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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

RESENHA

 

Phillips, Adam 2006 [1988]: Winnicott

 

 

Leopoldo Fulgencio

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas E-mail: ful@that.com.br

 

 

O livro de Adam Phillips, publicado pela primeira vez, em inglês, em 1988 e só agora, em 2006, disponível em português, é uma das primeiras obras a fazer um estudo sistemático das propostas de Donald W. Winnicott. Ele considera que Winnicott fez transformações profundas na teoria e no método de tratamento psicanalítico. Nos últimos 30 anos Winnicott tem sido estudado e cada vez mais reconhecido como um dos grandes psicanalistas pós-Freud. Alguns autores - tais como Davis & Wallbridge, Clancier e Kalmanovitch, Geets, Pontalis, Green -, apesar de reconhecerem a originalidade de Winnicott, não o tomam como propondo uma nova teoria ou novo fundamento para psicanálise, enquanto que outros, especialmente Loparic e Dias, consideram que ele fez uma revolução paradigmática (no sentido que Thomas Kuhn dá a esta expressão) na psicanálise. A leitura do livro de Phillips contribui para esta discussão, sendo um texto enriquecedor tanto para a compreensão de aspectos mais sutis da teoria quanto para a avaliação do lugar a ser dado a Winnicott na história do desenvolvimento da psicanálise.

Phillips percorre toda a obra de Winnicott colocando em evidência uma série de temas propriamente winnicottianos, bem como explicitando diferenças significativas em relação à obras de Freud e Klein. Nesta resenha não me ocuparei de retomar a diversidade dos comentários de Phillips sobre estes temas propriamente winnicottianos - ainda que seja possível orientar o leitor para encontrar pontos específicos, tais como a importância da mãe na constituição do self-verdadeiro (p. 186), a relação entre a submissão e o falso-self (p. 189), a questão da originalidade e da criatividade (p. 189), o verdadeiro e o falso-self (p. 191), o problema da comunicação e da não-comunicação (p. 203), a recusa do conceito de pulsão de morte (p. 152) etc. -, mas focarei meus comentários na questão das continuidades e rupturas que Phillips comenta ao comparar a posição de Winnicott com a de Freud e de Klein. Para isto, abordarei três pontos específicos, comentados por Phillips: 1. o reconhecimento de que Winnicott apresenta modificações profundas na teoria psicanalítica; 2. a avaliação da linguagem utilizada por Winnicott como sendo, por vezes, obscura, ainda que de grande criatividade; e 3. a consideração de que faltaria uma organização sistemática harmônica nas propostas teóricas de Winnicott. Ao final da resenha, me ocuparei, ainda, de fazer alguns comentários críticos relativos às opções de tradução dos termos instinct e ruthless.

Phillips considera que Winnicott tem uma teoria do desenvolvimento diferente da de Freud e da de Klein, apresentando uma perspectiva própria. Na página 143, temos: "durante os anos 1940 Winnicott havia elaborado uma teoria do desenvolvimento poderosamente antagônica àquela de Freud e de Klein, ao mesmo tempo incluído os pedaços das obras dos mesmos que ele considerava úteis"; e nas páginas 182-3, temos: "Em três importantes artigos que podem ser lidos proveitosamente como uma série - "O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil" (1967), "O uso do objeto e suas relações através de identificações" (1969), e "Distorção do Ego em termos de Verdadeiro e Falso Self", (1960) -, Winnicott oferece as considerações finais de sua teoria do desenvolvimento". Ainda que ele não chegue a caracterizar, como fazem alguns autores atuais, a teoria do amadurecimento pessoal proposta por Winnicott como uma teoria que é mais ampla que a teoria do desenvolvimento da sexualidade (cf. Dias e Loparic), ele reconhece que Winnicott se afastou das teorias clássicas, oferecendo um novo paradigma para a psicanálise: "Winnicott fez derivar tudo, em sua obra, inclusive uma teoria das origens da objetividade científica e uma revisão da psicanálise, do seu paradigma da relação mãe-bebê" (2006 [1988], p. 5).

