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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

A casa e o holding: conversas entre Bachelard e Winnicott

 

The house and holding: conversations between

 

 

Alessandra Affortunati Martins Parente*

Universidade de São Paulo
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo articula alguns aspectos da filosofia de Gaston Bachelard com outros da psicanálise de D. W. Winnicott. O espaço é tema central da fenomenologia bachelardiana, assim como o ambiente ocupa lugar de destaque na psicanálise de Winnicott. A idéia é mostrar como o espaço concreto é essencial nos primeiros momentos da existência humana, não havendo uma subjetividade isolada do contexto em que esta se desdobra. Como o paralelo entre o pensamento desses dois autores não é evidente, o desafio deste texto é justamente tecer alguns elos. Para tanto, um estudo sobre a casa na obra de Bachelard foi desenvolvido e, por outro lado, pesquisou–se o conceito de holding no pensamento winnicottiano. Considera–se que a interlocução entre os autores oferece uma nova perspectiva acerca do enredamento entre as sutilezas de um espaço primordial e a constituição da subjetividade.

Palavras–chave: Casa, Holding, Imagem, Intimidade, Devaneio, Proteção, Confiabilidade, Amadurecimento, Mãe.


ABSTRACT

The article weaves some aspects from Gaston Bechelard’s philosophy with others from D. W. Winnicott’s psychoanalysis. The space is a main subject in Bachelard’s phenomenology in the same way as the environment stands out in Winnicott’s psychoanalysis. The purpose is to show how the concrete space is essential in the first moments of the human existence, having no isolate subjectivity from the situation in which it unfolds. Since the parallel between the works of these two authors is not evident, the challenge of this text is precisely to stitch them together. In order to achieve this, it will be necessary to undertake a study of the home in Bachelard’s work and on the other hand, research the concept of holding in the Winnicottian thought. The dialogue between the authors offers a new perspective on the intersection between the primordial space’s subtleties and the subjectivity’s constitution.

Keywords: Home, Holding, Image, Intimacy, Daydreaming, Protection, Trust, Maturing, Mother.


 

 

O título do livro “Tudo começa em casa”, de Winnicott, é sugestivo para pensar uma possível aproximação entre as preocupações teóricas do psicanalista inglês e aquelas que ocuparam o filósofo francês Gaston Bachelard.1 Este, ao elaborar seu estudo sobre o espaço, concedeu um papel central a casa. Se, para Bachelard, a casa é analisada enquanto um espaço que, por excelência, cria as raízes do homem no mundo, para Winnicott a casa é o lugar onde o mundo do ser humano se inicia. Trata–se de um universo em miniatura, que se traduz nos braços da mãe suficientemente boa que sustenta o bebê, no brinquedo predileto que tem valor de objeto transicional, na segurança da rotina que traz a confiança no mundo, ou em tantos outros detalhes necessários para que a constituição psique–corpo se desenrole.

Assim, não seria ousado afirmar que ambos os autores2 pensam a casa como um espaço primordial para que a conquista de aspectos fundamentais da existência humana possa ocorrer. Entretanto, o paralelo entre o pensamento desses dois autores não é óbvio ou evidente, sendo o desafio deste texto justamente tecer alguns elos. Para tanto, será necessário abordar o estudo da casa na obra de Bachelard e o conceito de holding no pensamento winnicottiano.

 

A casa na obra bachelardiana

Na obra “A poética do espaço”, Bachelard (1957) elabora um estudo fenomenológico da casa, no qual ela é considerada um ser privilegiado para a constituição da subjetividade, que ocorre no mesmo passo em que a objetividade do mundo se compõe para o homem. As primeiras experiências na casa ficam concentradas em imagens mnemônicas, que se tornam os pilares da estrutura psíquica. Só com essa sustentação imagética, advinda da experiência vivida em relação aos diferentes elementos da casa, o homem pode tanto se dispersar por espaços mais abrangentes como imergir em detalhes de lugares minúsculos. é por meio do estudo da casa que Bachelard procurará demonstrar que a imaginação – e não os fatos – aumenta os valores da realidade. Na filosofia de Bachelard, devaneios que tenham como tema o terreno espacial da casa mostram que subjetividade e objetividade estão necessariamente imbricadas.

A casa seria o espaço concreto pelo qual o valor singular das imagens de intimidade protegida se desenvolveria. O valor de tais imagens é que assume lugar de destaque, sobrepondo–se ao relato fidedigno dos fatos transcorridos. Habitar um espaço ou recordar um espaço habitado não é descrever eventos ou episódios tal como esses se sucederam, mas buscar alcançar aderência às imagens que permeiam nossos itinerários espaciais. São elas que estabelecem a nossa função de habitar e revelam o modo como ocupamos um espaço. Cada nuança presente nas infinitas imagens da casa assume o lugar de um fenômeno psicológico estrutural, deixando de ser mero detalhe descartável ou, nas palavras do filósofo, uma “coloração superficial suplementar” (Bachelard, 1957, p. 24).

Para Bachelard, a casa é o nosso “canto do mundo”, que assim se estabelece no cotidiano de vivências efetivas dos espaços. Ela é o nosso primeiro universo, permitindo habitar com segurança, desenvoltura e intimidade outras partes do mundo. Ao nos aventurarmos por novas moradias, um passado se transpõe para o presente, vindo sutilmente colorir as novas experiências de habitar. Isto é, as imagens se alastram em um devaneio profundo, recuperando o passado até alcançar um “âmbito imemorial”, que se localiza “além da mais antiga memória” de intimidade e acolhimento. Nessa região longínqua, memória e imaginação sobrepõem–se e se estendem nos instantes recentes, que revelam um modo peculiar de viver a espacialidade do mundo.

A maneira como a casa foi vivida na infância define e dá plasticidade à imaginação que anima os diferentes espaços ocupados pelo homem. As primeiras aventuras da imaginação, feitas no espaço da casa, permitem a atribuição de brilhos originais aos espaços que serão posteriormente percorridos. As imagens primordiais reconstituem–se com base em novas experiências e se transpõem num momento mais recente, criando outro devaneio.

