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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Winnicott com Gabrielle e seus pais

 

Winnicott with Gabrielle and her parents

 

 

Conceição A. Serralha

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Retomando o caso da pequena Gabrielle (Piggle), analisado por Winnicott, este estudo discute a participação dos pais no processo terapêutico da criança de uma forma incomum nos tratamentos psicanalíticos realizados na época. Winnicott chamou essa participação de psicanálise compartilhada (partagée), em que, além de uma participação nas sessões, de forma real ou transferencial, os pais trocaram com ele informações, preocupações e discutiram hipóteses por meio de cartas e telefonemas. Para o analista, o trabalho realizado dessa maneira permitiu a retomada do desenvolvimento de Gabrielle que havia sido dificultado por falhas na provisão ambiental, uma vez que possibilitou aos pais uma melhor compreensão e condição de satisfazer as necessidades da criança.

Palavras–chave: Psicanálise compartilhada (partagée); Winnicott; Ambiente; Caso Gabrielle (Piggle).


ABSTRACT

Restoring the case of little Gabriellle (Piggle), analised by Winnicott, this study discusses the participation of the parents in the therapeutic process of the child in an unusual way in the psychoanalitical treatments made then. Winnicott called this participation of shared psychoanalyses, in which the parents, besides some participation in the sessions, in a real or transferential way, share with him information, concerns and discussed hypothesis through letters and telephone calls. To the analyst, the work done this way allowed the restore of the development of Gabrielle wich had been hardened by flaws in the environmental provision, once it allowed the parents to have a better comprehension and condition to satisfy the needs of the child.

Keywords: Shared psychoanalyses (partagée); Winnicott; Environment; Case Gabrielle (Piggle).


 

 

De acordo com a teoria do amadurecimento emocional de D. W. Winnicott, a saúde relaciona–se a uma adequação entre maturidade emocional e idade cronológica da criança, e “as imaturidades são os resíduos daqueles estados sadios da dependência que caracterizam as fases iniciais do crescimento” (1982 [1954b], p. 205). Desse modo, entende–se o amadurecimento emocional como a constituição gradativa da capacidade de um indivíduo de ser ele mesmo, de cuidar de si mesmo, de suportar e elaborar falhas e decepções, de reconhecer que o outro pode ser e pensar de uma forma diferente, de ter capacidade de se relacionar responsavelmente com o ambiente, bem como de viver uma vida criativa e ver sentido nesta.

Segundo Winnicott, portanto, as patologias psíquicas estariam relacionadas a imaturidades persistentes ao longo do tempo e, sendo assim, em desacordo com a idade cronológica do indivíduo. Se descartados os problemas de malformação do cérebro e outros problemas neurológicos que contribuem para essas imaturidades1, estas resultariam de falhas, por parte do ambiente, no fornecimento de cuidados facilitadores do amadurecimento emocional da criança.

Desse ponto de vista, cada caso clínico teria necessidades diferentes que poderiam exigir mudanças na técnica psicanalítica clássica, cujo principal recurso é a interpretação. Essa técnica clássica seria aplicável aos casos de neuroses, ou seja, casos em que o amadurecimento da criança não foi bloqueado em idade mais precoce por inadequação do ambiente2, podendo ela alcançar um grau de integração maior que lhe possibilite a condição de ser um si mesmo individual. Os casos mais graves, de autismo ou de outro tipo de psicose, no início necessitariam apenas de holding, muitas vezes holding físico (contenção ou algum outro tipo de cuidado físico), principalmente quando o terapeuta demora a compreender a necessidade da criança (Winnicott, 1965vd [1963]). A crença de Winnicott era de que: “Se o terapeuta é adequado por temperamento e capaz de ser objetivo e preocupado com as necessidades da criança, então a terapia se adaptará às necessidades do caso como se apresentarem no curso do tratamento” (1990b [1958h], p. 106).

No entanto, há muita discussão a respeito desse modo flexível de atendimento às necessidades do caso, que, às vezes, leva a conclusões precipitadas como, por exemplo, a de que algumas mudanças descaracterizariam o método e a técnica psicanalíticos, não podendo um tratamento assim ser considerado psicanálise. Winnicott, em sua época, nos casos em que a psicanálise clássica não era aplicável, entendia que outro cuidado deveria ser feito e não sentia que deixava de ser psicanalista por isso. Afirmou que, “então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim?” (1990b; 1965d [1962], p. 155).

