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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Crítica e interpretação: aproximando Benjamin e Gadamer

 

Criticism and interpretation: bringing Benjamin and Gadamer closer together

 

 

Bernardo Barros Coelho de Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto discute a Aproximação entre as noções de crítica e criticabilidade, temas de “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão”, de Walter Benjamin, e as noções gadamerianas de círculo hermenêutico e do caráter da obra de arte como texto, procurando especificar a atividade do crítico como publicização do próprio processo de leitura e interpretação.

Palavras-chave: Crítica, Interpretação, Leitura.


ABSTRACT

In this paper I am to trace the connections between on one hand the notions of critics and of criticability, both present in The concept of criticism in german romanticism, by Walter Benjamin, and on the other hand Gadamer’s notions of hermeneutic circle and of the work of art as a text. Doing so, I intend to specify the activity of the critic as the act of making the very process of reading and interpretating become public.

Keywords: Criticism, Intepretation, Reading.


 

 

A tese de doutoramento de Walter Benjamin, intitulada “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão”, de 1919 (Benjamin, 1993), antecede toda uma obra de pensamento que será marcada pelo trabalho efetivo de crítica. Ao contrário dessa tese, a maior parte dos escritos benjaminianos é voltada para alguma obra de arte específica, geralmente literária. Por isso, julgamos poder considerar o livro sobre os primeiros românticos - que vai buscar nos escritos de Novalis, e principalmente nos de Friedrich Schlegel, elementos para uma teoria da crítica - um momento privilegiado da obra de Walter Benjamin, e aquele no qual esta se mostra particularmente afinada com questões trazidas pela hermenêutica gadameriana.

A investigação que Gadamer realiza da história da hermenêutica em “Verdade e método” (Gadamer, 1995) tem, na releitura da obra do romântico Schleiermacher, um momento relevante. Trata-se aí de enfatizar uma diferença, na medida em que Gadamer pretende deixar clara sua distância com o primeiro pensador moderno da hermenêutica. Mas, em outros românticos, em especial F. Schlegel, e ainda mais na leitura que Walter Benjamin faz deste, podemos encontrar um paralelo com as teses centrais da hermenêutica. Na extensa obra crítica desenvolvida por Benjamin, além disso, temos um dos mais poderosos exemplos de efetivação da potência hermenêutica da obra de arte.

O trabalho de Walter Benjamin sobre o conceito de crítica nos primeiros românticos propõe enfatizar o processo de recepção da obra de arte. Podemos compreender por crítica uma modalidade de recepção. O preparo de um texto crítico é uma resposta aberta à obra, ou seja, a publicização daquilo que ela pôs em movimento em seu leitor. A resposta crítica não é a única forma de leitura ou recepção que uma obra de arte pode receber. Outras são não só possíveis como mais comuns. Mesmo a leitura silenciosa e privada é uma produção. Mas a ênfase na crítica, por parte de Schlegel e Novalis, em escritos da virada dos séculos XVIII para o XIX, tem sua importância se consideramos que, desse modo, é levada a cabo uma mudança de eixo no discurso sobre a obra de arte, já que a ênfase recai sobre o momento da recepção da obra.

Podemos assinalar que, na proposta romântica sistematizada por Walter Benjamin em sua tese de doutoramento, se dá a transferência de foco da questão do julgamento para o da leitura, e esta passa a valer como o lugar de efetivação da obra de arte. A ênfase na leitura e na legibilidade de uma obra de arte, porém, é proposta pelos românticos por meio de uma formulação paradoxal, enfatizada por Benjamin: a obra de arte legítima é aquela que possui em si mesma sua própria crítica. O trabalho crítico seria, portanto, a continuação do discurso reflexivo contido na própria obra. A crítica se torna, desse modo, um discurso essencial à obra, sua continuação natural e indispensável, e não mero aderente ocasional.