Há uma referência espacial e, por essa razão, o homem torna–se capaz de flanar alhures. Nessa imbricação de espaços e tempos, há uma comunhão dinâmica entre o homem e a casa, e, simultaneamente, uma rivalidade entre esta e o universo. A casa alimenta a imaginação na direção oposta à sugerida pelo que aparece no universo. Provações da natureza – como temporais ou vendavais – estimulam devaneios de proteção e fortalecem a velha casa. O abrigo parece vitorioso diante dos imprevistos e perigos que o cercam:

Assim, diante da hostilidade, com as formas animais da tempestade e da borrasca, os valores de proteção e de resistência da casa são transpostos em valores humanos. A casa adquire as energias físicas e morais de um corpo humano. Ela curva as costas sob o aguaceiro, retesa os rins. Sob as rajadas, dobra–se quando é preciso dobrar–se, segura de poder endireitar–se de novo no momento certo, desmentindo sempre as derrotas passageiras. Tal casa convida o homem a um heroísmo cósmico. é um instrumento para afrontar o cosmos. As metafísicas “do homem atirado no mundo” poderiam meditar concretamente sobre a casa atirada na borrasca, desafiando a cólera do céu. Contra tudo e contra todos, a casa nos ajuda a dizer: serei um habitante do mundo, apesar do mundo. (Bachelard, 1957, p. 62)

Desse modo, o espaço habitado não é uma caixa inerte, mas um ser complexo do qual se extrai toda a mobilidade necessária para que as experiências humanas possam transcorrer de modo significativo. A esse respeito, Bachelard declara:

Com efeito, a casa é, à primeira vista, um objeto rigidamente geométrico. Somos tentados a analisá–la racionalmente. Sua realidade inicial é visível e tangível. é feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas. A linha reta predomina. O fio de prumo deixou–lhe a marca de sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal objeto geométrico deveria resistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a alma humana. Mas a transposição para o humano ocorre de imediato, assim que encaramos a casa como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a intimidade. Abre–se então, fora de toda racionalidade, o campo do onirismo. (1957, p. 64)

Já não é possível delimitar com nitidez o que se denomina realidade. Os espaços concretos e os sonhos animam–se reciprocamente, sendo difícil distinguir subjetividade e objetividade como duas instâncias separadas e independentes. A matéria da casa, seu calor, suas paredes, seu telhado, seus esconderijos, suas sombras alimentam a imaginação, e o que era realidade interpenetra–se em sonhos de intimidade e proteção. Tais sonhos são suscitados por lembranças de detalhes existentes na casa, que oferecem fixações de felicidade ao ser. E os devaneios vinculados ao passado ganham uma luz inigualável, superando qualquer memória vinda do exterior, pois foram eles que instauraram as marcas de um modo particular de viver os diferentes espaços do mundo.

Na visão bachelardiana, o devaneio deixa os rastros de um homem em seus percursos, divagações e trajetos pelo mundo. O devaneio cria valores e define a existência em suas particularidades. Ele é o princípio que cria as raízes do homem no espaço e o integra ao mundo. Por tal razão, ele tem o privilégio de fazer com que um sujeito encontre o seu valor diante do universo. Ao embarcar nas ondas de sua própria imaginação, um indivíduo usufrui diretamente de seu ser. O devaneio longínquo, as imagens primordiais do passado, tocam figuras do presente e do futuro, dando às experiências do habitar dinamismos diferentes, ora colocando essas imagens em oposição, ora em consonância.

Nesse panorama, a casa é apresentada por Bachelard como uma força que integra pensamentos, lembranças e sonhos. Ela é a matéria que enleva uma história individual. Sem ela, o ser humano seria permanentemente um estrangeiro. Sem a experiência nos espaços da casa, sem a experiência de habitar um canto do mundo, o homem seria um ser disperso, sem lugar, sem integração entre corpo e alma.

Assim, nas experiências do espaço da casa, memória e imaginação se confundem, e nossas lembranças de intimidade ganham novas tonalidades ao envolverem–se com o presente. A casa abriga os primeiros devaneios, permitindo, então, que o homem vá alhures, sem medo. Se ele encontrou um abrigo no mundo, será capaz de reconfortar–se na solidão, construindo imaginariamente uma muralha segura em locais desprotegidos e desconhecidos. Por outro lado, sem a estrutura da função de habitar, os mais grossos muros são ineficazes para protegê–lo, fazendo–o duvidar incessantemente de que está em lugar seguro.

A imagem da casa sempre concentra o poder de afastar os perigos existentes nas contingências para multiplicar as noções de continuidade entre o ser e o mundo. Ela protege o homem ao se opor às intempéries, à barbárie, às surpresas que o mundo oferece, constituindo–se como um primeiro universo. Casas aparentemente frágeis mostram sua coragem diante de tempestades assustadoras. A meteorologia concentra sua poesia em movimentos e ruídos; a defesa contra intempéries identifica casa e mãe como entes protetores. Na obra “La Redousse”, de Bosco, citada por Bachelard, essa unidade entre a imagem da casa e as funções maternas é mais do que sugerida. O poeta explicita claramente a aproximação entre a força do lar e a mãe protetora:

A princípio ela se queixava; as piores rajadas a atacaram de todos os lados ao mesmo tempo, com um ódio nítido e tais urros de raiva que, durante alguns momentos, eu tremi de medo. Mas ela resistiu. Quando começou a tempestade, ventos mal–humorados dedicaram–se a atacar o telhado. Tentaram arrancá–lo, partir–lhe os rins, fazê–lo em pedaços, aspirá–lo. Mas ele curvou o dorso e agarrou–se ao velho vigamento. Então outros ventos vieram e, arremessando–se rente ao solo, arremeteram contra as muralhas. Tudo se vergou contra o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo–se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela se prendia ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis, e por isso suas finas paredes de pau–a–pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava meu corpo nada cedeu à tempestade. A casa apertou–se contra mim, como uma loba, e por momentos senti seu cheiro descer maternalmente até o meu coração. Naquela noite ela foi realmente a minha mãe. (Bosco, citado por Bachelard, 1957, p. 61)

O poeta acrescenta ainda: “Eu só tinha a ela para me proteger e amparar. Estávamos sozinhos” (Bosco, citado por Bachelard, 1957, p. 61).

Tais imagens, que concentram mãe e abrigo em uma única chave de interpretação, remetem–nos a uma infância em que houve amparo e acolhimento. A criança foi recebida e acolhida pelo mundo, e não simplesmente jogada nele. à ternura materna do abrigo de infância, acrescentam–se forças e resistências que caracterizam a morada humana:

Que imagem de concentração de ser, essa casa que se “aperta” contra seu habitante, que se torna a célula de um corpo com suas paredes próximas! O refúgio contraiu–se. E, mais protetor, tornou–se exteriormente mais forte. De refúgio passou a reduto. A choupana transformou–se em fortaleza da coragem para o solitário que nela deve aprender a vencer o medo. Tal morada é educativa. Lemos nas páginas de Bosco como um acúmulo das reservas de força nos castelos interiores da coragem. Na casa que a imaginação converteu no próprio centro de um ciclone, é preciso superar as meras impressões de conforto que sentimos em qualquer abrigo. é preciso participar do drama cósmico enfrentado pela casa que luta. (Bachelard, 1957, p. 62)

A casa já não é mais um dos meios de sobrevivência, mas tem vida própria e valores humanos. Na obra de Bachelard, há uma dialética entre o espaço e a existência. Tal dialética revela uma tensão dinâmica constante entre o homem e suas moradas, e entre estas e o universo. Não por acaso, a casa, muitas vezes, lembra os afagos protetores da mãe. Tanto uma como outra têm como função criar para a existência humana valores de pertencimento, intimidade, segurança, proteção diante de novos desafios que serão impostos pelo mundo.

