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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A metafísica e o processo de objetificação

 

Metaphysics and the process of objetification

 

 

Zeljko Loparic

Unicamp, PUC-SP E-mail: loparicz@uol.com.br

 

 


RESUMO

Depois de mostrar que o programa de Ser e tempo inclui a desconstrução da metafísica, da ciência e de todos os processos de objetificação (a "aspectualização", a representação etc.), o artigo apresenta as dificuldades do primeiro Heidegger em reconstruir as estruturas da objetividade com base na acontecência do ser-o-aí do homem. Em seguida, trata de alguns dos motivos, entre eles a discussão com representantes da ciência contemporânea, em particular com Heisenberg, pelos quais Heidegger abandonou a reconstrução daseinsanalítica da objetificação e recorreu, para determinar a essência desse fenômeno, à acontecência da verdade do ser. Por fim, mostra-se que o próprio Heidegger admitiu a dificuldade de pensar todos os elementos essenciais da objetificação como uma decadência da verdade do ser.

Palavras-chave: Heidegger, Metafísica, Ciência, Técnica, Objetificação.


ABSTRACT

After demonstrating that the program of Being and Time includes the deconstruction of metaphysics, science, and of all the processes of objectification (point of view, representation, etc.), the text presents the difficulties of the first Heidegger in reconstructing the structures of objectivity from the occurrence of the being there of man. Following, the discussion deals with some of the motives, among them discussions with representatives of contemporary science, in particular with Heisenberg, by means of which Heidegger abandoned the reconstruction daseino of objectification and returned to determine the essence of this phenomenon, the occurrence of the truth of being. Finally, the text shows that Heidegger admitted the difficulties of thinking of all the essential elements of objectification as decadence of the truth of being.

Keywords: Heidegger, Metaphysics, Science, Technique, Objectification.


 

 

O programa de Ser e tempo

Em Ser e tempo, Heidegger propõe um programa para repensar a história das ontologias tradicionais no quadro de uma elaboração radical da pergunta pelo sentido do ser. O sentido do ser é projetado pelo homem no horizonte do tempo originário, explicitado por uma nova disciplina filosófica criada por Heidegger: a analítica existencial. Essa disciplina parte da pergunta: qual é a estrutura do acontecer do homem que projeta o sentido do ser no tempo originário? A parte central da resposta de Heidegger diz que o homem acontece como uma relação ao ser (presença) e que essa relação se realiza não como um ato de consciência, mas como compreensão projetiva do ser e como cuidado pelo sentido do ser, sempre no horizonte do tempo originário. Tomada no seu todo, essa resposta constitui a ontologia fundamental, doutrina que reúne os elementos da estrutura do Dasein, isto é, do ser-o-aí, de toda e qualquer manifestação do ente (aquilo que é presente), e do sentido do ser do ente.

A história de todas as outras ontologias é concebida como uma série de respostas à pergunta: o que é o ente enquanto ente em geral? As respostas a essa pergunta pela qüididade são elaboradas sem a colocação da pergunta prévia, colocada na analítica existencial, pela estrutura do acontecer do ser humano, isto é, pela relação não-representacional do homem ao ser. "Repensar" a história das ontologias tradicionais significa mostrar que a pergunta-guia delas - que é o ente? - e as respostas que lhe correspondem são baseadas numa modificação do acontecer do Dasein no tempo originário e num conseqüente esquecimento do sentido do ser originário dos entes. Mostrar isso significa, diz Heidegger, proceder à "destruição" ou "desconstrução" da "história da ontologia segundo o fio-condutor da temporalidade" (1927/2004, p. 39). Mais precisamente, desconstruir a ontologia significa mostrar que a pergunta pela qüididade do ente diz respeito aos aspectos representacionais, em especial visuais, do ente, não à sua praticidade ou, como afirma Heidegger, ao seu "para que" não-visível, mas, assim mesmo, acessível no espaço de uso pelo ser humano - espaço mais originário1 da sua manifestação; quer dizer, ainda, que as respostas das ontologias, ao contemplarem a qüididade como aspectualidade, passando por cima da "praticidade" ou "serventia" do ente, ignoram a pergunta: como se constituem os modos de decidir o quid de todas as coisas no acontecer do ser-o-aí de todas as coisas?

A desconstrução consiste, portanto, no movimento de recuo da qüididade ontológica do ente para a sua condição de algo intramundano, de algo usado para algo, à luz do ser como instrumentalidade. Cabe fazer ainda o inverso: reconstruir as qüididades elaboradas pelas ontologias com base nas modificações do sentido do ser mais originários e pré-representacionais dos entes, que acontecem como modificações da relação ao ser do ente que tem a estrutura do ser-o-aí. Esse procedimento reconstrutivo tem o caráter de gênese existencial-ontológica das ontologias e consiste na desmundanização inicial do ente, ou seja, na substituição do seu "para algo" por sua "essência".

Segue-se que a "ontologia fundamental", a qual determina a estrutura do ser-o-aí e que, portanto, deve ser vista como filosofia primeira, não é uma ontologia geral. De fato, a tese heideggeriana da multiplicidade dos sentidos do ser exclui a ontologia geral. A ontologia fundamental não é mais ontologia, pois ela não pergunta pelo que o homem é (pela qüididade do homem), mas pelo modo como acontece a relação do homem ao ser, a saber, pelo ser-o-aí do homem. Essa pergunta não é do mesmo tipo que a pergunta-guia das ontologias e, por isso, a resposta a ela não pode ser dada nem por uma ontologia geral nem por uma ontologia regional. O programa heideggeriano de repensar a história das ontologias tradicionais no quadro de uma elaboração radical da pergunta pelo sentido do ser implica, portanto, o abandono do modo de pensar ontológico em geral. Heidegger percebeu logo o equívoco da terminologia de Ser e tempo, deixou de falar em ontologia fundamental e passou a formular a pergunta pelo ser de maneira explicitamente pós-ontológica ou, como ele prefere falar, pós-metafísica.2 Ele recusará, ainda, qualquer tentativa de enquadrar o homem numa ontologia regional. Esse fato explica a constante recusa de Heidegger em admitir uma "antropologia filosófica".3

Em certos textos da primeira fase, como "Que é metafísica?", Heidegger usa o termo "metafísica" para designar seja a relação do homem ao ser - a sua disposição de transcender o ente no seu todo em direção ao ser -, seja a explicitação conceitual desse movimento. Portanto, nesse opúsculo, o termo "metafísica" tem um sentido muito próximo de "ontologia fundamental". Em outros textos, o mesmo termo designa as ontologias anteriores às de Heidegger, isto é, modos de pensar esquecidos da pergunta pelo ser e que fazem indagações apenas pelo ser do ente. Se tomada no primeiro sentido, a metafísica deve ser buscada como defesa contra a submissão do homem ao ente. No segundo sentido, a metafísica é um modo de pensar que deve ser ultrapassado, precisamente por levar ao esquecimento da relação do homem ao ser - e, por isso, favorecer a objetificação tanto filosófica quanto científica do ente no seu todo, tema que abordarei logo a seguir. Para evitar essa ambigüidade, usarei o termo "metafísica" apenas no segundo sentido. Essa escolha se justifica ainda pelo fato de Heidegger, após 1930, fazer o mesmo, chegando a definir o ultrapassamento da metafísica como uma das tarefas centrais do seu pensamento.

As determinações das qüididades elaboradas pelas ontologias tradicionais implicam a decomposição do todo dos entes em várias regiões e a determinação da essência dos entes da cada uma dessas regiões por diferentes grupos de conceitos fundamentais (1927/2004, p. 9). Esses conceitos fundamentais são, ao mesmo tempo, o ponto de partida da elaboração de ciências factuais. Assim, por exemplo, a teoria da relatividade baseia-se numa resposta à pergunta "pela constituição do domínio que lhe é oferecido previamente, com a pergunta pela [estrutura fundamental da] matéria" (1927/2004, p. 9). A solução explícita desse problema não pertence à teoria da relatividade propriamente dita, mas à filosofia, que, enquanto ontologia regional do domínio de natureza material, precisa encarregar-se de produzir um "sistema categorial" destinado a fundamentar e dirigir, a título de uma "lógica produtiva", a pesquisa e a teorização sobre os objetos desse domínio. Um exemplo de lógica produtiva para o domínio de natureza material é a lógica transcendental de Kant, disciplina constituída como "lógica material a priori do domínio de ser que é a natureza" (1927/2004, p. 11). Portanto, a destruição e a reconstrução complementar da história da ontologia implicam também a destruição e a reconstrução das diferentes ciências positivas, segundo o fio condutor da temporalidade, isto é, a elaboração da gênese existencial-ontológica do objeto e da estrutura dessas ciências. Essa gênese pode ser vista como a lógica produtiva de Heidegger para o domínio de estudo composto de fenômenos naturais e humanos.