Tal proposta estava em grande parte enraizada na poética do romance do período romântico. A referência mais conhecida é o ensaio de F. Schlegel sobre o “Wilhelm Meister”, de Goethe. Neste, Schlegel afirma que o romance goethiano já possui em si mesmo sua própria crítica1 Novalis complementa esse dito afirmando que “o verdadeiro leitor deve ser o autor ampliado” (Benjamin, 1993, p. 76). O romance romântico, ao menos aquele proposto por Schlegel e Novalis, tinha como tendência certa característica já bastante pronunciada no primeiro grande exemplo da era moderna, o “Dom Quixote”, que elaborava uma intrincada ficção, ao mesmo tempo que propunha uma radical discussão teórica a respeito do caráter ontológico e prático do ficcional. Não por acaso, o romance de Cervantes foi escolhido para figurar como precursor de uma poética romântica do romance.

O romance teria no crítico um continuador, porque já proporia, por si mesmo, uma forma de se destacar do continuum das obras literárias e de assinalar sua especificidade. Lembremos que o termo Kritik, crítica, vem do grego Krínein, que significa isolar o particular, estabelecer o próprio ou o específico de cada coisa.2 O termo “crítico” entra em voga em fins do século XVIII, substituindo a expressão mais tradicional, a saber, “juiz da arte” (Kunstrichter). A atividade de ajuizamento, quer se tratasse de um julgamento conforme parâmetros ou regras, como era proposto pelas poéticas dogmáticas, quer tivesse seu fundamento no simples sentimento do sujeito, como era postulado pela estética empirista - ou mesmo, como propôs Kant, através do prazer da reflexão, resultado de um acordo indeterminado entre entendimento e imaginação -, implicaria apenas assinalar uma aprovação ou desaprovação, distinguindo um determinado objeto e destacando-o do contínuo das coisas, produzidas pela arte ou pela natureza. O próprio Kant já havia sublinhado, porém, que sobre os juízos de gosto não se disputa, mas se discute, e que as obras de arte dão mesmo muito a pensar e a falar, embora, nessa rede discursiva instaurada pela obra, muito semelhante a uma conversa, não se chegue jamais a algum conceito que a determine.3

Podemos assinalar uma convergência entre esse ponto da descrição kantiana do julgamento da obra de arte e a noção romântica de crítica, reforçando, porém, que falar sobre a obra não implica, de modo algum, uma decifração da mensagem comunicada por ela, como se esta se limitasse à condição de suporte para a transmissão de conteúdos que poderiam também ser veiculados de outras formas. A crítica é antes intensificação da particularidade da obra, a ênfase no modo único e irrepetível que cada uma possui de revelar um mundo que, sem ela, não seria perceptível. Assim o fez Benjamin, por exemplo, com seus ensaios de maturidade sobre o poeta Charles Baudelaire, em que toda uma teoria sobre as condições de vida na modernidade se torna perceptível por meio da análise dos procedimentos poéticos do autor francês, ou seja, graças à leitura crítica.

Também na leitura crítica feita por Benjamin da obra de Charles Baudelaire temos um dos melhores exemplos de um efetivo trabalho hermenêutico. Ela está reunida no volume intitulado “Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo”, que contém três longos ensaios, e se desdobraria ainda na grande obra inacabada “Trabalho das passagens”. O conjunto dos três ensaios sobre Baudelaire constitui um dos casos mais notórios em que uma obra crítica assume tal envergadura que passa a se confundir com a obra criticada.

O crítico João Alexandre Barbosa afirma, no texto de “orelha” da tradução brasileira de “Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo”, que “[...] somente um hipotético e ingênuo leitor de Baudelaire [...] poderia afirmar que aquilo que ele diz de Baudelaire não é aquilo que ele leu de Walter Benjamin em Baudelaire”, pois “[...] ler Baudelaire é necessariamente ler a leitura que se fez de Baudelaire e, por isso, é ler Benjamin”. A obra baudelairiana é, nesse caso, o que, na linguagem romântica, representa um legítimo “medium de reflexão”: a obra como movimento de criticar a si mesma, crítica esta que se efetiva pelas diversas interpretações que suscita ao longo de seu processo de recepção.

