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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Governo e direção de consciência em Foucault

 

Government and the direction of conscience in Foucault

 

 

Cesar Candiotto

Pontifícia Universidade Católica do Paraná E-mail: c.candiotto@pucpr.br

 

 


RESUMO

A problematização do governo na investigação de Michel Foucault abre novas possibilidades para o estudo de seu pensamento. No presente artigo, uma delas é abordada com base em uma dupla perspectiva indissociável: a primeira, refere-se à articulação entre governo dos outros e governo de si mesmo no poder pastoral cristão (Foucault caracteriza o poder pastoral como o gérmen da hermenêutica do desejo ocidental, enfocado na renúncia da vontade e na obediência integral); a segunda perspectiva, diz respeito ao governo de si mesmo e sua relação com o governo dos outros no estoicismo imperial, no qual se objetiva o senhorio de si pelo autocontrole da vontade. A escolha do contraste entre esses dois registros tem como escopo discutir a questão da direção de consciência como técnica de governo, como condução de condutas. Além disso, pretende-se salientar que, na direção de consciência do estoicismo romano, tal como apresentada por Foucault, é possível identificar a constituição de subjetividades singulares irredutíveis aos processos de individualização e interiorização, inaugurados no século IV d.C. pelo cristianismo monástico.

Palavras-chave: Governo, Ética, Direção de consciência, Estoicismo, Cristianismo.


ABSTRACT

The problematization of government in Michel Foucault's investigation opens new possibilities for the study of his thinking. In the present article, one of them is argued from a double and inseparable perspective: firstly, the articulation between government of others and government of self in the Christian pastoral power (Foucault characterizes the pastoral power as the germen of western hermeneutics of desire, focused on the renunciation of will and on integral obedience); secondly, the government of self and its relation to the government of others in Imperial Stoicism, whose objective is the self-mastery through the self-control of will. The purpose of choosing the contrast between these two perspectives is to discuss the matter of the direction of consciousness as a technique of government, as conduction of conducts. Moreover, we intend to emphasize that in the direction of consciousness of Roman Stoicism, such as put forward by Foucault, it is possible to identify the constitution of singular subjectivities which are irreducible to the processes of individualization and interiorization inaugurated in the 4th century AD by monastic Christianity.

Keywords: Government, Ethics, Direction of consciousness, Stoicism, Christianity.


 

 

A gênese do governo dos homens na investigação de Foucault

O pensamento de Michel Foucault a partir da segunda metade da década de 1970 amplia estratégias metodológicas já assumidas em seus livros notáveis "Surveiller et punir" (1975) e "Histoire de la séxualite, I" (1976). É o caso da problematização do conceito operatório da governamentalidade,1 neologismo que visa a ampliar a analítica do poder.2 Nesse ensaio, privilegiamos uma primeira designação de governamentalidade fornecida pelo autor nos anos 1980: "Chamo 'governamentalidade' o encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si" (Foucault, 1994b, p. 785). Nas técnicas de dominação exercidas sobre os outros, visualizamos a dimensão política do conceito; nas técnicas de si, sua dimensão ética. Contudo, uma não é separada da outra; trata-se somente de uma distinção de ênfase, de perspectiva, para identificar diferentes domínios de análise. Foucault quer mostrar que a governamentalidade abrange tanto as diferentes maneiras de governar os outros quanto as diversas modulações do governo de si mesmo.

Quando a filosofia política clássica atribui significado à palavra governo, suas conotações são preponderantemente política e administrativa, no sentido de gerir a unidade política do Estado ou de administrar o território. No curso "Sécurité, territoire, population, 1977-1978" (2004), Foucault indica que, por governo, seria preciso referir-se a relações bem mais complexas e difusas do que sua conotação exclusivamente política ou administrativa.

Ao consultar os dicionários históricos da língua francesa, Foucault observa que o verbete "governar" tem principalmente um significado material e outro moral, mais antigos que o sentido de governo administrativo do Estado ou de seu território. No aspecto material, governar designa a gestão do deslocamento de uma população em busca de subsistência; no sentido moral, significa a condução de condutas, num duplo aspecto: tanto pode fazer referência à "atividade que consiste em conduzir" quanto "à maneira pela qual conduzimos a nós mesmos, o modo pelo qual nos deixamos conduzir, a maneira pela qual somos conduzidos e pela qual, enfim, nos comportamos sob efeito de uma conduta, que seria ato de conduta ou de condução" (Foucault, 2004, p. 197). Segue-se que a atividade de conduzir condutas é inseparável da maneira de se conduzir, da atitude de resistência a uma condução específica.

Foucault opta pelo sentido moral de governo como condução, inspirado nos Ensaios de Montaigne. Mas, enquanto Montaigne reporta tal conceito ao estoicismo imperial, Foucault situa sua origem noutro lugar. Para este, a técnica de condução de condutas é correlata da formação, no Ocidente, do "governo das almas",3 também denominado "poder pastoral" (Foucault, 2004, pp.128-134). Na sua especificidade, o governo das almas abrange a estruturação de mecanismos de poder de cunho religioso que remonta ao século IV da era cristã e se estende até o século XVIII, sofrendo reformulação significativa no século XVI, por ocasião da Reforma Protestante e da Contra-Reforma.4 Foucault quer apontar que o surgimento da arte de governar no Ocidente, no sentido de governo pastoral, é um fenômeno tipicamente cristão. Com efeito, como indica Michel Senellart (2003, p. 162), "se o pastorado é antes uma invenção cristã, não é certo que o cristianismo, nas suas formas doutrinais e práticas, seja sempre 'pastoral', no sentido que entende Foucault".

O governo pastoral é uma invenção cristã porque a relação entre pastor e rebanho que caracteriza sua direção de condutas dificilmente é localizada nos textos gregos clássicos (com as exceções notáveis dos diálogos platônicos Crítias, República, Leis e O Político), bem como praticamente inexistente no pensamento político do Império romano. Entre gregos e romanos governa-se diretamente cidades ou impérios e apenas indiretamente as pessoas que neles habitam. Metaforicamente considerado, o governo da cidade grega assemelha-se ao do piloto de uma embarcação cuja função é conduzi-la ao porto seguro, sendo o governo da tripulação exercido indiretamente (Foucault, 2004, pp. 126-127). Tal arte ou tecnologia de governo é notável no aspecto religioso, já que entre os gregos inexiste a idéia de que deus conduz o povo, da mesma maneira como mais tarde o pastor conduzirá seu rebanho no cristianismo ocidental. O deus grego funda a cidade, ajuda na construção de seus muros, tem sua morada num lugar privilegiado, configurando um deus territorial.