A maternidade da casa está presente em outros poetas. Bachelard transcreve versos de Milosz nos quais algumas imagens da mãe aparecem em comunhão com cenas vividas na casa: “Digo minha Mãe. E é em ti que penso, ó Casa! / Casa dos belos estios obscuros de minha infância” (Milosz, citado por Bachelard, 1957, p. 61).

Evocando Rilke, Bachelard também mostra os braços acolhedores pertencentes a casa: “Casa, aba da pradaria, / ó luz da tarde, / De súbito adquires uma face quase humana. / Estás perto de nós, abraçando, abraçados” (Rilke, citado por Bachelard, 1957, p. 27).

Em “A poética do espaço”, a casa deixa aos poucos de ser um espaço genérico e vago para ganhar mais precisão. Bachelard trata, assim, do porão, do sótão, de cantos e corredores, buscando traçar um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima, ao qual denomina topoanálise. Para ele, esse estudo demonstra que não nos conhecemos no tempo, pela memória, e sim por “uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo”. O espaço retém o tempo comprimido, fixando imagens em um calendário. Ao contrário do tempo, o espaço reúne e concentra “belos fósseis de duração”, que se concretizam devido a longas permanências. O tempo é abstrato, etéreo, e só ganha corpo ou espessura ao enredar–se em imagens espaciais.

Os espaços vividos solitariamente são constitutivos do ser e, portanto, indeléveis. A solidão descoberta na proteção do lar suscita imagens reconfortantes, que se caracterizam não como meras representações mentais, mas como abrigo concreto, protetor e seguro. As casas do passado persistem em nossos sonhos e imaginação. Muitas vezes há uma espécie de remorso por ter deixado passar a oportunidade de viver intensamente o velho abrigo que nos acalentava. Rilke fala dessa profunda saudade em seus versos: “ó nostalgia dos lugares que não foram / Bastante amados na hora passageira / Quem me dera desenvolver–lhes de longe / O gesto aquecido, a ação suplementar” (Rilke citado por Bachelard, 1957/1996, p. 70).

Momentos singelos e instantes efêmeros foram desprezados e se desgarraram de nós sem hesitação. Ingenuamente, vivíamos como se eles fossem eternos ou insignificantes e nada fizemos para preservá–los. Os momentos passageiros ganham novo sentido se o sonho se mantém na lembrança vaga. Esta pode ser despertada em fragmentos vívidos e intensos. Não é necessário usar a lógica e o raciocínio para ordená–los. A proximidade do presente com o passado se encarrega de trazer à memória experiências de intimidade que são vividas em um contexto atual e, portanto, experimentadas sob um novo olhar. Algo fluido evoca nossas lembranças, e estas já não pertencem mais a um passado longínquo, provocando um frêmito em nossa alma. Na citação a seguir, Rilke expressa sua lembrança fragmentária da casa perdida:

Não tornei mais a ver essa estranha morada. Tal como a encontro em minha lembrança de visão infantil, ela não é uma construção; está fundida e repartida em mim: aqui um cômodo, ali outro cômodo e acolá um fundo de corredor que já não liga esses dois cômodos, mas conservou–se em mim como um fragmento. é assim que tudo se difundiu em mim, os quartos, as escadas que desciam com lentidão tão cerimoniosa, outras escadas, vãos estreitos subindo em espiral, em cuja obscuridade caminhávamos como o sangue nas veias. (Rilke citado por Bachelard, 1957, p. 71)

Outro aspecto importante a ser considerado a respeito do vínculo íntimo entre o homem e a casa aparece nas ponderações de Bachelard sobre o pensamento de Willian Goyen. O nascimento é um acaso na existência humana; mas, pouco a pouco, esse evento, antes aleatório, ganha valores precisos. Alguns objetos únicos enredam–se ao ser do homem até se tornarem preciosos para ele; um espaço geográfico transforma–se em lugar predileto; e são justamente elementos como esses, tão precisos e sutis, que se infiltram na existência humana e a animam. Assim, um acontecimento fortuito na vida de um indivíduo – nascer – ganha cores, brilhos e tonalidades quando a existência vagarosamente penetra o contexto histórico–espacial em que ele está situado. E esses acontecimentos são denominados amor. As idéias sobre o amor, que nasce no lar, são expressas por Willian Goyen:

Pensar que possamos vir ao mundo num lugar que a princípio não saberíamos sequer nomear, que vemos pela primeira vez; e que, nesse lugar anônimo, desconhecido, possamos crescer, circular até conhecermos seu nome, pronunciá–lo com amor, que o chamemos de lar, onde lançamos nossas raízes, onde abrigamos os nossos amores; de forma que, cada vez que falamos dele, o fazemos como amantes, em cantos nostálgicos, em poemas transbordantes de desejo. (Willian Goyen citado por Bachelard, 1957, p. 72)

Bachelard mostra por meio de sua filosofia poética que o habitar também torna precioso aquilo que nada era. O homem está justamente ali, naquele determinado lugar, naquele preciso momento em que eventos aleatórios transcorrem. Todos os detalhes de tais episódios ganham relevo, e nisso, que era o nada, criam–se os valores humanos. Por outro lado, duvidamos do valor que a memória atribui a certas lembranças fugazes, vívidas e intensas do passado, pois a memória distante só é evocada por valores ou auras de alegria. Sem valores, a realidade do que foi se esvai.

 

O holding

Contrariando a tradição dos estudos psicanalíticos, que sempre tiveram a subjetividade como foco, Winnicott concentrou suas pesquisas no papel que o ambiente desempenha na constituição psíquica, defendendo a idéia de que existe uma tendência inata em direção ao crescimento e à evolução pessoal, que, no entanto, necessita de alguns cuidados efetivos para vingar. Se as condições necessárias não estão garantidas para que o processo de amadurecimento se desenrole, é provável que se observe um adoecimento decorrente de falhas ambientais.

Para Winnicott, a natureza humana é uma estrutura não variável, que advém do não–ser e dirige–se novamente para esse estado. Entre esses dois abismos, encontra–se a história pessoal de um indivíduo, num determinado tempo e num determinado espaço que a fundamentam. Assim como o ser, o não–ser é experienciado na própria existência, tendo, como tal, um sentido ontológico.

De acordo com o psicanalista inglês, o ser humano nasce num estado não–integrado e, nessa condição, o bebê está espalhado, “inorganizado, inarticulado, mera coleção de fenômenos sensório–motores, reunidos pelo ambiente suportador” (Winnicott, 1965s, p. 217). O bebê, portanto, ainda está na sua forma imatura de existir, sendo imprescindível, para que seja possível considerá–lo maduro, a passagem satisfatória por uma série de etapas integrativas. Como exemplo das fases de amadurecimento, existem a integração no tempo e no espaço, a integração de um si–mesmo e a integração psicossomática.

