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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.1 São Paulo jun. 2008

 

RESENHA

 

Adel Fernando de Almeida Vanny1

Acadêmico do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria e bolsista CAPES

Endereço para correspondência

 

 

Gadamer, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva: Vol. 1. Heidegger em retrospectiva. Tradução: Marco Antônio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
ISBN 978-85-326-3450-4

O volume dez das Obras Completas (Gesammelte Werke) de Hans-Georg Gadamer, intitulado Hermenêutica em retrospectiva (Hermeneutik im Rückblick), publicado em 1995, encontra-se, na edição original, dividido em cinco seções: 1) Heidegger em retrospectiva; 2) A virada hermenêutica; 3) Hermenêutica e a Filosofia prática; 4) A posição da Filosofia na sociedade; e 5) Encontros filosóficos. Recentemente, a Editora Vozes publicou, separados em volumes, a edição brasileira das quatro primeiras seções dessa obra. Cada uma dessas partes é composta por um conjunto de ensaios do filósofo. No primeiro volume (Heidegger em retrospectiva), Gadamer expõe a senda na qual se apresentam as questões e influências que perfizeram o pensamento de Heidegger, desde 1920 até seus trabalhos mais tardios. Para tanto, o autor ampara-se na publicação das preleções e manuscritos de Martin Heidegger, datados do início da década de 20, quando este era livre-docente em Freiburg.

O livro Heidegger em retrospectiva é composto de sete ensaios que circunscrevem questões e temas centrais do pensamento heideggeriano. O primeiro ensaio é intitulado Lembranças dos momentos iniciais de Heidegger (1989). Trata-se de um relato de Gadamer a respeito do jovem Martin Heidegger nos primeiros anos como livre-docente na Universidade de Freiburg. Neste relato, o autor traça a imagem de Martin Heidegger como um inquieto teólogo e brilhante professor, cujo pensamento autônomo se impôs ao formalismo neokantiano e ao idealismo transcendental tardio de Husserl. O filósofo narra como, em 1922, transcorreu seu primeiro contato com Heidegger. A forte impressão causada por este jovem professor levou Gadamer a freqüentar todos os cursos por ele ministrados na época. Na descrição dos temas desses cursos, o autor ressalta que entrou em contato com uma linguagem nova, própria do jovem Heidegger. Para Gadamer, tal linguagem concedia matizes novos à abordagem “lógica universal”, com a qual estava acostumado (p.11). Em vista dessa nova tonalidade, o filósofo vê nos cursos ministrados pelo jovem professor a influência direta e indireta de vários autores, tais como: Dilthey, Kierkegaard, Hegel e Nietzsche. Além das influências, ele aponta para a presença de um questionamento crítico da metafísica ocidental. Na linguagem peculiar e nesse questionamento crítico emerge a nova tentativa de pensamento filosófico, ou seja, o pathos da hermenêutica da facticidade.

No segundo ensaio, denominado Heidegger e a linguagem (1990), Gadamer descreve a passagem, em 1923, de seu antigo professor de uma atmosfera cristã da Universidade de Freiburg para um ambiente fundamentalmente protestante de Marburgo. Em tal descrição, ele chama a atenção para os efeitos psicológicos dessa mudança de ares e para o enriquecimento conceitual da linguagem heideggeriana.

O autor considera que para discutir a significação da filosofia de Martin Heidegger é necessário atentar para a nova experiência da linguagem inaugurada por este (p. 25). Direciona-se, dessa maneira, para o tema da linguagem. Gadamer acompanha o tema no interior da filosofia de seu preceptor. Nesse desdobramento aparece sua interpretação frente à análise heideggeriana da obra aristotélica, análise na qual Heidegger teria anunciado a base determinante da Filosofia Ocidental no tratamento concedido ao logos na filosofia antiga. Segundo essa análise, Aristóteles teria tematizado o logos em seu caráter de “enunciado conceitual” (apophansis) (p. 26), ou seja, em seu caráter declarativo, no qual o logos pode ser considerado como verdadeiro ou falso. Ainda que Aristóteles tenha descrito outros tipos de logos, a tematização do logos como enunciado conceitual teria associado a proposição à verdade.

Dessa crítica, o autor traz à tona a questão metodológica da necessidade de uma “destruição”, em termos de uma desconstrução apropriativa da linguagem da filosofia que possibilitaria uma liberação dessa tradição conceitual do Ocidente. Assim, a análise dos conceitos daria voz à “experiência originária do ‘ser’ (p. 39)”. Gadamer lembra a importância da filosofia heideggeriana para a instância do diálogo, visto que, no habitar com os outros, encontra-se já sempre a linguagem. Dessa forma, ele indica a tarefa de transpor os petrificados modos de ser na sociedade a partir do pensamento que busca pela apropriação das experiências originárias da própria vida. Para o filósofo, com base nas próprias experiências originárias, os falantes de toda e qualquer língua aprenderiam a valorizar o ouvir, a respeitar uns aos outros e a se responsabilizar mutuamente no mundo em que habitam (p. 48).