Entretanto, desdobrar a crítica imanente à obra não significa explicitar as teorias do autor poético, por exemplo. Sabe-se que Baudelaire foi um prolífico crítico de arte, e que seus textos críticos são considerados uma fonte das teorias sobre a modernidade. Benjamin recusa, surpreendentemente, a mais conhecida formulação teórica proposta pelo próprio Baudelaire em seus ensaios críticos: a noção de “beleza moderna”. A definição teórica baudelairiana da arte moderna se apresenta sob a forma de “uma teoria racional e histórica do belo” (Baudelaire, 1988, p. 162). Esta parece ser uma das formulações teóricas mais insistentes do próprio Baudelaire. O comentário benjaminiano sobre essa teoria, no entanto, resume-se, à primeira vista, a uma sumária rejeição. “A teoria da arte moderna é, na visão baudelairiana da modernidade, o ponto mais fraco”, diz Benjamin em “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” (Benjamin, 1994, p. 81). Esse comentário se segue a uma passagem citada na qual Baudelaire introduz, no conceito de beleza, uma separação entre “um elemento eterno e imutável... e um elemento relativo e limitado. Este último fornecido pela época, pela moda, pela moral, pelas paixões”. A citação, resumida e com as tradicionais lacunas marcadas por reticências, típicas do modo benjaminiano de citar, é acompanhada laconicamente pelo seguinte comentário: “Não se pode dizer que isso vá fundo na questão” (Benjamin, 1994, p. 81).

Essa recusa, por parte do crítico filósofo, de uma teoria proposta pelo próprio autor, objeto de sua crítica, tem, para nós, um significado de particular importância. Ao rejeitar de modo aparentemente sumário a formulação baudelairiana da “beleza moderna”, Benjamin está, na verdade, apenas iniciando sua própria empreitada hermenêutica, tomando como base uma possível “arquitetura secreta” de “As flores do mal”. Os ensaios sobre Baudelaire - especialmente o intitulado “Sobre alguns temas em Baudelaire” - não são leituras das proposições teóricas de Baudelaire. Benjamin procura, na leitura da grande obra poética do poeta francês, construir uma crítica na qual será expresso o ponto mais alto do seu próprio pensamento. Essa leitura parte da dificuldade que o leitor atento experimenta ao tentar harmonizar os poemas spleen, em que uma experiência de melancolia e tédio indica uma compreensão do tempo moderno como a da vivência do sempre novo, da mudança cega e do choque diante dos múltiplos estímulos da cidade, e os poemas ideal, como o famoso poema das correspondences, que falam de uma experiência de um tempo arcaico e de uma inserção do homem numa natureza carregada de sentido. Da estranheza dessa oscilação entre spleen e ideal Benjamin extrai sua própria teoria da modernidade. Nessa empreitada, Benjamin irá perseguir o que ele mesmo indicará como o objetivo também de Baudelaire: pensar a experiência da obra de arte como o lugar de cruzamento de forças históricas, que dão a conhecer um entrelaçamento entre a crise da experiência tradicional e o prenúncio de tendências futuras.

Inúmeros são os textos em que Benjamin defende a possibilidade da crítica, e se coloca contra uma concepção da obra de arte como fechada em si mesma, como objeto de devoção dentro de um ritual de fundo teológico, mesmo que sob a forma secularizada do culto do belo.4 Benjamin, com base nesse postulado, elabora uma filosofia da arte que tem na criticabilidade seu ponto central. Esta passa a ser a marca do que se chama arte. A esse respeito, ele afirma:

Pois o valor da obra depende única e exclusivamente do fato de ela em geral tornar ou não possível sua crítica imanente. [...] Pois não há nenhuma outra medida, nenhum critério para a existência de uma reflexão senão a possibilidade de seu desdobramento fecundo que se chama crítica. (Benjamin, 1993, p. 86)

Isto implica algo mais do que uma simples transferência de ênfase: trata-se de uma filosofia da arte que tem como seu pressuposto ontológico não mais o caráter acabado da obra, pronta para se tornar objeto do julgamento estético, mas sim o processo deslanchado por ela, fundado necessariamente no que os leitores irão formular publicamente a partir da leitura. Com isto, o próprio conceito de obra de arte se modifica sensivelmente, pois seus contornos passam a abranger o que acontece apenas a partir da sua recepção.