Com esse modo winnicottiano de pensar um trabalho psicoterapêutico, depreende–se que todo tipo de tratamento psíquico que tenha em sua base, ou como guia a teoria do amadurecimento emocional desse autor, mesmo que não utilize a interpretação – que objetiva tornar consciente o que está inconsciente – deve ser psicanálise winnicottiana. Para ele, “a psicanálise não se resume a interpretar o inconsciente reprimido; é, antes, o fornecimento de um contexto profissional para a confiança, no qual esse trabalho pode ocorrer” (1996; 1986f [1970], p. 89).

O maior objetivo de qualquer alteração no processo terapêutico torna–se, portanto, o fornecimento de uma sustentação emocional que permita a retomada da continuidade de ser da pessoa em tratamento. Nas palavras de Winnicott, “a teoria por trás disso é que a provisão ambiental adequada facilita o processo interno de maturação” (1990b [1963g], p. 176). Ainda sobre essa questão, Winnicott comenta:

quando estamos face a face com um homem, uma mulher ou uma criança, estamos reduzidos a dois seres humanos de mesmo nível. As hierarquias caem. Posso ser médico, enfermeiro, assistente social, um parente que vive na mesma casa, ou, a propósito, psicanalista ou padre. Não faz diferença. Relevante é a relação interpessoal, em todos os seus ricos e complicados matizes humanos. Há um lugar para hierarquias na estrutura social, mas não no confronto clínico (1996; 1986f [1970], p. 89).

A consciência de todas essas questões que envolvem o amadurecimento humano e o tratamento das consequências de interferências nesse, permitiu a Winnicott inovar e ver que não há meios de obter sucesso no tratamento individual da criança, sem a participação dos seus cuidadores. O tratamento sem a participação destes se torna impossível, sobretudo nos casos em que algumas falhas do ambiente, na compreensão e no atendimento de necessidades da criança, estão impedindo o prosseguimento do processo de integração individual desta. Nesse caso, a participação do ambiente torna–se necessária, independentemente da modalidade de atendimento, uma vez que a criança necessita, para retomar o seu desenvolvimento, de regredir à dependência, muitas vezes absoluta e extensiva para além do setting analítico. Precisa–se ajudar o ambiente a dar–se conta disso e adequar os seus cuidados. O caso de Gabrielle, analisado a seguir, é exemplar.

 

Trabalhando com Gabrielle e seus pais

Ao receber um novo caso, além do diagnóstico do momento do amadurecimento em que a criança se encontrava, Winnicott considerava importante “avaliar a capacidade da família de tolerar e assumir a criança que está doente e de suportar a doença da criança por um período de tempo antes que a psicoterapia começasse a fazer efeito” (1980; 1961b [1957], p. 64). Segundo Dias (2002), Winnicott chegou a dizer que o tratamento só poderia ser realizado se ele pudesse contar com a família como co–terapeuta. Além disso, ele considerava a acessibilidade, ou não, da família ao consultório, a distância de sua moradia até este e a frequência possível das sessões, entre outros aspectos. A possibilidade de tratar Gabrielle, uma garotinha de 2 anos e 5 meses de idade, apelidada de Piggle e que morava distante de Londres, foi analisada por ele tendo por base essas considerações.

Segundo os pais da menina, as preocupações desta a mantinham acordada à noite, e iniciaram–se após o nascimento de sua irmã, quando ela estava com 21 meses. Além da vigília, Gabrielle também ficava facilmente aborrecida, deprimida, insegura, angustiada e ciumenta. O tratamento, que terminou quando ela estava com 5 anos de idade, não foi um trabalho de análise clássica, com 4 a 5 sessões por semana, mas sim um trabalho de psicanálise de acordo com a demanda, por causa das condições já citadas de acesso dificultado pela distância. As sessões com Gabrielle aconteciam quando esta as solicitava, dentro das possibilidades de Winnicott, uma vez que o tratamento aconteceu quando ele já não se encontrava bem de saúde.

