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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007

 

RESENHA

 

 

Thiago Carreira Alves Nascimento

Programa de Pós-Graduação em Filosofia - Universidade Federal de Santa Maria

Endereço para correspondência

 

 

McDonough, Richard M. 2006: Martin Heidegger’s Being and Time. New York: Peter Lang, 2006. 227p.

I. O livro de Richard McDonough é uma introdução a Ser e Tempo de Martin Heidegger. À primeira vista, esse livro poderia afigurar-se apenas como “mais uma introdução” ou “mero comentário” sobre Heidegger. No entanto, esse não é o caso. O principal objetivo do livro de McDonough é apresentar a temática de Ser e Tempo a uma outra tradição da filosofia que não a continental, ou seja, como diz o autor, aos filósofos de “língua inglesa” (p. xxii). Essa designação é empregada para qualificar a tradição anglo-saxônica da filosofia contemporânea: tanto a ampla e diversa “filosofia analítica”, bem como as diversas formas do pragmatismo americano. Não se tratando apenas de um mero comentário ou de uma simples apresentação, mas de fazer ver aos filósofos de língua inglesa o pensamento de Heidegger, o autor considera que a introdução deve mostrar algo pertencente ao horizonte de compreensibilidade daquele a quem se almeja atingir. No caso em questão, o autor elege o conjunto de problemas discutidos na tradição do organicismo como ponto comum de sua interpretação.

O organicismo é brevemente caracterizado segundo a idéia de que um organismo é em princípio diferente de uma mera máquina (p. xx). Tratando-se de interpretar Ser e Tempo a partir de uma concepção organicista, o ponto nodal dessa interpretação reside no conceito de emergência. Este, por sua vez, visa explicar os “altos” níveis da realidade (vida e mente) de maneira contraposta às concepções materialistas reducionistas, que reduzem esses “altos” níveis a relações causais materiais, bem como às concepções vitalistas, que as vêem como um produto de forças vitais separadas da matéria (p. 51).

Em suma, o propósito do livro de McDonough é apresentar Ser e Tempo por meio de uma interpretação emergente-organicista de acordo com a qual as idéias de Heidegger sejam claramente compreensíveis para os filósofos de língua inglesa, a despeito das diferenças entre as tradições em questão. Nesse sentido, McDonough pretende que sua interpretação seja apenas um começo (daí seu caráter introdutório), mas que o mesmo seja visto como um ponto necessário (porém, não suficiente) para uma melhor compreensão de Ser e Tempo (p. xxv).

II. O livro é articulado em um prefácio, uma introdução ao pensamento de Heidegger, dez capítulos e um epílogo (sobre a natureza provisória de Ser e Tempo). O prefácio tem por objetivo salientar a importância e o papel do pensamento heideggeriano no século XX, bem como apontar para os equívocos e preconceitos gerados por algumas interpretações dos textos de Heidegger promovidas por outras tradições filosóficas que não a continental. Nesse sentido, o primeiro passo da argumentação em favor de uma interpretação emergente-organicista consiste em conceber o projeto de Ser e Tempo como uma articulação posterior do organicismo alemão (p. xxi). O seu objetivo não é “provar” que Heidegger é um organicista, mas mostrar que, pelo menos no âmbito de Ser e Tempo, ele tem uma concepção de ser que pode ser estreitamente vinculada ao emergentismo da tradição organicista (p. xxi).

Na introdução ao pensamento de Heidegger, McDonough apresenta a temática de Ser e Tempo segundo uma interpretação emergente-organicista. Nesse segundo passo, o projeto de Ser e Tempo é caracterizado de acordo com a pergunta pelo ser do Dasein, considerando este, ademais, como “o tipo de organismo que nós mesmos somos” (p. 3). Salientando a multiplicidade de significados do termo “Dasein”, McDonough até mesmo alude ao fato de que esse termo na língua alemã foi, primariamente, usado para denotar criaturas vivas, apontando como exemplo a tradução alemã de Origin of Species de Darwin, na qual a expressão “the struggle for life” (a luta pela vida) foi traduzida por “Kampf ums Dasein” (p. 4). Ciente de que Heidegger rejeitaria qualquer redução do Dasein a um organismo, McDonough entende, entretanto, que o filósofo sustenta que o Dasein é essencialmente algo vivo (p. 5). No entanto, reconhecendo a crítica de Heidegger às Filosofias da vida, o ponto de McDonough nesse contexto não é afirmar que Heidegger é organicista no tocante ao Dasein, mas sobre o ser (p. 5). Nesse sentido, a introdução segue apresentando outras noções fundamentais, ligadas à pergunta pelo sentido do ser (do Dasein), tais como tempo, horizonte e existencial, com o propósito final de mostrar que muitas das concepções de Heidegger sobre o ser derivam de que ser é ou envolve, para Heidegger, um tipo de emergência (p. 8).