Ao contrário da proposta de Schleiermacher - ao menos tal como esta é caracterizada por Gadamer -, para Schlegel, a verdadeira leitura não implica uma regressão ao sujeito criador, colocando-se no lugar daquele que compôs a obra. A tradição grega já havia definido a obra de arte, em um sentido obviamente mais amplo, como aquele produto humano que se distingue e se destaca de seu processo de produção. Portanto, não é possível retornar a seu começo. O único modo de o leitor tomar posse da obra seria tornando-se seu continuador. Assim, o leitor passa a co-responsável pela obra através daquilo que ela o leva a dizer. Em um paralelo com o que Benjamin viria a propor sobre a tradução de obras literárias, a crítica é uma “pervivência” da obra, sua intensificação por meio da transposição (Übertragung, Übersetzung) (Benjamin, 1992).

O aspecto decisivo dessa noção de obra crítica, e que nos aproximará oportunamente da hermenêutica proposta por Gadamer, é o caráter de incompletude da obra criticável. “Pois a obra é incompleta”, diz Benjamin, e em seguida cita um fragmento de Schlegel que ilumina outro aspecto dessa noção de crítica como acabamento, continuação: “Apenas o incompleto pode ser compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser apenas desfrutado” (Benjamin, 1993, p. 78). Nessa diferença entre compreender o incompleto e desfrutar o que está pronto situa-se um ponto decisivo da obra de arte criticável. A obra “completa”, poderíamos dizer, não suscita crítica, pode ser desfrutada, consumida. É assimilada por um leitor que nada de estranho vê nela, e a leitura torna-se oportunidade para uma reafirmação automática e cega dos pressupostos ou preconceitos que nortearam, e que, como veremos com Gadamer, necessariamente norteiam qualquer leitura. Ou seja, uma obra de arte “completa” é inteiramente decodificável com base na experiência e nos parâmetros cotidianos do leitor. Sua assimilação não provoca nenhum atrito, sua leitura ocorre no âmbito da familiaridade. Ela pode, portanto, ser rapidamente revertida em algo que participe de modo inteiramente harmônico de seu senso comum, reforçando-o.

A obra criticável, aquela que já possui sua crítica imanente, por sua vez, remete para além de si mesma, considerando que há sempre algo a dizer sobre ela: sua fortuna crítica encontra-se sempre inacabada. A imanência da crítica e a incompletude da obra são dois aspectos interdependentes, tendo em vista que a noção de obra não se restringe aqui ao produto artístico como artefato acabado, mas sim reside no seu conceito ampliado, que tem na produtividade da recepção seu ponto mais importante. Os textos, diz Gadamer, “estão aí unicamente no ato de retorno a eles” (Gadamer, 2002, p. 406). É nessa direção que devemos compreender a afirmação de Schlegel, complementada por Benjamin, de que a obra de arte verdadeira é incompleta.

Gadamer afirma também que “é preciso compreender um texto a partir de si próprio” (Gadamer, 2002, p. 73). O “si próprio” aqui indicado não apontaria exclusivamente para a obra, considerada como objeto pleno e acabado, depositário de todo sentido, restando à interpretação apenas recolhê-lo? Ou, ao contrário, recorrendo a um subjetivismo extremo, a compreensão teria como único e suficiente recurso o “si próprio” do leitor? Ambas as hipóteses têm extrema dificuldade de encontrar confirmação quando abandonamos a frase descontextualizada e procuramos na obra de Gadamer apoios textuais adicionais. Em outras passagens, dentre diversas semelhantes, Gadamer diz: “Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar” (Gadamer, 1997, p. 402). A pedra de toque formal da hermenêutica fenomenológica é a constatação da inevitabilidade e da positividade do círculo hermenêutico. Todo ato de interpretação é pré-modulado por uma compreensão prévia que constitui, na prática, um projeto de leitura:

Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e no panorama de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. (Gadamer, 1997, p. 402)

Toda interpretação começa em pressupostos e expectativas, e com eles continua, mesmo que reformulados. Negar isso seria transformar a leitura numa abstrata decodificação ou transferência pura de sinais. A aparência de sensatez de toda e qualquer concepção de leitura ou compreensão que postule o abandono das opiniões prévias, de todos os horizontes que necessariamente antecedem à leitura, em favor de um pretenso objetivismo, vê-se demolida pelo próprio ato de interpretar a palavra escrita, que é sempre precedido pela pressuposição de uma totalidade de sentido e pela tradição na qual se encontra fundado o intérprete. Esta última permanece invisível se o texto interpretado se tornar apenas oportunidade para uma confirmação automática dos pressupostos da leitura. A hipótese subjetivista, por outro lado, aquela que afirma a leitura como projeção do que o sujeito já possui em si mesmo, não é uma alternativa viável. O círculo hermenêutico seria de fato vicioso se ele nos destinasse a apenas extrair do texto aquilo que já sabemos. A leitura se limitaria a uma confirmação monótona dos pressupostos da própria leitura, e a alteridade do texto seria inapreensível. Tanto a hipótese objetivista quanto a subjetivista mostram-se incapazes de compreender o ato de compreensão-interpretação.