Tanto as ontologias como as ciências factuais nelas fundadas possibilitam e promovem a objetificação do ente como tal no seu todo. No essencial, a objetificação é um acontecer no ser-o-aí pelo qual o ente é descontextualizado, ou seja, isolado do aí, desmundanizado, e projetado como algo em si mesmo, a ser caracterizado apenas por um ou outro aspecto considerado essencial, a qüididade. Na sua forma extrema, a objetificação não somente deixa para trás a relação do ente ao aí (mundo) da sua manifestação originária, como também elimina a pergunta ontológica tradicional pela aspectividade ou qüididade do ente, para permitir, como propõe o positivismo, que se trate apenas do ente em relação funcional com outros entes. Heidegger vê nesse desenvolvimento não apenas o esquecimento do ser, mas também se sente pessoalmente acossado pelos seus efeitos. É desse processo que caberá também elaborar uma gênese existencial-ontológica. Nota-se que, na sua fase inicial, Heidegger não relaciona a objetificação à técnica, tomada no sentido de armação (Gestell), isto é, de processo de instalação perseguidora do ente no seu todo que ameaça a essência do homem, tema que dominará toda a segunda fase do seu pensamento.

 

Heidegger sobre a objetificação e a metafísica em Kant

Vimos que Heidegger toma a lógica transcendental de Kant por lógica produtiva do domínio de natureza material, oferecendo, em caráter exemplar, um certo modo de determinação do ser dos entes desse domínio: a aspectualidade. Ora, de acordo com a lógica produtiva do próprio Heidegger, os entes desse domínio existem no sentido de presentidades (das Vorhandene), sentido de ser regional e não originário. Esse sentido foi devidamente articulado por Kant, mas a sua origem no acontecer do ser-o-aí permaneceu não esclarecida. À luz desse diagnóstico, surgem para Heidegger três tarefas: 1) mostrar que a lógica transcendental de Kant é uma ontologia que pode ser desconstruída e, em seguida, reconstruída, no quadro da analítica existencial, 2) mostrar que a ciência factual fundada na lógica transcendental de Kant pode também ser desconstruída e, em seguida, reconstruída da mesma maneira, pela gênese existencial-ontológica, e 3) prevenir que a aspectualidade do ente elaborada pela lógica produtiva de Kant pode ser usada como caminho para a objetificação extrema.

De acordo com a primeira tarefa, Heidegger interpreta Kant como ontólogo das ciências factuais. Tal abordagem, apenas indicada em Ser e tempo, é retomada e recebe uma nova dimensão em "Kant e o problema da metafísica" (1929/1951). Nessa obra, Heidegger identifica a lógica transcendental com a metafísica geral no sentido tradicional da palavra, cujo "plano preliminar do ente" está inserido "em conceitos e princípios" das ciências factuais particulares (1929/1951, p. 20). Pois, argumenta Heidegger, "a manifestidade do ente (verdade ôntica) gira em torno do desocultamento da estrutura do ser do ente (verdade ontológica)" (1929/1951, p. 22). O desocultamento da estrutura do ser do ente teria sido realizado por Kant na forma de juízos sintéticos a priori, razão pela qual o problema da possibilidade da ontologia é reduzido à pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? (1929/1951, p. 22). A resposta kantiana, apresentada na Analítica transcendental da primeira "Crítica", tem a forma explícita de uma teoria geral da objetidade de objetos. Essa teoria de objetificação de tudo o que há é o equivalente kantiano da ontologia (1929/1951, p. 25), isto é, uma reedição da metafísica geral dos modernos e dos antigos, que é, por sua vez, a base do saber científico positivo (Newton).

Creio que essa caracterização da lógica transcendental de Kant pode ser questionada. A objeção consiste em dizer que o problema kantiano da possibilidade dos juízos sintéticos a priori não é um problema ontológico e que, por conseguinte, a teoria kantiana da objetificação não é uma ontologia. Mais precisamente, a pergunta de Kant mencionada não diz respeito à qüididade dos entes em geral, nem mesmo aos do domínio da natureza, mas às condições nas quais os juízos sintéticos a priori podem ser verdadeiros ou falsos. Nesse contexto, dizer que um juízo é possível é o mesmo que afirmar que ele é objetivamente, determinadamente, verdadeiro ou falso. Portanto, o problema tratado por Kant não é ontológico, mas semântico.

Segundo a interpretação que explicitei em vários trabalhos anteriores, a lógica transcendental é uma semântica a priori de juízos sintéticos a priori do entendimento puro, a verdade dos quais tornam possíveis - determinadamente verdadeiros ou falsos - todos os outros juízos sintéticos, a priori ou a posteriori, sobre o domínio de experiência visual possível. Por essa razão, esses juízos são chamados coletivamente de "verdade transcendental" (Kant 1787/1980, p. 146). Contudo, os princípios do entendimento não expressam uma "verdade ontológica", pois não são mais do que "princípios da exposição dos fenômenos, devendo o soberbo nome de ontologia - a qual se arroga o direito de fornecer em uma doutrina sistemática conhecimentos sintéticos sobre coisas em geral (por exemplo, o princípio de causalidade) - ceder lugar ao modesto nome de uma simples analítica do entendimento puro" (1787/1980, p. 303). Esse texto decisivo, jamais (que eu saiba) citado por Heidegger, afirma várias coisas de importância capital que conflitam com o projeto de ler a lógica transcendental como uma ontologia.

Em primeiro lugar, fica claro que as proposições fundamentais da Analítica Transcendental não têm uma função "reveladora", teórica, veritativa, mas essencialmente operacional: a de oferecerem regras de formação de conceitos cujos referentes exclusivos são os objetos de um certo tipo - os fenômenos visuais e as relações causais entre eles.4 A objetificação almejada por Kant é uma "aspectualização" que consiste na redução dos fenômenos a feixes de representações intuitivas ou discursivas, em particular as matemáticas. Aqui, aspectualidade é, portanto, sinônimo de representidade. O que se busca é apresentar as coisas de tal maneira que seja possível descobrir não o que as coisas são, mas o que a natureza faz das coisas. Descobrindo isso, podemos nós mesmos passar a modificar e a produzir as coisas de acordo com nossos fins técnico-práticos e moral-práticos.

Em segundo lugar, ao falar da soberba da ontologia tradicional, Kant indica que essa disciplina se arroga direitos que não tem, nem pode ter, a saber, os de oferecer uma doutrina do ente em geral. Tal doutrina é impossível.5 O princípio de causalidade, por exemplo, não pode ser provado objetivamente válido para "as coisas em geral", mas tão-somente para um domínio restrito de fenômenos e, nessa qualidade, ele não expressa uma verdade ontológica geral nem mesmo regional, mas funciona apenas como regra para a exposição de entes de um certo domínio, os fenômenos, em juízos de forma hipotética (condicional).

Em terceiro lugar, o caráter essencialmente operacional do princípio de causalidade, assim como o de outros juízos sintéticos a priori do entendimento, ficam mais visíveis quando se atenta para a sua função metodológica: a de servirem de regras a priori para a pesquisa no domínio da experiência cognitiva possível.6 É verdade que os princípios fundamentais da ciência básica da natureza, a física newtoniana, são ainda chamados por Kant de "metafísica da natureza". Mas esse termo não é sinônimo do soberbo nome de ontologia regional do mundo físico ou cosmologia racional. Ele designa estruturas discursivas a priori que servem essencialmente para guiar a pesquisa empírica sobre as relações entre os entes acessíveis mediante seus aspectos visuais e para organizar os resultados assim obtidos. Os fins últimos da objetificação são operacionais: facilitar a busca e a organização de leis para o mundo fenomenal.7

A pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori? não deve, portanto, ser entendida como relacionada à possibilidade da ontologia. Essa objeção a Heidegger pode ser reforçada observando que a mesma pergunta é feita por Kant com respeito aos juízos a priori morais, jurídicos, de gosto, da religião, das doutrinas do direito e da virtude, e da história. Nenhum desses juízos pode ser classificado como ontológico. As formas da discursividade são múltiplas e são caracterizadas por diferentes sintaxes (tanto de superfície como profundas), e por diferentes semânticas (diferentes domínios de interpretação e diferentes regras de interpretação).

