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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.9 n.2 São Paulo dez. 2007

 

RESENHA

 

 

Juliana Mezzomo Flores1

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria

Endereço para correspondência

 

 

Øverenget, Einar 1998: Seeing the self - Heidegger on Subjectivity. London: Kluwer Academic Publishers. 314 páginas. ISBN 0-7923-5219-X

As críticas de Heidegger a Husserl representam para muitos um cisma incontornável na tradição fenomenológica. Sob esta ótica, o tratamento dispensado por Heidegger a conceitos tais como consciência, intencionalidade, representação, ego transcendental, intuição categorial, entre outros, demarcou decisivamente dois fronts de combate. Por um lado, afirma-se que a crítica heideggeriana aponta para uma desejável superação do solipsismo husserliano, sobretudo a partir do privilégio dado para a descrição dos comportamentos prático-operativos do ser-no-mundo. Por outro lado, alega-se que este tratamento crítico expressa uma recusa precipitada, resultante de um envolvimento superficial e intransigente com a obra de Husserl. Dependendo do grau de radicalidade com que se defendam as continuidades ou descontinuidades entre os dois projetos filosóficos até mesmo a concepção de uma tradição fenomenológica pode vir a ser posta em xeque.

O livro de Einar Øverenget apresenta uma tentativa sofisticada e original de inserção neste intrincado debate, circunscrevendo-se a um tema igualmente bastante visado pelos interessados na obra heideggeriana: a questão da subjetividade no período de Ser e Tempo. Øverenget articula a investigação da noção apresentada em 1927 com a tese de que a descrição das estruturas ontológicas do Dasein corresponde a uma noção fenomenológica de subjetividade (Øverenget 1998, p. 2). Para tanto, ele inova ao eleger a mereologia (a teoria formal sobre todos e partes) como elemento crucial para a abordagem da relação entre Husserl e Heidegger.

Não é difícil antever que o projeto esboçado por Øverenget traz consigo algumas pressuposições passíveis de discussão. Possivelmente a que se ofereça de modo mais iminente diz respeito à suposição de uma formulação construtiva sobre a noção de subjetividade em Ser e Tempo. Não raro se afirma que a obra do filósofo alemão é justamente uma tentativa de superar a noção tradicional de subjetividade - da qual o ego transcendental husserliano supostamente seria uma das versões - através da introdução do conceito de Dasein. Tal afirmação é documentada textualmente em muitas passagens dos escritos heideggerianos onde o termo “sujeito” não é empregado para caracterizar o Dasein.

Ciente das dificuldades apontadas, Øverenget busca fazer frente a este tipo de objeção indicando dois aspectos centrais para a formulação do problema que conduzirá sua argumentação. Em primeiro lugar, salienta que a caracterização do Dasein explicita a recusa de uma noção particular de subjetividade, não da noção de subjetividade enquanto tal. Em segundo lugar, a determinação do Dasein como ser-no-mundo apresentaria uma noção de subjetividade consoante com a fenomenologia husserliana (op.cit., p. 2-4). Assim, delineia-se o procedimento a ser seguido na obra: uma investigação tanto da fenomenologia de Husserl quanto da analítica existencial com vistas a evidenciar a afirmação de que a analítica do Dasein é a interpretação fenomenológica da subjetividade. Tal procedimento traduz-se na estrutura do livro: são 9 capítulos, além de introdução e conclusão. Destes 9 capítulos, os 3 primeiros estão voltados para a apresentação dos princípios da fenomenologia considerados como fundamentais para a analítica existencial. Os capítulos restantes são dedicados à investigação da noção de subjetividade proposta ao longo de Ser e Tempo.

No primeiro capítulo, denominado Todos e partes, temos o detalhamento da mereologia husserliana da 3ª Investigação Lógica (Sobre a teoria dos todos e das partes). Neste capítulo, além de apresentar a mereologia, o autor esmiúça as bases textuais que confirmam sua efetiva utilização em Ser e Tempo. Neste sentido, destaca-se a primordialidade da mereologia para o projeto fenomenológico de delimitar a subjetividade como seu campo próprio de investigação. Central para o autor é que as distinções da 3ª Investigação não são aplicadas apenas a conteúdos mentais, mas concernem às estruturas que necessariamente pertencem a um objeto enquanto tal (op.cit., p. 9). A distinção entre momentos e pedaços tem como critério elementar a possibilidade das partes serem representadas separada ou inseparadamente. Separabilidade significa a condição de que a parte representada permaneça sem variações mesmo quando se alterem ou se anulem as partes dadas conjuntamente a ela. No caso da possível separabilidade, as partes são denominadas pedaços (Stücke); no caso contrário, são designadas como momentos (Momente).