Vestígios da tecnologia de governo pastoral encontram-se no Oriente mediterrâneo, mais precisamente entre egípcios, sírios e mesopotâmios. Porém, em tais culturas nem sempre essa tecnologia possui significado religioso. Caso diferente é a acepção de governo presente entre os hebreus, denotando exclusivamente a condução de Deus sobre seu Povo (com exceção do Rei Davi). Considerado o único e verdadeiro Pastor, somente Deus exerce perfeitamente seu governo. O guia humano é apenas intermediário de tal pastoreio. À diferença da tecnologia de governo da pastoral cristã, a religião judaica não se institucionaliza como Igreja.

Afirmar que a técnica da condução de condutas designada pelo poder pastoral é um fenômeno singular do cristianismo não deixa de ser problemático. Isso porque o termo "cristianismo" é demasiado extenso para designar a multiplicidade de realidades suposta pelo "poder pastoral". A esse respeito, afirma Foucault:

Este é um processo único na civilização ocidental, pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa, constituiu-se como Igreja, ou seja, como uma instituição que pretende o governo dos homens na sua vida cotidiana sob pretexto de conduzi-los à vida eterna no outro mundo, e isso em escala não apenas de um grupo definido, não somente de uma cidade ou de um Estado, mas da humanidade inteira (Foucault, 2004, p. 151).

Foucault procura fazer a genealogia do governo no Ocidente mediante a análise da tecnologia do poder pastoral. Para isso, deixa de lado a história da instituição Igreja, das doutrinas e crenças cristãs, bem como de suas representações religiosas. Jamais pretendera elaborar a história das instituições, tais como o asilo, a prisão ou o hospital; antes, é seu intuito observar as práticas sociais presentes em tais instituições e reproduzidas mediante a constituição de sujeitos e a produção de verdades. Quando Foucault estuda as artes de governar, está pensando no exame das maneiras de fazer, nos modos de aplicação do governo, de seu desenvolvimento e refinamento sucessivo, bem como do saber vinculado ao seu exercício. Trata-se de estabelecer articulações entre estratégias de poder e suas justificações de verdade.

Foucault utiliza uma tática recorrente em seus livros anteriores, que consiste no deslocamento das relações de poder de sua abordagem institucional e funcionalista para outra exterior e genealógica. Em "Histoire de la folie à l'âge classique", toma distância da história da psiquiatria institucional a fim de elaborar as mudanças de percepção em suas estratégias de segregação; em "Surveiller et punir" deixa de lado a história do sistema penal para debruçar-se nas tecnologias disciplinares. Por ocasião da problematização do governo em "Sécurité, territoire, population", prescinde da história da instituição do Estado para privilegiar a tecnologia geral de governo, que assegura suas mutações, seu desenvolvimento e seu funcionamento. Pergunta Foucault (2004, p. 151): "Pode-se falar de algo como uma 'governamentalidade', que seria para o Estado o que as técnicas de segregação eram para a psiquiatria, o que as técnicas de disciplina eram para o sistema penal, o que a biopolítica era para as instituições médicas?" Analogamente, por ocasião da abordagem do governo pastoral, ele busca deslocar-se da análise institucional e funcionalista da Igreja em direção da tecnologia geral de poder designada como pastoral.

Nos primórdios do cristianismo, o governo pastoral não fora considerado uma instituição necessária; ele era tido como técnica de governo. Gregório Nazianzo o define como "tékhne tekhnôn, epistémê epistémôn, 'arte das artes', 'ciência das ciências'" (citado por Foucault, 2004, p. 156),5 cuja finalidade é "conduzir o ser humano".6 Gregório o Grande, por sua vez, designa a ars artium da Pastoral como regimen animarum, governo das almas. Vale lembrar que, antes dos séculos XVII-XVIII, a ars artium era a filosofia. A disputa milenar, para Foucault, ocorre menos entre filosofia e teologia do que propriamente entre filosofia e pastoral, sendo esta última a "arte pela qual ensinamos as pessoas a governar os outros ou ensinamos os outros a se deixarem governar por alguns" (Foucault, 2004, p. 154). A institucionalização do cristianismo como Igreja e a formação das comunidades cenobíticas a partir dos séculos IV e V coincidem com o início da governamentalização. Foucault entende por tal termo a "prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder que demandam uma verdade" (Foucault, 1990, p. 39).

 

O governo das almas no poder pastoral

Este ensaio procura nuançar as principais características dessa governamentalização na pastoral cristã. Será destacado o modo pelo qual as práticas de obediência integral e de confissão exaustiva buscam sujeitar os indivíduos, na medida em que deles é exigida a renúncia completa da vontade.

Michel Foucault enfatiza que o governo pastoral cristão é uma estratégia de poder singular, porque desloca temas comuns da magistratura grega e da condução judaica, tais como a salvação, a lei e a verdade. No tema da salvação, a pastoral deixa de lado a questão grega da comunidade de destino e o tema judaico do bom pastor, deslizando-se para a "identificação analítica"; no tema da lei, ela prescinde do modelo grego do respeito às normas em virtude da convicção racional ou do padrão judaico da correta observância dos mandamentos, deslocando-se para a rede de obediência integral, cujo efeito é a "sujeição da individualidade"; no tema da verdade, ela se afasta do ensino grego da filosofia ou do ensino judaico das tábuas da lei, ao privilegiar a idéia de que o ensinamento precisa estar acompanhado da direção de consciência e da conseqüente "produção de uma verdade interior" (Foucault, 2004, p. 187). Na seqüência, são examinados tais deslocamentos.