No interior dessa trama teórica, o holding é um dos conceitos inaugurados por Winnicott. Traduzi–lo como “o segurar” não parece ser suficiente para aquilo que ele abarca com a escolha dessa palavra. Embora o conceito nunca tenha sido definido com toda a sua amplitude em um ponto determinado e único da obra winnicottiana, é possível afirmar que o holding implica, acima de tudo, confiabilidade em um outro, isto é, o bebê precisa sentir–se seguro e sustentado, sem maiores riscos.

Um exemplo de como ele aborda o conceito de holding pode ser encontrado em Natureza humana:

é possível dizer que quando o ato de segurar o bebê é perfeito (e de um modo geral assim é, já que as mães sabem exatamente como fazê–lo), o bebê pode adquirir confiança até mesmo no relacionamento ao vivo, e pode não se integrar enquanto está sendo segurado. Esta é a experiência mais enriquecedora [que o bebê pode ter nos primórdios de sua vida]. (Winnicott, 1988, p. 139)

No início da vida, o bebê exige uma relação de dependência absoluta com a mãe. Nesses primeiros momentos, seu mundo se reduz a ela, que deve ser, acima de tudo, confiável. A mãe tem uma capacidade alta de se adaptar às necessidades da criança e ao seu estado de dependência absoluta. Winnicott diz que, no início da maternagem, a mãe mostra disposição e sensibilidade extremas para captar o que o filho precisa e o que está sendo comunicado por ele. Winnicott denomina esse estado preocupação materna primária. A expressão se refere a uma fase da qual a mãe comumente se recupera nas semanas e meses que se seguem ao nascimento da criança, e na qual, em grande parte, ela é o bebê, e o bebê é ela. é essa identificação que possibilita à mãe sustentar o ser do bebê, que precisa se manter contínuo.

Assim, é possível afirmar que a necessidade básica do bebê é permanecer existindo ininterruptamente. A mãe reconhece, aceita, reúne e dá suporte ao estado de não–integração do bebê, sendo capaz de integrar–se a ele, formando uma unidade e permitindo–o ser e continuar sendo. Portanto, é o ambiente facilitador que garante a continuidade do ser do bebê. O holding aqui inclui o segurar, o sustentar e o envolver o bebê como uma totalidade psicossomática. Mas, para isso, a mãe precisa ser sensível para captar até mesmo se

o bebê precisa ser tomado nos braços ou colocado sobre uma superfície qualquer, ser deixado a sós ou mudado de posição, ou.... [precisa saber] que o essencial constitui a mais simples de todas as experiências, a que se baseia no contato sem atividade.... que cria as condições necessárias para que se manifeste o sentimento de unidade entre duas pessoas, que de fato são duas, e não apenas uma. (Winnicott, 1987e, pp. 4–5)

Dada ao indivíduo a oportunidade de ser, ele pode então agir, fazer e deixar que façam por ele. é importante destacar que, como os cuidados maternos correspondem de forma quase perfeita às necessidades da criança, esta produz uma ilusão de onipotência, na qual se sente como se tivesse criado os objetos externos. Nessa etapa, a confiabilidade do holding se mostra, por exemplo, quando a mãe é capaz de envolver o bebê e apresentar seu seio no exato momento em que a necessidade é a de mamar. Ela faz esse gesto de tal maneira que o bebê tem a ilusão de que a mãe é uma extensão de seu ser e o seio é um objeto criado por ele. Essa experiência oferece uma sensação de integração momentânea, dando–lhe o sentido de real.

Vale lembrar que o bebê ainda não tem constituído para si o sentido da presença. Isso significa que ele ainda não se dá conta da companhia constante da mãe, de seus cuidados, dos objetos que o rodeiam etc. Apesar disso, ele pode sentir os efeitos do ambiente confiável e criar uma memória, ainda que muito difusa, do que está sempre lá, como é esperado que esteja. Assim, progressivamente, o bebê pode estabelecer uma crença na permanência do mundo e dos objetos, que, paradoxalmente, ainda não são externos a ele. Tal crença, adquirida por meio da experiência de um mundo confiável, é necessária para que, posteriormente, possa haver a constatação intelectual da existência da realidade externa.

Nessa fase, a mãe deve ser, sobretudo, previsível. Portanto, a mãe confiável é aquela que consegue manter consistentes, regulares e monótonos ela própria e o mundo em que o bebê está inserido. A repetição monótona e regular dos cuidados maternos cria, no decorrer do crescimento do bebê, uma capacidade para confiar no ambiente. E a passagem do estado de não–integração para o estado integrado depende dessa experiência de confiabilidade ambiental, pois o bebê somente poderá oscilar tranqüilamente entre esses dois estados se tiver adquirido confiança na regularidade dos cuidados maternos. O bebê pode, então, ser mais ousado, integrando–se e voltando para o estado não–integrado, sentindo–se seguro ao alternar esses dois estados, pois criou uma confiabilidade no ambiente. A esse respeito, afirma Elsa Dias:

A manutenção do mundo do bebê é essencial. Primeiro porque tanto a experiência do encontro com o objeto quanto o retorno à não–integração só são possíveis sobre o fundo de um mundo subjetivo, que pode ser repetidamente reencontrado pois está assegurado pela confiabilidade materna. O bebê só pode retirar–se para descansar porque começa a confiar, pela repetição da experiência, que o mundo continua vivo e permanece lá assim que ele precisar. (Dias, 1999, p. 294).

O bebê que já pode transitar entre os estados não–integrado e integrado passa a confiar na vigência da sua própria tendência à integração. é essa credibilidade nos processos de amadurecimento que possibilita a integração do bebê em uma unidade que somente pode se dar porque há um ambiente confiável. A integração é sentida como algo relativamente garantido e, por isso, ele pode ficar num estado não–integrado de forma relaxada, sem se preocupar se irá ou não conseguir retornar ao estado de integração. O bebê ainda não se dá conta da existência da mãe–ambiente e do sucesso de seus cuidados adaptativos. Quando a mãe mantém a confiabilidade ambiental, o sentido disso, para o bebê, é de que a sua tendência à integração está preservada independentemente dos “movimentos” que faça.