O malogro da tentativa heideggeriana em converter a semântica transcendental de Kant em ontologia tem paralelos em outras derivações frustradas. Numa primeira parte deste artigo (seções 3-6), darei exemplos do caráter problemático da gênese existencial-ontológica dos elementos da representidade dos fatos, tal como fundada por Kant e empregada nas ciências positivas. Numa segunda parte (seções 7-9), mostrarei que o Heidegger tardio admite o rompimento da ciência contemporânea, lugar de objetificação por excelência, com a ontologia (metafísica) tradicional, reconhecendo indiretamente que as tentativas de derivação ontológico-existencial do objeto e da estrutura desses saberes, bem como do processo de objetificação (aspectualização), ensaiadas na primeira fase do seu pensamento, levam a um beco sem saída. Embora não abandone por completo a teoria da acontecencialidade do ser, que termina no esquecimento da pergunta pelo ser, Heidegger admite, como veremos a seguir, que a revitalização dessa pergunta, à luz da indagação pela verdade do ser, não permite uma caracterização satisfatória da natureza do processo de objetificação. Não apenas a ontologização do projeto kantiano da crítica da razão pura foi reconhecida, a posteriori, como um esforço vão, mas também a tese geral da origem metafísica do processo de objetificação ficou sensivelmente enfraquecida. Mais ainda, há indicações de que o próprio Heidegger admitiu que a sua concepção da conexão essencial entre a pergunta pelo sentido (ou, na forma refeita, pela verdade do ser), por um lado, e o processo de objetificação, por outro lado, não tem condições de guiar um pensamento que se quer à altura dos desafios colocados por esse processo e que dominam a época na qual vivemos.

 

O problema da gênese existencial-ontológica da região de ser que é a natureza inanimada

Em Ser e tempo, Heidegger elaborou um programa que, se executado, forneceria os atestados de nascimento ontológico-existenciais a todos os grupos de conceitos ontológico-objetificantes da metafísica tradicional (inclusive aos da lógica transcendental de Kant), bem como aos da ciência positiva. Ele promete realizar essa última tarefa mediante: 1) uma teoria da constituição ontológico-existencial do objeto da ciência da natureza e 2) uma gênese existencial-ontológica dessa ciência.

Começo pelo primeiro ponto. Para Heidegger, no mundo circundante público, encontramos uma natureza ambiental. Ao nos ocuparmos com as coisas, também descobrimos a natureza (1927/2004, p. 71). Tomada nesse primeiro sentido, a natureza é "um ente, que encontramos no interior do mundo e pode ser descoberto por caminhos e em graus diferentes" (1927/2004, p. 63). Em que consiste a especificidade da natureza tomada nesse sentido? Em ela ser, se compreendida ontológico-categorialmente, "um caso limite do ser do ente intramundano possível" (1927/2004, p. 65). Tal ocorre quando "o mundo perde o seu caráter ambiental e o ambiente se torna mundo natural" (1927/2004, p. 112; cf. p. 71). Mas a natureza, assim descoberta, ainda não é algo meramente presente, nem tampouco uma força natural. Esses dois sentidos do ente são derivados e podem, em seguida, tornar-se objeto da ciência natural.

A fim de ilustrar as dificuldades dessa derivação, considerei o problema relativo à constituição de um aspecto central do mundo da natureza enquanto objeto da ciência da natureza: o da temporalidade linear, o tempo objetivo. Esse tempo é derivado do tempo público intramundano pela medição. Como se faz essa medição? Pelo uso do relógio "natural", ou seja, dos processos periódicos naturais. Esses processos são, de certo, acessíveis no "aguardar presentificador" (1927/2004, p. 413). Mas Heidegger tira daí, sem qualquer argumento adicional, a seguinte conclusão: como o ser lançado junto ao relógio se fundamenta na temporalidade originária, esta é o fundamento do relógio.

Aqui convém ponderar. O ser-junto, o uso de um instrumento, descobre a sua serventia. São justamente os diferentes modos de uso que determinam o quadro das serventias dos objetos de uso, constitutivo do ser do ente intramundano como instrumento. Assim, por exemplo, o sapato serve para..., as reticências podendo ser substituídas por comportamentos de uso. Ora, a serventia do relógio não é descoberta dessa mesma maneira. O relógio de punho ou o relógio solar não se move periodicamente por ser usado para medir o tempo, pelo contrário, ele pode e é usado nessa serventia por se mover periodicamente. O fato de ele se mover periodicamente não é "constituído" pelo uso, o que ocorre é o inverso: o uso é possibilitado pela estabilidade do movimento circular de certos corpos naturais. Na natureza não há sapatos - coisas que possam ser usadas como sapatos -, mas há relógios - coisas que, devido a sua constituição natural, podem ser usadas como relógios. Ao dizer isso, estou excluindo os casos, nos quais algo que não "é" um sapato assim mesmo é usado como tal, por exemplo, numa brincadeira ou num uso fantasioso da natureza (no teatro etc.). Portanto, nem a temporalidade originária nem qualquer derivação dela são suficientes para "fundamentar" a temporalidade do relógio.

Se a temporalidade originária como tal não pode fundar os processos periódicos naturais estáveis como tais, a existência desses processos é um fato da natureza não derivável da estrutura do ser-o-aí. Essa estrutura não implica nada sobre as regularidades constantes do nosso sistema solar ou sobre qualquer outro processo repetitivo na natureza. O mesmo vale para a estrutura temporal do mundo cotidiano. O mundo cotidiano é caracterizado precisamente por uma acontecencialidade (Geschichtlichkeit) que permite que se fale em caráter "histórico" de objetos de uso e mesmo de meras presentidades. Um relógio, por exemplo, é histórico no sentido de ter sido fabricado por um engenheiro importante e usado por uma comunidade em situações decisivas. Quando fora de uso, um objeto desse modo de ser passa a pertencer ao passado, podendo tornar-se uma "antigüidade".8

Contudo, o sol considerado como relógio astral não é caracterizado pela acontecencialidade desse tipo. Mesmo fora de uso, ele não se torna uma antigualha. Por quê? Porque mesmo fora de uso, o sol continua possuindo a propriedade fundamental que permite que seja usado como relógio, a saber, a permanência do seu movimento regular aparente ao redor da Terra. Essa permanência não é constituída pelo uso, mas constatada pela percepção e, em seguida, usada como tal. Enquanto relógio natural, o sol tem o status operacional de um objeto externo, existindo em si, portador de certas propriedades objetivas que podem ser constatadas cognitivamente e que são independentes do uso.

O mesmo se aplica aos objetos usados para medir espaço. A medição, diz Heidegger, "se constitui temporalmente na presentificação de um metro presencial [anwesend] colocado numa extensão presencial" (1927/2004, p. 417). E acrescenta: "A ausência de modificação incluída na idéia de um metro significa que este deve estar presente a cada momento, para cada um" (1927/2004, p. 417). A exigência da permanência do comprimento do metro decorre da regra do seu uso, da "idéia de metro", mas não do fato de existirem presentidades desse tipo. Generalizando, nós podemos produzir relógios e metros, não a estabilidade desses objetos no tempo e no espaço. Esta é uma característica objetiva, baseada numa estrutura específica, a das coisas do domínio da natureza, estrutura pressuposta teoricamente e não constituída pelas idéias que fazemos sobre o uso desses instrumentos. Sem o uso de relógios e de metros, não é possível constituir nem o tempo nem o espaço que caracterizam o modo do ser do ente que Heidegger chama presentidade. Sendo assim, a teoria heideggeriana da presentidade não fundamenta o conceito de natureza enquanto objeto de ciência positiva; pelo contrário, pressupõe um conceito de natureza objetiva.

Heidegger parece adivinhar a existência de uma dificuldade na sua derivação da medição do tempo objetivo do uso de instrumentos. Depois de ter afirmado que "a análise concreta do cálculo astronômico plenamente elaborado do tempo pertence à interpretação existencial-ontológica da descoberta da natureza", ele admite, numa nota de rodapé, que esse assunto necessita de uma "investigação adicional" (1927/2004, p. 418). Se empreendida, essa investigação traria, creio eu, argumentos adicionais para a impossibilidade de derivar o tempo astronômico do tempo originário do Dasein. O caráter temporal da natureza enquanto objeto da física simplesmente não pode ser assegurado pelos meios da analítica existencial, explicitados em Ser e tempo. Em termos kantianos, a temporalidade específica dos processos naturais é constituída na intuição, que é uma operação representacional, e não nos modos de ser pré-representacionais do ser humano. Entendo que essa é a razão pela qual Heidegger nunca cumpriu a promessa, feita na segunda seção de Ser e tempo, de mostrar, numa terceira seção dessa obra, "que e como a intencionalidade da 'consciência' é fundada na temporalidade extática do Dasein" (1927/2004, p. 363n). A dificuldade reside no fato de a intencionalidade, tal como afirmava Husserl, ser um modo de operar originário, do qual o bom funcionamento dos modos de ser não-representacionais do ser humano é condição necessária, mas não suficiente.9

 

A verdade das leis de Newton

Passo agora ao segundo problema, o de saber se Heidegger ofereceu uma caracterização adequada da ciência da natureza que contenha, tal como estabelecido por Kant e retomado por Heidegger, tanto leis lógicas como juízos sintéticos a priori. Heidegger aborda esses dois assuntos no seguinte trecho:

As leis de Newton, o princípio de não-contradição, e toda verdade em geral são verdadeiros só enquanto o ser-o-aí é. Antes de o ser-o- aí ser e depois de o ser-o-aí não mais ser, não havia nem haverá verdade alguma, visto que então ela, como abertura e descobrimento, não pode ser. Antes de as leis de Newton serem descobertas, elas não eram "verdadeiras"; daí não se segue que elas eram falsas nem, menos ainda, que elas, quando nenhum descobrimento é mais possível onticamente, elas se tornariam falsas. (1927/2004, p. 226)

Heidegger discute aqui, no mesmo movimento, a verdade dos juízos analíticos e dos juízos sintéticos. Para a verdade de dois grupos de juízo vale, como Heidegger próprio diz, que "só 'há' verdade na medida em que e enquanto o ser-o-aí é". Heidegger justifica: "O ente só é descoberto e só é aberto quando e enquanto o ser-o-aí em geral é" (1927/2004, p. 226).