Esse ponto é retomado no ensaio seguinte, que tem como título Heidegger e os gregos (1990). Em tal escrito, o filósofo propõe estabelecer um diálogo que - frisa - não se destina apenas ao Ocidente, mas a todas as culturas com línguas distintas e experiências próprias de vida. Essa estratégia aponta para a resposta que Gadamer dará a uma questão inicial a respeito da herança permanente da filosofia heideggeriana. Para responder a essa questão, o autor traz à tona o tema “Heidegger e os gregos”, o qual vem sob uma nova luz com base na publicação das obras completas de Heidegger. Gadamer destaca o célebre texto de 1922, intitulado Indicação da situação hermenêutica (Anzeige der hermeneutischen Situation), referente a uma introdução à interpretação fenomenológica da obra aristotélica.

Segundo Gadamer, havia algo de revolucionário (para o ambiente neokantiano da época) na nova linguagem encontrada nas preleções heideggerianas sobre Aristóteles. Heidegger era, nas palavras do autor, “um pensador que, a partir da língua falada viva, empenhava-se por tornar realizável junto ao texto grego o movimento próprio do pensamento, (p. 53). No retorno aos gregos, ele desenvolveu o seu questionamento em vista das experiências próprias da vida, em vista da hermenêutica da facticidade (p. 57).

A partir daí, vêm à luz questões referentes à análise heideggeriana sobre o início grego do pensamento filosófico na história do Ocidente. De acordo com o ensaio, Heidegger localiza, no passo da filosofia antiga em direção à metafísica, aquilo que identificou como “esquecimento do ser”. A reformulação desse ponto de partida na latinização dos conceitos metafísicos própria do cristianismo subjaz ao direcionamento do Ocidente à ciência moderna (p. 62). Desta feita, emerge o modo próprio da fenomenologia hermenêutica lidar com a linguagem conceitual da Filosofia Ocidental, modo que possibilitaria a compreensão daquilo que se mostra num conceito. O sentido positivo do termo “destruição” encontra-se nesse modo de lidar com a linguagem, onde o pensamento é capaz de alcançar, nas próprias experiências lingüísticas, a abertura de mundo, a palavra na qual o que é visado se desvela (p. 70). Tal modo é, para Gadamer, a herança permanente de Heidegger.

O quarto ensaio denomina-se Heidegger e a sociedade - Bourdieu e Habermas e contém duas análises críticas. A primeira diz respeito a um artigo, de 1979, intitulado A ontologia política de Martin Heidegger, e se refere a uma contundente crítica ao livro homônimo do sociólogo Pierre Bordieu. Em tal artigo, Gadamer acusa Bordieu de, partindo de interpretação pessoal de Heidegger, pretender reduzir a filosofia a relações político-sociais. A segunda análise chama-se Heidegger no pensamento da Modernidade (1985) e é dirigida ao livro O discurso filosófico da Modernidade - Doze preleções de Jürgen Habermas. Gadamer vê, na tentativa habermasiana de sustentar uma relação com a modernidade a partir de uma discussão crítica de representativos pensadores da época (p. 81), um solo inadequado para pensar a filosofia heideggeriana. O autor considera que, assim como Pierre Bordieu, Habermas permanece afastado dos impulsos diretivos da filosofia heideggeriana (p.86).

O quinto ensaio é intitulado Hermenêutica e diferença ontológica (1989). Ele aborda as noções de diferença ontológica e hermenêutica em seus desdobramentos no pensamento heideggeriano. Para explicitar o conceito de “diferença ontológica” Gadamer parte da questão: o que significa a diferenciação entre os planos ôntico e ontológico? Em vista disso, ele lança mão de um retorno ao pensamento grego, retorno no qual o tema do “ente” e do “uno” vem à tona. Segundo o autor, na interpretação heideggeriana desses temas, a diferença acontece em uma compreensão prévia de ser, que pode ser elevada ao nível de conceito (p. 92). Porém, lembra Gadamer, a diferença ontológica não é algo que é feito, mas algo que se dá, que se encontra aí. Eis o que, em sua obra tardia, Heidegger denominou “abertura do ser”.

A tentativa de conceitualizar “ser” requer um peculiar método interpretativo. Assim, Gadamer dirige a atenção para o conceito de “hermenêutica” e analisa o desenvolvimento histórico desse conceito, desembocando na concepção de “hermenêutica da facticidade”, desenvolvida por Heidegger. Aqui, hermenêutica diz respeito a uma noção bastante especial da arte de interpretar o que já se encontra compreendido na facticidade do ser-aí (p. 96). Disso, o autor descreve o horizonte da compreensão de ser em que a hermenêutica deve atuar. A vida fáctica revela-se como marcada pela clareza e abertura para o ser e, entretanto, com uma dinâmica que torna o ser sempre novamente velado (p. 97).