Winnicott chamou a atenção para a “saúde básica” na personalidade de Gabrielle, não definindo um diagnóstico, mas parecendo descartar uma psicose. Para ele, após um primeiro momento do tratamento, em que a patologia da criança se tornou “um padrão organizado como doença”, ou seja, em que defesas mais primitivas se organizaram no lugar das defesas que entraram em colapso, o que se estabeleceu foi um trabalho de retomada de “uma série de estádios de maturação”, que já haviam sido vividos por Gabrielle antes da segunda gravidez de sua mãe.

Os pais participaram do tratamento de uma forma praticamente incomum nos tratamentos psicanalíticos da época. Essa participação não aconteceu somente pelo fato de os pais necessitarem de acolhimento e compreensão acerca do que estava acontecendo com Gabrielle, ou porque Winnicott necessitava de informações sobre ela, mas porque ele entendia que, com a sua ajuda, os pais seriam capazes de auxiliar a criança em seu desenvolvimento; houve o que Winnicott chamou de psicanálise compartilhada. Os pais e Winnicott compartilharam informações, preocupações, hipóteses por meio de cartas e telefonemas, além de uma participação, nas sessões, de forma real ou transferencial. Na verdade, a mãe, pessoalmente, só esteve presente na primeira consulta; já o pai, esteve presente em todas as subsequentes. Winnicott acreditava que as angústias da mãe se encontravam, de fato, na etiologia do adoecimento da menina.

Retomando as anotações de Winnicott sobre a sua maneira de trabalhar com os pais de Gabrielle, encontra–se o seguinte: “dividir o material com os pais – terapia de família não – estudo de caso não – psicanálise partagée (compartilhada)” (1987 [1977], p. 10). A partir dessa conclusão do autor, torna–se importante analisar essas diferentes possibilidades de relação com os pais – que Winnicott considerava existir na análise de crianças –, juntamente com os prováveis motivos que o levaram a optar por um compartilhamento.

Em primeiro lugar, por que Winnicott não considerou esse trabalho como uma terapia de família?

Sabe–se que, na terapia de família, mesmo que se identifique a doença em um de seus membros, o terapeuta toma para tratamento o grupo familiar, estabelecendo com cada um dos membros desse grupo uma relação de intensidade semelhante. Segundo Cordeiro (1987), na avaliação de um caso, “o terapeuta familiar não nega que um membro possa não ter se adaptado bem, mas a sua atenção estará voltada para a ‘função perturbada na família‘. Desse modo, fazer o diagnóstico em uma perspectiva familiar, é levar o terapeuta a compreender o funcionamento da família” (p. 14).

Lendo o relato do caso, percebe–se que não foi esse o enfoque dado por Winnicott. Ele nunca deixou de considerar que estava tratando a pequena Gabrielle, embora cuidasse também das angústias e das necessidades dos pais.

Contudo, a não consideração do tratamento de Gabrielle como uma terapia de família não quer dizer que Winnicott tenha seguido um modelo psiquiátrico, que entendesse a condição em que Gabrielle se encontrava como uma questão de estrutura, ou de perturbação intrapsíquica em que ela se tornasse única e exclusivamente o centro de sua patologia. Além disso, os pais de Gabrielle não foram contatados apenas para que Winnicott obtivesse deles informações sobre ela e seu problema, ou para que recebessem orientações práticas.

O modo de trabalhar de Winnicott, sem retirar o foco das angústias da criança, mas deixando “caminho aberto para que o relacionamento da paciente com seus pais se desenvolvesse como parte do processo terapêutico total” (Claire Winnicott, 1987 [1977], p. 10), mostrava a sua visão sobre a parte de responsabilidade que cabe ao ambiente no adoecimento da criança. Além disso, esse modo possibilitava aos pais confiar no terapeuta, evitando interferências negativas e tornando a colaboração e participação deles importantíssimas para o êxito do tratamento.

Em segundo lugar, por que Winnicott não considerou o tratamento de Gabrielle como um estudo de caso?