A avaliação da obra de Winnicott como sendo um novo paradigma para a psicanálise também foi defendida por Greenberg & Mitchell (Relações objetais na teoria psicanalítica, de 1983) e por Zeljko Loparic ("Esboço do paradigma winnicottiano", de 2001; "De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática", de 2006), ainda que em sentidos pouco diferentes. Eu mesmo ("Paradigmas na história da psicanálise", 2007), dedicando-me a analisar como o termo paradigma tem sido utilizado na compreensão do desenvolvimento da psicanálise, mostrei a diferença entre usar o termo num sentido amplo (como é o caso de Phillips) e no seu sentido mais técnico, com maior ou menor precisão (como é o caso de Greenberg & Mitchell e de Loparic). O caso de Phillips é interessante de ser explicitado, pois, mesmo não usando o termo no seu sentido mais preciso, ele reconhece diversos pontos que diferenciam, de maneira radical, a psicanálise de Winnicott da de outros autores clássicos.

Ao focar, por exemplo, a questão da desilusão, Phillips diz: "Onde Freud e Klein haviam enfatizado o papel da desilusão no desenvolvimento humano, no qual crescer seria um processo de luto, para Winnicott haveria um sentido mais primário em que o desenvolvimento era um processo criativo de colaboração. A desilusão pressupunha ter havido ilusão suficiente. Para o bebê, no início, dado um ambiente de sustentação, o desejo era criativo, mais do que simplesmente voraz" (p. 149). Phillips reconhece que Winnicott introduziu um período inicial no qual o bebê vive um período de ilusão, fruto da adaptação ambiental às necessidades do bebê, uma ilusão de que o mundo é como ele necessita, uma fase que será a base sobre a qual toda e qualquer desilusão poderá ocorrer... o bebê não nasce desamparado, mas na saúde, iludido de que o mundo que ele precisa aparece como fruto da sua necessidade (ainda que isto só seja possível com a adaptação do ambiente, adaptação da qual ele não tem a mínima percepção ou idéia). No início, não há desamparo nem inveja, mas adaptação ambiental e ilusão.

Ele também mostrará que no que se refere ao tema da criatividade e da sublimação, há uma mudança profunda proposta por Winnicott: "Na obra de Freud, a criatividade seria (acentuadamente adulta) a sublimação da sexualidade infantil, apesar de ele nunca ter fornecido um relato convincente da natureza verdadeira da própria atividade sublimatória. Para Melanie Klein a criatividade como essencialmente reparadora - para ela, arte era compensação - seria secundária à destrutividade inerente à sexualidade infantil como testemunhada pelo próprio bebê na posição depressiva. Na nova teoria de Winnicott, a criatividade era primária, pré-sexual e caracterizava o relacionamento naturalmente recíproco entre um bebê e sua 'mãe devotada comum'" (p. 150). Isto resultará, seguindo a questão da sublimação, numa teoria da cultura, da entrada do homem na cultura e sua vida como ser de cultura, totalmente diferente da de Freud: "Enquanto Freud se preocupava com as enredadas possibilidades de satisfação pessoal de cada indivíduo, para Winnicott essa satisfação seria apenas parte do panorama mais amplo das possibilidades para autenticidade pessoal do indivíduo, o que ele chamará de 'sentir-se real'. Na escrita de Winnicott, a cultura pode facilitar o crescimento, assim como o pode a mãe; para Freud, o homem é dividido e compelido, pelas contradições de seu desejo, na direção de um envolvimento frustrante com os outros. Em Winnicott, o homem só pode encontrar a si mesmo em sua relação com os outros, e na independência conseguida através do reconhecimento da dependência. Para Freud, em resumo, o homem era o animal ambivalente; para Winnicott, ele seria o animal dependente, para quem o desenvolvimento - a única 'certeza' de sua existência - era a tentativa de se tornar 'separado sem estar isolado'. Anterior à sexualidade como o inaceitável, havia o desamparo. A dependência era a primeira coisa, antes do bem e do mal" (p. 29). Enquanto em Freud o processo de entrada do homem na cultura é marcado pela repressão da pulsão sexual, repressão do egoísmo, pelo crime horrendo do assassinato do pai e a distribuição da culpa, em Winnicott a entrada do homem na cultura é um processo de expansão do espaço da brincadeira, lugar que não é gerado por sublimação ou desvio da sexualidade, mas pelo encontro de si mesmo naquilo que está ao mesmo tempo dentro e fora de si. É neste entre interno e externo que me encontro e encontro o outro, que vivo a ilusão de que estamos no mesmo mundo e, por isso, nos comunicamos, partilhamos e podemos viver com os outros.