A capacidade que a mãe possui de ir ao encontro das necessidades em constante processo de mutação e desenvolvimento deste bebê permite que sua trajetória de vida seja relativamente contínua; permite–lhe, também, vivenciar situações de não–integração ou relaxadas, a partir da confiança que deposita na realidade do fato concreto de o segurarem, juntamente com fases reiteradas da integração que faz parte da tendência inata ao crescimento. O bebê passa, com muita facilidade da integração ao conforto descontraído da não–integração, e o acúmulo destas experiências torna–se um padrão e forma a base para as expectativas do bebê. Ele passa a confiar nos processos internos que levam à integração em uma unidade. (Winnicott, 2002a, p. 86)

As falhas constantes nos cuidados, que permitem ao bebê manter–se integrado, são sentidas por ele como interrupções do ser, que em sua incapacidade de elaborar os acontecimentos aparecem como agonias impensáveis. Ao discutir isso, Winnicott diz:

Consideremos dois bebês: um a quem se segurou muito bem (no sentido amplo que dou ao termo “segurar”), não havendo nada que impeça um rápido desenvolvimento emocional, de acordo com as tendências inatas. O outro não passou pela mesma experiência, isto é, não o seguraram suficientemente bem, e o resultado é que o seu desenvolvimento teve de ser deturpado e protelado, e algum grau da primitiva agonia estará sempre presente ao longo de sua vida. é possível dizer que, na experiência comum de segurar adequadamente o bebê, a mãe foi capaz de atuar como um ego auxiliar, de tal forma que o bebê teve um ego desde o primeiro instante, um ego muito frágil e pessoal, mas impulsionado pela adaptação sensível da mãe, e pela capacidade desta em identificar–se com seu bebê no que diz respeito às suas necessidades básicas. A criança que não passou por esta experiência ou precisou desenvolver prematuramente o seu ego, ou, talvez, tenha se tornado extremamente confusa. (Winnicott, 1964c, pp. 31–32)

Portanto, se o ambiente não é suficientemente bom, algo intolerável acontece ao bebê devido à não–integração ou a uma desintegração de um estado já integrado. Esses aspectos intoleráveis são denominados angústias ou agonias impensáveis, podendo ser definidos como tipos de ansiedade inconcebíveis. Sem o holding materno, as mais simples conquistas inerentes ao processo de amadurecimento, como a integração da psique no corpo, podem se complicar para o bebê. As necessidades inerentes ao bebê, não atendidas de modo suficientemente bom, provocam essas ansiedades terríveis que, se pudessem ser nomeadas pelo bebê, seriam assim descritas por ele: ser feito em pedaços, cair para sempre, morrer e morrer e morrer, perder todos os vestígios de esperança de renovação de contatos:

Um fato importante a considerar é que, graças a uma assistência satisfatória, estes sentimentos terríveis se transformam em experiências positivas, vindo somar–se à confiança que o bebê adquire com relação ao mundo e às pessoas. Ser feito aos pedaços, por exemplo, passará a ser uma sensação de relaxamento e repouso se o bebê estiver em boas mãos; cair para sempre se transforma na alegria de ser carregado, e no entusiasmo e prazer que decorrem do movimento; morrer e morrer e morrer passa a ser a consciência deliciosa de estar vivo, e, quando a constância vier em auxílio à dependência, a perda de esperança quanto aos relacionamentos se transformará numa sensação de segurança, de que, mesmo quando a sós, o bebê tem alguém que se preocupa com ele. (Winnicott, 1970a, p. 76)

Se a mãe falha constantemente na tarefa do holding, o bebê aciona uma série de defesas, e sua confiança no mundo fica comprometida:

Tenho observado e falado com milhares de mães e percebido como elas pegam o bebê, sustentando a cabeça e o corpo. Se você tomar o corpo e a cabeça de um bebê nas mãos e não pensar que constituem uma unidade, e aí tentar apanhar um lenço ou qualquer outra coisa, pronto: a cabeça vai para trás e a criança se divide em duas partes – cabeça e corpo. A criança começa a chorar e nunca mais vai se esquecer disso. A coisa terrível é que nada é esquecido. E então a criança sai pelo mundo sentindo falta de confiança nas coisas. Acho que é certo dizer que crianças pequenas e bebês não se lembram de nada quando tudo sai bem, mas lembram quando as coisas caminham mal, pois de repente se lembram de que a continuidade de sua vida foi perturbada, e sua cabeça caiu para trás, ou coisa semelhante, e foram acionadas todas as defesas, e elas reagiram a isso, e isso é um acontecimento muito doloroso, algo de que elas nunca vão se libertar. E elas tiveram que se haver com isso, e se isso existe no padrão dos cuidados a elas dispensados constrói–se uma falta de confiança no ambiente. (Winnicott, 1968b, p. 141)

O inverso ocorre se tudo caminha bem. O bebê pouco a pouco vai adquirindo um interior e um exterior, e a confiabilidade do ambiente passa a ser uma crença conquistada. A confiabilidade foi introjetada com base na experiência suficientemente boa que o bebê teve em relação ao ambiente. Portanto, o mero fato de deixar que as coisas simplesmente sejam a seu próprio modo, sem que seja preciso controlá–las ou conduzi–las, pressupõe que se estabeleceu um sentido de real – do si–mesmo e do mundo, e uma crença em.... Tal crença em.... significa que há a confiança de que algo existe por si mesmo e é passível de ser encontrado. Essa base é inaparente, mas sustenta muitas possibilidades humanas que surgem no dia–a–dia e consolida um modo seguro de encarar aspectos rotineiros da vida. Sobre esse aspecto, Winnicott explicita:

Somos pessoas que acreditam. Estamos aqui nesta ampla sala e ninguém está preocupado com o fato de o teto vir abaixo. Acreditamos no arquiteto. Acreditamos porque alguém nos proporcionou um bom início. Recebemos uma comunicação silenciosa, por um certo período de tempo, de que éramos amados, no sentido de que podíamos confiar na provisão ambiental, e portanto continuamos com nosso crescimento e desenvolvimento. Uma criança que não experimentou o cuidado pré–verbal em termos do “segurar” e do manuseio – confiabilidade humana – é uma criança carente. A única coisa que pode ser aplicada de modo lógico a uma criança carente é o amor, amor em termos de “segurar” e manuseio. é difícil fazer isso quando a criança é mais velha, mas podemos tentar, como por exemplo fornecendo cuidados domésticos. (Winnicott, 1968b, p. 143)

Após o sentimento de segurança estar estabelecido na criança, sobrevém uma luta contra essa segurança fornecida pelo ambiente. A mãe, depois de passado o período inicial de proteção, deixa gradualmente que as contingências da vida entrem no universo da criança, e esta passa a expressar–se livremente de forma criativa ou revolucionária. Os pais deixam a criança ir longe, experimentar coisas, ser de novas formas, mas não deixam de estar lá, a postos.