A respeito da questão da salvação, entre gregos e hebreus prevalece o tema da comunidade de destino, segundo o qual tudo aquilo que ocorre com a comunidade tem como causa algo relacionado ao seu líder, e vice-versa. Quando os males se abatem sobre a cidade, a causa é remetida ao líder; inversamente, quando tiranos se mantêm no poder, tal infortúnio é entendido como castigo divino devido à injustiça ou à ingratidão do povo para com o deus. A legitimação política do tirano depende da recorrência das faltas praticadas na cidade pelo povo. Trata-se de relações globais entre a comunidade de destino e aquele que é o encarregado de conduzi-la. Ora, a pastoral cristã desliza-se daquelas relações globais para uma espécie de identificação analítica. Semelhante ao modelo grego e judaico, há reciprocidade entre pastor e rebanho. No entanto, sua complexidade é maior, considerando que se trata de relações "integralmente e paradoxalmente distributivas" (Foucault, 2004, p.172). Integralmente distributivas, porque o pastor precisa assegurar a salvação de todo rebanho, mas também cuidar da salvação individual de cada ovelha. Paradoxalmente distributiva, porque, quando uma ovelha se perde ou escandaliza o rebanho, precisa ser afastada de seu convívio; mas, ao mesmo tempo, a ovelha desgarrada merece cuidado análogo e complacência semelhante à que recebe o rebanho por parte do pastor, de modo que é preciso abandonar provisoriamente o rebanho para tentar reconduzir a ovelha perdida.

Das complexas relações distributivas do governo pastoral seguem-se alguns princípios, a começar pelo "princípio da responsabilidade analítica" (Foucault, 2004, p. 173). Ele supõe que, no fim do dia ou no final dos tempos, o pastor deverá responder por suas ovelhas, levando em conta tanto sua distribuição numérica e individual (se nenhuma delas se perdeu ou se ele as cuidou com esmero) quanto sua distribuição qualitativa e factual, prestando contas de cada um de seus atos e gestos. Pelo princípio da "transferência exaustiva e instantânea" (Foucault, 2004, p. 173), os méritos ou deméritos de cada ovelha a respeito de tudo aquilo que ela fez a cada instante deverão ser considerados como se fossem ações do próprio pastor. Se uma ovelha fez algo bom, tal ação deverá ser considerada também como um bem do pastor; inversamente, ele entrará em desolação ou arrependimento cada vez que uma ovelha recair ou se algo de ruim venha a lhe acontecer. Pelo princípio da "inversão do sacrifício" (Foucault, 2004, p. 174), o pastor deve arriscar sua salvação e perder-se não apenas junto de sua ovelha, mas colocar-se em seu lugar. Para salvá-la, é preciso que ele corra o risco de morrer, no sentido biológico e espiritual, expondo sua vida e sua alma ao objetivar salvar a vida e a alma de cada ovelha. Sabe-se que o diretor de consciência cristão tem como função escutar tudo o que ocorre na consciência do dirigido, mas, com isso, ele expõe sua alma à tentação. Contudo, é justamente quando ele aceita morrer pelos demais que poderá ser salvo. Pelo "princípio da correspondência alternada" (Foucault, 2004, p. 175), tem-se a seguinte situação: se for o mérito das ovelhas que constitui o mérito do pastor, também é verossímil que o mérito do pastor deixaria de ser meritório se as ovelhas já fossem perfeitas. Inversamente e paradoxalmente, quando as fraquezas do pastor são humildemente reconhecidas por ele diante de seu rebanho, contribuem para a salvação do rebanho; do mesmo modo, as fraquezas do rebanho colaboram na salvação do pastor. Na medida do possível, o pastor deve ser aquele que dá o exemplo e melhor aproxima-se da perfeição; no entanto, o exemplo tem como fim induzir a salvação do rebanho e não o desejo de ser perfeito, o que poderia conduzir o pastor ao orgulho e, como conseqüência, à perdição da alma.

Convém lembrar que a reciprocidade entre pastor e rebanho e a economia dos méritos e deméritos que o pastor incessantemente precisa gerir não garantem a sua salvação ou a do rebanho. A garantia da salvação compete somente a Deus. Cabe ao pastor somente gerir as sutilezas, as trajetórias, os circuitos, a economia dos méritos e deméritos, sempre na incerteza absoluta da salvação. O governo pastoral desloca-se de uma soteriologia global, comum entre gregos e judeus, para privilegiar tecnologias de transferência, procedimentos de inversão e jogos de apoio entre elementos contrários. Em cada momento, a decomposição de méritos e deméritos que resulta na individualização não ocorre em virtude de um estatuto do indivíduo, mas como efeito da identificação analítica.

Particularmente significativa na perspectiva de Foucault é a diferença do governo pastoral em relação à magistratura grega e ao conceito hebraico de bom pastor, no que concerne ao tema da lei. Um cidadão grego aceita ser dirigido por outrem somente quando se trata do respeito às leis e às decisões da Assembléia ou diante das ordens do magistrado, sempre que atendam ao bem comum ou privado; ele pode ainda aceitar ser dirigido se estiver convencido ou persuadido pelos argumentos da retórica, situação em que o orador convence o auditório ou o médico persuade o doente sobre a necessidade de empreender um regime. No caso dos hebreus, a observância correta das leis e dos mandamentos de Deus basta ao homem para salvar-se. Daí decorre a parca importância da necessidade de pastores que conduzam o povo.

Diante dos modelos anteriores, a especificidade do governo pastoral consiste na prioridade da relação de obediência integral entre os indivíduos: um que dirige e o que é dirigido. À diferença do judaísmo, para o qual é fundamental a observância da lei, trata-se agora da obediência individual à vontade ou às vontades de Deus. A figura do pastor está distante do homem da lei globalizante e massiva; ele é o operador de uma ação conjuntural e individualizante; tampouco é o juiz que pune, mas o médico cuja função é atuar na cura das doenças da alma. Embora eventualmente conduza o fiel ao conhecimento das leis e às decisões da comunidade e da Igreja, seu modo de agir é sempre individualizado.

No que concerne à atitude da ovelha para com o pastor, ela se caracteriza pela obediência integral. Não se trata de obedecer a princípios razoáveis de conduta e sim desenvolver a atitude da obediência. Tratando-se de relação entre indivíduos, pouco importa o teor das ordens que alguém venha a aceitar, mas que ele obedeça a cada instante de sua vida cotidiana. A obediência é perfeita quando o conteúdo a ser obedecido é absurdo, porque, nesse caso, o indivíduo renuncia completamente à sua vontade, colocando-se inteiramente à disposição de Deus.

