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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Diferentes possibilidades de intervenção a partir da teoria winnicottiana do amadurecimento

 

Different possibilities of intervention about the Winnicottien

 

 

Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian*; Gabriela Bruno Galván**

Universidade de São Paulo, Laboratório Interunidades para o Estudo das Deficiências

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir acerca de algumas possibilidades de intervenção baseadas na Teoria do Amadurecimento Pessoal de D.W.Winnicott, psicanalista e pediatra, cuja psicanálise foge aos padrões estabelecidos pela Psicanálise Tradicional tanto em relação à teoria quanto à prática. Seguindo a proposta de Winnicott denominamos as diferentes intervenções realizadas como preventivas e/ou terapêuticas. As intervenções preventivas são aquelas focalizadas nas modificações das condições ambientais, considerando a importância deste no processo de desenvolvimento. As intervenções terapêuticas são aquelas voltadas diretamente ao indivíduo, essas procuram oferecer condições favoráveis para a retomada do amadurecimento daqueles que vivenciam situações criticas que interferem significativamente em sua vida. Destacamos as possibilidades oferecidas pela teoria de Winnicott para intervenções realizadas em instituições – como hospitais, centros de reabilitação, abrigo para menores e outros.

Palavras–chave: Winnicott, Intervenções preventivas, Intervenções terapêuticas, Teoria do amadurecimento.


ABSTRACT

The present article has as an objective the reflection about some possibilities of intervention based in the Theory of Personal Maturing, by D.W.Winnicott, psychoanalyst and pediatrician, whose psychoanalysis runs from the standards established by the Traditional Psychoanalysis, as in relation to the theory, as to the practical part. Following Winnicott’s proposal we denominated the different interventions made as preventives and/or therapeutic. The preventive interventions are the ones focused in the modifications of the environmental conditions, considering the importance of this process in the development. The therapeutic interventions are the ones focused in the person, these ones try to offer favorable conditions to the retaking of the development of those who live critical situations that interfere significantly in their lives. We highlight the possibilities offered by the Winnicott’s theory for the interventions made in institutions – such as hospitals, rehab centers, children shelters and others.

Keywords: Winnicott, Preventive interventions, Therapeutic interventions, Theory of emotional development.


 

 

O interesse, estudos e pesquisas sobre as diferentes possibilidades de intervenção a partir da teoria do amadurecimento de Winnicott se devem ao tipo de trabalho que desenvolvemos há vários anos. Atividades relacionadas a atendimentos clínicos e outras formas de intervenção em psicologia, no referencial psicanalítico, com pessoas que vivenciam situações de crise em diferentes momentos da vida, pessoas com deficiências físicas ou funcionais ou que apresentam diferenças significativas em relação à maioria. Além dessas, trabalhos de supervisão e orientação de alunos em diferentes níveis de graduação acadêmica.

Nesse percurso tivemos a oportunidade de observar que as atividades para as quais os psicólogos têm sido hoje requisitados se expandiram para além do campo clássico da clínica e tem abrangido áreas de atividades interventivas em hospitais, escolas, centros de reabilitação para pessoas com deficiências, além de atendimentos psicológicos em abrigos e centros de atendimento às comunidades carentes.

Nessas atividades percebe–se que a psicanálise clássica não é o referencial mais indicado para a compreensão dos aspectos específicos das dificuldades enfrentadas por essas pessoas e, principalmente, que as intervenções que elas necessitam não se enquadram nas propostas de atendimento da psicanálise clássica.

Um olhar para o percurso profissional e teórico de Winnicott nos mostra que ele construiu sua teoria a partir da observação de sua prática clínica, tanto nos atendimentos pediátricos e de psiquiatria infantil, com as crianças e suas mães, como nos atendimentos psicanalíticos com seus pacientes.

O diálogo constante entre suas elaborações teóricas e os fenômenos que observava permitiu a construção de um arcabouço teórico em constante e crescente transformação e acabamento. Sua teoria está assentada em sua prática clinica e essa por sua vez deriva de seus aportes teóricos, o que lhe permitiu a elaboração de técnicas ricas e singulares. A teoria e a técnica de Winnicott estão entrelaçadas, sendo a técnica o instrumento utilizado tanto para compreender as ocorrências que provocaram fraturas no desenvolvimento do individuo como o meio pelo qual se tornará possível a este vivenciar suas experiências perdidas e retomar o desenvolvimento paralisado.

Para Winnicott o desenvolvimento do ser humano é complexo e dinâmico, ocorre por meio de um peculiar processo interacional com o ambiente sendo inicialmente de dependência absoluta para evoluir para uma relação de dependência relativa e rumo à independência. Essa relação possibilita ao bebê – que no inicio possui apenas a tendência a continuar a ser e se integrar e um corpo fisico, em interação com o ambiente, cuja influência pode se inciar em momentos anteriores ao nascimento – constituir o ser a partir do não ser.

Além da importância do ambiente na constituição do individuo, para Winnicott uma conquista da saúde é o que ele chamou de “personalização” – a questão da morada ou habitação do corpo e o funcionamento corporal (Winnicott, 1971b, p. 203). Em sua teoria o corpo e o funcionamento corporal tem lugar diferenciado em relação às propostas freudianas e de outros psicanalistas. Embora Freud e outros psicanalistas considerem o homem como um ser total salientando seus aspectos corporais, como por exemplo, o ego corporal de Freud e o id como uma energia biológica, ao considerarem o psiquismo como uma representação mental estabelecem certa dicotomia corpo–mente. Uma condição muito diferente de Winnicott para quem o psiquismo se desenvolve por meio da elaboração imaginativa das funções corpóreas. Para ele o individuo total é aquele capaz de elaborar as ocorrências de sua vida como experiências enquanto um corpo vivo.

O desenvolvimento de estudos, trabalhos e pesquisas sobre a teoria e a técnica desenvolvidas por Winnicott, mostrou toda a riqueza que essa proposta poderia oferecer, tanto para a compreensão das dificuldades vividas por pessoas significativamente diferentes da maioria, como para as diferentes formas de intervenção utilizadas por Winnicott, como consultas terapêuticas, psicanálise por demanda, psicanálise compartilhada, estudo de casos e orientação a outros profissionais, que torna possível o atendimento a essa população de forma mais satisfatória.