 

Metafísica concreta: a casa e o holding

Como explorado no início deste texto (Cf. nota de rodapé 2), a obra de Bachelard segue a esteira da filosofia fenomenológica–existencial. No livro “A poética do espaço”, é possível encontrar referências, ainda que não explícitas, sobre a obra de Martin Heidegger. A preocupação com o espaço é um traço determinante na filosofia heideggeriana. Ao escolher a casa como local constitutivo do ser, Bachelard reafirma a importância do espaço para pensar os fundamentos da existência humana, mas, simultaneamente, se contrapõe ao pensamento de Heidegger, que concebe o dasein como ser–no–mundo. Nesse caso, o ser do homem, que está sempre em jogo, está já e sempre lançado no mundo e, nesse sentido, é mundo. Por estar sempre em jogo no mundo, o dasein experimenta uma angústia que é existencial, isto é, tal angústia o acompanha pela existência, sem que seja possível extingui–la.3

Bachelard alude de forma crítica a esse aspecto da filosofia heideggeriana, dizendo que, “antes de ser ‘jogado no mundo’,.... o homem é colocado no berço da casa” (Bachelard, 1957, p. 26). Na “metafísica concreta” de Bachelard, o valor de acolhimento da casa diante do mundo inóspito não pode ser esquecido. De acordo com o filósofo francês, priorizar o ser lançado no mundo revela uma “metafísica apressada”.4 Para ele, antes da angústia existencial que fundamenta o dasein heideggeriano, o homem vive feliz no regaço da casa que o acolhe, protege e agasalha. Diz Bachelard:

Não faltam filósofos que “mundificam” abstratamente, que encontram um universo pelo jogo dialético do eu e do não–eu. Precisamente, eles conhecem o universo antes da casa, o horizonte antes da pousada. Ao contrário, os verdadeiros pontos de partida da imagem, se os estudarmos fenomenologicamente, revelarão concretamente os valores do espaço habitado, o não–eu que protege o eu. (Bachelard, 1957, p. 24)

Outros filósofos que pesquisam a obra de Heidegger também reconhecem um limite em sua filosofia, por ela ignorar os percalços do existir humano em seus primórdios. Loparic escreve a respeito da filosofia heideggeriana:

a pergunta pela origem da relação do homem ao ser – ou seja, do estabelecimento dessa relação – permaneceu ainda fora de foco. Nos conceitos heideggerianos de lance (Geworfenheit) do homem no aí e do ser–para–o–início, o tema é apenas indicado, mas não pensado. (Loparic, 2007, p. 6)

Loparic também afirma que, apesar de, na primeira parte da obra heideggeriana, o tema do nascimento ter sido tocado, na segunda fase, os temas do nascimento e da infância, que deveriam ter sido pesquisados enquanto fenômenos ôntico–ontológicos, simplesmente desaparecem.5 Segundo ele, que é também um estudioso da psicanálise winnicottiana, os bebês não são lançados no mundo, mas, ao contrário, precisam ser acolhidos e sustentados por um ambiente suficientemente bom.

Primeiramente os bebês ficam envolvidos no útero extremamente protetor e, ao nascerem, o colo parece ser o espaço mais adequado para que se sintam pertencentes ao mundo que os recebe. Nesse sentido, assim como Bachelard, Winnicott fala em um ambiente concreto necessário nos primórdios da vida. Para ele, tal ambiente se traduz, sobretudo, no colo da mãe suficientemente boa. Nas palavras de Loparic, os bebês moram:

no colo da mãe, do qual o berço é uma extensão não tematizada como tal pelo bebê. Quero dizer: sem esse tipo de mundo, eles não poderiam existir enquanto seres humanos na condição de bebês. Para chegar ao mundo e estabelecer a relação com o ser, o bebê humano precisa de outro ser humano. E para se manter no mundo, na relação com o ser, ele precisa de uma sustentação pelo ambiente, sendo que esse ambiente é essencialmente a mãe. (Loparic, 2007, p. 16)

é interessante notar ainda que Bachelard considera a metafísica heideggeriana uma metafísica do consciente, ou seja, falar que o ser é lançado no mundo é uma metafísica de segunda posição. Para tratar das origens e abarcar o inconsciente, não se deve passar por cima das preliminares de bem–estar vividas pelo ser. Antes de tudo, o ser associa–se ao bem–estar por ser colocado no espaço íntimo e protetor da casa:

Para ilustrar a metafísica da consciência, será preciso esperar as experiências em que o ser é atirado fora, ou seja, no estilo de imagens que estudávamos: expulso, posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo. Mas uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores. No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve–o. O ser reina numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens essenciais. (Bachelard, 1957, p. 27)

A última frase dessa última citação conduz mais claramente aos elos que podem ser estabelecidos entre os pensamentos de Winnicott e Bachelard. Este diz que o “ser reina numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada”. Ora, o bebê não é justamente aquele que reina na casa ao ter suas necessidades atendidas pela mãe? Se a mãe se adapta às necessidades do bebê, este pode ser e continuar sendo, pois tem justamente o suporte de uma “matéria adequada” que o permite existir, sem interrupções. Tal matéria adequada aparece no colo e no seio da mãe que amamenta, mas não só. O bebê vive como complemento de seu ser muitos fragmentos existentes na casa – a mamadeira de chá, o berço, a luz adequada, o calor justo do ambiente, a água do banho, as roupas confortáveis, o cobertor que o envolve, um pequeno travesseiro, o colchão onde são trocadas as fraldas, o cheiro de todos os seus pertences, o algodão com água morna que o toca, o aconchego de um carrinho, a música de um móbile, os rumores de conversas.

Na obra de Bachelard, vimos que a casa remete ao cuidado e ao amor maternos. A casa poética bachelardiana ganha braços acolhedores, o calor aconchegante e a força protetora da mãe. O lar tem características humanas, deixando de ser um espaço neutro para tornar–se um local com características precisas. Lá é o espaço onde se encontram intimidade, proteção, acolhimento e, sobretudo, o assento do homem no universo. Pertenço ao mundo e reconheço–me como parte dele por ter o meu lugar determinado, no qual enraízo–me e com o qual me sinto familiarizado. Sou a casa e esta é a parte que ocupo no mundo, o modo como me imponho e me apresento diante dele.

O bebê também é a casa. Ali ele tem o seu reinado, e não pode reconhecer os esforços daqueles que cuidam dele. No início da vida de um ser humano, há uma ilusão de onipotência, que se realiza se há uma mãe suficientemente boa. Assim que o bebê expressa uma necessidade, esta é atendida pela mãe suficientemente boa. é possível afirmar que, nos primórdios da vida, o bebê é a mãe e vice–versa. Esta é extremamente sensível para captar as necessidades do bebê, e ele, por sua vez, tem a ilusão de criar aquilo de que precisa. Nesse sentido, dizer que o ser funde–se “na doçura de uma matéria adequada” expressa a integração perfeita existente entre a mãe e o seu bebê. Ao falar em “matéria perfeita”, Bachelard também revela como os fenômenos concretos – matéria – são essenciais na existência humana; o amor não pode ser uma representação mental essencialmente subjetiva, mas deve aparecer no cotidiano de cuidados efetivos dos pais e nos elementos que cercam o bebê na casa. Nesse “paraíso material” no qual o “ser mergulha no alimento”, o indivíduo se desenvolve, e com base nesses “bens essenciais” a constituição de um ser humano pode lograr.