A obediência é considerada ainda integral porque, em razão de sua finalidade, é descartado que algum dia se deixe de obedecer. Entre os gregos, se alguém aceita ser conduzido pelo professor de retórica ou pelo mestre de ginástica, é porque pretende chegar a um resultado, como o conhecimento de uma profissão ou o senhorio de si. Embora a obediência constitua passagem necessária para o alcance de tais propósitos, alguém obedece para deixar de obedecer. Já a obediência do governo pastoral é infinita. À diferença do discípulo grego, o monge almeja chegar ao estado de obediência, à atitude obediente. Ele obedece para ser obediente. O estado de obediência é condição para alcançar a humildade. Contudo, o humilde difere daquele que reconhece ter pecado gravemente ou do indivíduo que aceita qualquer tipo de ordem. Ele é o fiel convicto de que a vontade própria é ruim. A renúncia de si, da qual tanto se fala na direção cristã, concerne à mortificação completa da vontade, de modo que "não haja outra vontade senão a de não ter vontade" (Foucault, 2004, p. 181). Na direção filosófica grega, a obediência está dirigida para a apatheia, que concerne ao estado de não-passividade, à ausência de paixões e ao senhorio de si; na pastoral cristã, o que é conjurada não é a paixão em si mesma, mas a vontade auto-referente e egoísta. É insuficiente a ausência de paixões; é preciso que a vontade não cesse de renunciar a si própria.7

A obediência é também integral porque quem exerce o ofício de pastor não se limita a conduzir o rebanho; ele precisa ser obediente para exercer tal função, razão pela qual deve aceitar o cargo para o qual foi ordenado. Alguém só pode ser qualificado para ser pastor se não recusar as funções que lhe são designadas, uma vez que a recusa representaria a prioridade da vontade própria. É necessário renunciar à recusa. Segue-se a constituição de uma rede de obediência pela reciprocidade servidão-serviço, da qual decorre a individualização. Esta, por sua vez, deixa de ser pensada como afirmação do eu, sendo antes caracterizada pela sujeição incessante da vontade própria.

Vê-se que a pastoral cristã não prioriza a aceitação da lei. Diagonalmente instaura um modelo de obediência individual, exaustivo, contínuo e permanente a outrem. Trata-se da individualização que difere da assinalação do lugar hierárquico do sujeito ou da afirmação do domínio de si, definindo-se pela rede de servidões de todos em relação a todos, ao mesmo tempo em que o ego, o egoísmo como aspecto fundamental do sujeito, é excluído. Seu efeito é a individualização pela sujeição.

O último elemento deslocado pela tecnologia do poder pastoral é a relação com a verdade. Ela diz respeito à missão do ensino por parte do pastor. A diferença com o ensino grego é que o pastor precisa ministrar não apenas um conteúdo teórico; ele, antes, deve ensinar com seu exemplo, com a própria vida. Não há sentido algum no fato de dar lições a outrem se ele, o pastor, não vive o que ensina. Outra peculiaridade é que o ensinamento do pastor jamais é generalizado e globalizado. Da particularidade do auditor dependem as lições do mestre. Assim, o espírito dos auditores assemelha-se às cordas de uma cítara que devem ser afinadas e tocadas cada uma à sua maneira.

Para Foucault, porém, há dois aspectos que singularizam definitivamente o pastorado na questão da verdade. O primeiro se refere ao fato de que não se trata de ensinar o que se deve saber ou fazer, ou ainda transmitir princípios gerais verdadeiros; antes, visa-se a uma modulação cotidiana pela qual o ensino é acompanhado da observação e da vigilância, de modo que a atenção seja exercida intermitentemente sobre a conduta integral do indivíduo. Desse modo, o pastor formará um saber do comportamento e da conduta dos seus fiéis. Trata-se de um ensino integral que não descuida do olhar exaustivo sobre a vida de cada um.

O segundo aspecto que singulariza o pastorado na questão da verdade diz respeito ao privilégio concedido à técnica da direção de consciência. Pela importância que tem essa técnica para demarcar as continuidades e descontinuidades entre o cristianismo primitivo e o estoicismo imperial, ela será desenvolvida num item específico.

 

A direção de consciência nos primórdios do cristianismo

A problematização da direção de consciência no curso "Sécurité, territoire, population, 1977-1978" (2004) será desdobrada nos anos 1980 com matizes ligeiramente diferentes. Ao lado da escuta ativa, da escritura de si e da atenção aos discursos do mestre, a direção de consciência é pensada com base no fio condutor da relação entre subjetividade e verdade. Tal problematização, presente no curso ainda inédito "Du Gouvernement des vivants" (Foucault, 1979-1980) e em diversas passagens de "Dits et écrits, IV" (Foucault, 1994b) - que, de algum modo, são extratos do anunciado livro, mas jamais publicado "Aveux de la chair" -, é prolongada no curso "L'herméneutique du sujet" (2001). Contudo, enquanto no curso de 1978 o tema da direção inscreve-se como o início de outras práticas ainda presentes nas ciências humanas, os cursos de 1980 e de 1982 estabelecem o contraste entre a direção cristã e a direção pagã estóica, do qual nos ocupamos na seqüência. Comecemos, então, pela direção cristã dos primeiros séculos.

Vale a pena ser mencionado em que aspecto a relação com a verdade demarca a singularidade da direção monástica primitiva. Sempre tendo em vista que o objetivo último do cristão é a salvação, Foucault reconhece a existência de um duplo regime de verdade no cristianismo. O primeiro deles - mais conhecido - é aquele organizado em torno dos atos de fé, da adesão às verdades reveladas, aos dogmas ou aos cânones. Nesse regime, a individualização ocorre pela aceitação da verdade revelada:

A obrigação do indivíduo de aceitar certo número de deveres, de considerar alguns livros como uma fonte de verdade permanente, de consentir com decisões autoritárias em matéria de verdade, de crer em certas coisas - e não apenas crer nelas, mas ainda mostrar que ele crê nelas -, de reconhecer a autoridade da instituição: é tudo isso que caracteriza o cristianismo (Foucault, 1994b, p. 804).

Mas a peculiaridade da genealogia efetuada por Foucault consiste na identificação de um segundo regime de verdade. Ele se apresenta naquelas práticas que versam sobre a exploração dos segredos individuais, cujo objetivo é a extração de verdades interiores e escondidas na alma.