Após o aprofundamento nos estudos da teoria e das práticas winnicottianas começou–se a desenvolver trabalhos e pesquisas no LIDE1, Laboratório do IPUSP, sob esse referencial teórico.

Faremos um relato sobre os temas referente às pesquisas que vêm sendo realizadas nesse Laboratório. Há muitas pessoas envolvidas e diferentes vertentes, mas o eixo desse trabalho são as diferentes formas de intervenção baseadas na teoria do desenvolvimento de Winnicott.

Nesses trabalhos parte–se do pressuposto que a compreensão das vicissitudes a que estão expostas as pessoas com deficiências físicas ou funcionais, as pessoas que vivenciam situações incomuns ou inesperadas e aquelas que apresentam características que as diferenciam significativamente da maioria da população é fundamental para o entendimento de suas necessidades e possíveis patologias. O entendimento dessas vicissitudes é fundamental para a orientação das formas de intervenções subseqüentes que venham a ajudá–las em suas dificuldades.

Diferentes procedimentos de intervenção, favorecedores de um desenvolvimento saudável, são imprescindíveis para a ajuda à supressão das dificuldades causadas por condições múltiplas: orgânicas, psíquicas e sociais.

A teoria do amadurecimento proposta por Winnicott parece–nos ser a que melhor atende a essas necessidades por considerar que o ser humano é um ser de relação e que só constrói sua identidade psicossomática a partir do ambiente em que vivencia suas experiências.

Alguns pontos fundamentais de sua teoria, algumas de suas diferenciadas práticas de intervenção e, principalmente, seu conceito de saúde mental não como ausência de doença, mas como uma condição positiva expressa pela possibilidade de manifestação do seu si mesmo, foram elementos fundamentais em que nos baseamos para propor estudos sobre as diferentes formas de intervenção a partir da teoria do amadurecimento.

A história de vida de Winnicott mostra que os conceitos desenvolvidos por ele para a construção de sua proposta teórica e as diferentes formas de intervenção que foram se consolidando com sua prática clinica eram uma extensão natural de sua maneira de ser. Como nos diz Masoud Khan (1993, p. 7) ele sempre permaneceu inexoravelmente Winnicott, ao mesmo tempo em que “Cada um de nós que o conheceu tem o seu próprio Winnicott”. Isso também nos deu alento para usar seus conceitos e técnicas em situações diferenciadas.

Para Winnicott o exercício da pediatria, mais como psiquiatria infantil, e da psicanálise só faziam sentido se ocorressem a partir da vivência das situações que se instalavam entre ele e aqueles que o procuravam em diferentes situações. Os fenômenos observados nesses momentos eram os substratos para o desenvolvimento de seu pensamento e a construção de sua teoria.

Em diferentes momentos de sua obra, como salienta Dias (2002) nos fala da importância de sua formação médica que lhe permitia estabelecer inter–relação entre as condições físicas e psicológicas para a compreensão do ser humano e ao mesmo tempo discriminar quando o sintoma apresentado mostrava que a questão nodal se assentava em uma condição física ou se era primordialmente uma dificuldade emocional, o que lhe permitia compreender as interações entre esse dois fatores na constituição do ser humano.

Desde o inicio de sua prática pediátrica, que jamais abandonou mesmo quando se tornou um psicanalista renomado, percebeu que a grande maioria dos bebês com problemas, tinha na base de seus sintomas dificuldades emocionais.

Essa constatação influenciou de maneira decisiva seu pensamento psicanalítico, o que o fez afastar–se da psicanálise clássica, não só quanto aos conceitos teóricos mas também nas diferentes técnicas de intervenções.

A diferença primordial de Winnicott em relação à teoria psicanalítica clássica, já amplamente discutida, foi sua constatação de que a constituição do ser humano se dá por meio de uma relação dual e não triádica. Portanto não são as relações pulsionais, o Complexo de édipo, o fator primordial na constituição do individuo, mas sim a possibilidade de ser e estar com outro ser humano em uma paradoxal relação de dependência absoluta. Como diz Loparic (1996) de forma bastante esclarecedora o ser humano se constitui não na cama dos pais, mas no colo da mãe.

Para Winnicott (1958d) os cuidados maternos são fundamentais para a saúde mental do bebê.

Os analistas – mesmo aqueles que vêm no bebê um ser humano desde o nascimento – frequentemente falam como se a vida do bebê começasse com a experiência pulsional oral e com a relação de objeto que emerge da experiência pulsional. Ainda assim, todos nós sabemos que um bebê tem a capacidade de se sentir terrivelmente mal como resultado do fracasso de algo que se encontra em um campo completamente diferente, a saber, a forma de cuidar do bebê. (Winnicott, 1958d, p. 206)

Considera que as bases para saúde mental do ser humano são: os processos de maturação – uma tendência herdada; e as condições suficientemente boas do ambiente, sem as quais as tendências herdadas não se realizam. Para ele saúde mental significa maturidade, e maturidade de acordo com a idade cronológica do individuo.

Essa nova maneira de pensar a constituição do ser humano e sua relação com o ambiente que caminha da dependência absoluta para a independência relativa nos fala da grande importância dada por Winnicott (1958d, p. 208) para o ambiente na constituição do individuo. Ele nos diz: “a unidade não é o individuo, a unidade é uma organização meio ambiente – individuo. O centro de gravidade do ser não começa no individuo. Está na organização total.”

Foi, também, fundamental para nossos estudos a importância dada por Winnicott ao corpo e seu funcionamento na constituição do ser humano. Conceito que ele denomina de personalização “uma espécie de tipo positivo de despersonalização”, definida por ele como um termo para “chamar a atenção para o fato de que a morada desta outra parte da personalidade no corpo, e um vínculo firme entre o que quer que se ache lá e que chamamos de psique, em termos desenvolvimentais representa uma conquista da saúde”. (Winnicott, 1971d, p. 203).