Toda tentativa de compreensão textual parte de concepções prévias que devem ser confrontadas com o texto de modo a serem ou não confirmadas. Uma opinião prévia é uma via de apropriação (Meinung, opinião, derivado de meinen, literalmente “tornar meu”, como já fora explorado por Hegel no primeiro capítulo da “Fenomenologia do Espírito”), uma perspectiva sem a qual texto algum se mostra na leitura. O ponto decisivo da hermenêutica de inspiração fenomenológica ou, mais especificamente, aquela vinculada à afirmação, por parte de Heidegger, da inevitabilidade do círculo da interpretação está na possibilidade, sempre aberta, de correção ou reformulação dos pressupostos de qualquer leitura (Heidegger, 1988, p. 210).

Gadamer relê, à luz dessa proposta, o preceito da hermenêutica tradicional de que as partes de um texto lido devem se harmonizar com o todo, e acrescenta: quando isso não se dá, o projeto da leitura não pode continuar intacto. Pressupostos frágeis ou arbitrários se revelam enquanto tais uma vez que passagens ou partes do texto não se articulam num todo, e isso tende a se agravar quando não reelaboramos nossos pressupostos e prosseguimos insistindo em um horizonte prévio inadequado. “Aqui não há outra objetividade”, diz Gadamer, “além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada”, o “constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar” (Gadamer, 2002,
P. 75).5 Com isso se quer dizer que, se por um lado o intérprete se aproxima do texto sempre munido de posições prévias, por outro, o texto é uma espécie de floresta de sinais que, uma vez iluminada pela interpretação, se encarrega de revelar ou de esconder suas trilhas e caminhos.

O texto é um artefato lingüístico (ou, mais amplamente, de signos, que podem ser, por exemplo, de ordem plástica), cuja principal característica é a capacidade de mostrar constantemente como deseja ser lido. É isso que o intérprete descobre tanto quando percebe que o texto foge à sua leitura, tornando-se cada vez mais incompreensível à medida que avança em suas páginas, quanto quando este parece tão claro que bem poderia ter sido escrito pelo próprio leitor. Em ambos os extremos, assim como na gradação de possibilidades que se abre entre eles, a leitura é algo que se dá no espaço entre o leitor e o texto, na relação que se estabelece entre uma letra fixada como trama textual e os horizontes de leitura prévios que precisam ser constantemente reatualizados. A resistência de um texto em se encaixar dentro dos limites de uma expectativa de leitura oferece, justamente, a oportunidade para que esta seja revista e, assim, o assunto tratado possa lentamente vir à tona no espaço que então se abre.

Por essa via podemos perceber uma convergência, embora inexata, entre as posições de Gadamer e as do trabalho de Walter Benjamin sobre a crítica dos românticos. O ato de ler, como nos mostrou a tese benjaminiana, é o instante de “pervivência”6 do texto. Nesse sentido pode-se compreender o termo, caro aos românticos, “intensificação” (sinônimo de “romantização”): ler (no caso, criticar) é potenciar o sentido crítico em germe no próprio texto. A obra de arte, tomando como modelo a obra literária, possui em si mesma sua crítica. Em termos mais próximos aos de Gadamer, o texto artístico mostra, ao leitor atento aos sinais, o seu modo próprio de ser lido.

A crítica, como gênero textual específico, tal como praticada desde o século XVIII, pode, portanto, ser caracterizada como a exposição metódica do processo de descoberta desses sinais por parte de um leitor. Sendo assim, o crítico nada mais seria do que alguém que descreve o seu processo de leitura, o embate hermenêutico específico que se deu entre as suas expectativas de leitura e o artefato coeso de sinais fixados que é o texto. Esse embate é, então, transformado em experiência também fixada em letra: o ensaio crítico. Quanto maior o embate, maior a necessidade de organizá-lo como ensaio. Obras que criam, a partir de sua publicização, uma cadeia de leituras e releituras, uma “fortuna crítica”, são aquelas que atravessam épocas mostrando uma insistente irredutibilidade às compreensões definidoras, aquelas que as transformariam em obras “completas”, nos termos românticos.