Sobre a presença da 3ª Investigação Lógica em Ser e Tempo, o autor afirma que Heidegger faz uso da mereologia enquanto apresenta a composição estrutural do Dasein, bem como na estruturação do projeto da ontologia fundamental. Desde a designação da estrutura ser-no-mundo como uma totalidade composta por momentos, por oposição a um agregado de partes, até a tematização das estruturas do cuidado como essencialmente co-pertinentes, evidencia-se que, além de utilizar a terminologia, Heidegger o faz estritamente em conformidade com os resultados obtidos na investigação husserliana.

A importância da mereologia para a pergunta pelo ser refere-se à afirmação de que a tarefa fundamental da analítica - expressa por Heidegger como fornecer uma análise concreta do ser a partir de uma análise concreta do Dasein - corresponderia a analisar o Dasein como uma totalidade concreta absoluta (op.cit., p. 27). Na mereologia temos a distinção entre totalidade concreta e parte abstrata. Parte abstrata é análoga a um momento e uma totalidade concreta é uma totalidade composta por partes abstratas. Neste sentido, uma totalidade concreta é relativa quando pode ser parte abstrata de outra totalidade concreta. Em caso contrário, a totalidade concreta é absoluta. Analisar o Dasein concretamente significaria, portanto, comprometer-se com uma descrição que apresentasse suas estruturas ontológicas como partes não-independentes de um todo unificado (op.cit., p. 33).

Para o segundo e terceiro capítulos é central a preleção de Heidegger de 1925, denominada Prolegômenos à história do conceito de tempo, onde toda a primeira parte é dedicada à interpretação das principais descobertas da fenomenologia, dentre elas a intencionalidade, a intuição categorial e o sentido do a priori. O segundo capítulo é denominado Intuição Categorial e Øverenget procede apresentando em linhas gerais a VI Investigação Lógica, posteriormente considerando a interpretação de Heidegger acerca do tópico na preleção de 1925. Sua tese é que a formulação de Husserl acerca da distinção entre intuição sensível e intuição categorial é de importância capital para o tema da diferença ontológica em Ser e Tempo. Novamente, a mereologia tem uma função destacada, uma vez que Øverenget sustenta que a concepção de que os atos categoriais estão fundados nos atos de percepção sensível somente pode ser levada a cabo se as objetualidades categoriais forem consideradas momentos das objetualidades dos atos perceptivos sensíveis (op.cit., p. 42). Assim, a despeito da apreensão de idealidades não ocorrer pela intuição sensível, estas idealidades não podem se apresentar separadamente dos correlatos dos atos da percepção sensível. No entender do autor, tal concepção abriria um espaço para a qualificação do acesso ao aparecimento do ser e, por conseguinte, para ao aparecer que é específico dos entes (op.cit., p. 70).

No terceiro capítulo temos a reconstrução da interpretação de Heidegger do a priori fenomenológico. Posto em conexão com a teoria dos todos e das partes, o a priori seria um tipo de totalidade específica, uma totalidade concreta absoluta (op.cit., p. 100). Na fenomenologia de Husserl a única totalidade absoluta é a consciência pura. No caso de Heidegger, tal totalidade seria o Dasein como a totalidade ser-no-mundo. Destarte, o Dasein, enquanto única totalidade absoluta, seria a priori em relação aos entes e ao mundo, do mesmo modo que um todo em relação aos momentos: o todo não é anterior por aparecer temporalmente antes ou de modo destacado perante os momentos, mas por aparecer com os momentos como sua unidade, como sua condição de possibilidade (op.cit., p. 104).