Segundo Winnicott o bebê incorpora seu corpo e constrói seu psiquismo a partir da elaboração imaginativa das funções corpóreas. Conceito muito significativo quando nossos clientes apresentam perdas ou mutilações físicas.

Um caso interessante relatado por Winnicott (1971d, p. 208), é a consulta com Jill, uma adolescente de 17 anos que segundo a mãe sentia–se perdida, apresentando problemas sociais e educacionais. Ela havia perdido o pai aos 3 anos, fato, que segundo a mãe já tinha sido assimilado por Jill de forma adequada. No meio da consulta em que foi utilizado o jogo do rabisco Jill menciona o fato de ter uma perna um centímetro mais curta do que a outra, fato que havia passado despercebido por Winnicott.

No desenrolar da sessão, em que foi utilizado o jogo do rabisco, ele descreve o caminho percorrido por ambos e algumas intervenções sobre as sensações de Jill de que algo lhe faltava. Até o momento em que Winnicott considerou como a parte importante da consulta: o desenho, por Jill de um membro quebrado e arrancado no sonho, uma coisa que sempre sentia a respeito de si mesma. O desenho era o coto de uma perna, de cor malva e pálida, com a aparência de coisa morta. A interpretação de Winnicott nessa situação foi a de que essa tinha sido a maneira de Jill poder chegar à sua reação a morte do pai. Ela não se lembrava dele, não sentia sua falta, mas quando ele morreu foi como uma parte sua tivesse morrido também. Parece–me que Jill relacionava seu sentimento de falta e de falha constantes também à sua condição física. A maneira como ela conseguia defender–se do extremo sentimento de tristeza pela perda do pai era o sentimento da falta de um (1) cm em sua perna.

Esse caso me parece esclarecedor para pensarmos como as condições físicas são incorporadas pelo individuo. E como suas reações a ela estão muito mais relacionadas às suas vivências anteriores do que a condição física em si.

No texto “Provisão para a criança na saúde e na crise” Winnicott afima:

Se saúde é maturidade, então imaturidade de qualquer espécie é saúde mental deficiente, sendo uma ameaça ao individuo e uma perda para a sociedade”. De fato, embora a sociedade possa utilizar as tendências agressivas dos indivíduos, não pode utilizar sua imaturidade. Se se considera o que se deve prover, verificamos que temos que acrescentar:
1. tolerância para com a imaturidade e saúde mental deficiente do individuo
2. terapia,
3. profilaxia (Winnicott, 1965vc, p. 63)

Assim para as diferentes saúdes mentais deficientes que podem ocorrer Winnicott aponta uma diversidade de técnicas a serem utilizadas e várias foram as usadas e desenvolvidas por ele. As consultas terapêuticas, a psicanálise compartilhada, a psicanálise por demanda, a orientação aos pais, às palestras radiofônicas e os cursos de Pós–Graduação oferecidos nas Universidades para Professores e Assistentes Sociais. Atividade que deu origem a seu livro básico “Natureza Humana”.

Outro ponto que consideramos importante salientar em relação as propostas de Winnicott era sua constante atenção as necessidades e possibilidades do paciente. Suas técnicas psicanalíticas foram sempre sendo construídas a partir da necessidade que ele percebia nos pacientes, e o manejo se diferenciava de acordo com sua percepção das necessidades deles.

A partir desses pressupostos desenvolvemos alguns trabalhos que tem por objetivo intervenções junto às pessoas, famílias e comunidades que apresentam dificuldades em sua constituição e organização. São intervenções baseadas na teoria do amadurecimento de Winnicott e podem ocorrer em diferentes locais. Em hospitais, em escolas e em diferentes tipos de Instituições tais como para a educação e reabilitação de pessoas com deficiência, em centros comunitários de comunidades carentes, clínicas escolas ou em consultórios particulares.

Costumamos denominar essas intervenções de duas formas, como indicadas por Winnicott, intervenções preventivas ou intervenções terapêuticas. As intervenções preventivas são aquelas focalizadas nas modificações das condições ambientais, baseadas nos diferentes casos relatados por Winnicott sobre o manejo do ambiente. Essas intervenções podem ser realizadas por psicólogos ou outros profissionais da área da saúde que tenha conhecimento e formação na teoria winnicottiana. As intervenções terapêuticas são trabalhos de psicanalistas voltados diretamente ao individuo, buscando oferecer–lhes substrato para a retomada do amadurecimento diante de situações que interferiram significativamente em sua vida,. Não se restringem à pratica clássica de consultório psicanalítico por serem intervenções realizadas em instituições como hospitais, centros de reabilitação, abrigo para menores e outros e usarem outras técnicas desenvolvidas por Winnicott.

Alguns pontos fundamentais da teoria e da prática de Winnicott constituíram–se como o pano de fundo desses trabalhos:

• Em qualquer tipo de intervenção e em todas as sessões, consultas ou outra atividade que está sendo realizada, a pessoa, objeto do atendimento, deve sair desta sessão sempre com uma resposta que lhe permita elaborar as questões apresentadas.
• O principio fundamental da intervenção deve ser uma comunicação efetiva entre o paciente e o terapeuta, de modo que o terapeuta possa compreender as dificuldades do paciente e, principalmente ajudá–lo a desenvolver a capacidade de confiar no ambiente.
• Cuidado para que o terapeuta ou o ambiente mais amplo não seja intrusivo. Esse é um ponto importante em intervenções pontuais, pode–se muitas vezes se confundir a oferta de oportunidades com o ensino daquilo que se considera como o melhor para o paciente.
• As interpretações devem se pautar não pelo máximo que eu possa oferecer ao paciente, mas pelo mínimo necessário que ele necessita para poder elaborar suas experiências.