A estrutura do círculo hermenêutico, por outro lado, nos ajuda também a compreender o sentido do que, nos termos românticos e benjaminianos, poderia ser uma obra de arte “completa”. Gadamer, em “A atualidade do belo” (Gadamer, 1985), tematiza rápida, porém decisivamente, duas possibilidades de destruição da experiência hermenêutica da obra de arte. Uma delas é quando esta se torna a “fruição de uma qualidade do já conhecido”. “Aqui reside”, continua, “o nascimento do Kitsch, da anti-arte. A pessoa ouve o que já sabe. Não se quer absolutamente ouvir diferente e frui-se esse encontro como um encontro que não abate a pessoa, mas a reafirma de modo pálido” (Gadamer, 1985, p. 78).

A obra que Gadamer denomina “kitsch” é aquela que os românticos denominavam “incriticável”, a obra que deveria suscitar apenas “a refutação indireta... via silêncio” (Benjamin, 1993, p. 87). Essa obra incriticável, porém, como qualquer texto, dá indicações de como deve ser lida. Essas indicações, contudo, são de tal modo indistinguíveis dos pressupostos do leitor seu contemporâneo - podemos mesmo dizer que são urdidas com a intenção de ir ao encontro desses pressupostos e fortalecê-los por meio de uma confirmação por assim dizer mecânica - que o leitor julga desnecessário dizer da obra nada senão um curto sinal de aprovação. A obra de arte que não provoca o que Gadamer denomina “choque”7 tampouco dá origem ao movimento reflexivo da interpretação. Ela também não se torna o que Benjamin denominou “medium de reflexão”.

A leitura benjaminiana da posição romântica a respeito da crítica só tem a ganhar quando aproximada das teses centrais da hermenêutica, e esta última, por sua vez, ganha um reforço por uma formulação diversa do mesmo problema. A conceituação romântica, especialmente em sua sistematização por Benjamin, toca efetivamente em problemas muito próximos aos que a hermenêutica gadameriana tem em vista, em especial no que diz respeito ao processo de recepção das obras de arte. A afirmação segundo a qual a obra de arte autêntica é aquela que já possui em si mesma a sua própria crítica recebe uma nova luz se percebemos que essa crítica imanente só existe quando atualizada pela leitura autêntica, a que, revendo suas pré-compreensões, procura dar voz ao próprio texto, buscando afinar a interpretação com o modo como o texto deseja ser interpretado.

A convergência entre esses dois pensadores, em princípio afastados, que apenas tentamos aqui esboçar, só tem lugar de fato se atentarmos para que é principalmente no âmbito da filosofia da arte que ela pode se dar. A pergunta pelo “sentido da obra de arte”, que Gadamer qualifica de “inesgotável” (Gadamer, 2002, p. 386), é o lugar privilegiado, embora de modo algum o único, para uma atenção à interpretação8. Mas essa resistência é inerente ao texto literário e a qualquer obra de arte genuína, que possui, tanto para Benjamin quanto para Gadamer, o caráter de texto, que vem a ser o nome de um artefato especialmente intrigante, cuja função seria produzir uma situação muito corriqueira, digna, porém, do mais legítimo espanto filosófico: a leitura.

O estranhamento produzido pela obra decorre do contraste entre as expectativas do leitor e o texto, o que dá início a uma interpretação que leva o leitor para longe dos seus pressupostos correntes, da sua tradição impensada. Uma obra como a de Kafka, por exemplo, típico exemplo do século de Benjamin e Gadamer, obriga o leitor a modificar violentamente seus parâmetros sobre o que esperar de uma narrativa, de tal modo que a leitura só prossegue se novos e inesperados pactos forem feitos e refeitos durante o ato de ler. Uma narrativa como “O processo” é o paradigma de um tipo de obra que possui em si mesma a sua crítica, porque induz o leitor a desconstruir uma série de pré-compreensões, já que é atraído pela sua pretensão de verdade.