Winnicott (1980; 1965e [1959]) descreve esse modelo de tratamento como um “processo de resolução de problemas”, que, na prática, coexiste com a psicoterapia, e ambos acabam se tornando processos dependentes um do outro. Entretanto, o estudo de caso relaciona–se, de modo específico, com a provisão social que precisa reparar uma deficiência do ambiente quando do adoecimento de uma criança.

No caso de Gabrielle, seus pais, além de serem profissionais com noções de trabalho psicanalítico3, foram avaliados por Winnicott como suficientemente saudáveis e capazes de colaborar com o tratamento da filha. Para ele, o estudo de caso é indicado para o tratamento de casos em que o ambiente original não foi suficientemente bom e, à época do início do tratamento, ao ser avaliado, foi considerado insuficientemente capaz de oferecer o que a criança necessitava. Winnicott (1980; 1965e [1959]) afirma:

O estudo de caso não é a característica principal, na grande maioria dos casos, nos quais a criança está mentalmente enferma. Geralmente existem pais que reconhecem a doença dos filhos e procuram tratamento para eles. O estudo de caso obviamente se torna a característica principal, quando a criança é mentalmente enferma e ao mesmo tempo existe uma deficiência do ambiente, a qual tem que ser reparada. Chamei atenção especial para o tipo de caso em que o estudo de caso adquire um significado especial, devido ao fato de que existe algum elemento de ruptura (pp. 156–157).

Outra característica ainda, que pode ser encontrada e que conduz a um estudo de caso, é a de que os pais não sejam capazes de tolerar que os sintomas não desapareçam de imediato e até se intensifiquem assim que começa o tratamento. Segundo Winnicott,

o analista é mais susceptível de tolerância da sintomatologia da criança do que os pais; estes tendem a achar que, uma vez que a criança entrou em tratamento, o aparecimento de sintomas deva significar um reinício do tratamento. Uma vez que se inicia um tratamento, o que se perde de vista é a rica sintomatologia de todas as crianças que são satisfatoriamente tratadas em suas próprias casas (1987 [1977], p. 18).

Ainda segundo Winnicott,

é possível que o tratamento de uma criança de fato, interfira em algo muito valioso, que é a capacidade da família de tolerar e enfrentar os estados clínicos da criança, indicativos de tensão emocional, ou paradas temporárias no desenvolvimento emocional, ou o desenvolvimento propriamente dito (1987 [1977] , p. 18).

No estudo de caso, portanto, uma nova provisão ambiental deverá ser oferecida por pessoas especializadas e por um elemento essencial que é a estabilidade institucional. Para Winnicott, nessa modalidade, mais do que o profissional responsável pelo caso, é a clínica ou a instituição que possibilita a continuidade da provisão ambiental que é oferecida, uma vez que não se tem como garantir a permanência de um profissional em um cargo para sempre. Segundo ele, “a clínica tem uma estabilidade que ultrapassa de longe a de qualquer indivíduo” (1980; 1965 [1959], p. 156). Esse elemento pode ser considerado fundamental para a transferência que a criança e, principalmente, os pais fazem com a instituição. A importância da estabilidade pode ser constatada nos casos em que a criança, mesmo tendo possibilidade de acompanhar o profissional – que deixa a instituição e com quem estabeleceu uma forte transferência –, para continuar o tratamento em outro lugar, permanece na atual instituição.

Finalmente, em terceiro lugar, por que Winnicott chamou o tratamento de psicanálise compartilhada (partagée)?

Ao contrário de todos os psicanalistas de crianças de sua época, Winnicott não acreditava na possibilidade de sucesso no tratamento de uma criança, mantendo os pais afastados deste. Sobretudo quando o trabalho não tinha como ser conduzido de uma forma tradicional, com várias sessões semanais.

Nos casos de psicanálise de acordo com a demanda e de consulta terapêutica, uma condição fundamental para o sucesso do tratamento seria a de que o ambiente da criança fosse capaz de dar a ela a sustentação emocional necessária nos períodos entre as sessões e após o término destas. Contudo, no caso de Gabrielle, o trabalho dos pais não se resumiu a essa sustentação inter e pós–sessões. Eles participaram efetivamente nas próprias sessões, em particular o pai, que se colocou totalmente disponível para ser usado por Gabrielle. Foram vários os usos, como, por exemplo, transferencialmente:

enquanto fazia acrobacias no colo do pai, contava–lhe todos os detalhes. Mas logo ela iniciou uma fase nova, e muito premeditada no jogo. ‘Eu também sou um bebê‘, anunciou. E desceu de cabeça por entre as pernas do pai até o chão”. Anotação de Winnicott: “Nascida do corpo do pai como se fosse do corpo da mãe” (1987 [1977], p. 39).