 

As intervenções preventivas

Como intervenções preventivas alguns trabalhos vem sendo realizados:

1. A ética do cuidado: a possibilidade de construir novas formas de existência 2

Esse trabalho constitui–se de um processo de intervenção realizado em uma brinquedoteca comunitária de um bairro carente do município de São Paulo. Esse trabalho tem como base a crença de que um ambiente favorável tem condições de favorecer um desenvolvimento saudável e possibilitar ao individuo reviver situações traumáticas de modo que ele possa vir a retomar seu processo de desenvolvimento. Nessa comunidade crianças e adolescentes vivem em um ambiente pouco acolhedor e provedor de suas necessidades. As situações de violência e fragilidade dos laços sociais é uma constante, mostrando que crianças e adolescentes pouco podem confiar no ambiente. A intervenção – propor para as crianças e jovens um ambiente em que pudessem brincar livremente e no qual precisaram estabelecer regras de convivência e outras próprias de uma brinquedoteca – tinha por objetivo construir e oferecer a essas crianças e adolescentes possibilidades de novas formas de convívio. A interface entre o campo da saúde e o campo social vem mostrando que a emergência do brincar espontâneo e criativo em ambiente humano favorecedor é capaz de desenvolver relações de confiabilidade, sendo essa uma condição fundamental para o desenvolvimento saudável.

2. Provisão ambiental para a constituição do “ser leitor” nos dias de hoje 3

Este estudo tem por objetivo pesquisar como acontece o percurso de aquisição do processo de leitura em alunos com mais de 11 anos de idade, que estudam em escola pública e que não se apropriaram dessa potencialidade humana. Busca também estudar as características do ambiente que sejam favorecedoras à constituição do ser leitor hoje. Nesta pesquisa, “ser leitor” é considerado não só como aquele que tem a leitura como uma curiosidade e pode ser usuário dela. é, também, aquele que vê nesta uma manifestação do seu si mesmo como leitor, por meio do uso e expressão de sua capacidade criativa. Não saber ler apontaria para a impossibilidade de aceder à condição humana de ser leitor (usuário e criador), dificultando a constituição do ser criativo, social, livre e, portanto, cidadão, que quer e pode ler, dando continuidade ao seu devir humano.

3. Supervisão e orientação aos profissionais do atendimento especializado de uma Instituição para Educação e Reabilitação de DV

Essa proposta tem como objetivo verificar a possibilidade do uso dos conceitos teóricos de Winnicott e as práticas conseqüentes em uma Instituição Especializada para Educação e Reabilitação de DV.

Na supervisão dos profissionais especializados no atendimento à pessoas com deficiência visual, os conceitos winnicottianos são utilizados com diferentes objetivos:.

• Para a compreensão do papel da deficiência visual na constituição e organização da personalidade.
• Para a definição de objetivos e metas a serem alcançados no atendimento a essas pessoas.
• Para a organização das formas de intervenção a serem propostas.

As discussões e reflexões sobre os conceitos winnicottianos com esses profissionais tem por objetivo que, ao conhecerem a teoria de desenvolvimento proposta por Winnicott venham a:

• Compreender que o indivíduo é constituído por uma psiquessoma em constante inter–relação o que os leva a:
• entender a deficiência visual como parte constituinte da personalidade
• compreender o individuo como uma pessoa total e indissociável
• compreender que os diferentes profissionais não devem se organizar em equipes multidisciplinares, mas estabelecerem uma relação de trabalho inter ou transdisciplinar.
• Compreender o ser humano como um ser de relação que se constitui, se desenvolve e se modifica a partir de uma interação primária com o ambiente leva:
os diferentes procedimentos, com clientes de qualquer condição e idade, a considerar a família, a escola, o mercado de trabalho e a sociedade de um modo geral, como elementos básicos e participantes do processo de educação e reabilitação dos deficientes visuais.
• Compreender que no desenvolvimento emocional primitivo a relação mãe/bebê vai da dependência absoluta para dependência relativa e dessa para a independência leva a:

Propor a intervenção precoce como trabalho transdisciplinar, realizada por um único profissional, na qual o foco principal do atendimento é a interação mãe – filho.
Considerar a diferença entre independência pessoal e necessidades físicas ou funcionais de apoio e ajuda..
• Compreender que os indivíduos sadios são aqueles que estão o mais próximos de serem aquilo que permite o equipamento com que vieram ao mundo leva a:
Entender que para aqueles que nasceram com deficiência, ser normal é ser como são, e que o objetivo do atendimento das pessoas com deficiência deve ser o favorecimento de condições para seu desenvolvimento pleno e não a correção de uma falta.
• Compreender que o mundo é criado de novo por cada ser humano e que essa é a base para a manifestação do verdadeiro self. leva a:
Uma relação profissional na qual este não se considera detentor de um saber sobre o cliente, mas sim que esse saber pertence ao cliente.
Uma relação profissional/cliente em que haja a preocupação para se evitar o estabelecimento de relações intrusivas.

 

As intervenções terapêuticas

Como intervenções terapêuticas existem trabalhos na área de psicodiagnósticos, e intervenções breves em situações diversas.

Dentre esses podem ser apontados os seguintes:

1. Contribuição dos conceitos de Winnicott à fundamentação teórica da prática do Psicodiagnóstico Interventivo: Uma Parceria Criativa4

Este trabalho procura explorar subsídios teóricos para a prática do psicoldiagnóstico interventivo a partir das concepções winnicottianas. Partindo–se do psicodiagnóstico interventivo como proposto no referencial fenomenológico (Macedo, 1984)) são discutidos a maneira de conceber a situação e os procedimentos do psicólogo presentes nesta prática tendo como modelo o trabalho desenvolvido nas consultas terapêuticas e, principalmente as possíveis analogias com alguns conceitos básicos da teoria de Winnicott tais como: o de maternagem, o de holding, o de espaço potencial, o de objeto subjetivo. Desta forma, as preocupações de Winnicott que resultaram em uma original contribuição à teoria e pratica da psicanálise são tomadas como uma possível fundamentação das propostas inerentes ao trabalho interventivo do psicólogo na situação psicodiagnóstica, caracterizando–a como uma relação peculiar entre o psicólogo e seu cliente, promotora do desenvolvimento deste, por meio da compreensão e oferta de experiências restauradoras de acordo com suas necessidades.