A inserção do círculo hermenêutico no centro da interpretação da obra de arte implica trazê-la de volta para o âmbito do questionamento da verdade e do conhecimento, isto é, retirá-la da vinculação estrita ao prazer subjetivo, à qual foi destinada pela estética idealista de inspiração kantiana. A descrição do círculo hermenêutico pela dinâmica de interpretação da obra de arte visa, em Gadamer, construir as bases de uma investigação mais ampla do ato de conhecer.

A fim de não ultrapassarmos os limites do que nos propomos aqui, devemos apenas assinalar que a experiência estética, compreendida como o ato hermenêutico iniciado pelo contato com obras de arte em geral, é um processo que não se limita à esfera dos sentimentos do sujeito. A estrutura textual da obra de arte, seja ela de ordem plástica, lingüística ou musical, pressupõe considerá-la um artefato constituído de sinais que indicam como deve ser ela lida, ou, dito de outro modo, ela possui em si mesma a sua crítica. Esses sinais, no entanto, só são desvelados durante a leitura, não tendo, portanto, validade antes dela. Tanto para Benjamin e sua leitura dos românticos, quanto para Gadamer em Verdade e método, só pela leitura o texto mostra já possuir em si mesmo tais sinais.

Como texto, toda obra de arte tem algo a dizer, não se limitando, portanto, a simples ocasião para deleite subjetivo.9 Na linguagem romântica isso é apreendido pelo olhar do crítico, que percebe, segundo Novalis, que “Toda obra de arte tem um Ideal a priori - tem uma necessidade em si de estar ” (apud Benjamin, 1993, p. 84). Essa individualidade absoluta da obra de arte é o motor principal do esforço interpretativo do crítico, que, fisgado pela alteridade radical do texto que tem diante de si, busca explicitar esse “Ideal” já contido na obra, expondo, porém, sua leitura.

Nos termos de Gadamer, significa dar voz ao direito de alteridade da obra em relação ao horizonte prévio do leitor. “Quem quer compreender um texto, em princípio, está disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si” (Gadamer, 1997, p. 405), o que não exclui, antes ao contrário, o embate e o choque do texto em sua alteridade com nossos pressupostos, e isso é justamente o que fará com que nossa leitura seja pautada na “coisa mesma”. Na linguagem romântico-benjaminiana, o discurso do intérprete-crítico é a continuação, em outra esfera, da obra mesma, pois “O verdadeiro leitor deve ser o autor ampliado” (Novalis, apud Benjamin, 1993, p. 76).

É privilegiada a recepção da arte como uma dinâmica que, iniciada na primeira leitura recebida pela obra, continua para além desta, e cada nova leitura é incorporada num “medium de reflexão” potencialmente infinito. A obra deixa de ser vista como objeto completo passando a ser, cada vez mais, associada ao crescente conjunto de leituras que recebe. Tanto melhor se essas leituras são públicas: por isso a valorização da crítica, pois, assim, se escapa do âmbito fragmentado e fechado em si mesmo da leitura subjetiva e muda.

A valorização da leitura crítica tem, para Walter Benjamin, o papel de uma tomada de posição, de conseqüências duradouras, por meio de sua própria obra crítico-filosófica. Benjamin pretende combater a noção de obra de arte como objeto de devoção, seja no seio de algum ritual mágico ou religioso, seja no que ele mais tarde, no famoso ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” denominaria “culto do belo”, forma laica de um modo de recepção cujas raízes são teológicas (Benjamin, 1987, p. 171). Eis um ponto pelo qual poderíamos abrir outro debate entre Benjamin e Gadamer, em que a divergência, em princípio, estaria mais presente, se a descrição, por este último, da experiência da obra de arte como “festa” inclui de modo marcante elementos do culto.

O discurso público sobre a obra de arte, cujo paradigma é a crítica, mas que pode assumir outras formas, é a base para uma experiência de conhecimento e de comunicação, de constituição de um espaço comum de significação. Acreditamos que o gesto teórico gadameriano, assim como suas iniciativas de interpretação de obras de arte específicas, movem-se rumo a, se não exatamente idênticos, ao menos muito semelhantes ao conjunto do trabalho de Benjamin. Em todo caso, ambos os autores chamam nossa atenção para a dinâmica de recepção da obra de arte como um fato social, que não podemos deixar de qualificar como político.