Ressaltei apenas dois pontos para salientar que Phillips pertence aos autores que consideram a obra de Winnicott como um ponto de ruptura e de mudança no desenvolvimento da psicanálise. O leitor encontrará, ao longo da leitura deste livro, diversos outros aspectos que vão nesta mesma direção.

Mas Phillips também tem suas reservas e críticas em relação a Winnicott, especialmente no que diz respeito à sua linguagem e organização da sua teoria enquanto uma totalidade harmônica. São estes pontos que gostaria de salientar num diálogo com as suas avaliações.

Phillips considera que a linguagem utilizada por Winnicott nem sempre é clara, por vezes era mesmo obscura, além de, por causa da criatividade que caracteriza esta obra, acaba por não apresentar uma elaboração que não é nem sistemática nem precisa. Isto pode ser encontrado em diversas passagens. Numa nota da página 181, ele afirma: "A falta de clareza conceitual convencional sempre remete a uma perplexidade essencial em sua obra". Noutro momento ele também diz: "ao mesmo tempo em que Winnicott iniciava distinções importantes, ele também mudava a terminologia de forma confusa; nas citações acima, 'componentes' se tornaram 'impulsos [impulses]' e 'vida instintual [instintual life]' mudara para 'força vital'. Todos estes termos têm implicações bem diferentes" (p. 160).

Considero que Winnicott construiu uma linguagem nova, harmônica com seu sistema teórico, que deve ser entendida segundo alguns parâmetros que não foram considerados por Phillips. O que o próprio Winnicott afirmou sobre sua maneira de teorizar (sua linguagem) cada uma das fases do desenvolvimento: "A linguagem de uma parte específica é inadequada para outras" (Natureza Humana, p. 52). A opção por linguagens específicas para cada fase não é, pois, confusão ou falta de clareza, mas de uma opção metodológica que procura descrever com a maior precisão possível as dinâmicas dos relacionamentos interhumanos em jogo, considerando-se as maturidades e as capacidades do bebê ou da criança em cada um destes momentos e conquistas do amadurecimento. Assim, por exemplo, é totalmente inadequado dizer que um bebê inveja o seio, que um bebê pode experienciar relações do tipo edípicas, etc.

Phillips também considera que Winnicott, mesmo tendo apresentado uma teoria sem contradições, não apresentou uma teoria em que todos os seus enunciados se encaixam construindo um sistema harmônico: "É justo reconhecer também que Winnicott tinha as virtudes psicanalíticas de seus vícios científicos: ele não se tornou sistematicamente coerente em detrimento de sua própria inventividade" (p. 147). Esta posição estaria em consonância com a sua avaliação sobre a linguagem utilizada por Winnicott. Aqui caberia uma discussão sobre a existência ou não de uma teoria sistematicamente organizada em Winnicott. Alguns autores (em especial o grupo fundado por Dias e Loparic, constituindo a Escola Winnicottiana de São Paulo, cf. www.sociedadewinnicott.com.br, e, mais recentemente, em 2008, Jan Abram, "Donald Woods Winnicott (1896-1971): A Brief Introduction, IJP 89) têm se dedicado a mostrar esta sistematicidade, e talvez aí esteja um ponto de divergência entre a avaliação que Phillips faz da importância e do lugar da obra de Winnicott na história da psicanálise, e a que estes autores têm proposto. Por outro lado há outros intérpretes da obra de Winnicott que o colocam na continuidade, sem rupturas, com a obra de Freud e de Klein (Joseph Aguayo, Christopher Reeves, dentre outros). Não creio ser o caso de desenvolver aqui esta discussão, quero apenas apontar para esta questão, indicando aos leitores um problema importante a ser considerado na leitura de Phillips e de outros comentadores importantes da obra de Winnicott.