De imediato, evidencia-se a existência de uma articulação tensa entre o regime dos atos de fé e o regime da extração das verdades interiores. A prática confessional é o elemento de articulação entre esses dois regimes. O cristianismo apresenta-se como a religião confessional que veicula verdades de fé e verdades individuais. Conforme os padres da Igreja latina, até os séculos XII e XIII a palavra confesseur se referia àquele que aceitou fazer a profissão de fé e submeter-se, inclusive, ao risco da morte. Posteriormente, confesseur é aquele que organiza, regulamenta e ritualiza a confissão, extraindo seus efeitos sacramentais, bem como os segredos individuais. Assim, é no contexto do conteúdo dogmático da fé que se desenvolve a enunciação da verdade sobre a identidade de alguém (aveu).8

Em que pese o vínculo entre esses dois regimes de verdade, o interesse de Foucault se volta para o regime da extração das verdades individuais, situado para além da própria confissão. Trata-se de avaliá-la na direção de consciência. Vale lembrar que é comum na vida monástica o indivíduo ter ao mesmo tempo um confessor e um diretor de consciência. Na confissão, narram-se os atos, pensamentos e omissões considerados pecaminosos; na direção de consciência, fala-se sobre a totalidade do que ocorre na vida da pessoa, sobre suas intenções e pensamentos, independente de sua bondade ou maldade. Foucault nem sempre distingue práticas confessionais e direção de consciência na sua investigação. É comum a inclusão da direção de consciência entre as práticas confessionais. No entanto, não se poderia falar de individualização somente pela confissão dos pecados; ela ocorre também quando o sujeito se dispõe a tomar determinadas atitudes, exercer ações que lhe são aconselhadas, comportar-se de acordo com os preceitos próprios do modo de vida que ele escolheu. Daí reside o interesse pela direção da consciência. Distinguir entre o verdadeiro e o falso a respeito do que ocorre nos pensamentos, assim como extrair a verdade neles escondida e produzi-la como discurso com base na obediência integral, são os aspectos fundamentais da direção de consciência.

Além da individualização sujeitada, observada por ocasião do estudo da obediência integral ao pastor, a direção de consciência enfatiza a necessidade de dizer tudo àquele que dirige (mestre, abade, diretor). O ato de verbalizar qualquer movimento do pensamento possui o efeito de purificação e é denominado pelos padres gregos exagorese, que designa a "perpétua discursividade sobre si mesmo" (Foucault, 1979-1980, C 62, 12).9 Há uma íntima relação entre a exagorese e a obediência integral em "Du gouvernement des vivants" (Foucault, 1979-1980, C 62, 11). O dirigido obedece ao pastor porque suspeita que a presença do Inimigo esteja mesclada no fluxo de seus pensamentos. Na direção de consciência, insiste-se na identificação dos poderes do Inimigo, que se escondem sob as aparências dos próprios pensamentos, a fim de que sejam incessantemente combatidos. Trata-se de intensa batalha interior a ser vencida somente com a ajuda dos poderes divinos. Obedecer permanentemente ao mestre e submeter-se aos seus conselhos conformam o caminho para alcançar a vitória na batalha (Foucault, 1994b, p. 307).

Nesse processo, relevância significativa é atribuída ao exame de consciência. Sua prática abrange a meditação sobre o dia que passou e a permanente vigilância sobre si mesmo. Cassiano (350-435), autor de "Instituições Cenobíticas" e "Conferências", assevera que o objeto do exame se refere não tanto ao que foi feito ou ao que se deixou de fazer, mas ao que está pensando o indivíduo no momento do exame. Cassiano aqui se refere ao modo privilegiado de "discriminar" permanentemente as cogitationes que procedem de Deus e aquelas que Dele se afastam (Foucault, 1994b, pp. 305-308). Importa na direção apreender os movimentos da alma (omnes cogitationes) e sua origem. O foco da decifração é o pensamento, com seu curso irregular e espontâneo, suas imagens e lembranças, percepções e impressões, que transitam do corpo para a alma e vice-versa:

O que está em jogo então não é mais um código de atos permitidos ou proibidos; é toda uma técnica para analisar e diagnosticar o pensamento, suas origens, suas qualidades, seus perigos, seus poderes de sedução e todas as forças obscuras que podem esconder-se sob o aspecto que ele apresenta. E, se, enfim, o objetivo é expulsar tudo o que é impuro ou indutor de impureza, deve-se estar atento por meio de uma vigilância que não desarma jamais, uma suspeita que é preciso ter em qualquer lugar e a cada instante contra si mesmo (Foucault, 1994b, p. 307).

Sondar o que ocorre consigo implica isolar a consciência e os movimentos do espírito, a fim de verificar se há algo que desvia o pensamento de Deus. Fascina Foucault na direção da consciência cristã a dramatização da verdade, o acontecimento da verdade pela prática da verbalização. Longe de limitar-se à enunciação de faltas cometidas ou à exposição de estados da alma, o privilégio recai na permanente enunciação de quaisquer movimentos do pensamento e suas intenções. O monge coloca-se em dupla relação: com o confessor e consigo. Com o confessor, na medida em que acredita que sua experiência e sabedoria lhe permitem melhor aconselhar, embora o conselho deixe de ser fundamental na direção. Consigo, porque o importante é a decisão pessoal de verbalizar. Discorrer sobre os movimentos da alma já possui o caráter operatório da discriminatio entre os bons e maus pensamentos.

O ato de confessar o que ocorre consigo, somado à humilhação e à vergonha que isso implica, constituem condições imprescindíveis para que o Maligno deixe o indivíduo. Sempre que os pensamentos tenham origem pura e correspondam às boas intenções, não há mal algum que sejam revelados. Se, pelo contrário, procedem do Maligno, há recusa e vergonha de dizê-los e a tendência de escondê-los, acusando indubitavelmente sua marca maligna. Além disso, os maus pensamentos localizados nos arcanos do coração e prestes a tomar posse da alma individual deixam de seduzi-la e induzi-la ao pecado sempre que estejam ameaçados de serem confessados.

Tal raciocínio vem da escatologia e da demonologia da teologia cristã. Satã é considerado um anjo da luz que, devido ao seu desvio e rebeldia, foi condenado às trevas, de modo a ser-lhe interditada a claridade. Desde então está refugiado na obscuridade dos maus pensamentos, nas dobras da alma, onde a luz não penetra. Eis porque o gesto de verbalizar é suficiente para conduzir a alma em direção da luz, operando a expulsão de Satã, ainda que de modo provisório. Segue-se que exorcizar os maus pensamentos pela verbalização constitui tarefa infindável. A extração da verdade pela enunciação do fluxo dos pensamentos e da obediência integral é efeito comum da direção de consciência. O vínculo com a verdade visa a fortalecer a relação de dependência.

