Referências

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_____1910-1911 “Cinco Lições de Psicanálise” . In: A Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro, Imago.

Khan, Masud 1972 “Uso e Abuso do Sonho na Experiência Psíquica”. In: Psicanálise: Teoria, Técnica e Casos Clínicos. Capítulo 21, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1977.

_____1974a “La psychologie du Rêve et l’évolution de la situation psychanalytique”. In: Le Soi Cachê,. Paris, Gallimard, 1976.

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_____1958a: Da pediatria à psicanálise. Obras Escolhidas. Rio de Janeiro, Imago, 2000.         [ Links ]

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_____1967c: “O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”. In: Winnicott 1971a.

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_____1971h: “Sonhar, Fantasiar, e Viver: Uma História Clínica que Descreve uma Dissociação Primária”, In: Winnicott 1971a.

 

 

Endereço para correspondência.
E-mail: linsluz@iis.com.br

Recebido em 15 de maio de 2007.
Aprovado em 26 de junho de 2007.