No primeiro capítulo, é discutida, respectivamente, a prioridade do Dasein em relação à questão do ser (Seinsfrage) e a questão da verdade primordial. Assimilando desvelamento à verdade primordial (p. 23), McDonough afirma que esta reside no Dasein, isto é, que a verdade emerge do Dasein enquanto abertura.

O segundo capítulo é dedicado a um exame preliminar à questão do ser, no qual McDonough identifica quinze teses de Heidegger sobre o ser, sendo uma acerca da compreensão de ser. Eis as teses: (1) Ser é sempre ser de algum ente; (2) Ser tem que ser distinguido dos entes; (3) Ser determina os entes como entes;(4) Ser tende a permanecer velado;(5) Ser mostra-se a si mesmo (dá-se); (6) Ser tem um movimento próprio; (7) Ser está intimamente conectado com o tempo; (8) Ser é mais básico do que a essência; (9) A universalidade do ser não é a universalidade de um gênero; (10) A resposta ocidental à questão do ser, desde os pré-socráticos, é que ser é Presença, a qual se refere ao momento presente do tempo como oposto ao passado ou futuro; (11) Ser tem um sentido (Sinn); (12) Ser tem sido tradicionalmente intimamente ligado à verdade, quando não, identificado com ela; (13) Ser é expresso pela cópula (“é”) na linguagem ordinária; (14) Dasein tem uma compreensão cotidiana do ser, na efetuação da qual ele pode ser bem-sucedido, mas que, porém, é profundamente inadequada; e (15) Ser “existe somente na compreensão”, porém os entes são independentes da mente (p. 38-9).

No capítulo três, “O Emergentismo de Heidegger”, o autor apresenta de maneira sucinta o emergentismo, contrastando-o com o reducionismo. Tendo caracterizado a noção de emergência (mais adiante abordada), McDonough interpreta alguns conceitos-chave do pensamento de Heidegger, tais como verdade-primordial e presença (Anwesen). Segundo McDonough, “a questão do ser é realmente uma questão acerca da emergência (no sentido ontológico) da verdade primordial” (p. 59). No capítulo quatro, “Ser como Emergência Ontológica”, McDonough reapresenta as teses heideggerianas sobre ser depreendidas no capítulo dois em termos emergentistas; neste caso, ser é literalmente assimilado à emergência. No capítulo cinco, “Dasein como Microcosmo”, McDonough assimila a relação do ser do Dasein com o ser em geral com a relação de um microcosmo com um macrocosmo, ou seja, de que o ser do Dasein é uma espécie de espelho (micro) do ser em geral (macro). Uma vez que ser fora assimilado com emergência, o propósito do capítulo seis é mostrar que o Dasein enquanto existência é um tipo específico de organismo “auto-emergente” (p. 88). Já no capítulo sete, “O nada no Centro do Ser do Dasein,” o autor argumenta que a noção de “Nada”, enquanto uma estrutura ontológica do Dasein, vista de um ponto de vista emergentista, indica que certas características não são prefiguradas pelos estados temporais precedentes, ou seja, são existencialmente emergentes. É nesse sentido que se pode dizer que tais características emergentes advêm do nada. O capítulo sete fecha a interpretação emergente-organicista de Ser e Tempo. No entanto, há mais dois capítulos (oitavo e nono) que visam apresentar brevemente a fenomenologia de Heidegger e Husserl, e um último (décimo), que dá continuidade à perspectiva emergente-organicista, no qual são tecidas considerações de cunho ético e político do pensamento de Heidegger, interpretadas, por exemplo, à luz das noções de autenticidade e inautenticidade do Dasein.

Por fim, no epílogo “A Natureza Provisória de Ser e Tempo”, McDonough reafirma alguns dos objetivos do seu livro, cuja proposta interpretativa é conceber um “caminho do meio” entre as interpretações do pensamento de Heidegger. Nesse sentido, o autor justifica a importância de termos neutros como chave para a interpretação, tal como a sua proposta emergente-organicista, sobretudo para chamar a atenção acerca da proficuidade do pensamento de Heidegger para os filósofos de outras tradições filosóficas que não a continental.

III. Para qualquer um que não esteja minimamente familiarizado com a tradição organicista-emergentista aludida por McDonough, e principalmente para aqueles que pertencem a essa tradição, a primeira pergunta que vem à mente é a seguinte: mas do que especificamente trata o “emergentismo”? Ou melhor: o que o autor está designando pelo conceito de “emergência” nesse contexto? McDonough não entra em discussões específicas sobre o conceito de emergência (baseando-se em Kim), porém, apresenta-nos uma idéia geral acerca da noção de emergência: a de que um “todo orgânico” não se resume à mera soma das partes; e de que algo novo “surge” que não estava antes presente no “todo” (p. 53).

A idéia principal do emergentismo é a de que em certos tipos de todos orgânicos há certas características emergentes que não estavam presentes antes. Ou seja, quando se diz que algo emerge de algo, diz-se que há algo “a mais” do que antes se tinha e que não pôde ser predito. Nesse sentido, diz-se que certas características são fortemente emergentes se não se pode calculá-las (predizê-las) de forma alguma a partir de suas partes.