Esse uso transferencial do pai, por Gabrielle, era importante para Winnicott, pois, em suas palavras, desse modo ele ficava livre para outras funções (1987 [1977], p. 62). Entretanto, Winnicott percebia nesse movimento de Gabrielle que, além da transferência, havia também uma defesa contra a ansiedade que emergia na relação de Gabrielle com a pessoa real de Winnicott. Ele comentou:

Consegui que o pai se assentasse na cadeira na outra metade da sala, e Piggle subiu para o seu colo. Agora, desenvolveu–se outra vez o jogo no qual ela era um bebê, nascendo do pai, entre suas pernas. Isso repetiu–se muitas e muitas vezes. Era um esforço físico muito grande para o pai, mas ele prosseguia sem constrangimento, fazendo exatamente o que se exigia dele. Eu disse a Piggle que era importante ter um pai quando ela tivesse medo de ficar sozinha com Winnicott, e quisesse brincar com Winnicott um jogo semelhante àquele de nascer, usando um homem como uma mãe (1987 [1977], p. 62).

Para Winnicott, era importante o modo como Gabrielle usava o pai e ele mesmo na sessão, trocando papéis de acordo com a vontade dela, uma vez que, com isso, ela comunicava suas ansiedades e conseguia ser compreendida por eles. Por trás de tudo isso, Winnicott acreditava evidenciar–se “o sentimento de segurança com relação ao pai e à mãe reais” (1987 [1977], p. 64). Ela sempre buscava o pai e, transferencialmente, a mãe no pai, quando algo inesperado acontecia na sessão, gerando ansiedade e desagradando–a. Um exemplo era quando Winnicott antecipava o momento em que ela poderia lidar bem com os fatos evidenciados em suas interpretações, como o que se segue: “Você estava com medo de achar que você queria fazer bebês comendo os navios”. Gabrielle, então, respondeu: “Posso dizer ‘Alô‘ para o papai?” Ela foi até o pai, voltou e disse: “Não vou voltar mais” (1987 [1977], p. 71); e Gabrielle não quis mais voltar para a sessão.

Outro exemplo pôde ser visto na décima consulta, descrito assim por Winnicott:

Tocou meu joelho, mas saiu pulando e dizendo: ‘Eu tenho de ir até o papai. Eu vou voltar. Eu quero trazer minha boneca’. Era uma boneca muito grande chamada Frances. Trouxe a boneca para que eu a cumprimentasse. Ela estava acariciando o meu sapato. A ansiedade tinha se manifestado paralelamente aos contatos afetuosos. Nesse sentido, a separação de cada objeto uns dos outros, era uma defesa (1987 [1977], p. 116).

Winnicott tinha a compreensão do quanto era importante para Gabrielle buscar a proteção do pai nesses momentos, busca que podia ter até mesmo a função de que ela não necessitasse proteger–se com defesas mais primitivas. Provavelmente, em razão da grande ansiedade, ela se teria defendido dessa maneira se não tivesse podido contar com o colo do pai.

Apesar da ansiedade e das defesas contra esta, Winnicott tinha a confiança de Gabrielle, que podia ser percebida não só em consulta, mas também nos pedidos que fazia aos pais para vê–lo sempre que, em casa, as coisas ficavam muito difíceis para ela. Podia ser percebida uma alternância de ego auxiliar. Quando a ansiedade se originava na relação com os pais, Gabrielle buscava o Dr. Winnicott. Quando a ansiedade se originava transferencialmente, ou não, na relação com Winnicott, Gabrielle buscava os pais reais. Essas eram necessidades de Gabrielle, que Winnicott se empenhava em atender.