Vejamos agora o que se pode dizer, à luz de Heidegger, sobre as condições de verdade das leis de Newton e sobre a efetiva verdade delas. Como vimos, elas só são verdadeiras enquanto o ser-o-aí existe onticamente como descobridor. Antes de Newton existir, essas leis não eram nem verdadeiras nem falsas (1927/2004, p. 227). Elas "se tornaram verdadeiras por intermédio de Newton", no sentido de que, com elas, "o ente em si mesmo se tornou acessível ao Dasein" (1927/2004, p. 227).

Há várias dificuldades decorrentes dessa afirmação. Em primeiro lugar, tudo faz crer que Heidegger não está falando da verdade no sentido de correção (Richtigkeit) ou adequação, mas unicamente da verdade no sentido de desocultamento (Unverborgenheit). Para Heidegger, um juízo é desocultador se for a priori possibilitador. Ora, em Ser e tempo, existem dois conceitos muito diferentes de possibilitação (desocultamento) a priori. Um juízo pode ser a priori possibilitador, primeiro, por ser "produtivo" ou metodologicamente fundante e, segundo, por ser ontologicamente fundante.

No primeiro sentido, possibilitar uma ciência significa servir de fio condutor na pesquisa teórica e empírica desenvolvida por essa disciplina. Nesse caso, os juízos possibilitadores não precisam ser fundados nem na experiência nem no acesso à essência dos entes estudados. Eles são resultado de um projeto a priori da estrutura básica do domínio de investigação. No segundo sentido, possibilitar uma ciência significa determinar a priori a estrutura ontológica do domínio de investigação, com base numa visão de essência (Wesenschau). Um fio condutor no primeiro sentido é meramente operacional, podendo ser revisado e mesmo descartado em função do progresso e, portanto, dos resultados da pesquisa. O juízo possibilitador no segundo tipo é fixo, não-revisável e não-descartável em decorrência de descobertas factuais, visto ser contraditório assumir que tais descobertas possam mudar a essência do assunto sob investigação.

Não está claro, prima facie, se, de acordo com Ser e tempo, Newton produziu apenas um fio condutor operacional ou apresentou também uma ontologia regional para a ciência positiva da natureza. Por ter afirmado que as leis de Newton se tornaram verdadeiras "por intermédio de Newton", Heidegger parece ter optado pela primeira alternativa. De fato, Newton pode ser visto, sem dificuldade, como o pesquisador que, ao propor uma perspectiva revolucionária e extremamente proveitosa para o estudo dos corpos em movimento, assumiu a liderança na comunidade de pesquisadores da ciência da natureza. Se for esse o caso, cabe a perguntar se as leis de Newton, possibilitadoras da pesquisa, são mais do que ficções heurísticas. Nesse caso, fica difícil ver em que sentido elas poderiam ser ditas verdadeiras.

O contexto mais amplo das afirmações de Heidegger sobre as leis de Newton, analisadas anteriormente, indica, contudo, que se trataria de juízos ontológicos regionais sobre a estrutura ou a essência da matéria. Nesse caso, as leis de Newton não deveriam ser apenas desocultadoras, mas também objetivamente corretas. A dificuldade aqui reside no fato de Heidegger, em Ser e tempo, não ter fornecido qualquer critério de correção ou de prova dos juízos da física teórica. Ele se desincumbiu dessa tarefa remetendo a outros autores, por exemplo, a Kant.

Ora, a tradição filosófica, antes e depois de Kant, hesitou muito sobre a "correção" das leis de Newton. Admitia-se que, dessas leis - levando em conta, em particular, a formulação matemática plena da segunda lei (F = ma) -, é possível deduzir uma série de proposições sobre o sistema solar e outros fenômenos da natureza. Nem por isso, os físicos e os filósofos consideravam essas leis objetivamente "corretas", na linguagem de Kant, "objetivamente válidas". Sérias dúvidas pairavam precisamente sobre a segunda lei, que se referia à força gravitacional, cuja realidade objetiva era questionável até mesmo para o próprio Newton. Tanto é assim que Kant, em 1785, fez um esforço hercúleo para demonstrar a priori a verdade de algumas das leis de Newton, devidamente reformuladas, com a exceção da segunda lei. O seu argumento era o seguinte: essa lei refere-se à força gravitacional que não é um objeto de experiência representacional possível. De acordo com a lógica (semântica) transcendental de Kant, o conceito newtoniano de força não é, portanto, um conceito possível, ou seja, ele não tem um referente que possa ser objeto de conhecimento objetivo. De acordo com a mesma teoria, um juízo que emprega um conceito que não é possível é um juízo que também não é possível, isto é, que não é determinadamente nem verdadeiro nem falso. E um juízo sem valor de verdade determinado não pode ser provado. Ao mesmo tempo, contudo, Kant não tinha dúvidas quanto à utilidade heurística, isto é, quanto à força sistematizadora dessa lei.10

Caso Heidegger tivesse considerado o problema kantiano da possibilidade e da demonstrabilidade de juízos sintético a priori, ele teria descoberto facilmente que se tratava de uma questão essencialmente distinta da referente ao "desocultamento". Kant condicionou a solução desse problema à formatação dos fenômenos da experiência possível pelo esquematismo transcendental, operação de representação irredutível, conforme sugerimos (com base em Kant e Husserl), aos modos de ser pré-representacionais do homem. Caso não concordasse com Kant, Heidegger teria de oferecer uma alternativa, algo que, entretanto, ele jamais tentou fazer.

 

A verdade das leis da lógica

Passemos às verdades lógicas. É difícil ver a relação delas com o "descobrimento" do ente. A particularidade delas é a de serem verdadeiras em todos os casos possíveis, descobertos ou não-descobertos. Portanto, não faz sentido dizer que elas só são verdadeiras quando e enquanto o ente é descoberto. Ao que parece, Heidegger simplesmente ignora a concepção contemporânea das condições de verdade dos juízos analíticos (lógicos), já antecipada parcialmente por Kant.

Heidegger sustenta ainda que a proposição de que existem "verdades eternas" só será demonstrada de maneira satisfatória "se for possível provar que o ser-o-aí existiu e existirá por toda a eternidade. Enquanto essa prova não é fornecida, aquela proposição permanece uma afirmação fantasiosa, que não fica justificada devido ao fato de os filósofos comumente 'acreditarem' nela" (1927/2004, p. 227). Aqui também aparece um modo de pensar anacrônico, para não dizer obsoleto. As verdades lógicas são "eternas" pelo simples fato de não terem relação com o tempo. Mais precisamente, elas são "atemporais", no sentido de serem consideradas válidas, com razão ou sem razão, em todos os mundos possíveis, transitórios ou eternos.

Talvez não seja sem interesse lembrar a afirmação de Heidegger, contida nas suas preleções sobre Heráclito - intituladas "O início do pensamento ocidental", do verão de 1943 - de que a sentença do pensador pré-socrático: physis cryptesthai filei contém contradição. Essa afirmação, pouco clara em si, é acompanhada pelo seguinte comentário: não devemos rejeitar a sentença de Heráclito em nome da lei da não-contradição, ou seja, de "uma lei do pensamento interpretado metafisicamente". Pois, "o lógico não é nem uma instância da verdade, nem a fonte do verdadeiro e da verdade" (1987, GA 55, p. 125). Claro está que, nesse contexto, Heidegger não fala mais da verdade do ente, no sentido do descobrimento do ente, mas da verdade do ser, cuja enunciação está além do verdadeiro e do falso no sentido "ôntico". O interessante nessa posição de Heidegger é a tese subjacente de que os princípios de lógica não se aplicam necessariamente a todos os domínios do pensamento. Ou seja, que eles podem revelar-se falsos. De fato, dizer que as leis da lógica são atemporais no sentido indicado não significa que elas não possam ser criticadas e mesmo mudadas. Esse fato foi reconhecido já por Kant, que constatou que o uso do princípio do terceiro excluído no domínio das coisas em si permite produzir paradoxos.11 O mesmo princípio não vale na lógica intuicionista nem na quântica. A pesquisa empírica também pode desafiar a aplicabilidade universal de verdades lógicas. Essa é uma linha de análise interessante, que, contudo, dificilmente pode ser desenvolvida no interior de Ser e tempo.