Retomando o curso "Sécurité, territoire, population, 1977-1978" (2004) a respeito da relação com a verdade, afirma Foucault (2004, p.186):

Se for verdade que o cristianismo, que o pastor cristão ensina a verdade, se ele obriga os homens, as ovelhas, a aceitar uma determinada verdade, o pastorado cristão inova absolutamente introduzindo uma estrutura, uma técnica, ao mesmo tempo de poder, de investigação, de exame de si e dos outros pela qual uma verdade, verdade secreta, verdade de interioridade, verdade da alma escondida vai ser o elemento pelo qual se exercerá o poder do pastor, pelo qual [...] será assegurada a relação de obediência integral e através da qual passará a economia dos méritos e deméritos.

Torna-se possível, agora, precisar as mudanças operadas pelo pastorado. Na articulação com a salvação global, com a lei geral e com a verdade reconhecida, a individualização cristã desloca-se para a identificação analítica, para a sujeição da individualidade e para a extração da verdade subjetiva. O alcance de tais deslocamentos terá ampla repercussão, na medida em que as tecnologias pastorais atuantes na condução de condutas constituem elementos relevantes na "história do sujeito" ocidental (Foucault, 2004, p. 187). No manuscrito de "Sécurité, territoire, population", recuperado e transcrito por Michel Senellart, acrescenta Foucault (2004, p. 237):

O homem ocidental é individualizado pelo pastorado na medida em que o pastorado o conduz à sua salvação, fixando para a eternidade sua identidade, na medida em que o pastorado o sujeita numa rede de obediências incondicionais e inculca nele a verdade de um dogma no mesmo momento em que extorque o segredo de sua verdade interior. Identidade, sujeição, interioridade: a individualização do homem ocidental durante o longo milênio do pastorado cristão foi operado ao preço da subjetividade.

Diante de tal panorama, caberia perguntar se na história do sujeito ocidental seria possível falar de uma constituição da subjetividade desembaraçada do ônus da identidade, da sujeição e da interioridade.

 

A direção de consciência no estoicismo imperial

Em seu artigo clássico "Exercices spirituels", destaca Pierre Hadot (2002, p. 71): "Desde os primeiros séculos, o cristianismo apresentou-se como uma filosofia, na mesma medida em que ele assimilava a prática tradicional dos exercícios espirituais". Tal afirmação é incontestável do ponto de vista da descrição das técnicas de direção e de exame de consciência, assim como da especificidade do cristianismo nessa matéria. Há assimilação da filosofia ainda no que concerne à necessidade da direção por parte de um outro. No escrito célebre de Galeno intitulado "Traité des passions, Traité (de) la cure des passions", citado em "L´Herméneutique du sujet" (Foucault, 2001, pp. 378-380), afirma-se que dificilmente alguém pode ser médico de si próprio. Tal dificuldade deriva da constatação da cegueira sobre nós mesmos, quando se trata das paixões e dos erros. Freqüentemente o indivíduo alimenta falsas ilusões sobre si mesmo, como quando cultiva um excesso de amor próprio (amor sui). Por isso, é preciso que ele seja avaliado por outro. A escolha do diretor ou conselheiro deverá ser realizada com a devida cautela, segundo Galeno.

Convém lembrar que à diferença da direção na Grécia clássica ou da direção cristã, no estoicismo imperial geralmente o mestre é um conselheiro privado pago pelos seus clientes e ocupa posição econômica e social inferior (cf. Foucault, 2001). A presença de falsos conselheiros que buscam apenas bajular não ajuda aquele que almeja desfazer-se da ilusão sobre si mesmo. Antes de escolher um conselheiro, é imprescindível saber se ele tem boa reputação, se é adulto e se dispõe de quantidade de bens equiparáveis ao seu discípulo. Se o conselheiro for pobre e seu cliente demasiado rico, há grandes possibilidades de que aquele seja somente um aproveitador. Por isso, é imprescindível que o discípulo teste seu provável conselheiro a fim de saber se ele é suficientemente rigoroso em seus conselhos (cf. Foucault, 1997a).

Outro elemento de continuidade entre o estoicismo imperial e o cristianismo é a necessidade de ser dirigido permanentemente. "Toda pessoa que quiser, na vida, se conduzir como convém tem necessidade de um diretor" (Foucault, 2001, p. 381). Cuidar de si mesmo implica deixar-se conduzir por um outro permanentemente.

É oportuno, então, destacar quais são as descontinuidades entre a direção estóica e a direção cristã estabelecida por Foucault. Evidentemente, os limites deste estudo impõem somente uma visão sintética de tais descontinuidades. A originalidade da perspectiva de Foucault consiste na "atenção concedida ao momento decisivo quando, segundo ele, ocorreu a passagem de uma direção de consciência fundada no cuidado de si, em termos de domínio e de liberdade, a uma direção de consciência voltada para a salvação, em termos de obediência e de renúncia de si" (Senellart, 2003, p. 157).

Na verdade, em vez de um momento localizado, trata-se de um processo lento e complexo, permeado de conflitos, cujo ápice pode ser situado no final do século IV, com o pensamento de Cassiano. Na primeira parte deste estudo, analisamos em detalhe a direção de consciência cristã e fizemos referência a esse pensador. Cabe agora identificar os principais aspectos dessa direção, fundada no cuidado de si, no estoicismo romano, de modo a estabelecer o contraste inicialmente apontado.

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar a relação entre diretor e dirigido no que concerne à oposição entre autonomia e obediência. Essa oposição é analisada por Foucault no curso ainda inédito "Du gouvernement des vivants, 1979-1980", principalmente na aula de 12 de março de 1980.