2. Compreendendo a fobia em odontopediatria por meio de intervenções com o Procedimento de Desenhos–Estórias5

Esse trabalho teve por objetivo compreender os conteúdos emocionais de crianças e adolescentes com medo de tratamento odontopediatríco e pesquisar os pontos nodais das angustias, conflitos, fantasias e mecanismos de defesa que emergem em situação de crise. Foi utilizado o Procedimento de Desenhos–Estórias como instrumento facilitador do contato e intervenções auxiliares para o aprofundamento no material emergente e compreensão dos conteúdos emocionais. Observou–se que a necessidade de atendimento odontopediátrico exacerba com intensidade fantasias, conflitos e mecanismos de defesa primitivos. O processo interventivo auxiliou no conhecimento dos conflitos e mobilizou uma tendência para a integração. Concluiu–se que a situação de crise que antecede o atendimento odontopediatrico pode mobilizar angústias primitivas e intensas fantasias que necessitam ser comunicadas e elaboradas em intervenções psicoterapêuticas.

3. Corpo ferido: os caminhos do self a partir de uma ruptura na integridade corporal6

Apresentaremos aqui uma parte desse trabalho como ilustração de uma intervenção em um contexto Instituicional

O relato a seguir refere–se à intervenção psicológica em hospital escola voltado para a ortopedia e reabilitação. Essa intervenção ocorreu junto a pessoas que sofreram amputação de um ou mais membros como conseqüência de algum tipo de acidente e que estavam nessa Instituição iniciando ou desenvolvendo o seu processo de reabilitação.

A reabilitação nesse caso é realizada por uma equipe multidisciplinar. Os pacientes amputados passam por avaliação médica e são admitidos no grupo para reabilitação. No início do processo são avaliados pelo fisioterapeuta, pelo psicólogo e pelo assistente social. São acompanhados uma ou duas vezes por semana, de acordo com a necessidade e as condições de cada paciente. O período de reabilitação se encerra normalmente quando a pessoa já consegue fazer uso de uma prótese, o que leva um tempo variável – em média entre três meses e um ano.

é importante destacar que a entrevista psicológica inicial, uma vez que faz parte da rotina do grupo, está colocada e compreendida como uma etapa necessária para poder fazer a reabilitação. Isso torna este primeiro encontro paciente–psicólogo um contato permeado de expectativas e da suposição básica de que ele – paciente – está ali com a psicóloga, para falar sobre a amputação que sofreu e como se sente em relação a esse aspecto específico de sua existência. Assim, estar com os pacientes e ouvir os seus relatos a respeito de suas vidas, e da amputação em suas vidas, foi a via de acesso encontrada para compor uma compreensão mais profunda a respeito da experiência de si mesmo de cada um desses indivíduos, diante de uma perda física – a perda de uma parte do corpo – e as mudanças, nos mais diversos âmbitos, decorrentes dessa perda.

O primeiro aspecto a ser destacado é a forma de estar com esses pacientes que permeava esse tipo de intervenção. No primeiro contato com cada indivíduo amputado buscava–se configurar um espaço onde fosse possível realizar um encontro que permitisse ao paciente comunicar aquilo que havia para ser comunicado, seja naquele momento específico, seja ao longo de um processo psicoterapêutico, desenvolvido na relação transferencial. No momento inicial, o psicólogo não sabia se o trabalho continuaria ou não, principalmente por não se tratar de uma procura espontânea por parte do paciente. O que existia, a priori, eram algumas condições para que a comunicação ocorresse: a presença e disponibilidade do profissional, um espaço físico adequado para garantir a privacidade da pessoa e a possibilidade de continuidade, com sessões semanais, por um tempo indeterminado, porém relativamente circunscrito ao período de reabilitação. Isso, considerando as peculiaridades do trabalho do psicólogo em instituições de saúde, onde o número de pacientes é grande e há um foco delimitado de atuação.

Com relação à experiência de viver uma amputação, a prática clínica foi mostrando que a perda de uma parte do corpo ocasiona mudanças no indivíduo que a sofre. Muda o corpo, a forma de se locomover, o trabalho, o sustento pessoal e familiar, as interações sociais. Porém a maneira por meio da qual cada um percebe, significa e vivencia essa perda e essas mudanças não é equivalente em todas as pessoas nem é determinada pela qualidade da perda. Dito de outra forma, a perda de uma parte do corpo não direciona incondicionalmente o modo de um indivíduo estar no mundo, embora implique em alterações significativas em sua existência, o que remete à necessidade de reformulações em sua identidade para incluir essa nova dimensão de experiência. A dificuldade em realizar a elaboração imaginativa dessa perda, pode tornar a amputação um acontecimento não integrado na vida de uma pessoa, com conseqüências prejudiciais à sua saúde e ao seu desenvolvimento. Se for possível ou não integrar essa experiência ao todo da existência individual vai depender da maturidade emocional conquistada por cada indivíduo ao longo de seu desenvolvimento anteriormente à própria amputação.

Assim, a possibilidade de viver a experiência de uma mudança no corpo7 – decorrente de uma amputação – está relacionada ao amadurecimento emocional de cada indivíduo. Isso significa que as possibilidades de elaboração e vivência de uma experiência são desenvolvidas por meio do próprio processo de amadurecimento pessoal. Ou seja, ao mesmo tempo em que a elaboração da experiência enriquece e favorece o desenvolvimento do si mesmo, é ao longo deste caminho que vão se criando as condições para abarcar e elaborar, em níveis mais complexos, as vivências pessoais – tanto as internas, quanto as referentes às relações interpessoais. O que nos leva a pensar que a dificuldade na elaboração e integração da perda de uma parte do corpo faz parte – em conjunção com a intensidade da perda propriamente dita – dos entraves pessoais decorrentes de diversos níveis de imaturidade encontrados em cada indivíduo que vivencia essa perda específica.

E aqui entra mais claramente a contribuição da teoria winnicottiana do amadurecimento na assistência às pessoas amputadas. Neste contexto não é possível pensar em uma intervenção psicoterapêutica baseada unicamente na reabilitação como substituição da função perdida, paralelamente à busca de aceitação da perda e superação de um suposto luto. Ao tomarmos como referência o desenvolvimento emocional sob esta perspectiva, temos necessariamente que olhar para as necessidades de cada indivíduo na busca da retomada do processo de amadurecimento, considerando a existência de uma paralisação nesse sentido.