Na preleções de Feiburgo, em 1957, o Heidegger tardio muda uma vez mais o seu enfoque desse tema. Dialogando com Hegel, e não mais com a lógica contemporânea, ele faz a pergunta, típica da sua última fase, sobre a origem das leis do pensamento. O que ou quem, indaga Heidegger, estabelece ("põe") essas leis que, uma vez estabelecidas, tornam-se irrevogáveis? Não há ciência que possa decidir essa questão, responde ele. O lugar e o espaço de origem das leis do pensamento, em particular, o princípio de não-contradição, não está, portanto, no ser-o-aí. "A origem dos princípios do pensamento", prossegue Heidegger, "o lugar do pensamento que põe essas proposições, a essência do lugar aqui mencionado e a sua topologia, tudo isso permanece coberto de escuridão. Essa escuridão talvez esteja sempre em jogo, em qualquer pensamento. O ser humano não pode dispersá-la" (1994, GA 79, p. 93). Temos aqui uma homenagem eloqüente a Heráclito, o Obscuro, mas pouca luz sobre os fundamentos da lógica das ciências positivas, algo que, nessa sua segunda fase, Heidegger considera antes como um problema a desfazer, não a solucionar.

 

A relação entre a metafísica e as ciências factuais

O problema da relação entre a metafísica - concebida como ciência fenomenológica das essências - e as ciências positivas, que permaneceu aberto sob vários aspectos em Ser e tempo, foi abordado por Heidegger pouco tempo depois, em "Os conceitos fundamentais da metafísica" (2003, GA 29/30). Nessas preleções de 1929/30, Heidegger propõe um novo projeto metafísico da essência da vida, uma nova metafísica da vida, assentada no método fenomenológico de Husserl (2003, GA 29/30, p. 278), que possa e deva servir de programa de pesquisa para a biologia. O seu pressuposto explícito é que a pesquisa positiva não deve ser separada da metafísica nem posta em oposição a esta.

Qual é a natureza da unidade interna entre a metafísica e a ciência (positiva)? Essa unidade acontece como um destino comum. Com isso, Heidegger quer dizer duas coisas. Primeiro, que uma ciência só é possível graças ao surgimento de pesquisadores líderes que estão à altura do teor mais elementar do seu domínio, mais precisamente, que têm a coragem de criar o essencial (2003, GA 29/30, pp. 280 e 378). Segundo, que a comunidade dos pesquisadores precisa deixar que existam tais líderes, isto é, que essa comunidade se submeta à liderança deles. A tarefa específica da metafísica é explicitar, quer por antecipação quer a posteriori, as teses fundamentais dos pesquisadores líderes ou mesmo antecipar os seus pontos de vista.

Como é que os pesquisadores líderes criam o essencial? Eles o programam, fazendo projetos de mundos possíveis, ou seja, produzindo o "possível possibilitador" (2003, GA 29/30, p. 528).Heidegger comenta: "o que é projetado no projeto impele para o efetivo possível, isto é, o projeto vincula - não ao possível nem ao efetivo, mas à possibilitação, ou seja, ao que o efetivo possível da possibilidade projetada requer por si da possibilidade para a sua efetivação" (2003, GA 29/30, p. 528).

Esse é o caráter da mudança do ver e do perguntar que caracteriza uma mudança radical "no modo de ver e de fazer perguntas" - na linguagem de Th. S. Kuhn, uma revolução científica.

Aqui convém parar para fazer algumas indagações. Primeiro, de onde vem o caráter vinculante dos projetos criadores do possível possibilitador? Segundo, como se deve proceder se existirem simultaneamente dois ou mais projetos possibilitadores, ou seja, como decidir entre esse e aquele outro "essencial"?12 A resposta à primeira pergunta deve, sem dúvida, ser procurada na teoria heideggeriana da acontecência fundamental do Dasein como o ser-o-aí de tudo o que há, no sentido de possibilitar a manifestidade de tudo o que há, a verdade sendo a abertura originária. É nesse contexto que Heidegger introduz o conceito de destino. Creio que essa linha de análise poderia ser muito esclarecedora, mas ela nunca foi levada a cabo. Resta saber, em particular, qual é a natureza da coerção, se ela não é argumentativa, nem conceitual e se não deve ser identificada com a força dos "pontos de vistas" que prevalecem numa comunidade científica (2003, GA 29/30, p. 379).

A resposta à segunda pergunta deve, em princípio, ser buscada recorrendo ao estudo da essência dos entes no domínio estudado. Contudo, como decidir entre os programas de pesquisa rivais? Suponhamos que, por certos motivos filosóficos, optemos por um deles, por exemplo, o preferido por Heidegger. Acontece que, de acordo com o próprio Heidegger, esse programa é incompleto em pontos essenciais. Como fundamentar a nossa escolha de um programa de pesquisa essencialmente incompleto? Por que não optar ou, pelo menos, também levar em conta, nem que seja provisoriamente, um outro programa mais completo precisamente nos pontos fracos do primeiro?

Nenhuma dessas perguntas foi levada a sério por Heidegger. Ele se manteve fiel ao preceito metodológico de chegar a uma decisão cabal sobre a essência dos entes do campo de investigação, aconteça o que acontecer na pesquisa positiva. É desse tipo a sua cruzada "contra a tirania da física e da química" na biologia (2003, GA 29/30, pp. 277-278). Ora, por tudo que sabemos, a posição heideggeriana foi definitivamente derrotada precisamente pela pesquisa positiva e não por uma reedição do projeto vinculador de tipo mecanicista. Essa é, aliás, uma atitude habitualmente tomada pelos líderes de pesquisa nas ciências da natureza. Em momentos de crise, eles se mostram dispostos a mudar as suas crenças, mesmo as mais bem entrincheiradas. A visão de essências só convence quando funciona. Foi precisamente em virtude dessa postura não-husserliana, não-fenomenológica, em relação ao problema do fundamento, que, no século XVII, a ciência moderna deixou o quadro ontológico da metafísica aristotélica e se apropriou dos seus dois principais rivais, desde a Antigüidade: o matematismo de Pitágoras e o materialismo de Demócrito, dois pré-socráticos pouco freqüentados por Heidegger.13

 

Heidegger ouvindo Heisenberg

Na sua fase tardia, Heidegger não insiste mais, como fazia em Ser e tempo e em "Os conceitos fundamentais de metafísica", numa fundamentação metafísica das ciências da natureza. Mais precisamente, ele abandona a tese de que a metafísica, como disciplina filosófica, fornece os conceitos básicos das ciências positivas e se vê livre da tarefa, ainda assumida em Ser e tempo, de elaborar a gênese existencial-ontológica desses conceitos. Da mesma forma, ele não busca mais a gênese existencial-ontológica do processo de objetificação. Essa mudança de posição foi alcançada por vários caminhos, inclusive pela reflexão sobre o estado da filosofia nos dias de hoje e da ciência contemporânea da natureza, fertilizada, em particular, pelo contanto com Werner Heisenberg, prêmio Nobel de Física em 1932.

Sabemos que Heidegger se encontrou pessoalmente com Heisenberg já nos anos 1930. Outro contato foi feito por ocasião da série de palestras organizada em Munique, em 1953, pela Academia Bávara de Belas Artes sobre o tema: "A arte na época da técnica", da qual participaram, além de Heidegger, Heisenberg e Jünger. Heideggsger pronunciou a sua famosa palestra "A pergunta pela técnica" e a de Heisenberg tinha era intitulada "Das Naturbild der heutigen Physik" ("A imagem da natureza na física contemporânea") e se tornou igualmente famosa, só que em círculos diferentes. Nas anotações de 1954, tornadas disponíveis no volume 90 da Gesamtausgabe, Heidegger se refere repetidas vezes a Heisenberg, em particular ao artigo supracitado. O volume publica ainda uma carta a Jünger, esboçada provavelmente em 1954, mas não enviada, na qual Heidegger expressa o desejo de um encontro com Jünger e Heisenberg para uma conversa a três, admitindo, contudo, não saber formular o assunto que gostaria de ver tratado nessa ocasião. Pelo que me consta, esse encontro nunca se realizou (2004, GA 90, p. 298).