Para Gadamer, na busca por explicitar o sentido do “ser”, Heidegger traz à baila o problema da verdade. Em face desse problema, ele tematizou as noções de “desvelamento” (aletheia) e de “encobrimento”. O encobrimento é apresentado como a característica da vida que tende sempre a velar o ser. A tarefa da hermenêutica evidencia-se como um “voltar-se contra o encobrimento” (p. 99). Portanto, a hermenêutica heideggeriana visa descobrir aquilo que de algum modo encontra-se compreendido pelo ser-aí, a partir de seu próprio mundo circundante, ou seja, visa liberar experiências originárias da vida. Esse afastar encobrimentos no pensamento para elevar experiências originárias da vida (p.104) no nível de conceitos lança uma nova luz às concepções de “linguagem” e “diálogo”. Assim, o escrito finaliza com um alerta para a ameaça do enrijecimento de nossos conceitos para a instância do diálogo.

No ensaio seguinte, denominado A viragem do caminho (1985), o filósofo apresenta o caminho da reflexão heideggeriana em direção a experiências fundamentais do pensar. Ele afirma que, apesar de tantas voltas e viradas, o desenvolvimento do pensamento de Heidegger impõe-se como uno. Ademais, é possível notar aquela que foi sempre a direção deste pensamento: a superação da “subjetividade do pensamento moderno” (p. 109). Gadamer pondera que frente ao fracasso do programa de Ser e tempo, Heidegger intensificou sua crítica à tradição metafísica e ao último estágio da filosofia transcendental (Husserl). Com base na análise dos gregos, os escritos de Heidegger deixam de tratar a questão do ser a partir do ser-aí e de seu horizonte de abertura - como em Ser e tempo - e se aproximam da linguagem poética de Hölderlin. Isso não pode ser visto como um afastamento do caminho dos conceitos, nem como mera “teologia negativa”, mas sim como a multiplicidade de caminhos percorridos por Heidegger nas tentativas de pensar o ser (p. 113).

Ganha destaque a expressão “caminhos da floresta” (Holzwege), que aponta para as tentativas de pensamento que não desembocam em nenhuma meta e que impõem o retorno sobre o próprio caminho do pensar (p.113). As análises dessa expressão e do tema da vida lançam luz à concepção heideggeriana de “viragem”, que, de acordo com Gadamer, não se refere à inversão da direção do pensamento, mas ao adequado direcionamento do pensamento em vista daquilo que está em questão (p. 115).

O último ensaio tem como título Pensar e poetar em Heidegger e Hölderlin (1988). Ele versa sobre a proximidade e a distância entre o pensar e o poetar a partir da filosofia de Heidegger e de seu contato com a poesia de Hölderlin. Em vista disso, Gadamer trata da questão de se é possível esperar verdade da “palavra” (p. 118). Ele ressalta que o poder ter verdade da palavra não indica que a verdade esteja na palavra em si. Diante do fato de que apenas a palavra da poesia atesta a si mesma, a exigência de uma “verdade da palavra” destaca, em primeiro lugar, uma exigência do poeta. Gadamer advoga que o “atestar a si mesma” da palavra constitui a aletheia (p. 118).

A partir do poder de nomeação da palavra, o autor traz à tona o conceito de “logos” (discurso) - num sentido mais amplo do que o logos aristotélico - capaz de dar conta de uma instância na qual a palavra revela uma “força enunciativa irrestrita (p. 120)” e que possibilitaria a reflexão sobre a relação entre pensar e poetar. Assim, trata-se de alcançar a dimensão daquilo que é desvelado no contexto do discurso, a qual se revela como prévia e necessária para que uma palavra desempenhe a sua significação (p. 121-122). Um retorno à obra de Parmênides e de Heráclito permite explicitar o que está aqui em questão, a saber, o “ser”. Nesse contexto, o autor destaca a inseparabilidade de pensar e ser. Com isso, aponta para o fato de o poetar instaurar o permanente em meio ao pensamento que recorda (p. 125). Porque a poesia instaura o ser desvelado no discurso, Hölderlin foi visto por Heidegger como, diz Gadamer, “membro de um futuro que poderia trazer consigo a superação do esquecimento do ser” (p. 126). Segundo o autor, tanto o pensamento heideggeriano quanto a poesia de Hölderlin levam a marca dessa tentativa de superação em uma “penúria lingüística”, que busca incessantemente a palavra correta para aquilo que se quer dizer.

Em suma, a leitura do primeiro volume de Hermenêutica em retrospectiva oferece uma rica e singular oportunidade para os leitores terem acesso às interpretações de Hans-Georg Gadamer a respeito dos rumos e avanços da fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger. Além disso, esse volume oferece uma amostra do impacto da filosofia deste filósofo sobre o pensamento gadameriano. É também digno de nota que em breve deverá estar disponível a tradução do quinto e último volume dessa obra, o que permitirá conhecer o amplo leque e a contribuição específica dos temas e questões que nela foram desenvolvidos.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: adel_vanny@yahoo.com.br

Recebido em 1°/3/2008
Aprovado em 5/6/2008

 

 

1 Resenha revisada por Róbson Ramos dos Reis (UFSM).