Isso significa que a intervenção não pode ser a mesma em todos os casos, apenas porque todas as pessoas que estão sendo atendidas sofreram perda semelhante. Para esclarecer melhor essa questão apresentamos a seguir dois recortes de casos clínicos, que mostram de maneira bastante clara, as particularidades de cada relação terapêutica, de acordo com o amadurecimento de cada pessoa.

 

Robson

Robson, 25 anos, teve amputação da perna esquerda em decorrência de atropelamento por um trem. Na ocasião ele morava com a mãe, quatro irmãos mais velhos e cinco sobrinhos.

Robson veio para a primeira entrevista logo após a alta hospitalar. Esforçou–se bastante para relatar o que lhe havia acontecido. Tinha muita dificuldade em manter uma linha de raciocínio. Em nenhum momento, Robson conseguiu estabelecer contato visual, olhava sempre para o chão e falava de maneira confusa, entrecortada e muito lentamente. Parecia que lutava para conseguir apreender seus pensamentos e transformá–los em palavras. Durante o tempo da sessão a prioridade era ajudá–lo a organizar os próprios pensamentos, uma vez que Robson estava mergulhado em idéias desordenadas que se esforçava por compreender e comunicar.

Contou que no dia do acidente estava com a “mente confusa”, estava pensando em seu trabalho, que não estava bom, e em outras coisas que não sabia especificar. Estava andando pela rua e em uma estação de trem tentou pular a cerca, mas um guarda o impediu; então continuou andando por várias estações até que em uma delas foi atravessar a linha do trem e foi atropelado. Teve a perna amputada na hora. Esse relato, em termos de seqüência temporal de fatos, foi organizado à medida que ele ia falando e a terapeuta lhe perguntava algumas coisas, com o intuito inicial de compreender o que lhe havia acontecido.

O trabalho a que se referia era na limpeza de um edifício; já havia trabalhado como auxiliar de pedreiro e se dava melhor nessa função, não gostava de trabalhar no edifício. Havia outra coisa que o incomodava: o barulho das crianças (os sobrinhos) em sua casa. Disse que se sentia perturbado pelas brincadeiras e brigas entre as crianças e que nessas ocasiões precisava sair de casa, pois ficava com medo de se descontrolar e machucar a família.

Contou que fumava maconha desde os dezessete anos e desde então sentia–se confuso e com uma sensação que denominava de “mente fraca”. “Confusão” e “nervosismo” eram as palavras que mais utilizava para se descrever, para tentar dizer daquilo que sentia e que não tinha outro nome, não tinha forma, era como se alguma coisa viesse de fora e tomasse conta dele, como se houvesse algo dentro dele que não fazia parte de si mesmo. Havia parado de fumar e se sentia melhor. Disse que antes via maldade nas atitudes de sua família; que eles davam conselhos para que mudasse de vida e ele via maldade nos conselhos. Pensava que sua família estava contra ele, mas que na realidade, eles não estavam.

Sobre ter perdido a perna, para Robson, não havia muito a dizer. Contou que tinha uma tatuagem na perna amputada, era o desenho do rosto de uma mulher. à pergunta sobre a escolha dessa figura especificamente – se era uma mulher que tinha algum significado em sua vida – respondeu que era só o rosto de uma mulher, uma desconhecida. Contou que não gostava da tatuagem e que vivia tentando arrancá–la disse que já havia tentado de diversas formas, chegara a jogar leite quente para queimá–la, mas nada dera certo. Certamente não queria dizer com isso que perder a perna era uma forma de se livrar da tatuagem. Na verdade, estava mostrando a desconexão existente entre “ele” e “a perna”. Não era só a sua fala que estava desorganizada e desestruturada.

Ao olharmos para este pequeno recorte da história de Robson, podemos refletir e considerar hipóteses acerca de falhas significativas nas tarefas iniciais do amadurecimento: integração, personalização e contato com a realidade.

Se pensarmos em termos de tempo e espaço, Robson mostrava muita dificuldade em se perceber como alguém que tem uma história, com sua vida tendo uma continuidade ao longo do tempo, a partir de suas próprias vivências. Ele oscilava entre relacionar–se com a realidade como objeto subjetivo e perceber indícios de que existia uma realidade externa a ele, como quando falou que sua família lhe dava conselhos, mas ele via maldade nos conselhos. Naquele momento Robson tentava fazer uma diferenciação entre aquilo que era próprio seu; sua realidade subjetiva – ele pensava que a família estava contra ele – e aquilo que era externo a ele – eles não estavam contra. A importância dessa reflexão não reside em descobrir se alguém estava contra ele ou não, mas no esforço que precisava realizar para separar realidade e fantasia e se relacionar com o mundo objetivamente percebido.

Quando contou do acidente sofrido, Robson apresentou fragmentos desordenados – o emprego, o barulho das crianças, o nervosismo, a necessidade de sair de casa e andar, o medo de machucar alguém. Esses elementos apareciam em seu relato ora como uma seqüência de fatos, ora como pensamentos/idéias isolados. A intervenção da terapeuta foi no sentido de perguntar–lhe coisas concretas – de onde vinha quando andava pela linha do trem, para onde estava indo, como era o seu emprego, há quanto tempo trabalhava nesse emprego, quem eram as crianças que moravam em sua casa, etc. O que se intencionava naquele momento era servir como um auxílio externo para descrever o que lhe havia acontecido e inserir o acidente como um fragmento de sua história inscrita em uma dimensão de tempo–espaço.

A amputação da perna – assim como possivelmente outras vivências – parecia uma questão ainda não registrada, dimensionada, vivida por Robson; daí a constante referência ao sentimento de confusão diante da vida e do outro. Para que houvesse a experiência da perda de uma parte do corpo, seria necessário que houvesse a percepção de um corpo próprio, personalizado. No caso de Robson, essa personalização aparecia de forma bastante precária.