No artigo mencionado, Heisenberg apresenta uma visão da ciência bastante diferente da cultivada por Heidegger desde o encontro inicial deste com Aristóteles e Husserl. A ciência da natureza contemporânea não estuda, afirma o físico alemão, os entes como tais, isto é, como coisas em si caracterizadas por uma estrutura categorial explicitável em uma visão de essência ou qualquer outro procedimento da metafísica dogmática. É mais adequado dizer que ela trata das nossas relações com a natureza, fundadas na intervenção técnica no curso dos processos naturais. A questão da existência de partículas elementares "em si", no tempo e no espaço, não pode mais ser colocada, diz Heisenberg, "visto podermos falar sempre somente dos processos que têm lugar quando queremos inferir o comportamento da partícula pela ação recíproca entre ela e qualquer outro sistema físico, por exemplo, o aparelho de medida". "Por isso", prossegue Heisenberg,

a noção de realidade objetiva das partículas elementares volatilizou-se extraordinariamente, não na névoa de uma qualquer nova noção de realidade, pouco clara ou ainda incompreendida, mas na transparente clareza de uma matemática que não representa o comportamento da partícula, mas sim o nosso conhecimento do dito comportamento. (1955, p. 12; tr. p. 14; os itálicos são meus)

Na atual ciência da natureza, o objeto de pesquisa não é mais a natureza em si mesma, mas a natureza subordinada à maneira humana de formular problemas. Daí se segue que estamos numa situação epistemológica inteiramente nova: "a objetificação [Objektivierung] dos processos naturais não é mais possível" (1955, p. 21). Em outras palavras, não existe mais um conceito geral de objeto que possa designar aquilo de que trata a ciência física no seu todo. Sem objeto que possa estudar ao fazer física, "pela primeira vez no decurso da história, o homem encontra-se sobre esta terra sozinho diante apenas de si próprio" (1955, p. 18, itálicos no original).

O abandono do conceito geral de "objeto" da ciência da natureza e a sua substituição pelos diferentes domínios de objetidades acessadas mediante uma intervenção técnica significam uma modificação do conceito kantiano de objetificação. Em Kant, a objetificação consiste na constituição da aspectualidade dos fenômenos como representidade e inclui a receptividade como faculdade passiva de ser afetado pelo mundo externo. Na física quântica, a objetificação dos fenômenos consiste na modificação programada, executada mediante a intervenção experimental ativa sobre o objeto. Em conseqüência disso, a física quântica não estuda mais objetos fenomenais dados na intuição empírica nem estabelece conexões entre eles, como faz a física clássica de época de Kant, mas situações de observação intrusiva. Por isso, é possível dizer que os átomos da física quântica não são nem coisas em si nem mesmo objetos fenomenais kantianos. Eles são elementos de situações de observação inevitavelmente invasivas que podem ser representados pelos símbolos matemáticos (Heisenberg, 1969/1979, p. 72). Sendo assim, Heisenberg nos obriga a relativizar a tese heideggeriana de que o modo de ser dos entes estudados pela ciência contemporânea é a representidade: ela vale em Kant, mas não mais na física contemporânea. A aspectualidade inclui, além da representidade, também a intrusividade, ou seja, a produção dos dados sensíveis pelo quais o fenômeno se manifesta.

Essa relativização do processo de objetificação e, por conseguinte, do conceito de objeto determina também a mudança da finalidade da física como disciplina científica. O seu objetivo principal não é mais uma "descrição" da natureza, palavra que "foi perdendo cada vez mais o seu sentido primitivo de apresentação destinada a transmitir uma imagem da natureza tanto quanto possível viva e evidente" (1955, pp. 9-10). Esse modo de representação da natureza foi substituído pela "descrição matemática", que consiste em "uma coleção de informações sobre as relações e as leis da natureza, tanto quanto possível precisa, concisa e ao mesmo tempo compreensível" (1955, p. 10). A ciência da natureza não visa mais realizar uma reprodução do que se mostra, mas um sistema operatório aplicável a todos os campos da experiência, nos quais o homem pode penetrar com o auxílio da técnica, "independentemente do fato de esses campos fazerem, ou não, parte da 'natureza' que conhecemos pela experiência ordinária" (1955, p. 10). Ou seja, na determinação do assunto da ciência atual da natureza, Demócrito, que declarou que a ousia são os átomos sem qualidades secundárias, venceu Aristóteles, para quem essas qualidades eram objetivamente verdadeiras. Isso não significa, bem entendido, que, sob todos os outros pontos de vista, a metafísica de Demócrito seja preferível à de Aristóteles.

Todas essas mudanças na física moderna - relativas ao processo de objetificação, ao modo de conceber o seu objeto de estudo, aos seus objetivos e à sua relação com a metafísica - exigem um novo conceito de verdade. Tradicionalmente, as fórmulas matemáticas da física eram consideradas como enunciados definitivos, válidos para sempre e para a natureza no seu todo, isto é, para todos os objetos da natureza. Com o surgimento da mecânica quântica, ficou claro que os sistemas de conceitos e de leis apresentados matematicamente só se aplicam a domínios restritos de experiência. Por exemplo, diz Heisenberg, as leis de Newton só valem definitivamente (para sempre) no domínio cujos objetos são acessíveis numa objetificação não-invasiva do tipo kantiano e aos quais se aplicam os conceitos da mecânica newtoniana. Elas não valem, contudo, no domínio de fenômenos quânticos acessados necessariamente pela invasão experimental e "descritos" pelos conceitos estatísticos da mecânica quântica. As leis de Newton não são verdadeiras ("corretas"), portanto, para a matéria em geral, como entendia Heidegger. Elas têm validade apenas local, isto é, para os fenômenos físicos considerados numa determinada escala de grandeza e de velocidade de movimento. Se quiséssemos ser conservadores, poderíamos admitir que Newton elaborou elementos de uma ontologia regional, cujos limites, porém, dependem de resultados da pesquisa positiva, em particular de procedimentos de medida da velocidade dos movimentos. Obviamente, tal "ontologia" não satisfaz o requisito da fenomenologia husserliana, assumido por Heidegger, de poder explicitar uma visão da essência da matéria. Assim como os sistemas de conceitos científicos, os dos seus pressupostos "ontológicos" só são válidos localmente e a sua função é essencialmente operacional.

O relativismo dos compromissos ontológicos observa-se, diz Heisenberg, em todas as ciências factuais. No direito, por exemplo, julga-se que, num caso jurídico novo, "deve-se proceder à descoberta de uma nova norma de direito, que o englobe, porque o direito escrito abrange somente setores limitados da vida, não podendo ser aplicado, portanto, em todas as circunstâncias" (1955, p. 20). Da mesma forma, "também a ciência exata parte da suposição de que será sempre possível, em cada novo campo da experiência, compreender a natureza, mas sem que fique determinado de antemão o significado da palavra 'compreender'". Tampouco se supõe, prossegue Heisenberg, "que o conhecimento da natureza de épocas anteriores, fixado em fórmulas matemáticas, por muito 'definitivo' que seja, deva poder aplicar-se sempre" (1955, p. 20).

Sendo assim, a ciência moderna não se remete mais a um único horizonte metafísico. Em primeiro lugar, a pergunta pela essência do "objeto" de pesquisa não faz sentido. Da mesma maneira, as perguntas do tipo: que é matéria? ou: que é energia? não passam de um resquício, definitivamente descartado, da metafísica aristotélica. Pelas mesmas razões, a ciência da natureza não pretende fazer uso, como entende Heidegger, de conceitos que determinam o ser do ente como tal no seu todo. Tais conceitos simplesmente não fazem sentido. Heidegger dirá que se trata de esquecimento do ser como acontecência destinamental. Heisenberg parece estar inclinado a pensar que o modo de compreender a natureza, introduzido pela metafísica grega, passou a ser irrelevante para o progresso do conhecimento positivo buscado pelas ciências exatas da natureza na época contemporânea.

 

Recolocação da pergunta pela relação entre a verdade do ser e a objetificação

Tudo indica que Heidegger ficou desafiado pelas teses de Heisenberg enunciada em 1953 e que meditou sobre elas nos anos 1950 e 1960. Em relação a certos pontos, ele se posicionou de forma crítica, o seu desacordo incidindo em especial sobre a afirmação do físico de que, na nossa época, o homem está nesta terra sozinho apenas diante de si próprio. Cabe perguntar, anota Heidegger em 1954, se essa proposição pensa alguma coisa ou apenas enuncia uma opinião que contém um grande auto-engano que se constitui numa "barreira para o que é experienciado acontecencialmente" (2004, GA 90, pp. 296-297). Heidegger se refere aqui à acontecência do ser.