Ao final desta resenha quero, ainda, fazer uma observação relativa ao trabalho da tradução e da revisão técnica e da apresentação do livro de Phillips. O revisor técnico considera que a sombra de Melanie Klein paira sobre a originalidade e independência de Winnicott - "Winnicott, já maduro, kleiniano, livre pensador e autônomo criador de si mesmo" (p. 10) -, avaliando que Winnicott permanece neste terreno, a ponto de dizer que sua obra pode ser considerada como uma variação dos temas kleinianos - "Winnicott variou os temas kleinianos de modo a simultaneamente se inscrever neles e se diferenciar" (p. 13). Este viés levou, creio, a erros de tradução que prejudicam profundamente a leitura do livro de Phillips. Optou-se por traduzir ou reiterar a tradução de instinct e impulse, nos seus mais variados usos, por "pulsão"; cito alguns exemplos dentre as inúmeras passagens: instinctual life por "vida pulsional sexual" (p. xx, no original; p. 22, na tradução); instinctual experiences por "experiências pulsionais" (p. 79-80; p. 121); instinctual elements e instinctual conflict por "elementos pulsionais" e "conflito pulsional" (p. 102 e pp. 149-150); "The 'life-force', as expressed by the 'impulse gesture'" por "A 'força-vital', como expressa pelo 'gesto pulsional'" (p. 111; p. 162). Ele também traduziu ruthless por "cruel", também nas suas diversas aparições no texto de Phillips e de Winnicott citado por Phillips, das quais cito como exemplo os seguintes casos: "To use the mother ruthlessly" por "usar a mãe cruelmente" (p. xx; p. 25); ruthless love por "cruel amor" (p. 70; p. 109); "idea of the ruthless early relationship to the mother" por "idéia da cruel relação inicial com a mãe" (p. 87; p. 130).

Estas escolhas são posições histórica e conceitualmente insustentáveis, que adulteram o texto original de tal forma que, caso houvesse esta possibilidade, uma substituição dos termos "pulsão" e "cruel" por "instinto" e "incompadecido", deveria ser realizada em todos os exemplares. Não se trata aqui de uma questão de gosto pessoal, mas de uma avaliação conceitual. Winnicott recusou teses fundamentais do pensamento kleiniano, tais como, a título de exemplos: o Édipo precoce - "não posso ver nenhum valor na utilização do termo 'Complexo de édipo' quando um ou mais de um dos três que formam o triângulo é um objeto parcial" (1988, p. 67); a teoria da posição esquizo-paranóide - "que considero uma de suas teorias menos bem elaboradas, mas, de qualquer modo, o seu termo regressão à perseguição não fez sentido algum para a maioria das pessoas que a escutavam" (carta a Esther Bick); e a teoria da inveja inata - "a inveja em um bebê só pode fazer parte de um estado de coisas muito complexo, no qual há uma representação aterradora do objeto" ("Melanie Klein: sobre o seu conceito de inveja", p. 340), o que só poderia ocorrer depois de um amadurecimento, dado que no início o bebê não teria tais capacidades. Ainda que Winnicott reconheça o passo importante dado por Klein ao propor a posição depressiva, ele a redescreverá como sendo a fase do concernimento, não aceitando a perspectiva patológica para a qual aponta o termo kleiniano (como escreveu Phillips: "Winnicott renomeia de estágio da preocupação; algo que soava ameaçadoramente como uma síndrone psiquiátrica se torna um sentimento mais comumente reconhecível", p. 156). No texto em que Winnicott faz um balanço das contribuições de Melanie Klein para a psicanálise ("Enfoque pessoal da contribuição kleiniana", de 1962), ele reconhece que ela fez contribuições importantes explicitando o que ele acha válido e o que não acha, marcando diferenças significativas entre eles. Como contribuições válidas, ele cita, dentre outras: o uso da técnica ortodoxa estrita na psicanálise de crianças facilitada pelo uso de pequenos brinquedos nos estágios iniciais, compreensão das forças ou "objetos" internos benignas e persecutórias e sua origem em experiências instintivas satisfatórias ou insatisfatórias, importância da projeção e da introjeção como mecanismos mentais, a posição depressiva (comparável à descoberta do complexo de Édipo por Freud (cf. p. 162)); como propostas duvidosas, que na verdade ele considera inaceitáveis, ele cita: a manutenção do uso da teoria do instinto de vida e instinto de morte, e a tentativa de considerar a destrutividade do lactente em termos de hereditariedade e de inveja (cf. p. 162).

Nas suas cartas, reunidas no livro O gesto espontâneo, Winnicott insistiu sobre o caráter não científico e ideológico, por vezes até mesmo religioso, que o desenvolvimento da teoria psicanalítica estava sofrendo com a afirmação dogmática das posições kleinianas. Em termos da própria história da psicanálise na Inglaterra, Winnicott também não foi adepto nem do grupo de Anna Freud nem do de Melanie Klein, sendo inclusive afastado das atividades didáticas da Sociedade Britânica de Psicanálise (SBP). Afirmá-lo como Kleiniano, sendo que ele mesmo e a própria SBP não o tomaram como tal, não parece convir com os fatos, sejam históricos sejam conceituais.