 

Referências

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Benjamin, W. (1987). A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In W. Benjamin, Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política (S. P. Rouanet, trad., pp. 165-196). São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

_____(1992). A tarefa do tradutor (Johannes Kretschmer, trad.). Cadernos do Mestrado V. 1(1). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UERJ.        [ Links ]

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Gadamer, H-G. (1985). A atualidade do belo. A arte como jogo, símbolo e festa (C. A. Galeão, trad.). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.        [ Links ]

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Heidegger, M. (1987). Qu’est-ce qu’une chose? (Jaques Taminuaux, trad.). Paris: Gallimard.

_____(1998). Ser e tempo (Parte I). (M. Schuback, trad.). Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Kant, I. (1993). Crítica da faculdade do juízo (V. Rohden e A. Marques, trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: bernardobcdeoliveira@yahoo.com.br

Enviado em 11/9/2007
Aprovado em 27/6/2008

 

 

1 O texto, tal como citado por Benjamin, fala não em crítica, mas em julgamento: “Felizmente, ele é precisamente um destes livros que julgam a si mesmos” (Benjamin, 1993, p. 75). A expressão utilizada é “sich selbst beurteilen” (Benjamin, 1997, p. 66). No contexto dessa discussão, no entanto, Benjamin, interessado em distinguir juízo de crítica, interpreta sumariamente o julgamento como sinônimo de “Rezension”, pois acrescenta, como adendo à afirmação de Schlegel, a seguinte frase de Novalis: “Recensão é o complemento do livro. Alguns livros não precisam de recensão alguma, apenas de um anúncio; eles já contém a recensão” (Benjamin, 1997, p. 66).
2 Apoiamo-nos, aqui, na interpretação proposta por Heidegger para o termo (Heidegger, 1987, p. 130).
3 A arte “genial”, produzida sem regras (“a própria arte bela não pode ter idéia da regra segundo a qual deva realizar o seu produto”), é destinada a uma leitura que não discerne qualquer acordo com alguma regra anterior, e, por isso, ela “[...] dá muito a pensar, sem que, contudo, qualquer pensamento determinado [...] possa ser-lhe adequado, que conseqüentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível” (Kant, 1993, p. 159).
4 Benjamin se manterá fiel a essa idéia até o fim de sua obra, e isso será decisivo quando da formulação da teoria da “aura” e da análise das possibilidades abertas pelo declínio desta na arte contemporânea, em especial no cinema e na fotografia. Cf. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 1987, pp. 165-196).
5 Cf. também esta importante observação: “Quem quer compreender um texto, em princípio, está disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. [...] O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias” (Gadamer, 1997, p. 405).
6 Interessante neologismo cunhado pelo tradutor Johannes Kretschner para os termos Überleben e Fortleben, do ensaio “A tarefa do tradutor”, de Walter Benjamin. Com esses termos, Benjamin se refere à continuidade da obra por meio da tradução (Benjamin, 1992, p. 11).
7 A esse respeito, afirma Gadamer: “Em geral tem-se que dizer que é somente a experiência do choque com um texto - seja porque ele não oferece nenhum sentido, seja porque seu sentido não concorda com nossas expectativas - o que nos faz parar e perceber um possível ser-diverso do uso da linguagem” (Gadamer, 1997, p. 403).
8 Gadamer raramente usa o termo crítica, mas, quando o faz, é num sentido muito próximo do que nos interessa aqui, como, por exemplo: “Face a qualquer texto, nossa tarefa é não introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos lingüísticos” (Gadamer, 1997, p. 403).
9 Acreditamos que uma leitura da “Crítica da faculdade do juízo”, de Kant, orientada hermeneuticamente, pode demonstrar que, mesmo nessa obra, que é tradicionalmente assinalada como o auge da estética subjetiva do sentimento, a experiência estética, representada ali pelo livre jogo entre o imaginar e o compreender conceitualmente (o entendimento), que acontece como um esquematismo sem conceitos determinados, guarda relações fundamentais e originárias com o ato de conhecer, e que, de certo modo, precede ao conhecimento objetual, tal como realizado nas ciências da natureza.