Por outro lado, no seu artigo posterior, intitulado "O fim da filosofia e a tarefa do pensamento" (1964/1969, p. 63), Heidegger parece mais próximo de Heisenberg ao atestar a dissolução da relação entre a filosofia e a ciência positiva. Heidegger admitirá que a ciência dos nossos dias está sendo elaborada na perspectiva aberta por Kant, essencialmente antiplatônica, antiessencialista e, portanto, antifenomenológica, e que, depois de passar por Nietzsche, outro pensador também empenhado em reavaliar o platonismo, ela caiu sob o domínio do positivismo. Desta maneira, ela se tornou, no essencial, lógica formal (sintaxe), acompanhada de semântica, ampliada de ciência empírica. Em virtude desse desenvolvimento, a ciência apoderou-se inclusive da tarefa tradicionalmente filosófica de explicitar as ontologias regionais (natureza, história, direito, arte). O interesse da ciência, escreve Heidegger no artigo mencionado, "dirige-se para a teoria de conceitos estruturais, necessários, em cada caso, da região respectiva de objetos" (1964/1969, p. 64). O termo "teoria" significa agora, prossegue ele, "suposição de categorias às quais é concedida tão-somente uma função cibernética, sendo-lhe retirada todo e qualquer sentido ontológico. O caráter operacional, ligado ao uso de modelos, do pensamento representacional-calculador chega a predominar" (1964/1969, p. 64; os itálicos são meus). Heidegger parece finalmente ter chegado a reconhecer o fato da substituição da ontologia pela discursividade meramente operacional instituída por Kant, como mostrei anteriormente, mas desconhecida por Heidegger durante longos anos.

Heidegger voltará ao mesmo assunto nos seminários de Le Thor, de 1969.14 A concepção de teoria em Newton e Galileu - Heidegger aqui retoma Husserl - ainda se encontra no meio "entre a theoria no sentido grego e a acepção contemporânea da palavra. Da interpretação grega, ela mantém uma visão ontológica da natureza considerada como conjunto de movimentos no espaço e no tempo" (1987, GA 15, p. 357). Contudo, com o surgimento da mecânica quântica - alusão óbvia a Heisenberg -, a ciência física parece ter abandonado por completo seus compromissos ontológicos: "A teoria contemporânea, ao contrário, abandona essa ambição ontológica; ela é apenas a fixação dos elementos necessários a uma experiência ou, se preferirmos, ela é o modo de proceder para a execução de um experimento" (1987, GA 15, p. 357). Em apoio a esse diagnóstico, Heidegger cita Niels Bohr, como poderia ter citado Kant (depois de rever a sua tese, de 1929, que a lógica transcendental é uma ontologia geral) ou Heisenberg, para fazer ver que os físicos contemporâneos não crêem, de modo algum, que o modelo atômico por eles projetado represente o ente como tal. O sentido da palavra hipótese - e, com isso, da teoria ela mesma - modificou-se. A hipótese é apenas um "supondo que...", a ser desenvolvido. Ela possui hoje em dia um sentido meramente metodológico e já nenhum sentido ontológico, o que, entretanto, não impede Heisenberg de ainda sustentar que ele descreve a natureza. Mas o que significa para ele "descrever"? Na realidade, a via da descrição é obstruída pela experimentação; a natureza é dita "descrita" a partir do momento em que é conduzida a uma forma matemática cuja função é chegar à exatidão, visando à experimentação. Mas o que se entende por exatidão? É a possibilidade da repetição idêntica da experiência, segundo o esquema: "se x..., então y". A experimentação visa, assim, ao efeito. (1987, GA 15, p. 355)

A física contemporânea é orientada, continua Heidegger, "exclusivamente para a calculabilidade do objeto. Na medida em que há descrição aqui, ela não consiste em trazer o aspecto de um objeto diante dos olhos, mas se restringe a constatar algo da natureza, em uma fórmula matemática que apresenta uma lei do movimento" (1987, GA 15, p. 357; itálicos meus).15

Isso dito, que é feito se o efeito não ocorre? Muda-se a teoria, ou seja, a fórmula. A teoria é, portanto, "essencialmente modificável, tendo um sentido meramente metodológico". No fundo, "ela é apenas uma das variáveis da pesquisa" (1987, GA 15, p. 355).

É no contexto dessas análises, claramente relacionadas às posições de Heisenberg de 1953, que Heidegger recoloca a pergunta sobre a relação entre a verdade do ser e a correção dos juízos científicos. Ele agora concede que o "conceito natural" de verdade, tal como ocorre na filosofia grega, em Homero, no uso ordinário de linguagem, incluindo aí o científico, não é o de desocultamento, conceito central do pensamento do ser. Isso significa, em primeiro lugar, que nem os poetas, nem os homens comuns, nem os cientistas, nem mesmo os filósofos "se vêem colocados diante da tarefa de questionar em que medida a verdade, isto é, a correção de enunciado só permanece garantida no elemento da clareira" (1964/1969, p. 78). Mais ainda, na história do pensamento ocidental, a Aletheia "foi imediatamente e exclusivamente experienciada como orthotes, como a correção da representação e do enunciado" (1964/1969, p. 78). Sendo assim, "não é sustentável a afirmativa de uma mudança essencial da verdade, isto é, a passagem do desocultamento para a correção" (1964/1969, p. 76). Em vez disso, cabe dizer: "a Aletheia, enquanto clareira da presença e presentificação no pensar e dizer, desembocou logo na perspectiva da adequação, no sentido de concordância entre o representar e o que se presenta" (1964/1969, p. 76). Com isso, ficou "experienciado e pensado apenas aquilo que a Aletheia, como clareira, assegura, não aquilo que ela como tal é" (1964/1969, p. 76). Daí se segue uma conseqüência de importância capital, tirada pelo próprio Heidegger:

Na medida em que se compreende a verdade no sentido 'natural' da tradição como concordância do conhecimento com o ente, evidenciada no ente, e também na medida em que a verdade é interpretada como certeza do saber a respeito do ser, a Aletheia, o desocultamento no sentido de clareira, não pode ser identificada à verdade. (1964/1969, p. 76)

Essas constatações colocam um grande ponto de interrogação sobre a função e o alcance da teoria heideggeriana da acontecência da verdade do ser. Essa teoria visava precisamente a mostrar que a verdade no sentido de correção é um acontecer auto-ocultador do ser. Agora, Heidegger admite que tal acontecer não existiu. Portanto, desaparece uma das razões principais para a existência da teoria da acontecência da verdade do ser. Ao invés de ser uma solução, a acontecência da verdade do ser torna-se agora um problema.

O próprio Heidegger reconheceu isso ao fazer a seguinte indagação:

A Aletheia, desocultamento pensado como clareira da presença, ainda não é a verdade. Seria a Aletheia então menos que a verdade? Ou é mais, já que somente ela possibilita a verdade como adaequatio e certitudo, já que não pode haver presença e presentificação fora do âmbito da clareira? (1964/1969, pp. 76-77)

Essa pergunta é obviamente apenas retórica, visto que a sua formulação já contém a resposta ou, pelo menos, a direção em esta deve ser procurada. A resposta evidente é: a Aletheia é mais que a verdade. Recorrendo outra vez à retórica, Heidegger sugere que a sua pergunta permaneça "como tarefa ao pensamento". E acrescenta: "O pensamento deve considerar se é capaz de levantar esta questão como tal, enquanto pensa filosoficamente, isto é, no sentido estrito da metafísica, a qual apenas questiona o que se apresenta sob o ponto de vista de sua presença" (1964/1969, p. 77).

Não está mais claro o que se pode esperar do cumprimento dessa tarefa; em particular, não está claro de que maneira a sua solução pode contribuir com o que quer que seja para a questão da verdade na física moderna. Podemos admitir, como insiste Heidegger, que "a verdade mesma, assim como o ser e o pensar, somente pode ser o que é no elemento da clareira. Evidência, certeza de qualquer grau, qualquer espécie de verificação da veritas, movem-se já com esta no âmbito da clareira que impera" (1964/1969, p. 76). Não se vê, contudo, de que maneira a Aletheia enquanto clareira poderia possibilitar a verdade como adequação e, menos ainda, ajudar a determinar os domínios de aplicabilidade de teorias físicas. O cerne dessa dificuldade é o seguinte: se um enunciado diz a Aletheia, se ele é "alético", desocultador - supondo que o desocultamento do ser possa mesmo ser dito -, então ele não é e não pode ser nem verdadeiro nem falso objetivamente (nem correto nem incorreto). Por outro lado, se um enunciado é verdadeiro ou falso objetivamente em um domínio qualquer, então ele não é nem pode ser desocultador. Dando um exemplo: se as leis de Newton são desocultadoras, então elas não são nem corretas nem incorretas. Inversamente, se elas são corretas ou incorretas em um certo domínio dado, elas não são desocultadoras.16

Sendo assim, resta a pergunta de como seria possível esclarecer, pela Aletheia, o conceito de verdade usado no cotidiano ou nas ciências positivas, naturais ou humanas. O desocultamento do ser pode bem ser um acontecer necessário para que a objetificação possa ser iniciada e tomar conta do que há. O pensamento da "verdade" (agora as aspas são necessárias) do ser pode, além disso, permitir o acesso a coisas importantes, esquecidas pelo pensamento filosófico e científico. Acredito ser esse de fato o caso. Mas esse pensamento não pode, por si só, dar conta da especificidade do processo de objetificação. Esse fato, além de vários outros, indica que, desde o início, o diálogo de Heidegger com a ciência objetificante foi mal concebido, devido ao fato - essa é a hipótese que me parece a mais esclarecedora - de Heidegger ter recebido da fenomenologia de Husserl e da metafísica de Aristóteles a orientação determinante para o seu pensamento.