Quando Robson contou da tatuagem que tinha em sua perna, de seu incômodo com a figura desenhada que não ficara como ele gostaria e de suas tentativas de apagá–la, a perna aparecia como fundo. O que surgia como destaque era um desenho que precisava ser apagado. Robson não parecia viver um incômodo em seu corpo, era como se estivesse olhando um quadro pendurado à sua frente, cuja imagem não conseguia eliminar. Nesse sentido era como se a perna estivesse descolada, como se não fizesse parte de si mesmo. A ação realizada para apagar o desenho, qualquer que fosse ela, não era percebida como uma ação que incidia também sobre a sua perna, seu corpo, ele mesmo.

Da mesma forma, o acidente sofrido nos trilhos do trem poderia ter a mesma conotação. Se olharmos para Robson como uma pessoa em quem prevalece uma cisão psicossomática, não é possível saber ao certo se ao andar nos trilhos do trem, ele tinha a percepção de estar exposto a um acidente que colocava em risco a sua vida. Ou, se a exemplo da tatuagem, o corpo (e não só a perna) não era percebido como parte de si mesmo, exposto ao risco de ser ferido ou morto.

Assim, a perda da perna poderia ser considerada uma conseqüência da precariedade na constituição do si mesmo de Robson; possivelmente a partir de uma falha em tornar o corpo, soma, ou seja, o corpo vivo, personalizado à medida que vai sendo elaborado imaginativamente.

 

Rogério

Rogério, policial militar, foi atropelado por um carro desgovernado e, como conseqüência, teve amputada uma perna. Na ocasião tinha 27 anos, era casado desde os 20, e tinha um filho de seis.

Rogério trabalhava em três empregos, um deles uma firma de rastreamento de veículos roubados. No dia do acidente fora buscar um caminhão que havia sido encontrado abandonado em uma estrada; estacionou sua moto no acostamento e desceu. Um carro, que vinha trafegando na via, não conseguiu fazer a curva e o atropelou. Teve traumatismo craniano e múltiplas fraturas na perna.

Percebeu, no local do acidente, pela reação dos colegas que o socorreram que era muito grave. Ficou em coma por alguns dias e quando acordou já estava sem a perna. Disse que ficou desesperado, pediu para morrer, achava que como tinha perdido a perna nada mais valia a pena.

Em seu trabalho, já vira várias pessoas que haviam sofrido acidentes como o dele e ficaram com seqüelas graves e incapacitantes e sempre pensava como alguém podia viver com essas limitações e deficiências. Enquanto estava internado, conversou com a psicóloga da Polícia Militar e lhe disse que estava bem, confiante, esperava colocar uma prótese e ficar bem. Disse que ela acreditou nele e liberou sua arma, mas quando chegou à sua casa descobriu que a esposa escondera a munição. Acreditava que se não fosse por isso teria tentando se matar.

Rogério trabalhava em três empregos, por opção própria. Havia noites em que não dormia, emendando um trabalho no outro. Disse que sempre foi muito agitado; não parava nunca, não ficava parado nem para conversar. O pessoal na corporação reclamava e dizia que ele não tinha conversa com ninguém. Rogério contava de uma inquietação que o levava a fazer coisas o tempo todo. Falava de uma impossibilidade de parar, o que quer que isso significasse para ele ou despertasse nele.. Ao mesmo tempo, apontava para a dificuldade de estar com alguém, se relacionar.

Pouco falou sobre a família. Mencionou que depois que casou afastou–se da família porque a mãe, a sogra e a esposa brigaram. Ficou muito reticente ao falar de seus pais, mencionou a briga de sua mãe com sua esposa, mas não como uma questão importante para ele naquele momento. Podemos pensar que Rogério não queria falar dessa briga porque havia outro sofrimento mais presente, ainda que não explicitado: não se sentia compreendido e amparado em sua dor, pela sua família. Ao mesmo tempo, a briga o colocava em situação de escolha: ou tinha a esposa ao seu lado, ou sua mãe. Ele não tinha como prescindir de nenhum dos lados e ressentia–se de não ser atendido em sua necessidade. Disse que os pais foram só duas vezes ao hospital enquanto estava internado e depois que voltou para casa não foram nenhuma vez. A sua mãe lhe disse que fora uma escolha dele, mas ele não percebia dessa forma. Não se sentia em condições de pedir o apoio dos pais, uma vez que eles sabiam de sua situação e não se aproximavam. Rogério dizia que não conseguia pedir, mas demonstrava claramente a necessidade que tinha dessa presença familiar.

Ficou muito magoado com uma conversa que ouviu enquanto estava internado Contou que estava em coma, mas escutava tudo o que falavam perto dele e ouviu sua mãe perguntar para sua esposa se continuaria com ele, mesmo ele estando “aleijado”. Rogério disse que ficou muito triste ao ouvir isso e não havia contado a ninguém esse episódio, apesar de não conseguir esquecer a cena e pensar nisso frequentemente.

Disse que quando olhava a perna sentia muita raiva da vida e do destino. Apesar de sentir que tudo estava muito difícil para ele, achava que tinha que “se segurar” e se controlar porque tinha medo de descontar a raiva na esposa e magoá–la. Ela lhe dissera que o pior era vê–lo revoltado e, a partir disso, ele passou a tentar não demonstrar como se sentia. Disse que se não fosse assim seria muito pior para ele porque estava brigando muito com a esposa e ela não merecia o que ele estava fazendo com ela. Também achava que ninguém agüentaria um cara sem perna e chato, revoltado, como ele se percebia. Portanto, tinha que agüentar sozinho.

Rogério usou o espaço das sessões como breves momentos onde pôde dizer aquilo que realmente sentia. Mostrou a angústia, o vazio, a falta de sentido que havia tomado conta de sua vida – a vergonha e o sentimento de impotência diante de seu corpo amputado – ao mesmo tempo em que disse como tentava se proteger dessa dor: sendo aquilo que entendia ser o esperado dele, ou seja, superar a perda, ficar bem com a prótese, não se revoltar, não reclamar. Tentando viver a perda da perna de uma forma diferente daquela que ele estava realmente vivendo, Rogério buscava não perder o amor de sua esposa e de seu filho e não destruí–los com sua raiva e revolta pelo que havia lhe acontecido.