Se a redução transcendental é o descerramento do campo da totalidade absoluta (a consciência pura), o segundo passo representado pela redução eidética equivaleria a investigar a natureza estrutural desta totalidade. Nos capítulos posteriores, Existência, Autoconsciência, Constituição, Si mesmo (Self), o autor salienta que estas duas operações pertencentes ao método fenomenológico são realizadas por Heidegger na analítica existencial. A redução transcendental seria operada pela abordagem heideggeriana da cotidianidade mediana e a redução eidética seria levada a cabo a partir da determinação do Dasein como existência (op.cit., p. 110).

Com a reconstrução interpretativa da primeira parte de Ser e Tempo Øverenget indica que a natureza da totalidade concreta absoluta na análise heideggeriana é ser existência. A existência possui um tipo de auto-direcionamento que se dá não através de uma introspecção ou reflexão teórica, mas pelo seu envolvimento operativo com o mundo. Neste auto-direcionamento o Dasein é a condição de possibilidade para que os entes apareçam enquanto entes. Assim, o Dasein não pode existir separadamente do mundo, embora, enquanto totalidade concreta absoluta, constitua-o. Neste contexto, o ganho conceitual para descrever a relação entre sujeito e mundo advém da noção de constituição, a qual não pode ser vista como fabricação ou criação, mas designa a dimensão de abertura para ser (op.cit., p. 170).

No penúltimo capítulo, denominado Unidade, entra em discussão a segunda parte de Ser e Tempo. Heidegger explicitamente coloca a pergunta acerca da totalização possível para o Dasein, dado que a própria interpretação do ser do existente humano como cuidado aparentemente requer que se abra mão de uma perspectiva que o apresente como um todo unificado. Além de reconstruir detalhadamente a formulação do problema por Heidegger, Øverenget salienta que a tematização dos fenômenos da angústia e ser-para-a-morte equivalem à busca por uma confirmação ôntica das interpretações na analítica. Para o autor, este é o grande avanço introduzido por Heidegger em relação a Husserl (e outros filósofos, como Aristóteles e Kant) (op.cit., p. 314). No último capítulo, Temporalidade, temos a discussão sobre a determinação do sentido do ser do Dasein como temporalidade, a partir da doutrina husserliana da consciência interna do tempo e da interpretação heideggeriana de Aristóteles e da imaginação em Kant. Destaca-se a problematização da questão sobre em que medida a temporalidade seria um fenômeno anterior ao Dasein - questão esta que é abordada com a retomada das análises do a priori fenomenológico (op.cit., p. 307-312).

Com a elucidação da temporalidade que é própria ao Dasein, chega-se à tematização da noção de subjetividade apresentada na analítica existencial. A caracterização do Dasein como um ente que intrinsecamente relaciona-se consigo mesmo e que é a condição de possibilidade do aparecimento dos entes não seria em grande medida uma inovação diante das análises da filosofia moderna; a diferença residiria em conceber que este sujeito é situado no mundo, é ser-no-mundo. Neste sentido, são os princípios da fenomenologia que permitem a descrição do sujeito sem a introdução da dicotomia sujeito-objeto: “(...) os princípios fundamentais da fenomenologia permitem a realocação da subjetividade no mundo sem eliminar a peculiaridade da subjetividade. Dasein é tanto sujeito quanto estar no mundo, o que significa que o estar relacionado com seu próprio ser e aparecer como condição de possibilidade para o que aparece é algo que acontece no mundo” (op.cit., p. 313).

Por fim, vale a pena enfatizar que, dentre os princípios da fenomenologia indicados no decorrer do livro, os pertencentes à mereologia possuem um papel fundamental, pois estão na base tanto do a priori quanto da intuição categorial, da intencionalidade e das operações do método fenomenológico. Deste modo, o autor surpreende ao apresentar um tema de ontologia formal (e das ciências formais) como a principal ferramenta para a descrição fenomenológica da subjetividade. Sobretudo, o livro nos coloca diante da questão instigante de se a tese da apropriação da mereologia (caso aceita) é um elemento persuasivo para a defesa do papel decisivo da fenomenologia husserliana em Ser e Tempo e, por conseguinte, no questionamento ontológico pretendido por Heidegger.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com

Enviado em 02/09/2007.
Aprovado em 15/12/2007.

 

 

1Resenha revisada por Róbson Ramos dos Reis (UFSM). E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com