Além desses pontos levantados, vale lembrar que, tanto para Bachelard como para Winnicott, a solidão é constitutiva, sendo ela a trazer a experiência de ser. O ser, que advém do não–ser, manifesta–se solitariamente em um ambiente humano. Tanto a casa bachelardiana como o colo são ambientes concretos e propriamente humanos. Bachelard escreve:

Para analisar o nosso ser na hierarquia de uma ontologia, para psicanalisar o nosso inconsciente enterrado em moradas primitivas, é preciso, à margem da psicanálise normal, dessocializar nossas grandes lembranças e atingir o plano dos devaneios que vivenciávamos nos espaços de nossas solidões. Para tais indagações, os devaneios são mais úteis que os sonhos. (Bachelard, 1957, p. 28).

Os devaneios pensados por Bachelard aproximam–se do conceito de ilusão winnicottiano. Na teoria de Winnicott, só a ilusão permite o contato entre o ente solitário e a realidade externa. Bachelard, por sua vez, observa a relevância do devaneio para que a relação entre o mundo e o homem possa ser estabelecida. Sem o devaneio, o homem não poderia se enraizar no espaço, e o seu entorno seria um mero acúmulo de objetos sem sentido ou valor. Representar uma imagem e criá–la são atividades psíquicas que requerem funções completamente distintas. Criar imagens relaciona–se com uma função do irreal, atrelada a valores de solidão:

A imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diversas e seria necessária uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo o que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções completamente diferentes da imaginação reprodutora. A ela pertence essa função do irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função do real, freqüentemente evocada pelos psicólogos para caracterizar a adaptação de um espírito à realidade etiquetada por valores sociais. Essa função do irreal reencontra valores de solidão. (Bachelard, citado por Pessanha (Pessanha, 1988, p. 153)),

De acordo com Winnicott, falar em uma relação do homem com o mundo ou com outros seres, no período inicial de vida, é um equívoco, pois não há ainda, para o bebê, objetos externos e internos com os quais ele possa se relacionar. O que existe é apenas a sensação de continuidade do ser, que deve ser mantida por meio dos cuidados da mãe. O bebê cria o mundo e o mundo está lá de forma a corresponder tão exatamente quanto possível à ilusão da criança.6 Isso explica por que não há a sensação, para o bebê, de que existem fatores externos independentes de sua existência. Afirma Winnicott:

No princípio há uma solidão essencial. Ao mesmo tempo, tal solidão somente pode existir em condições de dependência máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que damos à adaptação ativa de uma espécie a dimensões tais, que a continuidade do ser não é perturbada por reações à intrusão. (Winnicott, 1988, pp. 153–154)

No início da vida, o tema da solidão essencial envolve um paradoxo: a solidão somente pode existir em condições de dependência absoluta com um outro. Nesse momento do amadurecimento, o bebê está em um estado de não–integração, e integrar–se7 não é uma predeterminação. Para que a integração se realize, o bebê depende de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons às suas necessidades orgânicas. Na visão winnicottiana, antes que haja o desejo, o bebê precisa de alimento, de colo materno, de calor ambiente e de tantos outros detalhes. Bachelard, assim como Winnicott, também vê nas necessidades corpóreas os primeiros traços de manifestação psíquica:

Os primeiros interesses psíquicos que deixam traços inapagáveis em nossos sonhos são interesses orgânicos. A primeira convicção calorosa é um bem–estar corporal. Na carne, nos órgãos é que têm nascimento as imagens materiais primeiras. Essas primeiras imagens materiais são dinâmicas, ativas; estão ligadas a vontades simples, espantosamente grosseiras. A psicanálise suscitou revoltas ao falar da libido infantil. Compreender–se–ia talvez melhor a ação dessa libido se lhe fosse restituída a forma confusa e geral, se a relacionássemos a todas as funções orgânicas. A libido aparece então como solidária de todos os desejos, de todas as necessidades. Seria considerada como uma dinâmica do apetite e encontraria saciedade em todas as impressões de bem–estar. Uma coisa, em todo caso, é certa – é que o devaneio na criança é materialista. A criança é um materialista nato. Seus primeiros sonhos são sonhos de substâncias orgânicas. (Bachelard, citado por Pessanha, 1988, p. 155)

A casa concentra justamente todas as condições para que um ambiente possa ser suficientemente bom. A casa é o terreno habitado pelo homem e ele o ocupa com intimidade. Esse espaço pode ser preparado de forma suficientemente perfeita para a chegada e permanência de um bebê. é nesse local familiar que o bebê começa a viver e a explorar o mundo. Ali ele poderá experimentar a ilusão de onipotência, que permite a formação de uma base sólida para que a crença na realidade do si–mesmo e do mundo possa gradualmente se estabelecer. Tudo aquilo que ocorre nesse âmbito é sentido como uma experiência que deriva de um gesto espontâneo e, portanto, não rompe com o sentido pessoal da existência. Contudo, se o ambiente não for capaz de fornecer os cuidados devidos para a ocorrência dessa ilusão, o sentimento de real em relação ao mundo e ao si–mesmo fica debilitado, e o indivíduo não pode se apropriar de suas próprias experiências.

A solidão, o holding e a casa, os elementos concretos necessários à constituição psíquica, o início da vida e o espaço são apenas alguns dos entrelaçamentos possíveis entre a psicanálise winnicottiana e a filosofia bachelardiana. Outros elementos poderiam ter sido estudados de modo a permitir iluminar novos vínculos existentes nos pensamentos dos autores. Entretanto, deixo aqui apenas uma trilha sugerida para que outras incursões possam ser realizadas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E–mail: martins_alessandra@hotmail.com

Enviado em 13/6/2008
Aprovado em 29/4/2009

 

 