Nas sessões ele pôde comunicar o que estava vivendo internamente, talvez pela primeira vez desde o acidente, como ele mesmo afirmou ao dizer sobre a conversa que ouviu entre sua mãe e sua esposa quando estava em coma e que o marcou profundamente.

Estar amputado trazia sentimentos de profunda desvalorização, tristeza e esvaziamento do sentido da vida para Rogério. Sentia vergonha da perna amputada, afirmava que a vida não tinha mais sentido, ao mesmo tempo em que sentia muita raiva que isso tivesse lhe acontecido. O sentimento de impotência aparecia de forma intensa e também o medo de destruir a pessoa que estava cuidando dele e de quem se sentia dependente: sua esposa. Uma hipótese a ser considerada seria estarmos diante de um quadro de depressão, desencadeada por uma perda concreta, diante da qual não se encontrou possibilidade de reparação.

Diferentemente de Robson, Rogério se aproxima da vivência da ambivalência. Assim era com a esposa, de quem gosta e com quem queria estar, mas também com quem brigava e a quem agredia manifestando a raiva de ter perdido a perna. Porém, aproximar–se dessa ambivalência gerava muita culpa e muito medo da retaliação, que, no caso da esposa, seria deixá–lo.

é possível pensar que antes da amputação também não havia a integração instintual necessária para a continuidade do desenvolvimento e o estabelecimento de relações interpessoais amadurecidas. Rogério aponta, anteriormente ao acidente, para uma fuga da depressão em termos de defesa maníaca – exemplificada esquematicamente por sua agitação, sua impossibilidade de “parar”, a necessidade de trabalhar em vários empregos como forma de preencher todo o tempo. Nesse sentido, a perda da perna redimensiona a estruturação defensiva, que passa a se configurar como depressão, porém mantendo a cisão que dificulta a integração da experiência e a continuidade de amadurecimento.

Essas duas vinhetas clínicas nos mostram que, em termos de tratamento e daquilo que chamamos reabilitação, é de fundamental importância a realização de um diagnóstico apurado no sentido de compreender quais são os recursos que o indivíduo dispõe, em termos de amadurecimento emocional, para experienciar essa perda física e, complementarmente, quais são os entraves existentes no desenvolvimento emocional daquela pessoa que sofreu uma amputação. Isso porque, é a partir desse diagnóstico que será possível também compreender quais são as condições que esse indivíduo dispõe para transformar a perda em experiência e qual é a sua necessidade em termos psicoterapêuticos.

Neste trabalho, considerado como intervenção terapêutica, estiveram presentes diversos aspectos abordados anteriormente e relacionados à utilização da teoria do amadurecimento pessoal de D.W.Winnicott, em um contexto outro que não a clínica tradicional – neste caso uma instituição de saúde. Assim, podemos apontar: o favorecimento das condições para o desenvolvimento pleno do indivíduo e não a correção de uma falta; o cuidado para que o terapeuta ou o ambiente mais amplo não sejam intrusivos, a busca da comunicação efetiva entre paciente e terapeuta e a preocupação em oferecer ao paciente o necessário para auxiliá–lo a elaborar a experiência. Ao estarem presentes nessa proposta de atendimento às pessoas amputadas, esses aspectos ajudaram a compor um setting, que muitas vezes nas instituições não pode ser garantido pelo espaço físico, pelo número de sessões ou por outras condições e permitiram que cada paciente pudesse ser atendido a partir de sua necessidade individual.

Para concluir gostariamos de acrescentar que consideramos Winnicott um pensador à frente de seu tempo. A oportunidade, por ele oferecida de diferentes formas de intervenções terapêuticas, precede a dificuldade atual de realização da psicanálise clássica e a necessidade de diversificação no atendimento devido as modificações sociais e culturais. Vivemos um momento em que as condições de vida do mundo atual normalmente não são favoráveis para o desenvolvimento dos indivíduos. Vivemos um momento em que o conceito de tempo se modificou. A quantidade e velocidade das informações a que estamos expostos cotidianamente, as exigências da sociedade, as dificuldades de relações entre as pessoas em uma cidade como São Paulo nos faz viver uma época paradoxal. Vivemos um tempo cronológico mais longo, mas parece que temos menos tempo para “ser” e “fazer”.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E–mail: mltma@usp.br

Enviado em: 31/10/2008
Aprovado em: 16/3/2009

 

 

*Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Docente do Instituto de Psicologia – IPUSP, Coordenadora do LIDE – Laboratório Interunidades para o Estudo das Deficiências.
** Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Especialista em Psicologia Hospitalar, Membro do LIDE – Laboratório Interunidades para o Estudo das Deficiências.
1 LIDE– Laboratório Interunidades para o Estudos das Deficiências do Departamento de Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Trabalho em desenvolvimento para tese de Doutoramento em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, por Andréa Perosa Saig Jurdi sob orientação da Profa Dra Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian.
3 Trabalho em desenvolvimento para tese de Doutoramento de Beatriz Pinheiro Machado Mazzolini, no IPUSP, sob orientação da Profa Dra Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian.
4 Trabalho realizado por Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian e Elisabeth Becker. – Apresentado em Congesso Internacional em Braga Portugal.
5 Trabalho desenvolvido por Fátima Cristina Monteiro de Oliveirapara a obtenção do grau de mestre em Psicologia sob orientação da Profa Dra Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian.
6 Trabalho realizado por Gabriela Bruno Galván para a obtenção do titulo de mestre em Psicologia sob orientação da Profa Dra Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian.
7 é importante destacar que a experiência, para Winnicott, é uma possibilidade de vivência a ser conquistada e não algo que acompanha intrinsecamente os fatos que ocorrem na vida de uma pessoa. Assim, circunstâncias, ocorrências, acontecimentos não são necessariamente experiências entendidas como elaborações que enriquecem o si mesmo e favorecem o desenvolvimento emocional saudável tanto do ponto de vista interno quanto no que se refere às relações interpessoais.