Segundo McDonough, a noção de emergência pode ser classificada em duas espécies: uma que se baseia em considerações meramente verbais e/ou epistemológicas, e outra ontológica. É a noção de emergentismo ontológico que é destacada como importante, podendo ainda ser classificada em duas outras noções: evolução emergente (emergent evolution), de acordo com a qual novas leis da natureza emergem com o tempo, e emergência orgânica (organic emergence), de acordo com a qual as características de certos tipos de todos orgânicos não são a soma aditiva de seus níveis inferiores (p. 54).

Na medida em que a idéia de emergência refere-se às possíveis relações subsistentes entre “todo” e “parte” de compostos orgânicos, isto é, do vínculo e predição de certos estados a partir de outros, ou ainda, de certas propriedades emergentes de outras as quais não se reduzem, as noções de predição, causa, irredutibilidade são centrais para o emergentismo.

Uma vez que se entende como característico das propriedades emergentes que por elas algo de “novo” surge, pode-se atribuir a essas propriedades um certo poder causal. No entanto, no que diz respeito, por exemplo, às qualidades emergentes, pode-se também considerá-las como epifenomenais (Epiphenomenal), ou seja, impotentes do ponto de vista causal. Nesse sentido, por exemplo, considerar-se-ia a consciência, enquanto uma qualidade emergente, como não possuindo nenhum poder causal sobre as ações. Por outro lado, quando se diz que propriedades emergentes possuem um poder causal irredutível aos poderes causais das propriedades das quais emergem, diz-se que então ocorre uma causação descendente (downward causation), ou seja, de que certas leis são “quebradas” na emergência (p. 55) - propriedades que num certo nível se comportavam de uma determinada maneira, respeitando um certo “padrão” (lei), pela sua emergência, passam a se comportar de maneira diferente, respeitando outro “padrão” (lei). Nesse âmbito, McDonough destaca ainda como característica relevante a idéia de que a emergência de qualidades superiores pode ser acompanhada pela supressão das inferiores.

A despeito dos problemas e debates específicos em torno do emergentismo e do conceito de emergência, o que se deve atentar é o fato de que, segundo McDonough, as noções básicas concernentes à idéia de emergência podem ser vistas à luz da concepção heideggeriana do ser. Ser não é (ente), mas emerge.

IV. Independentemente do fato de que o livro de McDonough possa afigurar-se como assaz “introdutório”, no entanto, ele aponta para uma espécie de “causa nobre”: de ter enfim encontrado um bom “fusor de horizonte” para um efetivo e profícuo diálogo entre as tradições continental e analítica (em seu mais amplo sentido) da filosofia contemporânea. E é nesse “espírito de união” que o autor reprova qualquer interpretação de Heidegger que se afigure como redutiva, como, por exemplo, algumas interpretações vinculadas ao pragmatismo (Rorty) e às ciências cognitivas (Dreyfus) ou meramente “contemplativas”.

Para aqueles que hoje vêem como necessária ou pelo menos profícua uma “reconciliação” entre as tradições continental e analítica, a proposta de McDonough merece ser analisada. De maneira ainda mais incisiva, tal proposta merece ser analisada por aqueles que se identificam com a tradição “organicista-emergentista” referida pelo autor, na medida em que possa servir como uma forma de ampliação de seus horizontes filosóficos. Essa referência parece atualmente corresponder aos teóricos de sistemas, como, por exemplo, as teorias da auto-organização, bem como aos filósofos envolvidos no debate acerca das teorias representacionais e/ou naturalistas da mente, fortemente representadas pelas ciências cognitivas.

Em grande parte inspirado pela análise do organismo feita por Heidegger em Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, McDonough acredita que alguns insights de Heidegger podem ser desenvolvidos na direção apontada por sua interpretação. Não é desprovido de sentido afirmar que Ser e Tempo, em virtude de sua própria complexidade (na medida em que concentra uma multiplicidade de problemas filosóficos), não somente está vinculado à tradição do “organicismo alemão”, mas também abre perspectivas para um diálogo com as temáticas contemporâneas desenvolvidas a partir dele. Nesse sentido, parece ser sensata a afirmação e pretensão de McDonough, de que sua interpretação seja um passo necessário, porém não suficiente, para uma melhor compreensão de Ser e Tempo (p. xxv).

Uma vez que a interpretação “organicista” de Heidegger tem como ponto nodal o conceito de emergência, duas questões se colocam: é necessário para tal interpretação que o Dasein seja concebido como uma espécie de organismo ou vivente? Em que medida o conceito de emergência pode servir como um bom “fusor” de horizontes para as duas referidas tradições da filosofia contemporânea? Essas questões cabem, porém, aos leitores críticos e interessados responder.

 

Endereço para correspondência
E-mail: saycusca@yahoo.com.br

Recebido em 15 de abril de 2007.
Aprovado em 02 de junho de 2007.