* Psicóloga, Psicanalista, Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.
1 Muitas vezes Bachelard expõe uma visão crítica em relação a interpretações que traduzem imagens poéticas em significados psicológicos. Temos um exemplo da crítica bachelardiana às análises de teor psicológico a propósito das imagens poéticas produzidas por Milosz e por Bosco (Bachelard, 1957, p. 61). O trecho diz: “um psicólogo positivo reduziria imediatamente a linguagem carregada de imagens à realidade psicológica do medo de um homem murado em sua solidão, longe de qualquer ajuda humana. Mas a fenomenologia da imaginação não pode se contentar com uma redução que transforma as imagens em meios subalternos de expressão: a fenomenologia da imaginação exige que vivamos diretamente as imagens, que as consideremos como acontecimentos súbitos da vida. Quando a imagem é nova, o mundo é novo” (Bachelard, 1957, p. 63). Uma crítica mais contundente e que poderia ser dirigida ao presente estudo está na obra “A terra e os devaneios do repouso”. Lá, Bachelard afirma: “A volta à terra natal, o regresso à casa natal, com todo o onirismo que o dinamiza, foi caracterizado pela psicanálise clássica como uma volta à mãe. Essa explicação, por mais legítima que seja, é no entanto demasiado grosseira, apega–se precipitadamente a uma interpretação global, apaga muitas nuanças que devem esclarecer detalhadamente uma psicologia do inconsciente. Seria interessante apreender bem todas as imagens do regaço materno e examinar o pormenor de substituição de imagens. Veríamos então que a casa tem seus próprios símbolos, e se desenvolvêssemos toda a simbólica diferenciada do porão, do sótão, da cozinha, dos corredores, do depósito de lenha...., perceberíamos a autonomia dos diferentes símbolos, veríamos que a casa constrói ativamente seus valores, que reúne valores inconscientes. O próprio inconsciente tem uma arquitetura de sua predileção (Bachelard, 1948, pp. 93–94). Assim, a tentativa de aproximar Winnicott de Bachelard poderia parecer um contra–senso. Aqui, a intenção será a de estabelecer um diálogo sem submeter ou reduzir um pensamento ao outro e, nessa interlocução, a relação entre os autores parece ser profícua.
2Loparic (1999) aproxima a filosofia de Heidegger da psicanálise winnicottiana. No texto “Heidegger and Winnicott”, por exemplo, esse autor considera: “[Heidegger] parece ser o filósofo a ser levado em conta quando discutimos as referências filosóficas intencionais ou não de Winnicott” (Loparic, 1999, p. 108). Ora, se está demonstrado que a psicanálise winnicottiana, de um modo ou de outro, aproxima–se da fenomenologia de Heidegger, há um novo campo bastante amplo que se abre de forma fértil, localizado para além da relação Heidegger–Winnicott. Isto é com base na constatação de que há um encontro entre Heidegger e Winnicott, podemos tocar em outros referenciais que apontem para o aprofundamento dessas coincidências já identificadas, tanto no campo da fenomenologia como também da psicanálise. Assim como a psicanálise winnicottiana tem pontos comuns com outros autores da psicanálise, como Ballint, Kohut ou Kahn, a filosofia de Heidegger também tem pontos convergentes com o pensamento bachelardiano. Por que, então, não expandir a convergência existente entre Winnicott e Heidegger? Já a primeira parte do livro “A poética do espaço” prova que Bachelard mantém um polêmico diálogo com a filosofia de Heidegger. Para o filósofo francês, os “filósofos apressados” tendem a pensar primeiramente o jogo dialético do eu e do não–eu, pois pensam no mundo – universo – antes de pensarem na casa, isto é, na raiz–que–temos–no–mundo. Essa passagem do texto se dirige claramente ao pensamento heideggeriano que considera que o homem ontologicamente se estrutura como ser–no–mundo, sendo este “mundo” também dasein. E o dasein, por sua vez, caracteriza–se como abertura e como um ente que tem por definição seu ser constantemente em jogo. Bachelard, por outro lado, considera a casa como um espaço primordial para a profundidade do ser, mostrando que a análise fenomenológica do espaço habitado e protetor antecede a do universo. Antes de sermos–no–mundo, somos ser–no–interior–do–espaço–íntimo/protetor.
3A angústia existencial pode ser vivida de diferentes modos, mas ela jamais deixa de existir. Posso inclusive alienar–me e esquecer–me de sua presença, mas, mesmo esse caso, é um modo possível de viver a angústia existencial.
4 Essa crítica feita por Bachelard é um pouco controversa, na medida em que mesmo na casa o homem está no mundo, não se separando do espaço que o cerca. Além disso, a ontologia heideggeriana do ser–em abarca alguns elementos tratados por Bachelard. O ser–em heideggeriano evoca a familiaridade existente entre homem e mundo. O corpo humano não é algo simplesmente dado “dentro” de um ente simplesmente dado – espaço. O ser–em não é algo que está espacialmente contido em um local determinado, mas o “em” “deriva de innan–, morar, habitar, deter–se; ‘an’ significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo” (Heidegger, 1927/1997, p. 92). Assim vemos que “o ente, ao qual pertence o ser–em...., é o ente que sempre eu mesmo sou” (Heidegger, 1927, p. 92). E “a expressão ‘sou’ se conecta a ‘junto’; ‘eu sou’ diz, por sua vez: eu moro, me detenho junto.... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. O ser entendido como infinito de ‘eu sou’, isto é, como existencial, significa morar junto a, ser familiar com.... O ser–em é, pois, a expressão formal existencial do ser do dasein que possui a constituição essencial de ser–no–mundo” (Heidegger, 1927)).
5Para Loparic (2007), “em Heidegger I, o tratamento do tema do nascimento permaneceu.... inacabado. Em Heidegger II, tornou–se abstrato, sem implicações concretas”, já que foi tratado “em termos não–humanos, isto é, decididamente não–antropológicos, com base em considerações pré–metafísicas dos pré–socráticos e no canto pós–metafísico de Hölderlin” (2007, p. 12).
6Dias (2003) ressalta que: “O ‘eu’, como uma identidade separada do não–eu, é um ultrapassamento da identificação primária que ocorre dentro da unidade fusional inicial. .... O âmbito onde se dá o amadurecimento não é um espaço intrapsíquico, mas inter–humano, um entre a mãe e o bebê. Esse espaço é ainda pré–pessoal, pelo fato de não haver ainda duas pessoas; cada um é parte do outro, na unidade do dois–em–um. Apesar disto, deve–se assinalar que, desde o absoluto início, existe já um pequeno descolamento, uma pequena fenda entre eles, visto que, ‘mesmo no contato mais íntimo possível, haverá uma ausência de contato, de modo que cada indivíduo manterá, essencialmente, um isolamento absoluto, permanentemente e para sempre’ (1988, p. 178). Contudo, ao mesmo tempo que já existe, e sempre existirá, esse espaço – que separa mãe e bebê, e estará sempre isolando o indivíduo do mundo externo – ainda não existe enquanto tal; sua realização é uma conquista do amadurecimento, que só começará a se efetivar no estágio da transicionalidade” (Dias, 2003, p. 132).
7 é importante lembrar, portanto, que alcançar a integração até que se forme um si–mesmo – o que pressupõe a conquista da separação entre o eu e o não–eu – pode não acontecer. Psicóticos fazem parte das pessoas cujo amadurecimento não foi possível desde os estágios mais primordiais do desenvolvimento. Winnicott (1988/1990) se refere aos problemas dos psicóticos como tentativas de se alcançar a vida, e não como problemas relacionados ao próprio viver. “[No tratamento psicanalítico] os pacientes psicóticos.... pouco se interessam por ganhar maior autoconsciência.... [esperam que] aos poucos [possam] vir a ter esperança de que lhes seja possível sentir–se reais” (Winnicott, 1988, p. 79).