Gostaria de acrescentar que o papel atribuído por Heisenberg à técnica na constituição do saber científico não pode ser reconciliado com a posição de Heidegger sobre a natureza desse fenômeno. De acordo com Heisenberg, a técnica é um fator independente, de natureza biológica, parte da relação somática essencialmente intrusiva do homem com o mundo. Essa relação é constitutiva das situações de observação não somente do homem comum, mas também e sobretudo para o processo de objetificação tecnológico pelo qual é determinada a aspectualidade dos elementos do domínio de aplicação do saber científico. Sendo assim, sem técnica, não há ciência positiva (nem tampouco vida humana sobre o planeta Terra). Essa conclusão contraria a tese central de Heidegger de que a técnica é um modo de ser do ente e um modo de proceder dos seres humanos fundado, em última instância, na metafísica e, tal como esta, ultrapassável.17

 

Observações finais

Para Heidegger, a metafísica é a fonte do processo de objetificação do ente no seu todo. Tentei mostrar que essa tese incorre em dificuldades. O processo de objetificação iniciou-se antes da metafísica ocidental e das considerações de cunho científico ou prático: nos trabalhos de Pitágoras e da sua Escola, de Demócrito e de outros pré-socráticos anteriores a Parmênides de Heráclito e desconsiderados por Heidegger. Sem ser fonte da objetificação, a metafísica parece antes ter sido uma forma reativa, conservadora, do mesmo processo. Longe de ser a origem da aspectualidade dos objetos da ciência factual, a objetificação metafísica revelou-se, pelo contrário, um dos grandes obstáculos à objetificação científica, os dois outros sendo a religião e a arte.18

Com Kant, a objetificação científica foi definitivamente desvinculada da ontologia como ciência do ente enquanto ente. Esse desenvolvimento aprofundou-se na ciência contemporânea. Descobriu-se que não é possível objetificar os fenômenos de modo adequado sem cometer intrusões, as quais terão efeitos distintos em escalas distintas. Por conseguinte, a aspectualidade não se reduz à representidade. Segue-se que não existe um modo uniforme de objetificar a natureza e que o conceito de objeto da ciência física passa a ser aplicável apenas regionalmente. Em retrospecto, pode-se dizer que fica ratificada a tese de Kant de que uma ontologia geral é um engano e que só podem ser concebidas "ontologias" (metafísicas) regionais.

Finalmente, a tentativa de Heidegger de dar conta da objetificação em termos da gênese existencial-ontológica revelou-se insuficiente; primeiro, por não poder reconstruir elementos centrais da representidade kantiana e, segundo, por não ser intrusiva. A teoria da acontecência do ser fica aquém da tarefa de esclarecer a objetificação por trabalhar com um espaço de manifestação que não é a verdade e do qual não pode ser derivado um conceito operacional de verdade (que permitiria que se falasse de maneira verdadeira ou falsa sobre aspectos representáveis a serem calculados e, eventualmente, produzidos). O programa heideggeriano de derivar a objetificação do esquecimento de ser permanece em um impasse. Assim mesmo, creio que as tentativas sucessivas de Heidegger de focalizar a objetificação são, ainda hoje, a fonte mais rica de elementos de análise desse fenômeno, na literatura filosófica.

 

Referências

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Enviado em 15/9/2008
Aprovado em 25/11/2008

 

 

1 Digo "mais originário" porque não é certo que Heidegger pense a instrumentalidade como o modo de ser dos entes absolutamente primeiro. Cf. Heidegger (1927/2004, pp. 81-82). Há boas razões teóricas e factuais, externas à obra de Heidegger (cf., por exemplo, a teoria winnicottiana dos objetos subjetivos e transicionais), para pensar que de fato não é assim.
2 Cf., sobre esse ponto, Heidegger (1964/1969, pp. 33-34).
3 Essa recusa não deve levar à conclusão que Heidegger não admite a possibilidade de estudos filosóficos do homem com base nas estruturas do ser-o-aí (da relação do homem ao ser) ou que não conceba pesquisas positivas, científicas, no sentido heideggeriano da palavra, das manifestações factuais, das "concreções" dessas estruturas. Heidegger tomou posições muito claras sobre esse ponto em Seminários de Zollikon.
4 Para detalhes, cf. Loparic (2005a).
5 Essa tese é desenvolvida em Loparic (2004).
6 É preciso não esquecer que os conceitos kantianos de experiência possível e de natureza não são empíricos, mas construídos a priori. Kant não é um empirista, nem mesmo uma mistura de um empirista com um racionalista.
7 A decadência do conceito de substância e a sua substituição pelo conceito de relação funcional foram descritas com clareza por Mach (1959) e Cassirer (1953). Cf., ainda, Loparic (1984, 2005a, cap. 9).
8 O mesmo vale para certos acontecimentos naturais. Uma "catástrofe natural" pode adquirir significado histórico, diz Heidegger. Pode servir como exemplo o terremoto de Lisboa de 1755, que chamou tanta atenção pública, inclusive de Kant.
9 Thomas S. Kuhn assinalou que a estabilidade no tempo e no espaço do sistema solar foi uma condição sine qua non para o surgimento da astronomia como ciência da natureza dotada de um paradigma maduro (Kuhn, 2000, p. 223). Ainda segundo Kuhn, a não-estabilidade das relações sociais e políticas impediu e impede que sejam criados paradigmas científicos para o domínio social como um todo, ou para certas áreas específicas, "havendo razões de afirmar que esse é da fato o caso em certas partes da psicologia e a da economia" (Kuhn, p. 216). Deixarei aqui aberto a questão de saber se a acontecencialidade do Dasein, tal como descrita em Ser e tempo, permite pensar uma estabilidade dos modos de ser do homem compatível com a constituição de uma ciência do homem.
10 Esse assunto foi tratado em detalhes em Loparic 2005a, caps. 8 e 9.
11 Esse tema é intimamente relacionado com o da negação, em particular, com a distinção entre a negação proposicional e a negação predicativa.
12 Uma terceira pergunta poderia ser colocada: por que e como ocorre a substituição de um possível possibilitador pelo seguinte? Essa questão não recebeu nenhuma resposta do primeiro Heidegger.
13 O caráter antiaristotélico da ciência moderna é bem conhecido. Cf., por exemplo, os questionamentos, ainda preparatórios da física moderna, feitos por Giordano Bruno (1584/1995).
14 Trata-se de um projeto matemático da natureza com base na homogeneidade do espaço (1987, GA 15, p. 354). Desse homogêneo os gregos não possuem nem ao menos um nome.
15 Heidegger toma como exemplo a fórmula universal do mundo, com a qual Heisenberg trabalha já há algum tempo: "Para que essa fórmula seja possível, ela não deve se tornar uma descrição da natureza; ela apenas pode ser uma equação fundamental: aquilo com o que se deve contar para que, em cada caso, se possa contar com algo. Mas qual é a determinação fundamental da natureza na física? A calculabilidade? Então resta saber o que é calculável. [...] De fato, a moderna física experimental, do mesmo modo que Aristóteles, busca sempre as leis do movimento. Tal é o sentido da fórmula universal fundamental, na medida em que ela permite deduzir todas as possibilidades do movimento em sua variação infinita" (1987, GA 15, p. 357).
16 Esse impasse talvez explique a afirmação radical de Heidegger de que não há fatos e de que a ciência deve ser dissolvida (aufgelöst).
17 Esse ponto foi desenvolvido em Loparic (2009).
18 Desenvolvi esse tema em Loparic (2009). Deixo aqui em aberto a questão de saber se existe ou pode existir uma ciência factual não objetificante ou que não possa ser reduzida a uma ciência objetificante. A minha resposta é afirmativa, como tentei argumentar nos meus textos sobre a ciência do homem que é a psicanálise de Winnicott.