A questão da tradução do termo ruthless também serve para mostrar a diferença que separa radicalmente Winnicott de Klein. Para Melanie Klein, o bebê, desde sua fase mais primitiva já pode relacionar-se de uma maneira cruel com a mãe, podendo invejar a mãe (ou melhor, o seio, dado que não se trata neste momento da mãe como uma pessoa inteira, mas um objeto parcial), amá-la e atacá-la. No entanto, para Winnicott, o bebê não tem maturidade para realizar estas ações psíquicas, as quais exigiriam reconhecer um objeto fora de si (logo, uma noção de interno e externo), um objeto que tem qualidades que ela não tem, que ela tem a intenção de destruir porque o objeto se comportou mal em relação a ela, que sua intenção destrutiva é reparadora do seu mal-estar, etc. No início, o bebê, para Winnicott, é de tal forma imaturo, que não há, ainda, um eu (ainda que rudimentar) a partir do qual os relacionamentos podem ocorrer; o bebê age (apoiado e sustentado pelo ambiente) como se o mundo que ele encontra (a mãe, o seio, etc., quando isto ocorre de modo satisfatório) surgissem como resultado natural de suas necessidades, ele age como se não houvesse nada externo a ele, ainda que do ponto de vista do observador, vejamos uma mãe e um bebê. Ao dizer que o bebê é ruthlessly Winnicott está afirmando que o bebê age sem se preocupar com a mãe, enquanto um objeto externo, age incompadecidamente. Para afirmar que o bebê é cruel com a mãe, seria necessário reconhecer a mãe (mesmo como objeto parcial) como algo fora dele que é alvo de uma ação destrutiva específica. O bebê não é cruel com a mãe e Winnicott não considera que seja. A tradução de ruthless por crueldade é, pois, um erro conceitual e não apenas uma opção vernácula. Este mesmo tipo de erro já ocorreu quando da tradução do livro de Jan Abram, A linguagem de Winnicott, também sobre a tradução de ruthless por "cruel", algo que foi criticado por Abram e comentado também como inadequado por David Bogomoletz, ao fazer a resenha do livro de Abram (Revista Natureza Humana, vol. 3, n. 1, 2001).

Outro termo, instinct - que na tradução da obra de Winnicott para o francês opta por pulsion e nas traduções para o português oscila entre "pulsão" e "instinto" - diz respeito a uma discussão conceitual relativa à presença ou ausência de conceitos metapsicológicos (do tipo que caracteriza a metapsicologia freudiana) na obra de Winnicott. Não é necessário aqui retomar a totalidade desta discussão e de suas referências, mas teria sido obrigação do revisor referir-se a este cenário para justificar sua escolha de tradução. Neste ponto a pergunta central é saber se, quando Winnicott usa instinct em sua obra, o faz no mesmo sentido que Freud quando usa o termo Trieb (traduzido nas SE, por Strachey, por instinct). Para Freud as pulsões são idéias abstratas (1915c: "as pulsões e suas vicissitudes"), um conceito que tem a natureza de uma convenção (idem), um conceito obscuro que tem a característica de ser um tipo de mitologia da psicanálise (Freud 1933a: Novas lições introdutórias à psicanálise, Lição 30; e Freud 1933b: "Sobre a guerra"). Mas para Winnicott, os instintos não são convenções nem mitos, mas "poderosas forças biológicas que vêm e voltam na vida do bebê ou da criança, e que exigem ação" (1988: Natureza Humana, p. 57). Talvez fosse possível dizer que Winnicott utiliza o termo consagrado na tradução de Strachey, mas que ele, na verdade, tem em mente o conceito cunhado por Freud. Isto não é defensável, como fica evidente na definição freudiana de pulsão e na winnicottiana de instinto. Mas, mesmo que assim fosse e que houvesse uma ponderação argumentando que este tema precisa ser melhor discutido, então, seria necessário suspender o juízo e não decidir de antemão, como foi feito na versão final do livro em português, corrigindo tanto Phillips quanto Winnicott, fazendo-os usar o termo "pulsão", quando sempre encontramos o termo "instinto" em seus textos.

Feitas estas observações, podemos retornar ao excelente livro de Phillips, que contribui de forma rica e estimulante para a compreensão da obra de Donald Winnicott. É um clássico da literatura secundária e uma leitura necessária.

 

 

Enviado em 3/2/2008
Aprovado em 15/5/2008