O seu olhar para o fato da dependência do indivíduo em relação ao ambiente – primordialmente no início da vida, mas, também, ao longo de vários momentos de estresse no desenvolvimento do ser – justifica e corrobora diferenças substanciais na maneira com a qual Winnicott conduzia a participação dos pais na análise da criança, quando cotejado com outros psicanalistas. Se ele confiava nos pais, ou seja, se acreditava no potencial desses para uma colaboração, mostrava–lhes os desenhos do filho, comentava o que acontecia em sessão, buscando não só que os pais tivessem uma compreensão mais real do que estava se passando com a criança, mas também que pudessem ter um insight de como atender às necessidades do filho de uma forma própria.

Winnicott, no caso de Gabrielle, não teve nenhuma objeção em compartilhar o material das sessões com os pais. Isso pôde ser percebido em várias passagens como na carta da mãe a Winnicott, após a décima segunda consulta. Ela escreveu: “Desejava agradecer–lhe muito por ter–me enviado o texto datilografado da sua última sessão com Gabrielle. Foi uma grande gentileza sua, e eu fico satisfeita em saber que o senhor percebeu o quanto essa leitura me agradaria” (1987 [1977], p. 142).

Além das evidências de contato dos pais com o material produzido em sessão, ficou claro como Winnicott usava os pais para manter contato com Gabrielle, pois ele sabia da importância de manter–se “vivo” para ela. Em carta aos pais, após a oitava consulta, ele escreveu:

Aflige–me não poder marcar uma hora para Gabrielle imediatamente. Este período é muito difícil para mim. Seria possível a vocês dizerem a ela que pretendo vê–la, embora não possa fazê–lo de imediato? Não hesitem em telefonar–me ou escrever–me se acharem que eu me esqueci. Vocês podem transmitir o meu carinho à Gabrielle” (1987 [1977], pp. 99–100).

Winnicott também mostrou com o caso de Gabrielle, como o ambiente familiar, se potencialmente saudável, pode ser o próprio hospital mental da criança. Ele sabia, no entanto, que, mesmo com um potencial saudável, situações externas, fora da capacidade desse ambiente de controlar, poderiam ocorrer. Ao incluir entre as consultas relatadas, uma consulta na qual o calor interferiu provocando sono e letargia em si, fazendo–o necessitar de deixar a janela aberta com os ruídos externos incomodando Gabrielle, Winnicott permitiu–nos compreender aqueles pontos de sua teorização em que coloca o acaso como fator indissociável de um desenvolvimento satisfatório de uma relação ambiente–indivíduo, ou do próprio indivíduo. Em muitos momentos, por fatores alheios a qualquer contexto desejável, as condições modificam–se sem que se possa fazer algo para evitar mudanças indesejáveis. Daí, o cuidado, que Winnicott sempre teve, de evitar a culpabilização dos pais acerca do fracasso de suas relações com o filho, sem, contudo, deixar de apontar as responsabilidades inerentes aos seus papéis.

 

Considerações finais

A teoria winnicottiana sobre o ambiente, dentro da teoria do amadurecimento emocional, vem fundamentar várias ações do analista de crianças que antes eram consideradas impróprias e até mesmo absurdas no meio psicanalítico, como é o caso do compartilhamento da análise da criança com os pais. Por causa dessa consideração menor da participação do ambiente no tratamento da criança por parte da psicanálise tradicional, esse sempre foi um ponto do trabalho psicanalítico de Winnicott tratado superficialmente, como se fosse apenas uma atitude ocasional em sua prática, sem nenhuma relação com a sua teoria e, portanto, sem que lhe fosse dada devida atenção.

Cabe notar que, se o analista consegue conhecer e integrar o pensamento de Winnicott, ações semelhantes – que muitas vezes são realizadas por serem intuídas como necessárias ao tratamento, mas não são assumidas – deixam de ser “camufladas”, “escondidas” por esse analista, principalmente no contato com os seus pares, uma vez que existe uma fundamentação teórica substancial para essas. O analista dá–se conta de que o compartilhamento da análise facilita e é facilitado pela compreensão que os pais passam a ter dos processos envolvidos no amadurecimento do indivíduo, em especial, do fato da dependência indivíduo–ambiente e da regressão a essa dependência, que podem surgir tanto em momentos difíceis da linha do amadurecimento quanto do processo analítico. Assim, não haveria nada melhor, segundo Winnicott, do que aquilo que os pais conseguem compreender, naturalmente, com a própria participação no trabalho de análise. Winnicott afirmava que “isso é mais real para eles do que se eu contasse o que a criança disse” (1984 [1971vc], p. 11).