Foucault assevera que, à diferença da direção de consciência cristã, que objetiva alcançar estados de obediência integral e permanente, a direção de consciência estóica na época imperial designa o procedimento pelo qual o indivíduo submete-se a outrem no domínio privado em virtude da livre vontade, conforme considera conveniente e de modo sempre provisório, excluindo qualquer coação jurídica ou política. Nela inexiste cessão de soberania ou renúncia da vontade. O discípulo quer que o mestre lhe diga o que deve fazer. A vontade do mestre é princípio da vontade própria, embora seja o discípulo que deseje submeter-se à vontade do mestre. Portanto, é deixado de lado o contrato pelo qual o representante ocupa o lugar da vontade de alguém, justamente porque não há cessão de vontade. As duas vontades, a do discípulo e a do mestre, permanecem presentes: uma não desaparece em proveito da outra. Elas coexistem, de modo que uma quer totalmente e sempre o que a outra quiser. Assim, a direção de consciência somente se efetiva se o discípulo quiser ser dirigido. O jogo entre liberdades é fundamental, razão pela qual jamais há codificação ou sanção jurídica, permanecendo apenas as técnicas de direção. O objetivo da direção de consciência estóica depende daquilo que quiser o discípulo, como a busca da perfeição, a tranqüilidade da alma, a ausência de paixões, o domínio de si. Ser governado por outro auxilia na determinação do governo de si objetivado pelo discípulo: obedece-se livremente ao que o outro deseja somente quando tal obediência visa ao governo de si, à subjetivação da verdade.

É nesse quadro da oposição entre autonomia e obediência que se situa o problema do exame de consciência. Em definitivo, é praticamente impossível a viabilidade da direção se for negligenciado o exame de consciência. A articulação entre a vontade do mestre e a vontade do discípulo, a necessidade de que a vontade do segundo assimile adequadamente a vontade do primeiro e queira livremente aquilo que ele quiser, constitui o centro da prática do exame de consciência. Mais do que ser um juiz de si próprio, examinar a consciência é colocar-se na posição de administrador de si mesmo, no sentido daquele que faz uma inspeção minuciosa de si, conforme indicado por Sêneca (Foucault, 2001, p. 462). Aquele que se auto-administra almeja que tudo se realize corretamente de acordo com as regras que ele se propõe e nunca em virtude de obediência à lei externa. Reprovações auto-impostas não se referem às faltas reais, mas ao seu insucesso; erros cometidos concernem às estratégias mal executadas e não aos pecados morais. Em vez de explorar sua culpabilidade, o dirigido tenta averiguar o ajuste entre aquilo que fez e o que pretendeu fazer, de modo a poder reativar regras de comportamento. Escutar a consciência significa invocar pela memorização os discursos verdadeiros, sempre que for preciso e do modo adequado (cf. Foucault, 2001, p. 463). Já seu eventual esquecimento não se refere à natureza do sujeito ou à sua origem; antes, lamenta-se o olvido de regras de conduta que poderia ter posto em prática e não foi possível. A rememoração de erros cometidos no fim da jornada tem como único propósito avaliar a diferença entre o que foi feito e o que deveria ter sido feito. Na direção estóica, o sujeito deixa de ser o centro pelo qual o processo de decifração é operado. Na verdade, ele é o ponto no qual as regras de conduta se reencontram na memória; é o campo de intersecção entre atos que necessitam ser submetidos a regras que, por sua vez, definem o modo pelo qual é preciso agir. O sujeito examina a consciência para alcançar o autodomínio e deixar-se guiar pela razão cósmica e universal, de modo a adaptar suas ações aos princípios que governam o mundo. Trata-se da constituição do sujeito racional em virtude do estabelecimento de fins determinados. Suas ações são consideradas boas ou ruins em função do sucesso ou do fracasso dos fins anteriormente propostos.

Em segundo lugar, a direção estóica apresenta diferenças significativas com a direção cristã no que diz respeito à questão da verdade. Esse aspecto da direção de consciência é elaborado em "L´Herméneutique du sujet" (2001), porquanto o quadro analítico desse curso é justamente a articulação entre sujeito e verdade. Se no cristianismo o importante é saber como poder dizer a verdade sobre si mesmo, no estoicismo romano é relevante saber como se tornar um sujeito de verdades (cf. Foucault, 2001). No cristianismo, o discípulo sempre tem algo a dizer, ele tem de dizer a verdade; trata-se da verdade dele mesmo, como condição para alcançar a salvação. Ora, isso inexiste não somente no estoicismo romano, mas também na Antiguidade grega e helenística. Entre os estóicos, o discípulo não precisa dizer a verdade sobre si mesmo; em definitivo ele não precisa jamais dizer a verdade, porque dele não se exige que fale algo. "É preciso e é suficiente que ele se cale" (Foucault, 2001, p. 347). Foucault admite que, de alguma maneira, o discípulo estóico sempre confidencia alguma inquietação, alguma dificuldade ao seu mestre. No entanto, essa verbalização é instrumental, jamais operatória. Discorrer sobre alguma falta denota apenas o progresso que significa para o discípulo a coragem de tal gesto. Nunca se trata de ver na própria verbalização um sentido espiritual. O que se exige do discípulo é que ele se torne um sujeito de verdade, no sentido de que precisa ocupar-se com os discursos verdadeiros. Um dos objetivos da direção é que o discípulo mesmo possa ser capaz de dizer a verdade. Por isso é necessário testá-lo como um sujeito suscetível de dizer a verdade, justamente para que ele saiba em qual ponto se encontra em seu processo de subjetivação. No fundo, é somente no discurso do mestre que se encontra a verdade. Se o discípulo fala, não significa que haja autonomia em seu discurso; inexiste função própria no seu discurso. A palavra que dele é extraída, seja mediante o diálogo ao estilo socrático, seja pela diatribe no sentido estóico, tem como escopo mostrar que somente no discurso do mestre se encontra a verdade.

Daí se deduz que a subjetivação da verdade, que constitui um dos objetivos maiores da direção, depende de que o mestre seja, de fato, um mestre da verdade. E, para isso, ele precisará desenvolver qualidades imprescindíveis para que tal subjetivação ocorra, sendo a principal delas falar francamente, sem rodeios, mesmo diante de eventuais perigos ou ameaças. Como já sabemos, tratava-se de qualidade muito difícil de ser adquirida nos meios greco-romanos, posto que o mestre já não era o velho sábio detentor da verdade que interpelava os jovens nos estádios e ginásios a se ocuparem de si mesmos. Na época do estoicismo imperial, ele se dedica somente a dar conselhos de condutas; geralmente tem posição social inferior e, portanto, torna-se muito suscetível de falar o que o discípulo quiser ouvir. Já trabalhamos essa questão quando tergiversamos sobre a parrhesia antiga em outro estudo (cf. Candiotto, 2007, pp. 35-54). As condições fundamentais para que a verdade seja transmitida por meio do discurso do mestre é que ele seja um parrhesiasta, quer dizer, é preciso que aquilo que ele diz seja aquilo que pense; em seguida, que aquilo que pense seja concorde com aquilo que sinta; e que, além disso, o que sinta seja conforme àquilo que viva. Em termos mais simples, é preciso uma coerência entre o logos e o bios, entre os discursos considerados verdadeiros e a maneira de viver.