Por outro lado, isso não quer dizer que os pais ficarão a par das fantasias inconscientes ou dos sonhos do filho e sairão interpretando–o; isso é mister do psicanalista. Ocorre que, como dito antes, em muitos momentos da análise ou do tratamento, a criança regredirá a uma dependência absoluta não só do psicanalista e na presença deste, mas também do seu ambiente e, nesse caso, não há como separar o indivíduo do ambiente, sem prejuízos, nem mesmo para tratamento. Ciente disto, Winnicott afirmava: “O [de] que os pais necessitam sempre é ser esclarecidos sobre as causas subjacentes, não aconselhados e nem instruídos quanto a um método. Deve–se também dar aos pais margem para experiências e para o cometimento de erros, para que possam aprender à própria custa” (1982 [1954b], p. 211).

Esse tipo de relação com os pais, característico no trabalho de Winnicott, trouxe como resultado, em vários casos, o fato de a criança acabar prescindindo da análise, uma vez que os pais podiam encarregar–se do tratamento da criança em sua própria casa. Ele enfatizou bastante a necessidade que sentia de “haver figuras paternas sensíveis, que pudessem ser informadas e que pudessem ajudar a fazer julgamentos quanto a procedimentos adicionais” (1984 [1971vc], p. 15).

Tal modo de trabalhar torna Winnicott cada vez mais atual, pois tudo o que ele já percebia em termos de dificuldades para uma psicanálise clássica ou tradicional sustentar–se, encontra–se multiplicado nos dias de hoje. Dessa maneira, a experiência de Winnicott com tratamentos por meio de consultas terapêuticas, por exemplo, revela–se como uma alternativa possível de a teoria psicanalítica adentrar, manter–se e basear os trabalhos com crianças em instituições públicas de saúde. Outrossim, a modalidade de trabalho de acordo com a demanda parece ser muito mais adequada do que as análises com sessão uma vez por semana que foram surgindo nas clínicas naturalmente, em razão da impossibilidade real imputada pelas características e consequências das condições atuais de vida. Se nos primórdios da psicanálise era possível um trabalho sem a presença dos pais – entre outros motivos pela possibilidade de uma maior frequência das sessões –, hoje a participação destes se torna essencial para uma ajuda mais efetiva à criança, a pacientes psicóticos, ou àqueles bastante regredidos. Além disso, será sempre de fundamental importância para os pais, compreender muito bem o que está adoecendo o seu filho, ou seja, compreender quais são as necessidades deste que não estão sendo atendidas e que o fazem defender–se de todas as formas que lhe são acessíveis. Só assim poderão reparar suas falhas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E–mail:serralhac@hotmail.com

Enviado em 15/12/2008
Aprovado em 8/6/2009

 

 

1 Em seu texto “Fatores de integração e de ruptura na vida familiar”, Winnicott afirma o seguinte: “Quando a criança não está contribuindo, os pais são sobrecarregados com uma tarefa natural – eles têm de fornecer um meio familiar, apesar do fato de que não há ajuda derivada da criança. Há um limite além do qual não se pode esperar que os pais sejam bem sucedidos nessa tarefa” (1961b [1957], p. 62).
2 Nas palavras de Winnicott, “o meio ambiente ingressa no quadro da psiconeurose, em parte por determinar a natureza do padrão de defesa. A psiconeurose, contudo, não encontra a sua etiologia na condição ambiental, mas nos conflitos pessoais que pertencem especificamente ao indivíduo” (1989vl [1961], p. 57–8, [itálicos meus].
3 No Prefácio da edição inglesa, Claire Winnicott esclarece: “Os leitores deverão considerar que, no caso Piggle, seus pais eram profissionais que tinham conhecimento do campo da psicoterapêutica. A colaboração deles foi decisiva para o resultado do tratamento” (1987 [1977], p. 10).