Essas continuidades e descontinuidades entre o cristianismo monástico primitivo e as escolas filosóficas estóicas observáveis na análise da técnica da direção de consciência conformam um dos aspectos significativos da "genealogia espiritual" (1994b, p. 423) proposta por Michel Foucault. Além disso, elas chamam a atenção para o complexo processo que envolve essas duas modalidades de governo das almas no Ocidente.

 

Referências

Candiotto, C. (2007). Filosofia e coragem da verdade em Michel Foucault. In D. O. Perez (Org.), Filósofos e terapeutas em torno da questão da cura (pp. 33-54). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

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Enviado em 28/6/2008
Aprovado em 19/8/2008

 

 

1 Do original: gouvernamentalité, inexistente nos principais dicionários de língua francesa. Em português, ora a palavra é traduzida por governabilidade, ora por governamentalidade, o que pode resultar em confusões conceituais. Veiga-Neto (2002, pp. 20-33) apresenta diversos argumentos em prol do uso de governamentalidade e não governabilidade. Um deles é o que segue: enquanto governabilidade "denota a qualidade daquele ou daquilo que se pode governar ou que se deixa governar, que é dócil, que é obediente", governamentalidade seria mais adequado ao emprego feito por Foucault de gouvernamentalité, como a "qualidade segundo a qual o Estado foi se tornando governamental". Por referir-se mais às questões governamentais vinculadas ao surgimento do Estado moderno do que propriamente a algo ou alguém que pode ser governado ou dirigido, ou a algo ou alguém que é dócil e obediente, prefere-se o conceito governamentalidade. Além da razão aduzida, vale ressaltar que, na tradução inglesa do termo, não foi utilizada a palavra já dicionarizada governableness, mas o neologismo governmentality. Finalmente, em virtude de sua minuciosa elaboração e sua significativa contribuição, o conceito governamentalidade não carregaria ainda mais a língua portuguesa, mas contribuiria para seu enriquecimento.
2 Para Foucault, há diferenças notáveis entre uma teoria do poder e uma analítica do poder. A primeira, comumente desenvolvida pelas teorias jurídicas e pela filosofia política clássica, aborda o poder como se fosse uma coisa, substância ou essência cujo ser pode ser descrito em sua estrutura e funcionamento. Já a segunda, negligencia o poder como objeto a ser descrito ou essência a ser representada. O poder é analisado em seus efeitos, como a confluência de estratégias plurais, como relação e exercício. "O poder não é uma instituição, não é uma estrutura, não é uma certa potência da qual alguns seriam dotados: é o nome que atribuímos para uma situação estratégica complexa numa sociedade dada" (Foucault, 1976, p. 123).
3 Em 1975, Foucault se refere às "artes de governar", ao "governo" e ao "governo pastoral". As "artes de governar" concernem ao "governo das crianças", ao "governo dos loucos", ao "governo dos pobres" e ao "governo dos operários" (Foucault, 1999, p. 45). Mas esse governo é entendido no quadro cronológico que começa com a Reforma e a Contra-Reforma do século XVI até a emergência do dispositivo de normalização disciplinar do século XIX. É ainda na perspectiva dos mecanismos de normalização que a pastoral, como tecnologia de governo das almas, é situada ao lado do poder disciplinar sobre os corpos. "No momento em que os Estados estavam se colocando o problema técnico do poder a exercer sobre os corpos e dos meios pelos quais seria efetivamente possível pôr em prática o poder sobre os corpos, a Igreja, de seu lado, elaborava uma técnica de governo das almas, que é a pastoral, a pastoral definida pelo concílio de Trento e retomada e desenvolvida em seguida por Carlos Borromeu" (Foucault, 1999, p. 165).
4 Uma das novidades da problemática do poder pastoral no curso de 1977-1978, em relação ao curso de 1974-1975, é sua extensão cronológica. Em Les anormaux, o poder pastoral basicamente é considerado a partir da Contra-Reforma católica do século XVI, ocasião na qual a Igreja preocupou-se com a formação detalhada e rigorosa dos pastores em reação à negação do sacramento da ordem e da penitência e, principalmente, da crítica à venda de indulgências, feita por Lutero.
5 Foucault cita Discours 1, 3, trad. J. Laplace, Paris, Cerf, "Sources chrétiennes", 1978, pp. 110-111.
6 Grégoire de Nazianze, Discours 2, 16, citado por Foucault, 2004, p. 163, nota 46.
7 Michel Senellart observa que Foucault não cita nenhuma fonte precisa quando trata da apatheia. No entanto, pelos traços que destaca, tais como a renúncia ao egoísmo, à vontade singular, o páthos compreendido como vontade orientada para si mesmo, "montrent que l'apatheia appartient au discours de l'ascèse cénobitique et monastique, dans la continuité de l´anachorèse des premiers siècles. Elle releve du même système de pensée que celui dont témoignent les vies des Péres du désert, l'Histoire Lausiaque de Pallade, les Institutions et Conférences de Cassien, la Régle de saint Benoit, et que trouve son prolongement, selon Foucault, dans les écrits de saint Ambroise et de saint Grégoire" (Senellart, 2003, pp. 159-160).
8 Segundo Foucault, aí pode estar situado o grande ponto de ruptura com o protestantismo. Este retoma o ato de fé como adesão ao conteúdo dogmático, ao modo da subjetividade que permite a alguém descobrir nele mesmo e segundo a lei e testemunho de sua consciência o conteúdo de tal fé. É na condição de operador, testemunho e autor do ato de verdade que o sujeito vai descobrir nele qual será a regra de sua crença e de seu ato de fé.
9 A referência para este curso ainda inédito de Michel Foucault tem como data o ano acadêmico de sua realização, a catalogação do curso adotada pelo IMEC, com a letra e o respectivo número da fita-cassete, assim como a identificação do número da aula.